sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Venho do Sono

Mark Arian


Venho do Sono,
desse fluido país
do pensamento visível,
dos endereços divinos,
dos nomes de amor,
das gloriosas ressurreições.


Venho do Sono.


Ai! distancias profundas...
E olho-me ao espelho.


Cecília Meireles



AMOR, quantos caminhos até chegar a um beijo,
que solidão errante até tua companhia!
Seguem os trens sozinhos rodando com a chuva.
Em Taltal não amanhece ainda a primavera.

Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos,
juntos desde a roupa às raízes,
juntos de outono, de água, de quadris,
até ser só tu, só eu juntos.

Pensar que custou tantas pedras que leva o rio,
a desembocadura da água de Boroa,
pensar que separados por trens e nações

tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos,
com todos confundidos, com homens e mulheres,
com a terra que implanta e educa os cravos.


Pablo Neruda
Tradução Carlos nejar

A lista


Faça uma lista de grandes amigos,
Quem você mais via há dez anos atrás!
Quantos você ainda vê todo dia,
Quantos você já não encontra mais!

Faça uma lista dos sonhos que tinha,
Quantos você desistiu de sonhar?
Quantos amores jurados para sempre
Quantos você conseguiu preservar?

Onde você ainda se reconhece,
Na foto passada ou no espelho de agora?
Hoje é do jeito que achou que seria,
Quantos amigos você jogou fora?

Quantos mistérios que você sondava,
Quantos você conseguiu entender?
Quantos segredos que você guardava,
Hoje são bobos e ninguém quer saber!

Quantas mentiras você condenava,
Quantas você teve que cometer?
Quantos defeitos sanados com o tempo,
Eram o melhor que haviam em você!

Quantas canções que você não cantava,
Hoje assobia para sobreviver!
Quantas pessoas que você amava,
Hoje acredita, que amam você!



Oswaldo Montenegro

haleh bryan 



Seu nome eu pronuncio. Seu nome é o que agora me nomeia

Agora seu rosto. Seus olhos. Seu corpo

Com minhas mãos eu passeio.

Seu contorno eu configuro com a língua.

Que é onde o gosto das coisas se deita.

Na ponta da língua eu trago eu te sorvo e te deleito


(ando pensando em você

isso engravida um pouco as coisas)



Viviane Mosé

A Noite Desce

Carlos Pinto 


A noite desce, o calor soçobra um pouco,
Estou lúcido como se nunca tivesse pensado
E tivesse raiz, ligação direta com a terra
Não esta espécie de ligação de sentido secundário observado à noite.
À noite quando me separo das cousas,
E m'aproximo das estrelas ou constelações distantes —
Erro: porque o distante não é o próximo,
E aproximá-lo é enganar-me.


Alberto Caeiro 
Poemas Inconjuntos

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Posições do corpo

Alex-Alemany




Sob o azul
sobre o azul


                       subazul
                       subsol
                      subsolo.


Cassiano Ricardo

Fabrizio R.



Filhos e versos, como os dás ao mundo?
Como na praia te conversam sombras de corais?
Como de angústia anoitecer profundo?
Como quem se reparte?
Como quem pode matar-te?
Ou como quem a ti não volta mais?


Jorge de Sena

Llorar a lágrima viva...






Llorar a lágrima viva. 
Llorar a chorros. 
Llorar la digestión. 
Llorar el sueño. 
Llorar ante las puertas y los puertos. 
Llorar de amabilidad y de amarillo. 
Abrir las canillas, 
las compuertas del llanto. 
Empaparnos el alma, la camiseta. 
Inundar las veredas y los paseos, 
y salvarnos, a nado, de nuestro llanto. 
Asistir a los cursos de antropología, llorando. 
Festejar los cumpleaños familiares, llorando. 
Atravesar el África, llorando. 
Llorar como un cacuy, como un cocodrilo... 
si es verdad que los cacuíes y los cocodrilos 
no dejan nunca de llorar. 
Llorarlo todo, pero llorarlo bien. 
Llorarlo con la nariz, con las rodillas. 
Llorarlo por el ombligo, por la boca. 
Llorar de amor, de hastío, de alegría. 
Llorar de frac, de flato, de flacura. 
Llorar improvisando, de memoria. 
¡Llorar todo el insomnio y todo el día!

Art by Ai Shinohara





quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Mar em redor

MaXu


Meus ouvidos estão como as conchas sonoras:
musica perdida no meu pensamento,
na espuma da vida, na areia das horas...

Esqueceste a sombra do vento 
Por isso, ficaste e partiste,
e há finos deltas de felicidade
abrindo os braços num oceano triste.

Soltei meus anéis nos aléns da saudade.
Entre algas e peixes vou flutuando a noite inteira.
Almas de todos os afogados
chamam para diversos lados
esta singular companheira.


Cecília Meireles
Giovani Ricciardi


Entre a raiz e a flor: o tempo e o espaço,
e qualquer coisa além: a cor dos frutos,
a seiva estuante, as folhas imprecisas
e o ramo verde como um ser colaço.

Com o sol a pino há um súbito cansaço,
e o caule tomba sobre o solo de aço;
sobem formigas pelas hastes lisas,
descem insetos para o solo enxuto.

Então é necessário que as borrascas
venham cedo livrá-la da cobiça
que sobe e desce pelas suas cascas;

que entre raiz e flor há um breve traço:
o silêncio do lenho, ― quieta liça
entre a raiz e a flor, o tempo e o espaço.


Jorge de Lima 

To a child dancing in the wind



DANCE there upon the shore;
What need have you to care
For wind or water's roar?
And tumble out your hair
That the salt drops have wet;
Being young you have not known
The fool's triumph, nor yet
Love lost as soon as won,
Nor the best labourer dead
And all the sheaves to bind.
What need have you to dread
The monstrous crying of wind?


William Butler Yeats

Ah! Querem uma Luz



Ah! querem uma luz melhor que a do Sol!
Querem prados mais verdes do que estes!
Querem flores mais belas do que estas que vejo!
A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me.

Mas, se acaso me descontentam,
O que quero é um sol mais sol que o Sol,
O que quero é prados mais prados que estes prados,
O que quero é flores mais estas flores que estas flores —
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!


Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Do Inquieto Oceano da Multidão

Ilustração, por Moki, in Pinzellades al món, Cataluña



Do inquieto oceano da multidão
veio a mim uma gota gentilmente
suspirando:

- Eu te amo, há longo tempo
fiz uma extensa caminhada apenas
para te olhar, tocar-te,
pois não podia morrer
sem te olhar uma vez antes,
com o meu temor de perder-te depois.

- Agora nos encontramos e olhamos,
estamos salvos,
retorne em paz ao oceano, meu amor,
também sou parte do oceano, meu amor,
não estamos assim tão separados,
olhe a imensa curvatura,
a coesão de tudo tão perfeito!
Quanto a mim e a você,
separa-nos o mar irresistível
levando-nos algum tempo afastados,
embora não possa afastar-nos sempre:
não fique impaciente - um breve espaço -
e fique certa de que eu saúdo o ar,
a terra e o oceano,
todos os dias ao pôr-do-sol
por sua amada causa, meu amor.


 Walt Whitman

Uma música que seja

Ennio Montariello 


... como os mais belos harmônicos da natureza. Uma música que seja como o som do vento na cordoalha dos navios, aumentando gradativamente de tom até atingir aquele em que se cria uma reta ascendente para o infinito. Uma música que comece sem começo e termine sem fim. Uma música que seja como o som do vento numa enorme harpa plantada no deserto. Uma música que seja como a nota lancinante deixada no ar por um pássaro que morre. Uma música que seja como o som dos altos ramos das grandes árvores vergastadas pelos temporais. Uma música que seja como o ponto de reunião de muitas vozes em busca de uma harmonia nova. Uma música que seja como o voo de uma gaivota numa aurora de novos sons...


Vinicius de Moraes

Dicionário

Perry Gallagher


As palavras mais belas são as que nascem 
do teu corpo: cabelos, lábios, ombros, seios,
até o ventre, e o que entre as coxas se esconde.
Escrevo-as devagar, como se lhes tocasse; e 
cada uma delas é como um espelho, de onde 
se libertam as tuas mãos, os dedos, um joelho, 
olhos que beijo num murmúrio de segredos.

E pedes-me significados, símbolos, primeiros
e segundos sem idos. Não te sei dizer senão que 
corpo é o teu corpo, centro um secreto umbigo, 
pele a mais branca neve no horizonte desta 
subida leve. Se me estendes os braços, entro 
num abrigo de floresta: se me abres os ramos, 
é na mais doce gruta que entramos.

Precipitam-se sinônimos, adjetivos sem 
objetivo, pronomes enfáticos e possessivos, 
sílabas perdidas na falésia do desejo. Mas 
fecho o livro. Estou farto de palavras, é a ti 
que eu quero. E faço-as voltar até de onde 
nasceram: cabelos, lábios, ombros, seios, até 
o ventre, e o que entre as coxas se esconde.


Nuno Júdice

A Criada

   Seu nome era Eremita. Tinha dezenove anos. Rosto confiante, algumas espinhas. Onde estava a sua beleza? Havia beleza nesse corpo que não era feio nem bonito, nesse rosto onde um doçura ansiosa de doçuras maiores era o sinal da vida.
Beleza, não sei. Possivelmente não havia, se bem que os traços indecisos atraíssem como água atrai. Havia, sim, substância viva, unhas, carnes, dentes, mistura de resistências e fraquezas, constituindo vaga presença que se concretizava porém imediatamente numa cabeça interrogativa e já prestimosa, mal se pronunciava um nome: Eremita. Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. Tão independentes como se fossem plantados na carne de um braço, e de lá nos olhassem - abertos, úmidos. Ela toda era de uma doçura próxima a lágrimas.
Às vezes respondia com má-criação de criada mesmo. Desde pequena fora assim, explicou. Sem que isso viesse de seu caráter. Pois não havia no seu espírito nenhum endurecimento, nenhuma lei perceptível. “Eu tive medo”, dizia com naturalidade. “Me deu uma fome”, dizia, e era sempre incontestável o que dizia, não se sabe por quê. “Ele me respeita muito”, dizia do noivo e, apesar da expressão emprestada e convencional, a pessoa que ouvia entrava num mundo delicado de bichos e aves, onde todos se respeitam. “Eu tenho vergonha”, dizia, e sorria enredada nas próprias sombras. Se a fome era de pão - que ela comia depressa como se pudessem tirá-lo - o medo era de trovoadas, a vergonha era de falar. Ela era gentil, honesta. “Deus me livre, não é?”, dizia ausente.
Porque tinha suas ausências. O rosto se perdia numa tristeza impessoal e sem rugas. Um tristeza mais antiga que o seu espírito. Os olhos paravam vazios; diria mesmo um pouco ásperos. A pessoa que estivesse a seu lado sofria e nada podia fazer. Só esperar.
Pois ela estava entregue a alguma coisa, a misteriosa infante. Ninguém ousaria tocá-la nesse momento. Esperava-se um pouco grave, de coração apertado, velando-a. Nada se podia fazer por ela senão desejar que o perigo passasse. Até que num movimento sem pressa, quase um suspiro, ela acordava como um cabrito recém-nascido se ergue sobre as pernas. Voltara de seu repouso na tristeza.
Voltava, não se pode dizer mais rica, porém mais garantida depois de ter bebido em não se sabe que fonte. O que se sabe é que a fonte devia ser muito antiga e pura. Sim, havia profundeza nela. Mas ninguém encontraria nada se descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza, como na escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais, encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - a floresta.
Ah, então devia ser esse o seu mistério: ela descobrira um atalho para a floresta. Decerto nas suas ausências era para lá que ia. Regressando com os olhos cheios de brandura e ignorância, olhos completos. Ignorância tão vasta que nela caberia e se perderia toda a sabedoria do mundo.
Assim era Eremita. Que se subisse à tona com tudo o que encontrara na floresta seria queimada em fogueira. Mas o que vira - em que raízes mordera, com que espinhos sangrara, em que águas banhara os pés, que escuridão de ouro fora a luz que a envolvera - tudo isso ela não contava porque ignorava: fora percebido num só olhar, rápido demais para não ser senão um mistério.
Assim, quando emergia, era uma criada. A quem chamavam constantemente da escuridão de seu atalho para funções menores, para lavar roupa, enxugar o chão, servir a uns e outros.
Mas serviria mesmo? Pois se alguém prestasse atenção veria que ela lavava roupa - ao sol; que enxugava o chão - molhado pela chuva; que estendia lençóis - ao vento. Ela se arranjava para servir muito mais remotamente, e a outros deuses. Sempre com a inteireza de espírito que trouxera da floresta. Sem um pensamento: apenas corpo se movimentando calmo, rosto pleno de uma suave esperança que ninguém dá e ninguém tira.
A única marca do perigo por que passara era o seu modo fugitivo de comer pão. No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera em suas florestas.
                       
                
Clarice Lispector,  A Felicidade Clandestina

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

A arte de ser amada



Eu sou líquida mas recolhida
no íntimo estanho de uma jarra
e em tua boca um clavicórdio
quer recordar-me que sou ária

aérea vária porém sentada
perfil que os flamingos voaram.
Pelos canteiros eu conto os gerânios
de uns tantos anos que nos separam.

Teu amor de planta submarina
procura um úmido lugar
Subitamente preencho a piscina
que te dê o hábito de afogar.




Do que não viste a minha idade
te inquieta como a ciência
do mundo ser muito velho
três vezes por mim rodeado
sem saber da tua existência

Pensas-me a ilha e me sitias
de violinos por todos os lados
e em tua pele o que eu respiro
é um ar de frutos sossegados.


Natália Correia
imagens: Cler Raichuk

Confesso que confesso

Olenka Dobrova


Todos os meus sentimentos
estão guardados
num bicho cheio de tentáculos

mesmo que minhas
moendas vitais pudessem
retorcer os ossos do acaso
ainda assim meus sentimentos
estariam guardados

porque o bicho e
seus tentáculos
não me deixam tecer
uma manhã suicida

este poema

este poema sim
este poema se despe dos
motivos com a única e
derradeira função de dizer que
meus sentimentos estão vivos

pulsam no poema
e correm nas veias
feito sangue

e a todo instante me dizem
que sem eles
não existo


Lau Siqueira

Ritmo



O ritmo em que gemo
doçuras e mágoas 
é um dourado remo
por douradas águas.


Tudo, quando passo,
olha-me e suspira.
- Será meu compasso
que tanto os admira?


Cecília Meireles, In: Poesia Completa
imagens: Artur Demchenko

Ode Pastoril







A paisagem é minha
só porque tenho olhos.
O pássaro é meu
só porque tenho ouvidos.



Amo com a mão as coisas
que o estar aqui me deu.
No universal verde,
sou meu ser, não sou eu.




Em meu léxico lírico
só existem duas palavras,
e uma é irmã da outra:
a manhã e o amanhã.



Sinto que o espaço é a vida
e que o tempo é a morte.
E ponho, entre uma e outra,
meu rebanho de estrelas.



Cassiano Ricardo
imagens: jaroslav monchak

Lembrança Alada

Alex Alemany



Em alguma vida fui ave.

Guardo memória
de paisagens espraiadas
e de escarpas em voo rasante.

E sinto em meus pés
o consolo de um pouso soberano
na mais alta copa da floresta.

Liga-me à terra
uma nuvem e seu desleixo de brancura.

Vivo a golpes
com coração de asa
e tombo como um relâmpago
faminto de terra.

Guardo a pluma
que resta dentro do peito
como um homem guarda o seu nome
no travesseiro do tempo.

Em alguma ave fui vida.


Mia Couto

quarta-feira, 21 de novembro de 2012


A vida tem dois caminhos:


Ou você segue o caminho da Tristeza,
arma-se de medo, de ciúmes e de falsas alegrias,
arma-se de angústia, fecha os olhos, se acomoda,
e segue o rebanho dos que não sabem;
obedece a regras injustas, não reage, não questiona,
não se aprimora, não lê, não significa,
nem percebe o absurdo em que se mete.
Vende a própria natureza
por duas ou três moedas de aço,
troca a inocência pela responsabilidade apressada,
torna-se respeitável aos olhos da sociedade,
cumpre horários, nunca tem tempo,
preocupa-se com coisas banais.
Comerciante das próprias emoções — já não brinca,
vive correndo, ama com pressa,
esquece-se da lua,
e se torna uma pessoa média, mediana, medíocre,
pequena, cansada e normal...


Ou você escolhe o caminho da Ousadia,
compreende, se aprofunda, vai mais longe, realiza,
respeita o ser humano que existe em você mesmo,
resgata a própria vida e o sorriso,
rompe de vez com o passado agonizante,
procura defender a verdade, a justiça e a poesia,
acorda e assopra o fogo da alma que dormia,
ultrapassa os limites que sufocam,
cavalga o cavalo negro, cego e alado
das paixões gostosas e sublimes,
enche o peito de coragem, corações e relâmpagos,
acende de novo esse vulcão que é o teu corpo,
deixa a própria cabeça plena de agora,
de ternura e de vertigem,
e parte em busca de Aventura, de Amor e Liberdade.


É uma simples questão de escolha.


Qual é o teu caminho?


Edson Marques

Sete assuntos por segundo



“Ut pictura, poesis...”
(Horácio)

Para que serve a pintura
a não ser quando apresenta
precisamente a procura
daquilo que mais aparenta,
quando ministra quarenta
enigmas vezes setenta?


Paulo Leminski, La vie en close

Gente Fina



Gente fina é aquela que é tão especial que a gente nem percebe se é gorda, magra, velha, moça, loira, morena, alta ou baixa. Ela é gente fina, ou seja, está acima de qualquer classificação. Geralmente, são felizes à beça, mais do que muitas pessoas. Todos a querem por perto. Tem um astral leve, mas sabe aprofundar as questões quando necessário. É simpática, mas não bobalhona. É uma pessoa direita, mas não escravizada pelos certos e errados: sabe transgredir sem agredir. Gente fina é aquela que é generosa, mas não banana. Te ajuda, mas permite que você cresça sozinho. Gente fina diz mais sim do que não, e faz isso naturalmente, não é para agradar. Gente fina se sente confortável em qualquer ambiente: num boteco de beira de estrada e num castelo no interior da Escócia. Gente fina não julga ninguém – tem opinião, apenas. Um novo começo de era, com gente fina, elegante e sincera. O que mais se pode querer? Gente fina não esnoba, não humilha, não trapaceia, não compete e, como o próprio nome diz, não engrossa. Não veio ao mundo pra colocar areia no projeto dos outros. Ela não pesa, mesmo sendo gorda, e não é leviana, mesmo sendo magra. Gente fina é que tinha que virar tendência. Porque, colocando na balança, é quem faz a diferença.

Martha Medeiros

Assim Como

Olenka Dobrova 


Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade,
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada.
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos, infância da doença.
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.


Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos

Silêncio

É tão vasto o silêncio da noite na montanha. É tão despovoado. Tenta-se em vão trabalhar para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo. Ou inventar um programa, frágil ponto que mal nos liga ao subitamente improvável dia de amanhã. Silêncio tão grande que o desespero tem pudor. Os ouvidos se afiam, a cabeça inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo. Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio sem lembranças de palavras. Se és morte, como te alcançar.

É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem fantasmas. É terrível - sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é a vida. Ou neve. Que é muda mas deixa rastro - tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como se fala da neve. Não se pode dizer a ninguém como se diria da neve: sentiu o silêncio desta noite? Quem ouviu não diz.

A noite desce com suas pequenas alegrias de quem acende lâmpadas com o cansaço que tanto justifica o dia. As crianças de Berna adormecem, fecham-se as últimas portas. As ruas brilham nas pedras do chão e brilham já vazias. E afinal apagam-se as luzes as mais distantes.

Mas este primeiro silêncio ainda não é o silêncio. Que se espere, pois as folhas das árvores ainda se ajeitarão  melhor, algum passo tardio talvez se ouça com esperança pelas escadas.

Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da terra a lua alta. Então ele, o silêncio, aparece. O coração bate ao reconhecê-lo.

Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio. Mesmo o sofrimento pior, o da amizade  perdida, é apenas fuga. Pois se no começo o silêncio parece aguardar uma resposta - como ardemos por ser chamados a responder - cedo se descobre  que de ti ele nada exige, talvez apenas o teu silêncio. Quantas horas se perdem na escuridão supondo que o silêncio te julga - como esperamos em vão por ser julgados pelo Deus. Surgem
as justificações, trágicas justificações forjadas, humildes desculpas até a indignidade. Tão suave é para o ser humano enfim mostrar sua indignidade e ser perdoado com a justificativa de que se é um ser humano humilhado de nascença.

Até que se descobre - nem a sua indignidade ele quer. Ele é o silêncio.

Pode-se tentar enganá-lo também. Deixa-se como por acaso o livro de cabeceira cair no chão. Mas, horror - o livro cai dentro do silêncio e se perde na muda e parada voragem deste. E se um pássaro enlouquecido cantasse? Esperança inútil. O canto apenas atravessaria como uma leve flauta o silêncio.

Então, se há coragem, não se luta mais. Entra-se nele, vai-se com ele, nós os únicos fantasmas de uma noite em Berna. Que se entre. Que não se espere o resto da escuridão diante dele, só ele próprio. Será como se estivéssemos  num navio tão descomunalmente enorme que ignorássemos estar num navio e este singrasse tão largamente que ignorássemos estar indo. Mais do que isso um homem não pode. Viver na orla da morte e das estrelas é vibração mais tensa do que as veias podem suportar. Não há sequer um filho de astro e de mulher como intermediário piedoso. O coração tem que se apresentar diante do nada sozinho e sozinho bater alto nas trevas. Só se sente nos ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta todo nu, nem é comunicação,  é submissão. Pois nós não fomos feitos senão para o pequeno silêncio.

Se não há coragem, que não se entre. que se espere o resto da escuridão diante do silêncio, só os pés molhados pela espuma de algo que se espraia de dentro de nós. Que se espere. Um insolúvel pelo outro. Um ao lado do outro, duas coisas que não se vêem na escuridão. Que se espere. Não o fim do silêncio, mas o auxílio bendito de um terceiro elemento, a luz da aurora.

Depois nunca mais se esquece. Inútil  até fugir para outra cidade. Pois quando menos se espera pode-se reconhecê-lo - de repente. Ao atravessar a rua no meio das buzinas dos carros. Entre uma gargalhada fantasmagórica e outra. Depois de uma palavra dita. Às vezes no próprio coração da palavra. Os ouvidos se assombram, o olhar se esgazeia - ei-lo. E dessa vez ele é fantasma.


Clarice Lispector,  "Onde estivestes de noite"

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Residência da dor



Conheço a residência da dor.
É um lugar afastado,
Sem vizinhos, sem conversa, quase sem lágrimas,
Com umas imensas vigílias diante do céu.

A dor não tem nome,
Não se chama, não atende.
Ela mesma é solidão:
Nada mostra, nada pede, não precisa.
Vem quando quer.

O rosto da dor está voltado sobre um espelho,
Mas não é rosto de corpo,
Nem o seu espelho é do mundo.




Conheço pessoalmente a dor.
A sua residência, longe,
Em caminhos inesperados.

Às vezes sento-me à sua porta, na sombra das suas árvores.
E ouço dizer:
"Quem visse, como vês, a dor, já não sofria".
E olho para ela, imensamente.
Conheço há muito tempo a dor.
Conheço-a de perto.
Pessoalmente.


Cecília Meireles

À vista de ti

© Gabor Kanovits



Nunca te vi, melhor que seja assim.

Teus cabelos seriam trinados ao vento?

Poderia eu dizer "treinados", eles seriam — porque aí corre
o vento da tardinha — sempre me dizes
do vento.

Guardo teus papéis eu guardo.

Perco-os, justo que me percam.

Um cartãozinho..., teu, a te encontrar, azul...,
azul seria a saia de sair?

Ou, haverias de preferir uma roupinha amarela
e os olhos vagos de nenhuma palavra?

O que poderei dizer quando te encontrar?..., se.

Nestes tempos modernos, teria lugar para um silêncio?

Falarias?
De que nos diríamos?

Melhor que teus cabelos fiquem ao vento.

Ah, vento doce, da noite,
como me perfumas o hálito desta noite cedo.


Soares Feitosa

O livro

© Natalia Drepina



O livro é a casa
onde se descansa
do mundo

O livro é a casa
do tempo
é a casa de tudo

Mar e rio
no mesmo fio
água doce e salgada

O livro é onde
a gente se esconde
em gruta encantada.


Roseana Murray  

Aniversário

Boris Geer


A flor que és,
não a que possa comprar,
te venho oferecer.

Porque não tem preço
o que te ofereço.

E se me debruço a colher a pétala,
a terra inteira em teus dedos se desfolha.

E se a mais pura flor para ti desenho
a inteira pétala no nada se despenha.
Porque és a sombra do sonho em que anoiteço.

Morrer é ter terra finita.
E eu tenho a febre da inatingível margem.
Por isso encho de mar o teu olhar.


Mia Couto 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Inundação


Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.

A casa, aquela casa nossa, era morada mais da noite que do dia. Estranho, dirão. Noite e dia não são metades, folha e verso? Como podiam o claro e o escuro repartir-se em desigual? Explico. Bastava que a voz de minha mãe em canto se escutasse para que, no mais lúcido meio-dia, se fechasse a noite. Lá fora, a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos meninos para sempre.

Certa vez, porém, de nossa mãe escutamos o pranto. Era um choro delgadinho, um fio de água, um chilrear de morcego. Mão em mão, ficamos à porta do quarto dela. Nossos olhos boquiabertos. Ela só suspirou:

- Vosso pai já não é meu.

Apontou o armário e pediu que o abríssemos. A nossos olhos, bem para além do espanto, se revelaram os vestidos envelhecidos que meu pai há muito lhe ofertara. Bastou, porém, a brisa da porta se abrindo para que os vestidos se desfizessem em pó e, cinzas, se enevoassem pelo chão. Apenas os cabides balançavam, esqueletos sem corpo.

- E agora – disse a mãe -, olhem para estas cartas.

Eram apaixonados bilhetes, antigos, que minha mãe conservava numa caixa. Mas agora os papeis estavam brancos, toda a tinta se desbotara.

- Ele foi. Tudo foi.

Desde então, a mãe se recusou a deitar no leito. Dormia no chão. A ver se o rio do tempo a levava, numa dessas invisíveis enxurradas. Assim dizia, queixosa. Em poucos dias, se aparentou às sombras, desleixando todo seu volume.

- Quero perder todas as forças. Assim não tenho mais esperas.

- Durma na cama, mãe.

- Não quero. Que a cama é engolidora de saudade.

E ela queria guardar aquela saudade. Como se aquela ausência fosse o único troféu de sua vida.

Não tinham passado nem semanas desde que meu pai se volatilizara quando, numa certa noite, não me desceu o sono. Eu estava pressentimental, incapaz de me guardar no leito. Fui ao quarto dos meus pais. Minha mãe lá estava, envolta no lençol até à cabeça. Acordei-a. O seu rosto assomou à penumbra doce que pairava. Estava sorridente.

- Não faça barulho, meu filho. Não acode seu pai.

- Meu pai?

- Seu pai está aqui, muito comigo.

Levantou-se com cuidado de não desalinhar o lençol. Como se ocultasse algo debaixo do pano. Foi à cozinha e serviu-se de água. Sentei-me com ela, na mesa onde se acumulavam as panelas do jantar.

- Como eu o chamei, quer saber?

Tinha sido o seu jantar. Que eu não tinha notado, porque o fizera em surdina. Mas ela cantara, sem parar, desde que ele saíra. E agora, olhando o chão da cozinha, ela dizia:

- Talvez uma minha voz seja um pano; sim, um pano que limpa o tempo.

No dia seguinte, a mãe cumpria a vontade de domingo, comparecia na igreja, seu magro joelho cumprimentando a terra. Sabendo que ela iria demorar eu voltei ao seu quarto e ali me deixei por um instante. A porta do armário escancarada deixava entrever as entranhas da sombra. Me aproximei. A surpresa me abalou: de novo se enfunavam os vestidos, cheios de formas e cores. De imediato, me virei a espreitar a caixa onde se guardavam as lembranças de namoro de meus pais. A tinta regressara ao papel, as cartas de meu velho pai se haviam recomposto? Mas não abri. Tive medo. Porque eu, secretamente, sabia a resposta.

Saí no bico do pé, quando senti minha mãe entrando. E me esgueirei pelo quintal, deitando passo na estrada de areia. Ali me retive a contemplar a casa como que irrealizada em pintura. Entendi que por muita que fosse a estrada eu nunca ficaria longe daquele lugar. Nesse instante, escutei o canto doce de minha mãe. Foi quando eu vi a casa esmorecer, engolida por um rio que tudo inundava.


Mia Couto, O fio das Missangas

Noites Brancas

Kay Boyce


Num velho século, espreitei o tempo
pela fresta da noite. Havia um lenço
onde se guardavam as lágrimas
da véspera; havia um colar no colo
da memória; havia um laço apertado
pelos dedos da manhã. Num velho
século falei com as paredes, ouvindo
as vozes que me respondiam de
trás dos muros. Eram ombros que
fugiam numa esquina de corredor;
eram braços que se levantavam do
outro lado das cortinas; eram sombras
debruçadas num eco de sofá. Num
velho século limpei o pó das idades,
e vi as lágrimas secarem no lenço, o colar
cair-te sobre o vestido, o laço desapertar-se
pela força do desejo, como se as sombras
tivessem desaparecido à tua volta,
e as flores renascessem das tuas mãos.


Nuno Júdice 

Cena Familiar

Emil  Rau


Densa e doce paz na semiluz da sala.
Na poltrona, enroscada e absorta, uma filha
desenha patos e flores.
Sobre o couro, no chão, a outra viaja silenciosa
nas artimanhas do espião.
Ao pé da lareira a mulher se ilumina numa gravura
flamenga, desenhando, bordando pontos de paz.
Da mesa as contemplo e anoto a felicidade
que transborda da moldura do poema.
A sopa fumegante sobre a mesa, vinhos e queijos,
relembranças de viagens e a lareira acesa.
Esta casa na neblina, ancorada entre pinheiros,
é uma nave iluminada.
Um oboé de Mozart torna densa a eternidade.


Affonso Romano de Sant'Anna

Entre a Serpente e a Estrela


Fotógrafo:  Karen Aleksanyan 


Há um brilho de faca
Onde o amor vier
E ninguém tem o mapa
Da alma da mulher...
Ninguém sai com o coração sem sangrar
Ao tentar revelar
Um ser maravilhoso
Entre a serpente e a estrela...

Um grande amor do passado
Se transforma em aversão
E os dois lado a lado
Corroem o coração...
Não existe saudade mais cortante
Que a de um grande amor ausente
Dura feito um diamante
Corta a ilusão da gente...

Toco a vida prá frente
Fingindo não sofrer
Mas o peito dormente
Espera um bem querer...
E sei que não será surpresa
Se o futuro me trouxer
O passado de volta
Num semblante de mulher...


Zé Ramalho

Linhas Paralelas



Julgar é ato instintivo, ou, pelo menos, gesto irreprimível da consciência. Se geralmente o homem se dispensa do autojulgamento, é incurial que deixe de proferir sentença sobre o que os outros fazem ou deixam de fazer. Bem ou mal, benévola, correta ou iniquamente, todos decidem a respeito de tudo, do silêncio e do grito, do amor e do ódio, do sexo e da abstenção, da prudência e da audácia, da loquacidade e da discrição. Ainda que sob o disfarce da crítica ou debaixo de todas as ressalvas, os vereditos correm todos os sítios como alegria do espírito e necessidade dos temperamentos.

*

Não eram ideias, nem religião, nem política, nem dinheiro, nem questões de liberdade, nem pontos de honra, nem covardia de déspotas, nem perseguições de trono, nem ódio de poderosos o que  obrigava Tote a fugir daquele modo. Vinha do fundo dos tempos, do princípio do infinito, do primeiro prazer do macho, da primeira queda da fêmea, a centelha que o flagiciava, centelha que surgiu antes da família, antes da sociedade, antes dos tabus, antes da inveja, antes da prepotência, antes dos príncipes, antes da riqueza, antes dos códigos, antes da hipocrisia, antes da glória. Essa chama faz história e sem ela, a história é intriga de anormais, trama política de lésbicos, acidente de eunucos, horror moral tecido nos espasmos da fria masturbação. Ela se desempenha no enxurro das nuvens, crepita nos raios do sol, treme nas gotas de orvalho, descansa no amarantino das sombras, dormita no imo das sementes, esconde-se na raiz das plantas, canta no néctar das flores, embriaga-se nos favos de mel, pulula e geme nos androceus da espécie humana.

*

Na vida, as maldades somam acima do bem. Num átimo, toda uma existência perfeita pode dissolver-se ao assalto de uma perfídia. Nas encruzilhadas da existência se escondem, como cobras enroscadas em nichos de terra, as piores felonias, que agridem cegamente pelo prazer e pelo instinto de agredir. Os emboscadores de caminhos se ocultam até atrás de palavras e de sombras. Uma aparência é suficiente para protegê-los e entrincheirá-los. O simples viver feliz, ainda que longe da toca venenosa, constitui razão para excitá-los e depravá-los ainda mais. A ventura alheia, rara entre os homens, prêmio de sacrifícios e de méritos, ofende a inferioridade de seus destinos e o agigantado de sua covardia e de suas infâmias.”

*

O complexo da culpa o impelia para o imprevisível, para um amanhã escondido nas  brumas do tempo, oculto pelos desvios da sorte. E ele ia desempenhar a arriscada missão de dar valentia ao filho, convencido de que agia com prudência, cumprindo religioso dever paterno. Sepultado no remorso de haver falhado por medo, persuadia-se de que, para não perder o filho ou para que ele não se visse colhido por igual fado, devia preencher todos os claros de sua coragem, tornando-a compacta e ardorosa, premunida contra sustos e titubeios. Confusamente, ambicionava engendrar o terror dos eventos, o castigo das ciladas, o senhor dos elementos, o exemplo dos homens. Sem capacidade de percepção, pretendia realizar  o que Deus não realizava ou corrigir o que Deus fazia imperfeito. A insânia tomava o lugar da Providência. A vida é tão louca que até os bons são loucos, ainda que por acaso. (...) ...ia, por novo amor, tresloucado que andava, precipitá-lo em caminhos cujos riscos era defeso adivinhar. A proteção do pai abastado e auto-suficiente cedia lugar aos cuidados de um pai que, mais do o que o filho, necessitava de atenções.

*

O firmamento não o deixou fugir. Ao estampido ensurdecedor, seguiram-se golpes incontáveis e ininterruptos, desferidos do teto sagrado sobre sua cabeça e seu corpo. Era a chuva. Não era, propriamente, a chuva. Era uma chuva terrível, medonha, que desabava como forças líquidas em decidido ataque. Não chovia. Tombava um assalto, uma investida, um massacre de esguichos e golfões de água copiosa e desarrazoada.
Os rimbombos, rolantes como a calúnia e a maledicência , não cessavam. A abóbada estralejava, seguidamente , com brados precípites e multíssonos, uns dominando os outros em violência e terror. A eletricidade das nuvens descarregava clarões cegadores, acompanhados de louco e raucitroante alarido, este a correr desenfreado pela esfera, numa estupefaciente gama de choques aterradores.
Os relâmpagos continuavam estribilhando sibilos horritroantes. O Aguaceiro despencava impiedoso. Rolava, verticalmente, das nuvens unidas e solidárias. O despejamento era torrencial. Flagiciavam jatos duros e contínuos. Nas alturas, não havia peneiramento, nem interferência dos ventos. Os cântaros inesgotáveis e irados precipitavam fios caudalosos, para atingir alguém, para doer em alguém.

*

Parecia amor de herói, de louco, de mártir: perdia a esperança e o objeto e, em vez de perecer, exibia mais fervor e feracidade.
A oposição era seu incentivo. A rejeição era sua incandescência. O repúdio era seu fôlego. A recusa era sua volúpia. A negativa era sua juventude. A repulsa era sua inspiração. A contradição era sua força. A humilhação era sua eternidade. Nascera num relâmpago, no doirado faiscamento de uma agrura natatória, como remate e prêmio de uma aventura temerária, e adquirira a natureza dos fenômenos que o homem não doma, duradouro como os evos e excitado como os vulcões ativos.

*

Juntos, um sobre o outro, ou um contra o outro, o amor e o não são monstros da alma. A vida, sob o signo deles, com eles reunidos em belicoso consórcio, corresponde à mais desconcertante nascente de impulsões e bravezas. No reino deles, endoidece a razão, endoidece a vontade, endoidecem os sentidos. Demite-se a consciência do bem, do remorso da calma e do bom senso, queimando as flores da mocidade e as esperanças de quem sofre. Nesse governo malsão, um rosário tem a inspiração e a mesma embriaguez de um copo de cachaça. Honra é pretexto e sofisma é sabedoria. Luz é sombra e desconfiança é ciência. Maldição pode ser bênção. Insulto pode ser paz. Delírio faz lei e ódio distribui justiça. Vingança é remédio e crime é salvação.

*
"A natureza também se exalta de cismas, de arroubos e sofrimentos. Como uma pessoa imóvel, existe, em sua fisionomia de pessoa impensante, em sua forma de matéria bruta, eterno objeto da inteligência humana, a profundidade de um nervo que freme e de um peito que estua. Na realidade , porém, aos olhos de quem sabe ver as coisas, é ilusória sua aparência inanimada. Suas vozes, sua fecundidade, suas agonias, seus amores, suas alegorias, seus frutos, seus perfumes, suas brenhas, seus remédios e a perenidade de seus espasmos criativos, independem do homem e da ciência, testemunham a espantosidade de suas sensações e de sua esplêndiada versatilidade. Possui dons que contemplam os atos mundos, as nuvens que cochilam, os ventos que zinem, as aves que lutam com as amplidões; donas que esperam os séculos que flanam, os mistérios que governam o infinito, sem sair do lugar; dons que escutam o atrôo das faíscas, o ruído de passos humanos, as crepitações e os soluços do amor irredutível; dons que meditam nas folhas que caem amarelas como ideologias caducas e nos galhos que se erguem ousados como interrogações de sábios iconoclastas."



Souza Neto, Linhas Paralelas

domingo, 18 de novembro de 2012

Una mujer desnuda y en lo oscuro

Shaun Stubley


Una mujer desnuda y en lo oscuro
tiene una claridad que nos alumbra
de modo que si ocurre un desconsuelo
un apagón o una noche sin luna
es conveniente y hasta imprescindible
tener a mano una mujer desnuda.

Una mujer desnuda y en lo oscuro
genera un resplandor que da confianza
entonces dominguea el almanaque
vibran en su rincón las telarañas
y los ojos felices y felinos
miran y de mirar nunca se cansan.

Una mujer desnuda y en lo oscuro
es una vocación para las manos
para los labios es casi un destino
y para el corazón un despilfarro
una mujer desnuda es un enigma
y siempre es una fiesta descifrarlo.

Una mujer desnuda y en lo oscuro
genera una luz propia y nos enciende
el cielo raso se convierte en cielo
y es una gloria no ser inocente
una mujer querida o vislumbrada
desbarata por una vez la muerte.


 Mario Benedetti

Assombros

olenka dobrova



Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.

Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.

Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.

Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.


Affonso Romano de Sant'Anna

Amor da palavra, amor do corpo

foto© Oleg Kostyaev



A nudez da palavra que te despe.
Que treme, esquiva.
Com os olhos dela te quero ver,
que te não vejo.
Boca na boca através de que boca
posso eu abrir-te e ver-te?
É meu receio que escreve e não o gosto
do sol de ver-te?
Todo o espaço dou ao espelho vivo
e do vazio te escuto.
Silêncio de vertigem, pausa, côncavo
de onde nasces, morres, brilhas, branca?
És palavra ou és corpo unido em nada?
É de mim que nasces ou do mundo solta?
Amorosa confusão, te perco e te acho,
à beira de nasceres tua boca toco
e o beijo é já perder-te.


António Ramos Rosa

A Revolução dos Bichos




Jones caiu dormindo no sofá da sala com o News of the World sobre o rosto; portanto, ao cair da tarde, os animais ainda não haviam comido. Aquilo já era demais. Uma das vacas rebentou a chifradas a porta do celeiro, e os bichos avançaram sobre as tulhas. Nesse momento, Jones acordou. Num átimo, ele e seus quatro peões estavam no celeiro com os chicotes na mão batendo a torto e a direito. Isso ultrapassou tudo quanto os animais famintos podiam suportar. De comum acordo, muito embora nada fosse planejado, lançaram-se sobre seus verdugos. Jones e os homens viram-se de repente marrados e escoiceados de todo lado. A situação fugira ao controle. Nunca tinham visto os animais daquele jeito, e a súbita revolta de criaturas que eles estavam acostumados a surrar e maltratar à vontade os encheu de pavor. Em poucos instantes largaram de defender-se e deram o fora. Um minuto depois, os cinco voavam pela trilha rumo à estrada, com os bichos no encalço, triunfantes.

A mulher de Jones olhou pela janela do quarto, viu o que ocorria, juntou às pressas alguns haveres numa bolsa de pano e escapuliu da granja por outro caminho. Moiséis levantou voo do poleiro e bateu asas através dela, grasnando. A essa altura, os animais haviam posto Jones e os peões para fora da granja, fechando atrás deles a porteira das cinco barras. E assim, antes de darem conta, a Rebelião vencera. Jonas fora expulso, e a Granja do Solar era deles.

Durante os primeiros minutos, os bichos mal puderam acreditar na sorte. Seu primeiro ato foi galopar pelos limites da granja, como a ver se nenhum ser humano ficara escondido; depois, correram de volta às casas da granja, para varrer os últimos vestígios do odiado império de Jones. O galpão dos arreios, no fundo do estábulos, foi arrombado; freios, argolas de nariz, correntes de cachorro, as cruéis facas com que Jones castrava os porcos e os cordeiros, foi tudo atirado no fundo do poço. As rédeas, os cabrestos, os antolhos e os degradantes bornais foram jogados na fogueira que ardia no pátio. O mesmo destino tiveram os relhos. Os bichos saltaram de alegria quando viram os chicotes em chamas. Bola-de-Neve jogou também ao fogo as fitas que enfeitavam as crinas e caudas dos cavalos em dias de feita.

“Fitas”, disse ele, “devem ser consideradas roupas, que são a marca do ser humano. Todos os animais têm de andar nus.”


George Orwell, A Revolução dos Bichos

O Relógio

Foto by Rodney Smith



Diante de coisa tão doida
Conservemo-nos serenos

Cada minuto da vida
Nunca é mais, é sempre menos

Ser é apenas uma face
Do não ser, e não do ser

Desde o instante em que se nasce
Já se começa a morrer.


Cassiano Ricardo