terça-feira, 30 de dezembro de 2014




"Tudo flui", dizia Heráclito. Tudo está em movimento, e nada dura para sempre. Por esta razão, “não podemos "entrar duas vezes no mesmo rio”. Isto porque quando entro pela segunda vez no rio, tanto eu como o rio estamos mudados.


Jostein Gaarder, O mundo de Sofia

“Não quero que fique sem uma saudação minha pelo Natal, quando, no meio da festa, carregar a sua solidão mais dificilmente do que nunca. Mas se verificar, nesse momento, a que a sua solidão é grande, alegre-se com isto. Que seria, com efeito, uma solidão (faça esta pergunta a si mesmo) que não tivesse grandeza? Há uma solidão só: é grande e difícil de se carregar. Quase todos, em certas horas, gostariam de trocá-la por uma comunhão qualquer , por mais banal e barata que fosse; por uma aparência de acordo insignificante com quem quer que seja; com a pessoa mais indigna. Mas talvez sejam estas, justamente, as horas em que ela cresce, pois o seu crescimento é doloroso como o de um menino e triste como o começo das primaveras. Mas tudo isto não o deve desorientar. O que se torna preciso, é no entanto isto: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas – eis o que se deve saber alcançar. Estar sozinho como se estava quando criança,enquanto os adultos iam e vinham, ligados as coisas que pareciam importantes e grandes porque esses adultos tinham um ar tão ocupado e porque nada se entendia de suas ações.”

Rainer Maria Rilke, in Cartas a um jovem poeta

domingo, 14 de dezembro de 2014

O Homem — um ser pensante?

fabian perez

Quando consideramos como é vasto e próximo de nós o problema da existência, essa existência ambígua, perturbada, fugidia, semelhante a um sonho — um problema tão grande e tão próximo, que encobre e sobrepõe todos os outros problemas e finalidades logo que tomamos consciência dele — e quando consideramos que todos os homens, com exceção de alguns poucos, não são claramente conscientes desse problema, nem parecem perceber sua existência, mas se preocupam antes com qualquer outro assunto e vivem apenas no dia de hoje sem levar em conta a duração não muito longa de seu futuro pessoal, seja renegando expressamente aquele problema, ou contentando-se em relação a ele com algum sistema da metafísica popular; digo, quando consideramos tudo isso, podemos chegar à conclusão de que o homem só pode ser chamado de ser pensante num sentido muito amplo. Nesse caso, não nos surpreenderá nenhum gesto de irreflexão ou tolice, pois saberemos que o horizonte intelectual do homem normal pode até ultrapassar o do animal — cuja existência, sem nenhuma consciência do futuro e do passado, é inteiramente presente —, mas não está tão distante deste quanto se supõe. Isso explica porque os pensamentos da maioria dos homens, quando conversam, parecem cortados tão rentes quanto um gramado, de modo que não é possível encontrar nenhum fio mais longo.

Se esse mundo fosse habitado por verdadeiros seres pensantes, seria impossível haver essa tolerância ilimitada em relação aos ruídos de toda espécie, inclusive os mais horríveis e despropositados. De fato, se a natureza tivesse destinado o homem a pensar, ela não lhe daria ouvidos, ou pelo menos os proveria de tampões herméticos, como é o caso dos morcegos, que invejo por isso. Mas, na verdade, o homem é um pobre animal assim como os outros, cujas forças são apenas suficientes para conservar sua existência.

Por isso precisa de ouvidos sempre abertos que lhe anunciem a aproximação do perseguidor seja de noite ou de dia.


Arthur Schopenhauer, in A Arte de Escrever.

Fire and Ice




Some say the world will end in fire,
Some say in ice.
From what I've tasted of desire
I hold with those who favor fire.

 But if it had to perish twice,
I think I know enough of hate
To say that for destruction ice
Is also great
And would suffice.


Robert Frost
Santiago Carbonell


você engole borboletas
eu tenho o sol na barriga
você sempre anda de óculos
eu leio coisas antigas

você vara a noite
eu desenho cataventos
você gosta de ficção
eu tenho outros inventos

você anda desligado
e eu busco perspectivas
você me conta seus sonhos
e me ri e me cativa

eu tenho medo da noite
você ama a solidão
o meu amor se reflete
nas pupilas dos olhos de um cão

você teoriza a matéria
e eu adoro hidrantes
você quer a liberdade
e eu só vivo o instante

a gente faz uma viagem
e vê estrelas cadentes
e eu sonho um mar onde nado
e me afundo contra a corrente

você geme e se revolta
e eu penso no seu beijo
e enquanto você conversa
me dói no corpo o desejo

me arde no corpo o desejo
eu me espreguiço me espicho
e me chego e te provoco
meio anjo meio bicho

você me conta um segredo
eu te mostro um encanto
enquanto você toca flauta
desafinada eu canto

você absorve a paisagem
eu procuro a maravilha
você deixa alguns vestígios
e eu vou seguindo a trilha

você fala em liberdade
e eu me prendo no teu traço
você é abstrato divaga
eu te olho e te embaraço

ando na rua devagar
você corre na avenida
você tem melancolia
eu tenho medo da vida

você fala ao telefone
cercado dos seus amigos
eu passo os dias muito só
e só entendo depois que digo

de repente vem o encontro
sem que a gente entenda o nexo
eu te vejo e me compreendo
e me vejo em teu reflexo

eu te transmito fluidos
de uma forte ligação
e recebo uma corrente
quando pego na tua mão

você tem um magnetismo
eu sou dotado à magia
nossas auras se atraem
por uma questão de energia

você cospe margaridas
tem o mundo nas entranhas
eu fico horas olhando
o orvalho na teia de aranha

e a gente se precisa
como a um aditivo
numa coisa estranha a nós
sem razão e sem motivo

são coisas transcendentais
é inútil que eu lhe diga
você engole borboletas
eu tenho o sol na barriga


Bruna Lombardi, in ""No Ritmo dessa Festa"


o trabalho aprisiona
o dinheiro aprisiona
os relacionamentos aprisionam
a propriedade aprisiona
a "justiça" aprisiona
as religiões aprisionam...
Que pelo menos
O amor liberte!

 Wernner Lucas, Maquinações Interiores

Poética


Se o poema não se diz,
cada verso se desfaz.
A ideia é a matriz
e todo o resto é fugaz.
Mais o conciso é loquaz
se falta ao verbo raiz.
O prolixo se desdiz
se tanto verbo é falaz.
Ao poeta, a diretriz;
ao poema, tanto faz.

Antoniel Campos

O medo: o maior gigante da alma

 William Whitaker.

Para quem tem medo, e a nada se atreve, tudo é ousado e perigoso. É o medo que esteriliza nossos abraços e cancela nossos afetos; que proíbe nossos beijos e nos coloca sempre do lado de cá do muro. Esse medo que se enraíza no coração do homem impede-o de ver o mundo que se descortina para além do muro, como se o novo fosse sempre uma cilada, e o desconhecido tivesse sempre uma armadilha a ameaçar nossa ilusão de segurança e certeza.
O medo, já dizia Mira Y Lopes, é o grande gigante da alma, é a mais forte e mais atávica das nossas emoções. Somos educados para o medo, para o não-ousar e, no entanto, os grandes saltos que demos, no tempo e no espaço, na ciência e na arte, na vida e no amor, foram transgressões, e somente a coragem lúdica pode trazer o novo, e a paisagem vasta que se descortina além dos muros que erguemos dentro e fora de nós mesmos.
E se Cristo não tivesse ousado saber-se o Messias Prometido? E se Galileu Galilei tivesse se acovardado, diante das evidências que hoje aceitamos naturalmente? E se Freud tivesse se acovardado diante das profundezas do inconsciente? E se Picasso não tivesse se atrevido a distorcer as formas e a olhar como quem tivesse mil olhos? “A mente apavora o que não é mesmo velho”, canta o poeta, expressando o choque do novo, o estranhamento do desconhecido.
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.


 Fernando Teixeira de Andrade

"Aqueles que se juntam à noite e se entrelaçam num balançar de volúpia executam obra grave, reunindo profundezas, doçuras, e forças para a canção de algum poeta vindouro que há de surgir para dizer indizíveis prazeres."


Rainer Maria Rilke, Cartas a um Jovem Poeta
 Willem Haenraets

Não dês o coração nunca por inteiro, porque o amor
se for certo não interessa às mulheres,
nem elas sonham que o mesmo se vai
de beijo em beijo;
pois tudo o que é do amor
é deleite, amável, fugaz e fantástico.
Não dês o coração nunca sem reserva,
já que elas jogaram o delas,
digam seus lábios o que disserem.
E quem saberia do jogo o bastante
estando surdo e mudo e cego de amor?
Quem isto escreve sabe bem o que custa,
posto que deu o coração por inteiro
e perdeu.

William Butler Yeats

Be Near Me When My Light Is Low





Be Near Me When My Light Is Low
In Memoriam A. H. H. - Section 50
by Alfred Lord Tennyson (1809-1892)

Be near me when my light is low,
When the blood creeps, and the nerves prick
And tingle; and the heart is sick,
And all the wheels of Being slow.

Be near me when the sensuous frame
Is rack'd with pangs that conquer trust;
And Time, a maniac scattering dust,
And Life, a Fury slinging flame.

Be near me when my faith is dry,
And men the flies of latter spring,
That lay their eggs, and sting and sing
And weave their petty cells and die.

Be near me when I fade away,
To point the term of human strife,
And on the low dark verge of life
The twilight of eternal day.

Alfred Lord Tennyson
 In Memoriam A. H. H. - Poem 50 - From the 1984 series Six Centuries Of Verse
Fabiano Millani

"A justiça, cega para um dos dois lados, já não é justiça. Cumpre que enxergue por igual à direita e à esquerda."

"Saudade da justiça imparcial, exata, precisa. Que estava ao lado da direita, da esquerda, centro ou fundos. Porque o que faz a justiça é o “ser justo”. Tão simples e tão banal.Tão puro. Saudade da justiça pura, imaculada. Aquela que não olha a quem nem o rabo de ninguém. A que não olha o bolso também. Que tanto faz quem dá mais, pode mais, fala mais. Saudade da justiça capaz. (...)

"A injustiça, por ínfima que seja a criatura vitimada, revolta-me, transmuda-me, incendeia-me, roubando-me a tranquilidade do coração e a estima pela vida."

"[...] se o juiz é intérprete da lei, porque não há julgar, sem interpretar, intérprete da lei é também o legislador, porque sem interpretar não há legislar. Toda lei se destina a vigorar o direito existente, a modificá-lo, a revogá-lo, ou a substituí-lo. Toda lei, pois, vem apoiar, alterar, ab-rogar, ou transformar outras leis."

"A publicidade é o princípio, que preserva a justiça de corromper-se".


Rui Barbosa


Você não quer ver nada além do seu mundinho
E eu prefiro escrever meu próprio caminho
Fique com os seus bonsais, seus haicais
Sua paz, suas flores, seu jardim de inverno
Se isso é céu
Eu prefiro meu inferno
Porque você não quer ver nada além
Que ninguém ensina nada a ninguém

 Zeca Baleiro, Nada além

O Prazer é Abrir as Mãos


O prazer é abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que se estava encarniçadamente prendendo. E de súbito o sobressalto: ah, abri as mãos e o coração, e não estou perdendo nada! E o susto: acorde, pois há o perigo do coração estar livre!



Até que se percebe que nesse espraiar-se está o prazer muito perigoso de ser. Mas vem uma segurança estranha: sempre ter-se-á o que gastar. Não ter pois avareza com esse vazio-pleno: gastá-lo.

Clarice Lispector, in Crónicas no 'Jornal do Brasil (1972)'

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Devoto

Desenho a carvão Lovers Kiss, de Carla Carson

  O que faz a diferença no sexo é a devoção. É uma palavra religiosa, mas que combina perfeitamente com a cama. Estar inteiro. Interessado em dar prazer mais do que ter prazer. Voltado unicamente para aquela nudez.

A devoção excita. Devoto dos seios. Devoto das coxas. Devoto da cintura. Amar o corpo dela com toda avidez. Com os dentes mais do que a língua, com a barba mais do que a boca.

Pois só nos entregamos quando nos sentimos únicos. O devoto tem determinação, o que não pode ser confundido com pressa. Nada pode distraí-lo. Está disposto a tudo. Alheio ao que será dito a seu respeito, desinteressado da fama, disposto a nunca mais sair daquela fantasia.

A obscenidade é fome de amor.

Fabrício Carpinejar
 Emerico Toth

 Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.
Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.
Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não.
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração. 

Fernando Pessoa, 15-11-1930

Momento de felicidade

alex alemany


Felicidade é este momento,
você e eu sentados na varanda -
duas formas, dois rostos,
mas uma alma,
você e eu.

A beleza das flores
e o canto dos pássaros
nos dão a água da vida
quando entramos neste jardim,
você e eu.

As estrelas do céu vêm nos ver,
e mostramos a elas a lua,
você e eu.

Você e eu,
unidos em êxtase de alegria,
livres do juízo e da razão -
você e eu.

Os beija-flores do Paraíso bicam açúcar
quando nós rimos,
você e eu.

Mais incrível ainda,
estamos aqui ao mesmo tempo
no Iraque, na Pérsia,
você e eu -
numa forma aqui na Terra,
e noutra forma, no Paraíso.
E na Terra do Açúcar, você e eu...


Jalal ud-Din Rumi (tradução de Jorge Pontual)

 
São os dedos que tocam as flores
São os dedos
que tocam
as flores, ou são estas
que delicadamente pedem
às mãos
um gesto
de caricia

Albano Martins


Ceifaram-me as asas
antes de as sentir

como
abri-las
senão imaginando?

Casimiro de Brito


Morreu de quê?
- Sufocou com as palavras que nunca disse.

Guilherme Figueiredo, in: Despropósitos

O médico e o monstro (trecho)


"A sala de dissecação ocupava a maior parte daquele edifício e quase todo o piso térreo; a luz entrava por cima e pelo gabinete, que formava na outra extremidade da sala um segundo piso. Um corredor unia a sala à porta que dava para a viela e, por sua vez, comunicava separadamente com o gabinete por um segundo lanço de escadas. De resto, havia alguns pequenos quartos, muito escuros e um amplo sótão. Tudo isso foi examinado minuciosamente. Os cubículos só precisaram de uma vista de olhos.porque estavam vazios e, a julgar pelo pó que caía das suas portas a um simples movimento, havia muito tempo que não eram abertas. O sótão estava abarrotado de trastes velhos, na sua maioria pertencentes ao cirurgião que antecedera o Dr. Jekyll; no preciso instante em que abriram a porta, soltou-se dela uma teia de aranha enorme e emaranhada que durante muitos anos havia sido tecida à entrada e que os alertou para a inutilidade de procurarem mais. Em nenhum lado se via rasto de Henry Jekyll, vivo ou morto."

Robert Louis Stevenson, O médico e o monstro

Retrato do Artista Quando Jovem (trecho)


 
Aristóteles não definiu a piedade e o terror. Eu defini. Escuta…
A PIEDADE é o sentimento que faz parar o espírito na presença de algo que seja grave e constante no sofrimento humano e o une com o sofredor humano. O TERROR é o sentimento que detém o espírito na presença de seja lá o que for que seja grave e constante no sofrimento humano e o liga à sua causa secreta.
De fato, a emoção trágica é uma face olhando para dois lados, para o terror e para a piedade, pois que ambos são faces dela.
Repara bem que emprego o termo deter, ficar parado. Quero com isso significar que a emoção trágica é estática. Ou, antes, a emoção dramática é que o é. Os sentimentos excitados pela arte imprópria são cinéticos, desejo, ou repulsa. O desejo nos compele a possuir, a ir para alguma coisa; a repulsa nos compele a abandonar, a partir duma dada coisa. As artes que o excitam, pornográficas ou didáticas, são, por conseguinte, artes impróprias. A emoção estética (sempre emprego o termo geral) é, por conseguinte, estática. O espírito fica detido e suspenso acima do desejo e da repulsa.
O desejo e a repulsa excitados por meios estéticos impudicos não são realmente emoções estéticas, não só porque são cinéticas em caráter como também porque não são senão físicas. A nossa alma contrai-se ante aquilo que teme e responde ao estímulo daquilo que deseja por uma ação puramente reflexa do sistema nervoso. Nossas pálpebras fecham-se antes que estejamos cônscios de que a mosca está a ponto de entrar no nosso olho.
A beleza expressa pelo artista não pode despertar em nós uma emoção que é cinética, ou uma sensação que é puramente física. Ela desperta ou deve despertar, ou induz, ou deve induzir, um êxtase estético, uma piedade ideal ou um terror ideal, um êxtase que perdura, que se prolonga e que acaba, por fim, dissolvido pelo que chamo de ritmo de beleza.
O ritmo é a primeira relação formal estética duma parte com outra parte, em qualquer conjunto ou todo estético, ou dum todo estético para a sua parte ou para as suas partes ou duma parte para o todo estético do qual é parte.
Falar destas coisas, tentar compreender-lhes a natureza, e, tendo-a compreendido, procurar lenta, humilde e constantemente expressar (tornar a extrair da terra bruta ou do que dela procede, do som, da forma e da cor, que são as portas da prisão de nossa alma) uma imagem da beleza que chegamos a aprender — isto é arte.
Que é a arte? Que é que a beleza exprime? A arte é a disposição humana de matéria sensível ou inteligível para um fim estético.
Santo Tomás de Aquino diz que o belo é a apreensão do que agrada. Pulcra sunt quae visa placent.
Ele emprega a palavra visa para revestir as apreensões estéticas de todas as maneiras, seja através da vista ou do ouvido, seja através de qualquer outra perspectiva de apreensão. Esta palavra, conquanto seja vaga, é clara o suficiente para discernir o que haja de bom e de mau que excite o desejo e a repulsa. Significa certamente uma estase e não uma cinese. E relativamente ao real? Também produz uma estase do espírito.
Por conseguinte, estático, Platão, creio eu, disse que a beleza é o esplendor da verdade. Não acho que isso tenha um sentido, mas a verdade e a beleza são aparentadas. A verdade é contemplada pelo intelecto que é acalmado pelas mais satisfatórias relações do inteligível; a beleza é contemplada pela imaginação que é acalmada pelas mais satisfatórias relações do sensível. O primeiro passo na direção da verdade é compreender o escopo e o encaixe do intelecto mesmo, compreender o ato mesmo de intelecção. Todo o sistema de filosofia de Aristóteles repousa no seu livro de psicologia e esta, penso eu, no seu princípio de que o mesmo atributo não pode ao mesmo tempo e com a mesma conexão pertencer e não pertencer ao mesmo objeto. O primeiro passo na direção da beleza é compreender o limite e o escopo da imaginação, compreender o ato mesmo da apreensão estética.
Embora o mesmo objeto possa não ser bonito para toda a gente, toda gente pode admirar um objeto bonito, encontrar nele certas relações que satisfaçam e coincidam com os estágios próprios mesmos de toda apreensão estética. Tais relações do sensível, visíveis para mim através duma forma e para ti através doutras, devem ser, por conseguinte, as necessárias qualidades da beleza. Já agora podemos voltar ao nosso velho amigo Santo Tomás para outros dez vinténs de sabedoria.



James Joyce, Retrato do Artista Quando Jovem

O amor é a arte de se agarrar na vida

 Catrin Welz-Stein.


Você pode fazer o que quiser com isso. Guarde, jogue, passe adiante, sorria, chore, avise a polícia, reflita, esqueça. Não importa. É urgente dizer que eu tenho amor por você. Tenho, sim.

Não vai aqui nenhum pedido de reciprocidade, namoro, casamento. Nada disso. É só a minha necessidade teimosa de dividir o que eu sinto. Confesso. Eu até ensaiei no espelho para lhe fazer essa declaração com um certo jeito, mas resolvi ir direto. Sem rodeios e astúcias. Quem tem amor não perde tempo com bobagem. Eu amo e pronto. Amo! Tenho uma vontade grandiosa de trabalhar e construir e ter uma vida boa nesse mundo por onde você anda. É, dá em mim uma alegria tão grande, um sentimento tão cheio de dignidade que cada pedacinho meu se toma de uma pergunta simples, pegando fogo aqui dentro como mato seco no calor: se não for pra ser feliz, qual é o sentido disso tudo?

A vida é boa mas vez ou outra é tão difícil, né? Fazer o quê senão viver, então? O mundo é enorme mas é tão pequeno, os anos são longos mas o tempo é tão breve. Então vamos logo ao que interessa! Tome aqui o meu amor. Pode pegar. Ele não avança. É só amor.

Ódio, todo mundo tem de sobra. Deixemos de mentir a nós mesmos: todos já odiamos alguém ou alguma coisa. É do ofício de viver. Agora, passar por cima disso e seguir adiante é a escolha de se agarrar na vida, deixar o veneno escorrer pelo ralo, sair na urina. Eu aceito a troca. Pode demorar, mas devagar a raiva dá lugar à calma, esse recanto manso e agradecido dos amores. Entrego meu amor tanto quanto me recuso a confiar nesse negócio de que está tudo perdido e sem solução.

Está faltando é amor e eu tenho um tanto aqui a dar de graça. Fui juntando, sabe? Guardei amor com os anos e isso rendeu em algum fundo extraordinário de investimentos com juros e correções astronômicas. Fiquei rico. Agora quero dividir com o mundo porque o mundo tem jeito, sim. Mas dá trabalho, dá uma trabalheira danada e onde falta intenção amorosa também é fraca a disposição para a labuta. Você sabe, o amor é uma construção de vida inteira. E nós estamos sempre em obras.

Tome! Pegue aqui um bocado disso que me sobra e leve adiante. É só fazer o que eu fiz agorinha com você. Escolha alguém e diga a ele que anda rindo sem motivo, chorando sem razão. Diga a alguém que o quer bem. Pronto. Depois faça isso de novo. Com outro que também há de fazer bem a outra pessoa, e outra, e depois outra.

Você sabe, eu não sou dessa gente que se apega a tudo e a todos, não. Mas na vida, ah, na vida eu me agarro, me seguro, corro junto. Eu amo esse negócio de estarmos aqui em nossa companhia! E viver e amar são trabalhos coletivos. Nós precisamos uns dos outros.

Quando na vida falta amor, aí o nosso ódio desanda tudo. Repare. Repare no trânsito o sujeito que joga o carro em cima do outro, buzina raivoso, briga, xinga, parte pra cima de alguém com as mãos fechadas e uma bruta sede de ver o sangue alheio. Tivesse ele amor, não perderia tempo com essa bobagem toda. Aquele a quem o amor não falta nem liga quando toma uma fechada ou um buzinão. Deixa pra lá, respira, dá e pede desculpas, sorri, aumenta a música no rádio e segue seu destino sem ver a hora de estar de novo em casa, no seio de sua família, ao lado de seus amigos, na bem querença divina de suas coisas.

Vê quantas medidas paliativas e ridículas por aí, tentando inúteis substituir a necessidade de jogar em nossa cara que nós precisamos nos amar mais? Esperando diminuir o número de vítimas nas estradas, o governo obriga as fábricas automotivas a instalar freios infalíveis e airbags nos veículos. Quem sabe assim menos pessoas morram de desastre, né? Muito bem. Mas isso vai resolver é nada sem um pouquinho de amor entre nós.

Os carros deviam sair de fábrica com eletrodos nos bancos que disparem cargas fortíssimas de amor em seus motoristas e passageiros. O sujeito que tem amor ao outro tanto quanto a si mesmo não faz ultrapassagens proibidas e arriscadas a ponto de atentar contra a própria vida e a dos outros, não excede criminosamente os limites de velocidade, não avança no sinal vermelho contra pessoas na faixa de pedestres.

E para diminuir os homicídios? O governo aumenta as frotas policiais, reforça a vigilância, constrói cadeias, fecha o cerco. Está correto. Mas é pouco. Falta ensinar e praticar amor nas escolas. Amor que é educação e é empenho, trabalho, construção, respeito e tolerância.

Olha, a gente sempre pode se enganar, mas eu tenho a impressão de que um sujeito com o coração repleto de bons sentimentos não vai matar ninguém  nem vai roubar, agredir, violentar e praticar o mal para que outra criatura também decida lhe tirar a vida.

Está faltando amor por aí. Mas amor não é que nem água, que a gente raciona. Amor a gente divide sem desperdiçar. Amor a gente entrega de casa a casa em caminhões-pipa. Borrifa lá do alto em aviões-tanque para apagar o incêndio raivoso e desesperado do cada um por si. Entrega em envelopinhos perfumados de sorrisos e palavras gentis.

A gente devia aprender que a vida é alguma coisa por aí mesmo, um exercício poderoso de amar. E que o ódio só se espalha por onde falta amor. Na horta de quem não tem amor o mato cresce em largo desmazelo, entre famílias de carrapichos, ervas daninhas, plantas carnívoras, aranhas peçonhentas e tantas abobrinhas indigestas, sem futuro. Eu tenho amor aqui. Pode pegar. É nosso. Nós precisamos uns dos outros. Aliás, até para ser sozinha uma pessoa precisa das outras, para delas se afastar ou, como em muitos casos, por elas ser deixada.

Acontece que eu ando de amores por você que eu nem sei quem é. Porque eu sei que você é todo mundo que caminha por aí. Não importa. Eu tenho amor aqui e você também. Juntando o meu, o seu e o de todo mundo, deve dar em alguma coisa boa na vida.

ANDRÉ J. GOMES (Revista Bula)

Arremesso

Bellarmine Miranda

Por que despertar em mim esse animal
alucinado. Animal de olhos de fogo.
Selvagem e louco. Esse animal acuado
que perde sangue no jogo.
Essa fera que te ataca e te resiste.
Que por pouco não te mata.
Ah, essa desenfreada que me existe
e me devora. Por que despertá-la agora
já que há tanto vinha adormecida.

Por que assustá-la assim em meio ao sono.
Por que arrancá-la bruscamente de seu sonho
e transportá-la de repente para a vida.
Por que despertar em mim essa cavala doida
que vai te galopar de corpo inteiro.

Enlouquecida que vai se ferir em meio ao trote.
Porque atiçar esse bicho
que nessa luta vai morrer primeiro.
Que vai morrer de fome, de grito, de garganta enxuta,
de tanta entrega. Dilacerado de tanta força bruta.

Por que despertar essa besta que me habita
que se torna cruel e desumana quando aflita.
Por que gritar com ela no silêncio de um sono branco
em que já vinha há tanto.
Por que provocá-la em meio ao espanto
quando ainda não era o seu tempo.

Bruna Lombardi


“Em todos há uns ares de pequenos disfarces, alisam simultâneos o dorso do cão, será porque a pergunta traz no corpo mergulhadas as palavras Tempo e Duração? Eternidade e seu corpo de pedra e dentro desse corpo o tempo procraz insolência soterrado na carne, ai Rute se o tempo no teu rosto te cobrisse de rugas, se tivesse a dura e adocicada comunhão com as coisas, talvez sim tu serias mais bela porque o rosto adquire a refulgência e dor e maravilha e matéria de tudo o que te rodeia te penetra, e ao invés de gastares teu ouro no apagar das linhas finas e dos sulcos, tu te tocarias amante, mansa, sabendo que o vestígio de todas as solidões se fez presença no teu rosto, que o sofrido da água é cicatriz agora ao redor da tua boca, que tomaste para tua fronte a linha funda da pedra. Ruteidade de Rute se te conhecesses como Tadeu desejaria, se deixasses que o Tempo fizesse a sua casa no teu centro, se a nossa casa tivesse sido a vida de nossas próprias casas, Se Tadeu tivesse ouvido aquele murmúrio ecoante adolescente que se fez inesperado em verso: cria a tua larva em silêncio,também estou mudo e aguardo. e ao contrário, me fiz num caminhar insano e fui atrás dos teus murmúrios ocos e a vaidade tomou posse do meu corpo quem sabe se porque te via, Rute, dourada, os crepes da cor de um tabaco escolhido esvoaçavas sobre os tapetes cor de sangue, mas na verdade teus sapatos mínimos mergulhavam no sangue de Tadeu, eu não sabia, eras adequada ao cenário da sala, como se um traço fosse pensado apenas para te colocar num pergaminho-marfim mais precioso, e depois te sentavas nos tecidos listados, ostro do respaldar te refletindo a cara, Rute cravada no palco, e eu procurava um texto sábio para contraponto e me via repetindo os versos de um homem que conheci lúcido-louco: ames ou não ó minha amada / quero-te sempre boa atriz / mentir amor não custa nada / e custa tanto ser feliz."

Hilda Hilst - TADEU (da razão), do livro "Tu não te moves de ti"

Por que o socialismo?


O capital privado tende a se concentrar em poucas mãos, em parte devido à competência entre os capitalistas, e em parte porque o desenvolvimento tecnológico e a crescente divisão do trabalho alentam a formação de unidades maiores de produção em detrimento das menores. O resultado destes desenvolvimentos é uma oligarquia do capital privado cujo enorme poder não pode ser controlado efetivamente nem sequer por uma sociedade política democraticamente organizada. Isto é assim porque os membros dos corpos legislativos são selecionados pelos partidos políticos, em grande medida financiados ou de alguma maneira influenciados por capitalistas privados que, por todos efeitos práticos, separam o eleitorado da legislatura. A consequência é que os representantes do povo não protegem suficientemente os interesses dos grupos não privilegiados da população. Por outra parte, nas condições atuais os capitalistas privados controlam, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa escrita, rádio, educação). É então extremamente difícil, e por certo impossível na maioria dos casos, que cada cidadão possa chegar às conclusões objetivas e fazer uso inteligente de seus direitos políticos.

Por que socialismo? – Albert Einstein

fonte

Poema


De repente volta
o que nem sei se foi
sonhado ou vivido.
Que apelo me chega
desta voz que emerge
de tão fundas águas?
Alguém esquecido
no fundo dos tempos?
Meu anjo vencido?
Meu duplo secreto?
Que apelo indizível
me chama, me grita
que esqueça, que durma,
ou me divida em tantos
que nenhum seja eu?

Nem eu, nem ninguém. 

Emílio Moura 

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Adeus às armas (trecho)


“If people bring so much courage to this world the world has to kill them to break them, so of course it kills them. The world breaks every one and afterward many are strong at the broken places. But those that will not break it kills. It kills the very good and the very gentle and the very brave impartially. If you are none of these you can be sure it will kill you too but there will be no special hurry.”
― Ernest Hemingway, A Farewell to Arms

“Aos que trazem coragem a este mundo, o mundo precisa quebrá-los, para conseguir eliminá-los, e é o que faz. O mundo os quebra, a todos; no entanto, muitos deles tornam-se mais fortes, justamente no ponto onde foram quebrados. Então, aos que não se deixam quebrar, o mundo os mata”. Mata os muito bons, os muito meigos, os muito bravos - indiferentemente. Se não pertenceis a nenhuma desta categoria, morrereis da mesma maneira. Mas não haverá pressa nenhuma em matar-vos"

- Ernest Hemingway, Adeus às armas

Não é a ferocidade, mas a astúcia que apresenta um aspecto terrível e ameaçador; sem dúvida, o cérebro do Homem é uma arma mais terrível que a garra do leão. O Homem do mundo perfeito seria aquele a quem a indecisão nunca faz ficar encolhido e a quem nada aterroriza tampouco.

Arthur Schopenhauer, in Aforismos Para a Sabedoria de Vida.



"Pois não se pode excluir a dança, em todas as formas, da educação nobre; saber dançar com os pés, com os conceitos, com as palavras; ainda tenho que dizer que é preciso saber dançar com a pena"

Friedrich Nietzsche

Os poemas



Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...


Mário Quintana,  Esconderijos do tempo

Saudemos aqueles que amam demais.

Bill Bate

Saudemos aqueles que amam demais.
Que se desperdiçam pelas esquinas transpirando paixão.
São nobres os que não fazem contas na hora de amar.
Que não puxam o extrato para verificar o saldo e saber se mais amou ou se mais foi amado. Se mais recebeu ou se mais foi doado.
Bem aventurados os despudorados.
Aqueles que exibem seus corpos deliciosamente. Que não escondem a pele, a barriga, os pelos, as marcas colecionadas ao longo da vida.
Que não sentem vergonha de tudo aquilo que nos torna humanos.
Parabéns aos otimistas. Os generosos que enxergam o melhor na natureza do outro. Aqueles que miram o charme ao invés do defeito.
Saudações aos que desprezam a soberba. Que não se crêem os mais belos dos belos. Os que não estão com o copo totalmente cheio. Que não perdem a capacidade de regozijar por alguém que habita além de seu espelho.
Graças aos desmoralizados. Aos que queimam na inquisição social por não aceitarem o controle, o pragmatismo, a moral e as normas de conduta.
Felicitações aos fodidos de tanta paixão.
Que se abrem feito mala velha e se arriscam em nome do amor, já que há tempos prevalece a ferrugem nos sorrisos e nem os santos tem ao certo a medida da maldade.
Dedico um cálice de saliva aos que não se perdem em nojos tolos. Aos que não precisam de perfumes nem cremes.
Aqueles que suam. Os que olham no fundo dos olhos e vão no fundo do corpo, no fundo da alma e transbordam.
No mundo da autoajuda, premiemos aqueles que se ajudam mutuamente.
Na era do consumismo, felizes daqueles que preferem as pessoas às mercadorias, ainda que homens e mulheres não tenham garantia contra defeitos originais.
Se acaso for verdade que chegamos ao fim da história, preservemos os seres humanos que ainda mantém um acréscimo de desejo e se renovam em novas e velhas histórias de amor.

Rafael Castilho

O valor da oração




A oração foi inventada para aqueles que por si próprios nunca têm pensamentos, que ignoram o que seja elevação da alma ou a experimentam sem dela se darem conta: que farão eles em lugares santos e em todas as graves situações da vida, que requerem sossego e uma espécie de dignidade? Para que eles ao menos não ‘perturbem’, a sabedoria dos fundadores de religiões, das pequenas como das grandes, prescreveu-lhes a fórmula da oração, como um demorado trabalho mecânico dos lábios, associado a um esforço da memória e a uma mesma postura fixa para as mãos, os pés e olhos! Pouco importa se eles, como tibetanos, ruminam inumeráveis vezes “om mane hum”, ou, como em Benares, contam os dedos os muitos nomes do deus Ram-Ram-Ram (e assim por diante, graciosamente ou não); ou se exaltam Vishnu com seus mil nomes, ou Alá com seus noventa e nove; ou se utilizam moinhos de orações ou rosários – o principal é que com esse trabalho permanecem algum tempo imóveis e ofereçam uma visão tolerável: seu gênero de oração foi inventado para o benefício dos devotos que conhecem por si próprios elevações e pensamentos. E mesmo esse têm suas horas de cansaço, em que lhes faz bem uma série de palavras e sons veneráveis e piedosos gestos mecânicos. Mas, supondo que esse homens raros – em toda religião, o homem religioso é exceção – sempre saibam o que fazem: aqueles pobres de espírito nunca sabem, e pedir-lhes o matraquear das orações significa tirar-lhes a religião: como revela cada vez mais o protestantismo. Deles a religião quer apenas que ‘fiquem sossegados’, com os olhos, as mãos, as pernas e outros órgãos: assim tornam-se mais belos por algum tempo e – mais semelhantes a seres humanos!

Friedrich Nietzsche, in A Gaia Ciência

Lembrança



Ponho um ramo de flores
na lembrança perfeita dos teus braços;
cheiro depois as flores
e converso contigo
sobre a nuvem que pesa no teu rosto;
dizes sinceramente
que é um desgosto.

Depois,
não sei por que nem por que não,
essa recordação
desfaz-se em fumo;
muito ao de leve foge a tua mão,
e a melodia já mudou de rumo.

Coisa esquisita é esta da lembrança!
Na maior noite,
na maior solidão,
sem a tua presença verdadeira,
e eu vejo no teu rosto o teu desgosto,
e um ramo de flores, que não existe, cheira!

Miguel Torga

Apontamento

Bellarmine Miranda


Ó noite, ó noite, ó noite!
Luar e primavera
e os telhados cobrindo
sonhos que a vida gera!


Subo por essas horas
solitária e sincera,
e encontro, exausta e pura,
minha alma que me espera.


Cecília Meireles
In: Poesia Completa

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Antonio Tordesillas

O desejo revolvido
A chama arrebatada
O prazer entreaberto
O delírio da palavra

Dou voz liberta aos sentidos
Tiro vendas, ponho o grito
Escrevo o corpo, mostro o gosto
Dou a ver o infinito

 
Maria Teresa Horta
In As palavras do corpo, 2012
Adrian Gottlieb 

Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não doi,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia. 

Fernando Pessoa

Para que sejamos necessários



Transfere de ti para mim essa dor
de cabeça, esse desejo, essa violência.
Que careça em ti o meu excesso
e que me falte o que tu tens de sobra.

Que em mim perdure o que te morre cedo
e que te permaneça o que tenho perdido.
Que cresça, se desenvolva um teu sentido
que em mim desapareça.

Dá-me o que de possuir tu não te importas
e eu multiplico o que te falta e em mim existe
para que nosso encaixe forme uma unidade -indivisível -
que não se possa subtrair uma metade.


Bruna Lombardi


é apenas a forma que tens de me olhar,
sem que eu dê por isso, como se entre mim
e ti o espaço não contasse; ou é
o risco no cabelo, antes de chegar à trança,
indicando o caminho para o sonho
em que nos abraçamos; ou é o teu sorriso,
num esboço de algo que se perdeu
entre um e outro café, por entre
perguntas e conversas; ou é o fundo
dos teus olhos em que adivinho
a noite, e tu me dizes que
o dia está para nascer; ou
são as tuas pálpebras, em que me
escondes a inquietação com que
fechas os olhos, quando as certezas
do coração te ferem; ou és tu,
no puro instante em que te vejo,
e só tu existes.

Nuno Júdice

Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio sem lembrança de palavras. Se és morte, como te alcançar. É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem fantasmas. É terrível ― sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é vida. Ou neve, que é muda, mas deixa rastro ― tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como se fala da neve.

Clarice Lispector em "A Descoberta do Mundo"

domingo, 16 de novembro de 2014



A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.


Augusto Frederico Schmidt

"Eu estimava muito a eloquência e estava apaixonado pela poesia; mas acreditava que uma e outra fossem dons do espírito, mais do que frutos do estudo. Aqueles cujo raciocínio é mais ativo e que melhor ordenam seus pensamentos, com o intuito de torná-los claros e inteligíveis, sempre podem convencer melhor os outros daquilo que propõem, mesmo que falem somente o baixo bretão e nunca haja aprendido retórica. E aqueles cujas invenções são mais agradáveis e que as sabem apresentar com o máximo de floreio e suavidade não deixariam de ser os melhores poetas, mesmo que a arte poética lhes fosse desconhecida."

René Descartes, Discurso do método

Lamento em voz baixa



A vida que não tive
morre em mim até hoje.
Chega, límpida, pura,
sorri, pálida, foge.

A vida que não tive
salta, viva, de tudo.
Se me sorri nos olhos,
com que ilusão me iludo.

A vida que não tive
é o que há de mim em mim,
chama, orvalho, segredo
do nunca de onde vim. 


Emílio Moura

segunda-feira, 3 de novembro de 2014


"O que caracteriza a vida é um jogo constante entre a dor e a alegria, entre a vida e a morte. Tudo que nasce tem de morrer para que a vida continue. É porque sabemos que vamos morrer que temos urgência de viver. É porque sentimos dor que valorizamos tanto a alegria. Além do mais, não há um ser humano que não tenha vivido a dor. E se houvesse, ele não saberia também o que é alegria."

Viviane Mosé, Trecho do livro "O homem que sabe."

Renúncia

Pat Erickson

Rama das minhas árvores altas,
deixa ir a flor! que o tempo, ao desprendê-la,
roda-a no molde de noites e de albas
onde gira e suspira cada estrela.

Deixa ir a flor! deixa-a ser asa, espaço,
ritmo, desenho, música absoluta,
dando e recuperando o corpo esparso
que, indo e vindo, se observa, e ordena, e escuta.

Falo-te, por saber o que é perder-se.
Conheço o coração da primavera.
e o dom secreto do seu sangue verde,
que num breve perfume existe e espera.

Verti para infinitos desamparos
tudo que tive no meu pensamento.
Era a flor dos instantes amargos.
Por onde anda? No abismo. Dada ao vento...


Cecília Meireles
In Viagem, 1938

Tema e voltas

Olga Mest


Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se nos céus há o lento
Deslizar da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se lá fora o vento
É um canto na noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se agora, ao relento,
Cheira a flor da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se o meu pensamento
É livre na noite?

Manuel Bandeira

Introdução do Silêncio

 © Omar Ortiz


Em que lonjuras e frios
Fomos modelados
Para o nascimento do amanhã?

Em que limites escondidos
Fomos atirados?

Em que presença do terror
Fomos gerados
Para sentir no vento o odor do sangue?
Em que vácuo
Procuramos a paz que precisamos,
Em que imenso balcão
Fomos expostos,
Em que lodo fétido dos séculos
Foi atirada a grandeza do espírito?


Adalgisa Nery
In Erosão (1973)

O que amamos está sempre longe de nós

Grace Mehan DeVito


O que amamos está sempre longe de nós:
e longe mesmo do que amamos - que não sabe
de onde vem, aonde vai nosso impulso de amor.

O que amamos está como a flor na semente,
entendido com medo e inquietude, talvez
só para em nossa morte estar durando sempre.

Como as ervas do chão, como as ondas do mar,
os acasos se vão cumprindo e vão cessando.
Mas, sem acaso, o amor límpido e exato jaz.

Não necessita nada o que em si tudo ordena:
cuja tristeza unicamente pode ser
o equívoco do tempo, os jogos da cegueira

com setas negras na escuridão.


 Cecília Meireles

Palavra exata

Gleb Goloubetski



Para buscar a palavra
exata,
a palavra-mapa,
a que me nomeia,
velejo numa barca
abstrata, precária.
O vento me envolve
e sopra música
em meus ossos:
talvez eu seja
essa canção
invertebrada,
esse sopro.

Roseana Murray