domingo, 30 de setembro de 2012

Grandes

paul kelly


  
 Grandes são os desertos, e tudo é deserto.  
 Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto  
 Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.  
 Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes  
 Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,  
 Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. 
 Grandes são os desertos, minha alma!  
 Grandes são os desertos. 

 Não tirei bilhete para a vida,  
 Errei a porta do sentimento,  
 Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.  
 Hoje não me resta, em vésperas de viagem,  
 Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,  
 Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,  
 Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)  
 Senão saber isto:  
 Grandes são os desertos, e tudo é deserto.  
 Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, 

 Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar  
 Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)  
 Acendo o cigarro para adiar a viagem,  
 Para adiar todas as viagens.  
 Para adiar o universo inteiro. 

 Volta amanhã, realidade!  
 Basta por hoje, gentes!  
 Adia-te, presente absoluto!  
 Mais vale não ser que ser assim. 

 Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,  
 E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. 

 Mas tenho que arrumar mala,  
 Tenho por força que arrumar a mala,  
 A mala. 

 Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.  
 Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.  
 Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,  
 A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. 

 Tenho que arrumar a mala de ser.  
 Tenho que existir a arrumar malas.  
 A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.  
 Olho para o lado, verifico que estou a dormir.  
 Sei só que tenho que arrumar a mala,  
 E que os desertos são grandes e tudo é deserto,  
 E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. 

 Ergo-me de repente todos os Césares.    
 Vou definitivamente arrumar a mala.    
 Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;   
 Hei de vê-la levar de aqui,  
 Hei de existir independentemente dela. 

 Grandes são os desertos e tudo é deserto,  
 Salvo erro, naturalmente.  
 Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! 

 Mais vale arrumar a mala.  
 Fim.


Álvaro de Campos

Estes poemas, disse ela




Estes poemas, estes poemas,
estes poemas, disse ela, são poemas
sem amor lá dentro. São os poemas dum homem
capaz de deixar mulher e filho por lhe
fazerem barulho no escritório. São os poemas
dum homem capaz de matar a própria mãe a fim de clamar
pela herança. São os poemas dum homem
como Platão, disse ela, querendo denotar coisa que não
entendi mas que mesmo assim
me ofendeu. São os poemas dum homem
que a dormir com mulheres prefere dormir com
ele próprio, disse ela. São os poemas dum homem
com olhos como naifas aguçadas, mãos iguais às dum
gatuno, urdidas de água e lógica
e fome, sem fibra de amor nelas. São
tão sem coração estes poemas como o piar de aves,
tão involuntários como folhas de ulmeiro, que, se amam, amam apenas
o vasto céu azul e o ar e a ideia
das folhas do ulmeiro. Amor-próprio é um fim, disse ela,
não é origem. Amor quer dizer amor
daquilo que se canta, não da canção nem do cantar.
Estes poemas, disse ela...
E diz ele: Como és bela.

Isso não é amor, retorquiu com justeza.


Robert Bringhurst
 A Beleza Das Armas. Antígona, 1994

A janela dos outros

Irwan Gunadi


Gosto dos livros de ficção do psiquiatra Irvin Yalom (Quando Nietzsche Chorou, A Cura de Schopenhauer) e por isso acabei comprando também seu Os Desafios da Terapia, em que ele discute alguns relacionamentos padrões entre terapeuta e paciente, dando exemplos reais. Eu devo ter sido psicanalista em outra encarnação, tanto o assunto me fascina.

Ainda no início do livro, ele conta a história de uma paciente que tinha um relacionamento difícil com o pai. Quase nunca conversavam, mas surgiu a oportunidade de viajarem juntos de carro e ela imaginou que seria um bom momento para se aproximarem. Durante o trajeto, o pai, que estava na direção, comentou sobre a sujeira e degradação de um córrego que acompanhava a estrada. A garota olhou para o córrego a seu lado e viu águas límpidas, um cenário de Walt Disney. E teve a certeza de que ela e o pai realmente não tinham a mesma visão da vida. Seguiram a viagem sem trocar mais palavra.

Muitos anos depois, esta mulher fez a mesma viagem, pela mesma estrada, desta vez com uma amiga. Estando agora ao volante, ela surpreendeu-se: do lado esquerdo, o córrego era realmente feio e poluído, como seu pai havia descrito, ao contrário do belo córrego que ficava do lado direito da pista. E uma tristeza profunda se abateu sobre ela por não ter levado em consideração o então comentário de seu pai, que a esta altura já havia falecido.

Parece uma parábola, mas acontece todo dia: a gente só tem olhos para o que mostra a nossa janela, nunca a janela do outro. O que a gente vê é o que vale, não importa que alguém bem perto esteja vendo algo diferente.

Martha Medeiros

Dilacerações

Arantza SESTAYO 


Ó carnes que eu amei sangrentamente,
ó volúpias letais e dolorosas,
essências de heliotropos e de rosas
de essência morna, tropical, dolente...

Carnes, virgens e tépidas do Oriente
do Sonho e das Estrelas fabulosas,
carnes acerbas e maravilhosas,
tentadoras do sol intensamente...

Passai, dilaceradas pelos zelos,
através dos profundos pesadelos
que me apunhalam de mortais horrores...

Passai, passai, desfeitas em tormentos,
em lágrimas, em prantos, em lamentos
em ais, em luto, em convulsões, em dores...


Cruz e Sousa

Dan Brown, O símbolo perdido


Durante séculos, as "mentes mais brilhantes" da Terra haviam ignorado as ciências antigas, zombando delas como se fossem superstições ignorantes, armando-se em vez disso de um ceticismo arrogante e de novas espantosas tecnologias - ferramentas que só faziam afastá-las mais da verdade. Os avanços de cada geração são desmentidos pela tecnologia da geração seguinte. Assim havia sido por muitos séculos. Quanto mais o homem aprendia, mais se dava conta de sua ignorância.
Por muitos milênios, a humanidade vinha tateando no escuro... mas agora, como estava escrito na profecia, havia mudanças no ar. Depois de avançar às cegas pela história, a humanidade chega a uma encruzilhada. Esse momento tinha sido previsto havia muito tempo, profetizado pelos textos antigos, calendários primevos e até mesmo pelas estrelas. A data era específica, sua chegada, iminente. Ela seria precedida por uma brilhante explosão de conhecimento... um clarão de luz para iluminar a escuridão e dar à humanidade uma última chance de se desviar do abismo e seguir o caminho da sabedoria."

Capítulo 14, p. 59-60

***

A tese geral era simples: Nós não chegamos nem perto de usar todo o potencial de nossas mentes e nossos espíritos.
Experiências conduzidas em instalações como o Instituto de Ciências Noéticas (ICN) da Califórnia e o Laboratório de Pesquisas de Anomalias da Engenharia (LPAE) de Princeton haviam provado categoricamente que o pensamento humano, quando adequadamente direcionado, tem a a capacidade de afetar e modificar a massa física. Essas experiências não eram truques de salão do tipo “entortar colheres”, mas sim investigações altamente controladas que produziam todas o mesmo resultado extraordinário: nossos pensamentos de fato interagem com o mundo físico, quer saibamos disso ou não, dando origem a mudanças que abrangem até o domínio subatômico.
A mente domina a matéria.
Em 2001, nas horas que se seguiram aos terríveis acontecimentos de 11 de setembro, o campo da ciência noética deu um salto quântico. Quatro cientistas descobriram que, à medida que o mundo amedrontado se unia e se concentrava em uma consternação coletiva em torno dessa tragédia específica, as leituras de 37 Geradores de Eventos Aleatórios diferentes espalhados pelo mundo de repente se tornaram significativamente menos aleatórias. De alguma forma, a unicidade dessa experiência compartilhada, a união de milhões de mentes, havia afetado a função de aleatoriedade dessas máquinas, organizando suas leituras e criando ordem a partir do caos.
Essa descoberta chocante parecia estar relacionada à antiga crença espiritual em uma "consciência cósmica" - uma vasta união de intenções humanas que, na verdade, teria a capacidade de interagir com a matéria física. Recentemente, estudos sobre meditação e prece coletivas produziram resultados similares em Geradores de Eventos Aleatórios, contribuindo para a afirmação de que a consciência humana, como a descrevia a autora especializada em noética Lynne McTaggart, é uma substância externa aos limites do corpo... uma energia altamente ordenada capaz de modificar o mundo físico.  (...)
A partir dessa base, a pesquisa de Katherine Solomon dera um salto adiante, provando que o 'pensamento direcionado' pode afetar literalmente qualquer coisa - a velocidade do crescimento das plantas, a direção em que os peixes nadam dentro de um aquário, a forma como as células se dividem em uma placa de Petri, a sincronização dos sistemas automatizados separadamente e as reações químicas do corpo de uma pessoa.(...)
O pensamento humano pode literalmente transformar o mundo físico.
À medida que os experimentos de Katherine iam ficando mais ousados, os resultados se tornavam mais espantosos. Seu trabalho naquele laboratório  havia provado sem qualquer sombra de dúvida que a expressão 'a mente domina a matéria' não é apenas um mantra de autoajuda da Nova Era. A mente é capaz de alterar o estado da matéria em si e, mais importante, possui o poder de incentivar o mundo físico a se mover em uma direção específica."(...)
Nós somos os mestres de nosso próprio universo.
(...)
"No entanto, o aspecto mais surpreendente do trabalho de Katherine tinha sido a descoberta de que a capacidade da mente de afetar o mundo físico pode ser  aumentada por meio da prática. A intenção é uma habilidade adquirida. Como na meditação, controlar o verdadeiro poder do 'pensamento' exige treinamento. Mais importante ainda... algumas pessoas nascem com mais aptidão para fazer isso do que outras. E, ao longo da história, alguns indivíduos se tornaram verdadeiros mestres."
Esse é o elo perdido entre a ciência moderna e o misticismo antigo."

Capítulo 15, p. 60-62


Dan Brown, O símbolo perdido
Editora Sextavante, trad. Fernanda Abreu


sábado, 29 de setembro de 2012

Promessas de Casamento

Сергей Ахременко (dobrypapa)

(...)

- Promete não deixar a paixão fazer de você uma pessoa controladora, e sim respeitar a individualidade do seu amado, lembrando sempre que ele não pertence a você e que está ao seu lado por livre e espontânea vontade?

- Promete saber ser amiga(o) e ser amante, sabendo exatamente quando devem entrar em cena uma e outra, sem que isso lhe transforme numa pessoa de dupla identidade ou numa pessoa menos romântica?

- Promete fazer da passagem dos anos uma via de amadurecimento e não uma via de cobranças por sonhos idealizados que não chegaram a se concretizar?

- Promete sentir prazer de estar com a pessoa que você escolheu e ser feliz ao lado dela pelo simples fato de ela ser a pessoa que melhor conhece você e portanto a mais bem preparada para lhe ajudar, assim como você a ela?

- Promete se deixar conhecer?

- Promete que seguirá sendo uma pessoa gentil, carinhosa e educada, que não usará a rotina como desculpa para sua falta de humor?

- Promete que fará sexo sem pudores, que fará filhos por amor e por vontade, e não porque é o que esperam de você, e que os educará para serem independentes e bem informados sobre a realidade que os aguarda?

- Promete que não falará mal da pessoa com quem casou só para arrancar risadas dos outros?

- Promete que a palavra liberdade seguirá tendo a mesma importância que sempre teve na sua vida, que você saberá responsabilizar-se por si mesmo sem ficar escravizado pelo outro e que saberá lidar com sua própria solidão, que casamento algum elimina?

- Promete que será tão você mesmo quanto era minutos antes de entrar na igreja?

Sendo assim, declaro-os muito mais que marido e mulher: declaro-os maduros.


Martha Medeiros

Aninha e suas pedras



Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.


Cora Coralina



Mentira que as rosas ferem
Rosas são de veludo.
São da roseira, os espinhos.


Helena Kolody
Michael Kamper


Cheguei tarde, e os que sabiam de mim
notaram que o meu corpo já não me
pertencia. E perguntaram. Porque ardia
a tua boca nos meus lábios mais do que
a fogueira do segredo, respondi-lhes

que o céu, afinal , era mesmo azul, e o
verão uma estação maior que o tempo,
e o tempo nada se o teu corpo estava
junto desse corpo que todos já sabiam
que não vinha comigo - e que Deus,
Deus fechava os olhos e existia. Riram

os que te tinham conhecido noutra noite
com outra pele vestida; os outros foram
para muito mais longe que o seu rosto
magoado dizer ao próprio ouvido que eu
mentia. Mas os que ainda queriam saber

de mim pediram-me que lhes contasse
quem eras, o teu nome. E eu mordi essa
boca vermelha que deixara contigo para
não ter de dizer que nem o perguntara.


Maria do Rosário Pedreira 

Sonnet 66



Tired with all these, for restful death I cry,
As to behold desert a beggar born,
And needy nothing trimmed in jollity,
And purest faith unhappily forsworn,
And gilded honour shamefully misplaced,
And maiden virtue rudely strumpeted,
And right perfection wrongfully disgraced,
And strength by limping sway disabled,
And art made tongue-tied by authority,
And folly, doctor-like, controlling skill,
And simple truth miscalled simplicity,
And captive good attending captain ill:
Tired with all these, from these would I be gone,
Save that, to die, I leave my love alone.


William Shakespeare


***


Farto de tudo, imploro a morte sossegada
Quando vejo o valor vestido como um pobre
E com luxo trajado o miserável nada,
E perjurada, por desgraça, a fé mais nobre,
E vergonhosamente a honra mal situada,
E a virginal virtude em lama prostituída,
E por coxo exercício a força invalidada,
E a justa perfeição do apreço decaída,
E julgando a perícia a doutoral tolice,
E atando a língua da arte o arbítrio oficial,
E a mais simples verdade achada parvoíce,
E o bem seguindo preso o comandante mal:
    Farto, eu queria estar já morto e descansado,
    Se não deixasse o meu amor abandonado.


                      Tradução: Péricles Eugênio


sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Nikola Borissov Photography



Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.


Carlos Drummond de Andrade
Rendezvous with autumn - vladimir volegov

É no outono e não noutra estação que a melodia mais
exata atinge em cheio o teu coração desolado. Não
sabes muito bem onde depositar as tuas esperanças e
a vida deixa de ser aquela vaga vertiginosa de acontecimentos.
Assim, apaziguado das expectativas sobre o
futuro, esperas sozinho na esplanada do café o gesto
que te salvará da desumanização. Lês um livro, tomas
um chá e escreves dois versos imperfeitos, e por um
descuido qualquer mordes a própria língua:
—É o coração na boca, é o outono que chega


Oscar Mourave

"Eu sei, mas não devia"




Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Marina Colasanti

1964




I

Já não é mágico o mundo. Te deixaram.
Já não partilharás a clara lua
nem os lentos jardins. Já não há uma
lua que não seja espelho do passado,
cristal de solidão, sol de agonias.
Adeus às mutuas mãos a às têmporas
que envolviam o amor. Hoje só tens
a fiel memória e os desertos dias.
Ninguém perde (repetes em vão)
senão quem não tem e que não teve
nunca, mas não basta ser valente
para aprender a arte do esquecimento.
Um símbolo, uma rosa, te desgarra
e te pode matar uma guitarra.

II

Já não serei feliz. Talvez não importe.
há tantas outras coisas no mundo;
Um instante qualquer é mais profundo
e diverso que o mar. A vida é curta
e ainda que as horas sejam tão longas, uma
escura maravilha nos ronda,
a morte, esse outro mar, essa outra flecha
que nos livra do sol e da lua
e do amor. A sorte que me deste
e me tiras-te deve ser apagada;
o que era tudo tem que ser nada
Só me resta o gozo de estar triste
esse inútil costume que me inclina
ao sul, a certa porta, a certa esquina.


Jorge Luiz Borges
tradução:  Alice Ruiz

Animal!


















quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A volta da primavera



Aime, et tu renaîtras; fais-toi fleur pour éclore.
Après avoir souffert, il faut souffrir encore.
Il faut aimer sans cesse, après avoir aimé.
Alfred de Musset


Ai não maldigas minha fronte pálida,
E o peito gasto ao referver de amores.
Vegetam louros — na caveira esquálida
E a sepultura se reveste em flores.

Bem sei que um dia o vendaval da sorte
Do mar lançou-me na gelada areia.
Serei... que importa? O D. Juan da morte
Dá-me o teu seio — e tu serás Haidéia!

Pousa esta mão — nos meus cabelos úmidos!...
Ensina à brisa ondulações suaves!
Dá-me um abrigo nos teus seios túmidos!
Fala!... que eu ouço o pipilar das aves!

Já viste às vezes, quando o sol de Maio
Inunda o vale, o matagal e a veiga?
Murmura a relva: "Que suave raio."
Responde o ramo: "Como a luz é meiga!"

E, ao doce influxo do clarão do dia,
O junco exausto, que cedera à enchente,
Levanta a fronte da lagoa fria...
Mergulha a fronte na lagoa ardente...

Se a natureza apaixonada acorda
Ao quente afago do celeste amante,
Diz!... Quando em fogo o teu olhar transborda,
Não vês minh’alma reviver ovante?

É que teu riso me penetra n’alma —
Como a harmonia de uma orquestra santa —
É que teu riso tanta dor acalma...
Tanta descrença!... Tanta angústia!... Tanta!

Que eu digo ao ver tua celeste fronte:
"O céu consola toda dor que existe.
"Deus fez a neve — para o negro monte!
"Deus fez a virgem — para o bardo triste!"


Castro Alves

A sombra no tapete

paul kelley


Continuo a pensar na sombra
que te acompanha quando a luz
projeta no chão a imagem que perdes
ao sair do espelho. E sei que há um ritmo
branco neste espaço que deixas entre
a cadeira e a porta, para que
as minhas palavras o encham
com a tua ausência.

Às vezes, é como se um sol
viesse ao teu encontro, para te roubar
à noite, e me espalhasse pela memória
os teus cabelos no movimento de nuvem
que se perde no horizonte do verso,
de onde se soltam as aves
e a espuma perfeita de um corpo
antigo.

Outras vezes, o olhar que vem
ao meu encontro cruza-se com o teu, como se
o amor fosse o resultado
desta soma de diferenças, e a razão
da primavera se encontrasse na linha
que os teus passos desenham,
num eco de voz que a manhã suspende,
no peso adormecido de uma leveza de ombros.

E cubro com a seda do silêncio
o vidro da tua boca.


Nuno Júdice

Pacto

Paulo Cesar Guerra



Entre o teu signo e o meu 
existe uma possibilidade 
de veneno 
umas tintas de vermelho 
meu moreno

e se a paixão há de ser provisória 
que seja louca e linda 
a nossa história.


Bruna Lombardi

Soneto ao Inverno

vladimir volegov


Inverno, doce inverno das manhãs 
Translúcidas, tardias e distantes 
Propício ao sentimento das irmãs 
E ao mistério da carne das amantes: 

Quem és, que transfiguras as maçãs 
Em iluminações dessemelhantes 
E enlouqueces as rosas temporãs 
Rosa-dos-ventos, rosa dos instantes? 

Por que ruflaste as tremulantes asas 
Alma do céu? o amor das coisas várias 
Fez-te migrar - inverno sobre casas! 

Anjo tutelar das luminárias 
Preservador de santas e de estrelas... 
Que importa a noite lúgubre escondê-las? 


Vinícius de Moraes 

Provérbios do Inferno



Na semeadura aprende, na colheita ensina, no inverno desfruta.
Conduz tua carroça e o arado sobre os ossos dos mortos.
O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.
A prudência é uma solteirona rica e feia cortejada pela incapacidade.
Quem deseja e não age, procria a pestilência.
O verme perdoa o arado que o cortou.
Enterre-se no rio aquele que ama as águas.
Um tolo não vê a mesma árvore que um sábio vê.
O homem cuja face não brilha jamais se tornará um astro.
A Eternidade está de amores com as produções do tempo.
A abelha diligente não tem tempo para lástimas.
As horas da insensatez são medidas pelo relógio, mas as da sabedoria relógio algum pode marcar.
Todo alimento sadio se consegue sem armadilha ou rede.
Pássaro algum voa alto demais se o faz com as próprias asas,
Um corpo morto não refuta injúrias.
O ato mais sublime consiste em colocar alguém antes de si.
A Loucura é o manto da velhacaria.
A Vergonha é o manto do Orgulho.
As prisões são erguidas com as pedras da Lei e os Bordéis com os tijolos da Religião.
O orgulho do pavão é a glória de Deus.
A luxúria do bode é a generosidade de Deus.
A fúria do leão é a sabedoria de Deus.
A nudez da mulher é a obra de Deus.
O excesso de tristeza, ri; o excesso de alegria, chora.
O rugir dos leões, o uivar dos lobos, o estrondo do mar tempestuoso, e o gládio destruidor são porções de eternidade grandes demais para o olhar humano.
A raposa condena a armadilha, e não a si mesma.
Alegrias fecundam, tristezas procriam.
Que o homem use os despojos do leão e a mulher o tosão das ovelhas.
Ao pássaro o ninho, à aranha a teia, ao homem a amizade.
O tolo egoísta e sorridente & o tolo carrancudo e triste serão ambos considerados sábios se servirem de exemplo.
O que hoje está provado não passava ontem de imaginação.
O rato, o camundongo, a raposa, o coelho espreitam as raízes; o leão, o tigre, o cavalo, o elefante espreitam os frutos.
A cisterna contém: a fonte transborda
Um pensamento enche a imensidade,
Fala sempre o que pensas e os vis te evitarão.
Tudo o que é crível é uma imagem da verdade.
A águia perdeu todo o seu tempo se deixando ensinar pela gralha.
A raposa provê para si, mas Deus provê para o leão.
De manhã, pensa; de dia, age; de tarde, come; de noite, dorme.
Quem permite que o imponhas é porque te conhece.
Assim como o arado obedece a palavras, assim Deus recompensa as preces.
Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução.
Espera veneno das águas paradas.
Só se sabe o que é bastante depois de se saber o que é demais.
Escuta a censura dos tolos! É um privilégio de reis!
Os olhos do fogo, as narinas do ar, a boca da água, a barba da terra.
O fraco em coragem é forte em astúcia.
A macieira nunca pergunta à faia como crescer, nem o leão ao cavalo como abater sua presa.
Quem recebe agradecido produz colheita abundante.
Se outros não tivessem sido tolos, nós é que o seríamos.
A alma do doce deleite jamais será maculada,
Quando vês uma Águia, vês uma porção do Gênio. Ergue tua cabeça!
Como a lagarta escolhe as folhas mais belas para lançar seus ovos, assim o padre lança sua maldição sobre as alegrias mais belas.
Criar uma pequena flor exige o trabalho de séculos.
A blasfêmia, distende; a bênção, afrouxa.
O melhor vinho é o mais velho, a melhor água a mais nova.
As preces não aram! Os louvores não colhem.
As alegrias não riem! As tristezas não choram!
A cabeça Sublime, o coração Pathos, o sexo a Beleza, as mãos e os pés Proporção.
Assim como o ar ao pássaro e o mar ao peixe, seja o desprezo ao desprezível.
O corvo gostaria que tudo fosse preto, a coruja que tudo fosse branco.
Exuberância é Beleza.
Se o leão fosse aconselhado pela raposa, acabaria astuto.
O Progresso constrói estradas retas, mas as estradas tortuosas sem Progresso são os caminhos do Gênio.
Antes matar um infante no berço do que acalentar desejos reprimidos.
Onde o homem falta, a natureza é estéril.
A verdade não deve ser dita para ser apenas compreendida, e não acreditada.
Bastante! Ou demais


William Blake
Tradução: Ivo Barroso

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A Serenata






Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com a boca e mão incríveis 
tocar flauta no jardin.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos: 
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela,se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?


Adélia Prado
Сергей Ахременко (Dobrypapa)


Eu triste sou calada
Eu brava sou estúpida
Eu lúcida sou chata
Eu gata sou esperta
Eu cega sou vidente
Eu carente sou insana
Eu malandra sou fresca
Eu seca sou vazia
Eu fria sou distante
Eu quente sou oleosa
Eu prosa sou tantas
Eu santa sou gelada
Eu salgada sou crua
Eu pura sou tentada
Eu sentada sou alta
Eu jovem sou donzela
Eu bela sou fútil
Eu útil sou boa
Eu à toa sou tua.


Martha Medeiros

Uma mulher

Shaun Stubley


uma mulher caminha nua pelo quarto
é lenta como a luz daquela estrela
é tão secreta uma mulher que ao vê-la
nua no quarto pouco se sabe dela

a cor da pele, dos pêlos, o cabelo
o modo de pisar, algumas marcas
a curva arredondada de suas ancas
a parte onde a carne é mais branca

uma mulher é feita de mistérios
tudo se esconde: os sonhos, as axilas,
a vagina
ela envelhece e esconde uma menina
que permanece onde ela está agora

o homem que descobre uma mulher
será sempre o primeiro a ver a aurora.


Bruna Lombardi

Improviso em Pequim


Eu escrevo poesia porque a palavra Inglesa Inspiração vem do Latim Spiritus, respiração, eu quero respirar livremente.
Eu escrevo poesia porque Walt Whitman abriu os versos da poesia para a
respiração desobstruída.
Eu escrevo poesia porque meu pai era poeta minha mãe vinda da Rússia que
falava Comunista, morreu numa casa de loucos.
Eu escrevo poesia porque eu sofro, nascido que sou para morrer, pedras nos rins e pressão alta, todo mundo sofre.
Eu escrevo poesia porque eu fico confuso por não saber o que as outras pessoas pensam.
Eu escrevo poesia porque os poetas Russos Maiakóvski e Iessênin cometeram
suicídio alguém mais precisa falar.
Eu escrevo poesia porque escrever sobre sexo é censurado nos Estados Unidos
Eu escrevo poesia porque meus genes e cromossomos se apaixonam por garotos
e não por garotas.
Eu escrevo poesia porque eu quero estar sozinho e quero falar para as pessoas.
Eu escrevo poesia por causa da Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra
Mundial, a bomba nuclear e a Terceira Guerra Mundial se queremos isto, eu não preciso disto.
Eu escrevo poesia porque meu primeiro poema Uivo não precisou ser publicado
para ser perseguido pela polícia.
Eu escrevo poesia porque Hitler matou seis milhões de judeus, eu sou judeu.
Eu escrevo poesia porque Walt Whitman disse “Eu me contradigo? Muito bem,
então eu me contradigo (Sou vasto, contenho multidões.)”
Eu escrevo poesia porque minha cabeça contém 10.000 pensamentos.
Eu escrevo poesia porque é o melhor caminho para dizer tudo o que penso
dentro de 6 minutos ou uma vida inteira.

Allen Ginsberg (excertos)




O conhecimento é uma ferramenta e, como todas as ferramentas, seu impacto está nas mãos do usuário.
Katherine se recostou na cadeira, parecendo impressionada.
- Então deixe-me lhe fazer uma pergunta hipotética.
De repende, Trish percebeu que a conversa havia se transformado em uma entrevista de emprego.
Katherine estendeu o braço e recolheu um minúsculo grão de areia do piso da varanda, erguendo-o para Trish ver.
- O que me parece - disse ela - é que, basicamente, seu trabalho sobre metassistemas permite calcular o peso de toda a areia de uma praia, pesando um grão de cada vez.
- Basicamente, é isso mesmo.
- Como você sabe, esse grãozinho de areia tem uma massa. Muito pequena, mas mesmo assim uma massa.
Trish aquiesceu.
- E justamente pelo fato de este grão de areia ter uma massa, ele exerce uma força de gravidade. Ela também é pequena demais para ser sentida, mas existe.
- Certo.
- Então - disse Katherine -, se nós pegarmos trilhões de grãos de areia como este e deixarmos que atraiam uns aos outros para formar, digamos, a lua, a força de gravidade combinada deles será suficiente para mover oceanos inteiros e fazer subir e descer as marés por todo o nosso planeta.
Trish não sabia aonde Katherine pretendia chegar, mas estava gostando do que ouvia.
- Então vamos elaborar uma hipótese - falou Katherine, descartando o grão de areia. - E se eu dissesse a você que um pensamento, qualquer ideia minúscula que se forme na sua mente, possui uma massa? E se eu lhe dissesse que um pensamento é uma coisa de verdade, uma entidade mensurável, com uma massa mensurável? Minúscula, é claro, mas ainda assim uma massa. Quais seriam as implicações disso?
- Hipoteticamente falando? Bem, as implicações óbvias seriam: se um pensamento tem massa, então ele exerce uma força de gravidade e pode atrair coisas para si.
Katherine sorriu.
- Você é boa. Agora avance mais um passo. O que acontece se muitas pessoas começam a se concentrar no mesmo pensamento? Todas as ocorrências desse mesmo pensamento passam a se consolidar em uma só, e a massa acumulada dele começa a aumentar. Portanto, sua gravidade aumenta.
- Certo.
- O que significa que… se um número suficiente de pessoas começar a pensar a mesma coisa, então a força gravitacional dessa ideia se torna tangível e exerce uma força de verdade. - Katherine deu uma piscadela. - E ela pode ter um efeito mensurável no nosso mundo físico.


Dan Brown, O Símbolo Perdido, p.82
Editora Sextavante
Tradução: Fernanda Abreu

terça-feira, 25 de setembro de 2012

A que está sempre sorrindo

Nikola Borissov Photography



Teu ar, teu gesto, tua fronte
São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.

A mágoa que te roça os passos
Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.

As fulgurantes, vivas cores
De tua vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.

Tais vestes loucas são o emblema
De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!

Certa vez, num belo jardim,
Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;

E humilhado pela beleza
Da primavera ébria em cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.

Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,

Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!


Charles Baudelaire

Sonnet 130



My mistress' eyes are nothing like the sun;
Coral is far more red than her lips' red;
If snow be white, why then her breasts are dun;
If hairs be wires, black wires grow on her head.
I have seen roses damask'd, red and white,
But no such roses see I in her cheeks;
And in some perfumes is there more delight
Than in the breath that from my mistress reeks.
I love to hear her speak, yet well I know
That music hath a far more pleasing sound;
I grant I never saw a goddess go;
My mistress, when she walks, treads on the ground:
And yet, by heaven, I think my love as rare
As any she belied with false compare.


William Shakespeare

***


Os olhos de minha amada não são como o sol;
Seus lábios são menos rubros que o coral;
Se a neve é branca, seus seios são escuros;
Se os cabelos são de ouro, negros fios cobrem-lhe a cabeça.
Já vi rosas adamascadas, vermelhas e brancas,
Mas jamais vi essas cores em seu rosto;
E alguns perfumes me dão mais prazer
Do que o hálito da minha amada.
Amo-a quando ela fala, embora eu bem saiba
Que a música tenha um som muito mais agradável.
Confesso nunca ter visto uma deusa passar –
Minha senhora, quando caminha, pisa no chão.
Mesmo assim, eu juro, minha amada é tão rara
Que torna falsa toda e qualquer comparação.


Trad.Thereza Christina Roque da Motta

Viagem à sombra

Wang Neng Jun


Tua casa sozinha - lassidão dos devaneios, dos segredos. Frocos verdes de perfume sobre a malva penumbra (e a tua carne em pianíssimo, grande gata branca de fala moribunda) e o fumo branco da cidade inatingível, e o fumo branco, e a tua boca áspera, onde há dentes de inocência ainda.

És, de qualquer modo, a Mulher. Há teu ventre que se cobre, invisível, de odor marítimo dos brigues selvagens que eu não tive; há teus olhos mansos de louca, ó louca! e há tua face obscura, dolorosa, talhada na pedra que quis falar. Nos teus seios de juventude, o ruído misterioso dos duendes ordenhando o leite pálido da tristeza do desejo.

E na espera da música, o vaivém infantil dos gestos de magia. Sim, é dança! - o colo que aflora oferecido é a melodiosa recusa das mãos, a anca que irrompe à carícia é o ungido pudor dos olhos, há um sorriso de infinita graça, também, frio sobre os lábios que se consomem. Ah! onde o mar e as trágicas aves da tempestade, para ser transportado, a face pousada sobre o abismo?

Que se abram as portas, que se abram as janelas e se afastem as coisas aos ventos. Se alguém me pôs nas mãos este chicote de aço, eu te castigarei, fêmea! - Vem, pousa-te aqui! Adormece tuas íris de ágata, dança! - teu corpo barroco em bolero e rumba. - Mais! - dança! dança! - canta, rouxinol! (Oh, tuas coxas são pântanos de cal viva, misteriosa como a carne dos batráquios...)

Tu que só és o balbucio, o voto, a súplica - oh mulher, anjo, cadáver da minha angústia! - sê minha! minha! minha! no ermo deste momento, no momento desta sombra, na sombra desta agonia - minha - minha - minha - oh mulher, garça mansa, resto orvalhado de nuvem...

Pudesse passar o tempo e tu restares horizontalmente, fraco animal, as pernas atiradas à dor da monstruosa gestação! Eu te fecundaria com um simples pensamento de amor, ai de mim!

Mas ficarás com o teu destino.


Vinícius de Moraes

Satânia

Julia Stegner by Daniele e Iango for Muse


Nua, de pé, solto o cabelo às costas, 
Sorri. Na alcova perfumada e quente, 
Pela janela, como um rio enorme 
De áureas ondas tranqüilas e impalpáveis, 
Profusamente a luz do meio-dia 
Entra e se espalha palpitante e viva. 
Entra, parte-se em feixes rutilantes, 
Aviva as cores das tapeçarias, 
Doura os espelhos e os cristais inflama. 
Depois, tremendo, como a arfar, desliza 
Pelo chão, desenrola-se e, mais leve, 
Como uma vaga preciosa e lenta, 
Vem lhe beijar a pequenina ponta 
Do pequenino pé macio e branco. 

Sobe... cinge-lhe a perna longamente; 
Sobe...- e que volta sensual descreve 
Para abranger todo o quadril!- prossegue, 
Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura, 
Morde-lhe os bicos túmidos dos seios, 
Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo 
Da axila, acende-lhe o coral da boca, 
E antes de se ir perder na escura noite, 
Na densa noite dos cabelos negros, 
Pára confusa, a palpitar, diante 
Da luz mais bela dos seus grandes olhos. 

E aos mornos beijos, às carícias ternas, 
Da luz, cerrando levemente os cílios, 
Satânia os lábios úmidos encurva, 
E da boca na púrpura sangrenta 
Abre um curto sorriso de volúpia... 


Olavo Bilac

Very Early Spring

Gianni Strino


The fields are snowbound no longer;
There are little blue lakes and flags of tenderest green.
The snow has been caught up into the sky--
So many white clouds--and the blue of the sky is cold.
Now the sun walks in the forest,
He touches the bows and stems with his golden fingers;
They shiver, and wake from slumber.
Over the barren branches he shakes his yellow curls.
Yet is the forest full of the sound of tears...
A wind dances over the fields.
Shrill and clear the sound of her waking laughter,
Yet the little blue lakes tremble
And the flags of tenderest green bend and quiver.


 Katherine Mansfield

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Serge MARSHENNIKOV


Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!

Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.

Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi.

No seu ventre pousei a minha boca,
– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci...


Olavo Bilac

Despedida

Santiago Carbonell


E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perda da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?

 Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.


Rubem Braga


Extraído do livro "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá – Rio de Janeiro, 1967, pág. 83.

http://www.releituras.com/

O suicida do amor

 Omar Ortiz


Nada contra quem toma decisões pelos dois dentro do relacionamento, natural antecipar pensamentos e atitudes, mostrar que conhece as aflições do par. Pressentir o mal-estar de nossa companhia é até uma delicadeza em alguns momentos (festa ruim, pressão familiar, impasses públicos).

O que não aturo é quem se separa para o bem dos dois.

Aquele que se vê no direito de dizer o que será bom ou ruim para a vida do outro. O profeta da porta, o adivinho da janela.

Não se separa por ele, por clara vontade, mas mente que é uma maneira de preservar os laços.

Aquele que é porta-voz do Ministério da Justiça do Amor e esclarece, com a voz mansa, de que será melhor assim, que a separação é o ideal para a alegria de ambos.


Fabrício Carpinejar

Inseto



Um inseto é mais complexo que um poema
Não tem autor
Move-o uma obscura energia
Um inseto é mais complexo que uma hidrelétrica

Também mais complexo que uma hidrelétrica
é um poema
(menos complexo que um inseto)

e pode às vezes
(o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
ou quem sabe
uma vida


Ferreira Gullar
vernon_emile


Tenho mil irmãs para amar sem palavras.
Tenho aquela irmã que caminha encostada
às paredes e sem voz, tenho aquela irmã de
esperança, tenho aquela irmã que desfaz o
rosto quando chora. Tenho irmãs cobertas
pelo mármore de estátuas, refletidas pela
água dos lagos. Tenho irmãs espalhadas por
jardins. Tenho mil irmãs que nasceram
antes de mim para que, quando eu nascesse,
tivesse uma cama de veludo. Agradeço com
amor a cada uma das minhas irmãs. São mil
e cada uma tem um rosto a envelhecer. As
minhas mil irmãs são mil mães que tenho.
Os olhos das minhas irmãs seguem-me com
bondade e, quando não me compreendem,
é porque eu próprio não me compreendo.
Tenho mil irmãs a esperar-me sempre, com
silêncio para ouvir-me e para proteger-me
no inverno. Tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola e tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola. Tenho irmãs como música, como
música. Tenho mil irmãs feitas de branco.
Eu sou o irmão de todas elas. Sou o guardião
permanente e incansável do seu sossego.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.


José Luís Peixoto