terça-feira, 31 de maio de 2011

Fama e fortuna


Assinei meu nome tantas vezes
e agora viro manchete de jornal.
Corpo dói - linha nevrálgica via
coração. Os vizinhos abaixo
imploram minha expulsão imediata.
Não ouviram o frenesi pianíssimo da chuva
nem a primeira história mesmo de terror:
no Madame Tussaud o assassino esculpia
as vítimas em cera. Virou manchete.
Eu guio um carro. Olho a baía ao longe,
na bruma de neon, e penso em Haia,
Hamburgo, Dover, âncoras levantadas
em Lisboa. Não cheguei ao mundo novo.
Nada é nacional. Desço no meu salto,
dói a culpa intrusa: ter roubado
teu direito de sofrer. Roubei tua
surdina, me joguei ao mar,
estou fazendo água. Dá o bote.


Ana Cristina César

Le flacon

AnaMariaSanz

II est de forts parfums pour qui toute matière
Est poreuse. On dirait qu'ils pénètrent le verre.
En ouvrant un coffret venu de l'Orient
Dont la serrure grince et rechigne en criant,

Ou dans une maison déserte quelque armoire
Pleine de l'âcre odeur des temps, poudreuse et noire,
Parfois on trouve un vieux flacon qui se souvient,
D'où jaillit toute vive une âme qui revient.

Mille pensers dormaient, chrysalides funèbres,
Frémissant doucement dans les lourdes ténèbres,
Qui dégagent leur aile et prennent leur essor,
Teintés d'azur, glacés de rose, lamés d'or.

Voilà le souvenir enivrant qui voltige
Dans l'air troublé; les yeux se ferment; le Vertige
Saisit l'âme vaincue et la pousse à deux mains
Vers un gouffre obscurci de miasmes humains;

II la terrasse au bord d'un gouffre séculaire,
Où, Lazare odorant déchirant son suaire,
Se meut dans son réveil le cadavre spectral
D'un vieil amour ranci, charmant et sépulcral.

Ainsi, quand je serai perdu dans la mémoire
Des hommes, dans le coin d'une sinistre armoire
Quand on m'aura jeté, vieux flacon désolé,
Décrépit, poudreux, sale, abject, visqueux, fêlé,

Je serai ton cercueil, aimable pestilence!
Le témoin de ta force et de ta virulence,
Cher poison préparé par les anges! liqueur
Qui me ronge, ô la vie et la mort de mon coeur!


Charles Baudelaire

*

O Frasco

Para certos perfumes, qualquer material
É poroso. Penetram até no cristal.
Ao abrir uma caixa vinda do Oriente,
De fecho enferrujado a ranger estridente,

Ou na casa deserta um antigo armário
Recendendo a passado, a pó e sacrário,
Pode haver lá um frasco que ainda recorda,
De onde escapará uma alma que acorda.

Idéias a dormir, crisálidas primevas,
Vibrando levemente no fundo das trevas,
Abrem asas e voam colorindo o ar
De rosa-aurora, ouro-sol, azul-luar.

São lembranças inebriantes que se erigem
No ar turvo; os olhos fecham; a Vertigem
Toma conta da alma e a empurra com gana
Para o abismo escuro da essência humana;

No fundo desse abismo ela vê num ossário,
Qual Lázaro pungente rasgando o sudário,
Mover-se ao acordar a carcaça espectral
De um velho amor rançoso, doce e sepulcral.

Assim, quando eu estiver perdido na memória
Dos homens, num porão, numa arca simplória,
Quando estiver jogado fora, reles frasco
Troncho, feio, rachado, sujo, sebo, asco,

Serei teu ataúde, amável pestilência!
Guardião da tua força, tua virulência,
Veneno filtrado pelos anjos! Licor
A me queimar, vida e morte do meu amor!

(tradução: Jorge Pontual)

Anastasia Vostrezova.

Uma vela, mais não. A sua luz tênue
é mais adequada, mais brando te assombras
quando vierem do Amor, quando vierem as Sombras.

Uma vela, mais não. Para não ter hoje à noite
a alcova grande iluminação. Dentro do enleio inteiro
e da sugestão, e com a pouca luz -
assim no enleio hei-de ter visões
para que venham do Amor, para que venham as Sombras.


Konstandinos Kavafis

Odalisca

by bruno di maio

Contam que se entrega aos ventos favoráveis
do amor. Estátua de mármores noturnos,
assistiu a uma debandada de desejos
na pele dos amantes. No olhar calcinado
pela espera, derrama-se o fogo já frio
das vésperas inúteis. Para que lhe servem os braços,
agora que todos partiram, e só uma corrente
de silêncio a prende ao leito?

No entanto, deito-me com ela. Um degelo
de pálpebras limpa-nos de uma cinza
de solidão. E diz-me: «Quero perder-me
numa encruzilhada de abraços; afogar-me
num poço de gemidos; esquecer-me de mim
no fundo da tua memória.» Deixo-a
entregue a si própria; e pergunto o que fazer
do calor dos seus lábios, da ânsia
que os seus dedos soltam, do tempo
que estremece no seu corpo?


Nuno Júdice

Passagem da noite

Francesca Strino

É noite. Sinto que é noite.
não porque a noite descesse
(bem me importa a fase negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palmitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.

E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.

De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras, que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou: não nos diluimos!
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver.


 Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Entre o sono e sonho

Charles Muench

Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.
Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre -
Esse rio sem fim.


Fernando Pessoa
by Jim Warren

mar bravio
a cada onda
novo silêncio


Alice Ruiz


Compõe as flores
sem adornos. As coisas
simples, mesmo se
de ornamento
apenas servem, dispensam
sempre o que é gratuito. E sê,
também, por isso,
uma flor. Ou só
o orvalho
que a sustenta. Ou só
o seu perfume
matinal.


Albano Martins

Segunda Elegia, Terceira Sede


Ser inteiro custa caro.
Endividei-me por não me dividir.
Atrás da aparência há uma reserva de indigência,
a volúpia dos restos.

Parto em expedição para provar que já morri.
E escavo boletins, cartas e álbuns
— o retrocesso da minha letra ao garrancho.

O passado tem sentido se permanecer desorganizado.
A verdade ordenada é uma mentira.

O musgo envaidece as relíquias. Os dedos retiram as teias,
assisto à revoada de insetos das ciladas.
Fujo da claridade, refulge a poeira.
O par de joelhos na imobilidade de um rochedo.

Reviso o testamento alisando a textura,
como um gramático da seda.
Desvendo o que presta pelo som do corte.

O que ansiava achar não acho
e esbarro em objetos despossuídos de lógica
que me encontram antes de qualquer pretensão.

O que fiz cabe numa caixa de sapatos.
Colecionava talhos de madeira, bonecos
adornados com a ponta miúda do canivete.
Lá estava um dos sobreviventes, desfocado,
vizinho das medalhas escolares
e dos parafusos condoídos de ferrugem.

Um autorretrato não seria tão fidedigno.
Eu era aquela frincha de chão florido, casca e húmus.

Quantas foram as miudezas que não combinavam
com o conjunto e, na falta de harmonia,
abandonei no depósito da infância?

E se faltou confiança para restaurá-las ao convívio,
faltou coragem para excluí-las em definitivo.

Somos o desperdício do que estocamos.
Não aprendemos a desaprender.
Não doamos nada, nem a palavra passamos adiante.

O porão tem vida própria e respira
o que jogamos fora.
O que refugamos na ceia volta a nos mastigar.

Tudo pode fermentar: o forro, os passos, o odor do braço.
Tudo pode nascer sem o mérito do grito,
no murmúrio ou estalar do abraço.

Tudo pode nascer, ainda que abafado.


Fabrício Carpinejar

sábado, 28 de maio de 2011


"Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual  para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do zodíaco.
Virei outro. Tratei de reler os clássicos que me mandaram ler na adolescência, e não agüentei. Mergulhei nas letras românticas que tanto repudiei quando minha mãe quis me forçar a ler e gostar, e através  delas tomei consciência de que a força invencível que impulsionou o mundo não foram os amores felizes e sim os contrariados. Quando meus gostos musicais entraram em crise me descobri atrasado e velho, e abri meu coração às delícias do acaso.
Me pergunto como pude sucumbir nessa vertigem perpétua que eu mesmo provocava e temia. Flutuava entre nuvens erráticas e falava sozinho diante do espelho com a vã ilusão de averiguar quem sou. Era tal meu desvario, que em uma manifestação estudantil com pedras e garrafas tive que buscar forças na fraqueza para não me colocar na frente de todos com um letreiro que consagrasse minha verdade: Estou louco de amor."


Gabriel García Marquez, Memórias de minhas putas tristes

Demogorgon

Jia_Lu

Na rua cheia de sol vago há casas paradas e gente que anda.
Uma tristeza cheia de pavor esfria-me.
Pressinto um acontecimento do lado de lá das frontarias e dos movimentos.

Não, não, isso não!
Tudo menos saber o que é o Mistério!
Superfície do Universo, ó Pálpebras Descidas,
Não vos ergais nunca!

O olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se!
Deixai-me viver sem saber nada, e morrer sem ir saber nada!
A razão de haver ser, a razão de haver seres, de haver tudo,
Deve trazer uma loucura maior que os espaços
Entre as almas e entre as estrelas.

Não, não, a verdade não! Deixai-me estas casas e esta gente;
Assim mesmo, sem mais nada, estas casas e esta gente...
Que bafo horrível e frio me toca em olhos fechados?
Não os quero abrir de viver! ó Verdade, esquece-te de mim!


Álvaro de Campos

Uma pedra é uma pedra

chelin_sanjuan

uma pedra
(diz
o filósofo, existe
em si,
não para si
como nós)

uma pedra
é uma pedra
matéria densa
sem qualquer luz
não pensa

ela é somente sua
materialidade
de cousa:
não ousa

enquanto o homem é uma
aflição
que repousa
num corpo
que ele

de certo modo
nega
pois que esse corpo morre
e se apaga

e assim
o homem tenta
livrar-se do fim
que o atormenta

e se inventa


Ferreira Gullar

Soneto XVI

ABrito 

Amo o pedaço de terra que tu és,
Porque das campinas planetárias
outra estrela não tenho. Tu repetes
a multiplicação do universo.

Teus amplos olhos são luz que tenho
das constelações derrotadas,
tua pele palpita como os caminhos
que percorre na chuva o meteoro.

De tanta luz foram para mim teus quadris,
de todo o sol tua boca profunda e sua delícia,
de tanta luz ardente como o mel na sombra

teu corpo queimado por longos raios rubros,
E assim percorro o fogo de tua forma beijando-te,
pequena e planetária, pomba e geografia.


Pablo Neruda
In:"Cem sonetos de amor"


Eu também, não resisto. Dans mon île, vendo a barca e as gaivotinhas passarem. Sua resposta vem de barca e passa por aqui, muito rara.
Quando tenho insônia me lembro sempre de uma gaffe e de um anúncio no museu: "To see all these works together is an experience not to be missed".

E eu nem nada. Fiz misérias nos caminhos do conhecer. Mas hoje estou doente de tanta estupidez porque espero ardentemente que alguma coisa... divina aconteça. F for fake. Os horóscopos também erram.

Me escreve mais, manda um postal do azul (eu não me espanto).
O lugar do passado? Na próxima te digo quem são os 3, mas os outros grandes eu resisto.

Não fica aborrecida: beijo político lábios de cada amor que tenho.

Ana Cristina César

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Arte by Julliet Ramirez Hernandez.


Formoso é o fogo e o rosto
da amada junto a ele.
No lume de seu corpo
tudo em redor clareia.

Depois o que era fogo,
é espuma que se alteia.
E o mundo se faz novo
nas curvas da centelha.

Já não existe esboço,
mas desenhos, e teimam
— unos e justapostos.

Já não existe corpo:
são almas que se queimam
no amor de um mesmo sopro.


Carlos Nejar

[9] O livro do desassossego



Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora. E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução.

Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
O livro do desassossego

“Man At The Top” - Bruce Springsteen


Here comes a fireman, here comes a cop
Here comes a wrench, here comes a car hop
Been going on forever, it ain’t ever gonna stop
Everybody wants to be the man at the top
Everybody wants to be the man at the top
Everybody wants to be the man at the top
Aim your gun, son, and shoot your shot
Everybody wants to be the man at the top

Rich man, poor man, beggar man, thief
Doctor, lawyer, Indian chief
One thing in common they all got

Everybody wants to be the man at the top
Everybody wants to be the man at the top
Everybody wants to be the man at the top
Aim your gun, son, and shoot your shot
Everybody wants to be the man at the top

Man at the top says its lonely up there
If it is, man, I don’t care
From the big white house to the parking lot
Everybody wants to be the man at the top
Here comes a banker, here comes a businessman
Here comes a kid with a guitar in his hand
Dreaming of his record in the number-one spot
Everybody wants to be the man at the top

Bruce Springsteen

O Homem Público N. 1


Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

Ana Cristina César

quarta-feira, 25 de maio de 2011

by Jay Anacleto

O instante que se foi, sem que pudesses
de olhos secos gravar-lhe a melodia
ficou nessa lembrança em que amanheces
formando a noite com o esplendor do dia.

Atravessando as horas, sem que o houvesses
sentido, teu espírito sorria
tão claro ao sonho, como se estivesses
prestes a te mudar numa elegia.

E junto a mim choravas, esperando
que eu me fosse, deixando-te sozinha
quando na terra o tempo estacionasse.

Mas não cerraste os olhos, aguardando
o instante de chorar e de ser minha
quando o arcanjo da vida me acordasse.


Lêdo Ivo

A velha juventude

 

Alberto Pancorbo


Não caio, mesmo que as forças me faltem,

cruzo-me com a tarde e com o assombro do mar

onde o meu coração aguardará a noite como as aves

nos ninhos construídos no interior da falésia.


Será uma noite surpreendente, uma noite sem ti,

porque será mais noite ainda, sem aquele brilho azul

que só as nossas noites tinham. E eu sinto-me vazio

como uma criança que fugiu de casa e não sabe voltar.


O meu olhar é uma pedra acesa na tua recordação,

a minha carne sente a falta da tua, e nas minhas mãos

o sol deixa os últimos raios de âmbar, as tímidas marcas

que os meus dentes costumavam gravar na tua pele.


Quando a noite vier fechar as suas portas,

lembrar-me-ei do interior da nossa casa, quando

esperava por ti, doente de esperar, mas fascinado

como só poderia sentir-se um amante faminto.


Caminho e não caio, mesmo que me faltem

as forças que me trouxeram para longe de ti. Sou

esse velho amante cheio de juventude, a quem a vida

não quis renovar mais que os próprios versos.


JOAQUIM PESSOA



Rompe-se a escuridão quando ao olhar
para uma face o mundo se ilumina
com uma claridade repentina
capaz de, só por si, fazer brilhar
a substância tão irregular
de tudo o que se acende na retina
e através da luz se dissemina
por entre imagens vãs, até formar
um fluido movimento, uma paisagem
a que estes olhos quase não reagem
salvo se nesse instante o rosto for
transfigurado pela fantasia.
E às vezes é só isso que anuncia
aquilo a que chamamos o amor.

Fernando Pinto do Amaral . “Relâmpago”.
In: Poesia reunida 1900-2000. Lisboa: Dom Quixote, 2000.

Você para de comer, eles param de morrer



Arte by Rob Hefferan.

Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor é brando, é doce e é piedoso;
Quem o contrário diz não seja crido:
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens e inda aos deuses odioso.

Se males faz Amor, em mim se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são de amor;
Todos estes seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria.


Luís de Camões


HÁ UM NOME que nos estremece,
como quando se corta a flor
e a árvore se torce e padece.

Há um nome que alguém pronuncia
sem qualquer alegria ou dor,
e que em nós, é dor e alegria.

Um nome que brilha e que passa,
que nos corta em puro esplendor,
que nos deixa em cinza e desgraça.

Nele se acaba a nossa vida,
porque é o nome total do amor
em forma obscura e dolorida.

Há um nome levado no vento.
Palavra. Pequeno rumor
entre a eternidade e o momento.


Cecília Meireles


"Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido. E o que é proibido eu adivinho. Se houver força. Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino. É-se. Sou-me. Tu te és.
E sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico, fantástico e gigantesco: a vida é sobrenatural. E caminho segurando um guarda-chuva aberto sobre corda tensa. Caminho até o limite do meu sonho grande. Vejo a fúria dos impulsos viscerais: vísceras torturadas me guiam. Não gosto do que acabo de escrever - mas sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu. E respeito muito o que eu me aconteço. Minha essência é inconsciente de si própria e é por isso que cegamente me obedeço.
Estou sendo antimelódica. Comprazo-me com a harmonia difícil dos ásperos contrários. Para onde vou? E a resposta é: vou."

Clarice Lispector

terça-feira, 24 de maio de 2011

Have a heart, go vegetarian!


Posso ouvir a minha voz feminina: estou
cansada de ser homem.
Ângela nega pelos olhos: a woman left lonely.
Finda-se o dia.
Vinde meninos, vinde a Jesus. A Bíblia e o
Hinário no colinho.
Meia branca. Órgão que papai tocava. A benção
final, amém.
Reviradíssima no beliche de solteiro. Mamãe
veio cheirar e
percebeu tudo. Mãe vê dentro dos olhos do
coração mas estou
cansada de ser homem. Ângela me dá trancos
com os olhos
pintados de lilás ou de outra cor sinistra da
caixinha. Os peitos
andam empedrados. Disfunções. Frio nos pés.
Eu sou o
caminho, a verdade, a vida. Lâmpada para os
meus pés é a tua
palavra. E luz para o meu caminho. Posso ouvir
a voz.
Amém, mamãe.


Ana Cristina César

Confiança

by Luis Ricardo Falero


O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova...


Miguel Torga


Requiescat

Delphin Enjolras


Por que me vens, com o mesmo riso,
Por que me vens, com a mesma voz,
Lembrar aquele Paraíso,
Extinto para nós?

Por que levantas esta lousa?
Por que, entre as sombras funerais,
Vens acordar o que repousa,
O que não vive mais?

Ah! esqueçamos, esqueçamos
Que foste minha e que fui teu:
Não lembres mais que nos amamos,
Que o nosso amor morreu!

O amor é uma árvore ampla, e rica
De frutos de ouro, e de embriaguez:
Infelizmente, frutifica
Apenas uma vez...

Sob essas ramas perfumadas,
Teus beijos todos eram meus:
E as nossas almas abraçadas
Fugiam para Deus.

Mas os teus beijos esfriaram.
Lembra-te bem! lembra-te bem!
E as folhas pálidas murcharam,
E o nosso amor também.

Ah! frutos de ouro, que colhemos,
Frutos da cálida estação,
Com que delícia vos mordemos,
Com que sofreguidão!

Lembras-te? os frutos eram doces...
Se ainda os pudéssemos provar!
Se eu fosse teu... se minha fosses,
E eu te pudesse amar...

Em vão, porém, me beijas, louca!
Teu beijo, a palpitar e a arder,
Não achará, na minha boca,
Outro para o acolher.

Não há mais beijos, nem mais pranto!
Lembras-te? quando te perdi
Beijei-te tanto, chorei tanto,
Com tanto amor por ti,

Que os olhos, vês? já tenho enxutos,
E a minha boca se cansou:
A árvore já não tem mais frutos!
Adeus! tudo acabou!


Outras paixões, outras idades!
Sejam os nossos corações
Dois relicários de saudades
E de recordações.

Ah! esqueçamos, esqueçamos!
Durma tranqüilo o nosso amor
Na cova rasa onde o enterramos
Entre os rosais em flor...


Olavo Bilac

A Máscara

maskerade, Öl auf Schöllerhammer

«Tira essa máscara de ouro ardente
E olhos de esmeralda.»
«Oh não, meu amor, atreves-te demasiado
A ver se um coração é selvagem e sábio,
Sem ser frio.»

«Só quero ver o que houver para ver,
O amor ou o engano.»
«Foi a máscara o que ocupou a tua mente,
E fez bater o teu coração,
Não o que está por detrás.»

«Mas a não ser que sejas minha inimiga
Devo inquirir.»
«Oh não, meu amor, deixa tudo ser como é;
Que importa, se entretanto houver fogo
Em ti e em mim?»

William Butler Yeats


segunda-feira, 23 de maio de 2011

Disappointed Love, 1891 - Francis Danby

Como falarei desta saudade sem chorar?
Como falarei desse mundo perdido
Sem chorar, sem me lamentar, sem fugir
Desta tranquilidade que tão tarde me chegou?

Depois de ter-me desesperado tanto e em vão?
Como falarei dessas paisagens que eu guardei
No coração longínquo, dessas paisagens
Do meu tão pobre e tão perdido mundo?

Como olharei, nesta hora, distraído e distante,
Esses recantos que o amor tornava tão belos,
Tão encantados, tão mágicos, tão irreais, outrora?

Como tocarei nesses trechos iluminados da memória,
onde o coração pulsou mais forte, onde os meus olhos
conheceram a doce, a triste, a inexplicável alegria do amor?


Augusto Frederico Schmidt

Tu Risa



Quítame el pan si quieres,
quítame el aire, pero
no me quites tu risa.

No me quites la rosa,
la lanza que desgranas,
el agua que de pronto
estalla en tu alegría,
la repentina ola
de planta que te nace.

Mi lucha es dura y vuelvo
con los ojos cansados
a veces de haber visto
la tierra que no cambia,
pero al entrar tu risa
sube al cielo buscándome
y abre para mí todas
las puertas de la vida.

Amor mío, en la hora
más oscura desgrana
tu risa, y si de pronto
ves que mi sangre mancha
las piedras de la calle,
ríe, porque tu risa
será para mis manos
como una espada fresca.

Junto al mar en otoño,
tu risa debe alzar
su cascada de espuma,
y en primavera, amor,
quiero tu risa como
la flor que yo esperaba,
la flor azul, la rosa
de mi patria sonora.

Ríete de la noche,
del día, de la luna,
ríete de las calles
torcidas de la isla,
ríete de este torpe
muchacho que te quiere,
pero cuando yo abro
los ojos y los cierro,
cuando mis pasos van,
cuando vuelven mis pasos,
niégame el pan, el aire,
la luz, la primavera,
pero tu risa nunca
porque me moriría.


Pablo Neruda

Um Pedaço de Você

by arthur-braginsky

Um pedaço de você já ficou no tempo,
quando você deixou de ler um bom livro,
quando não acreditou naquele amigo…

Quando não aproveitou aquele instante
para falar de amor,
quando não abraçou seu pai e nem beijou a mãe.

Um pedaço de você se perdeu na curva,
quando abandonou o seu sonho sem tentar,
quando aceitou trabalhar onde não gostava,
quando fazia o que não suportava…

Quando disse sim, quando queria dizer não,
quando deixou o amor morrer
antes de nascer, por medo de sofrer…

Um pedaço de você ficou parado,
quando você não quis fazer um novo percurso,
quando se conformou com o velho,
quando ficou parado vendo o povo correr…

Quando votou em branco, se podia escolher,
quando não apareceu quando era esperado.

A vida pede atitude em cada instante,
e passa por cima de quem se cala,
de quem aceita, de quem acredita que tudo
está irremediavelmente perdido.

A vida desacata quem não se aceita,
humilha quem não se valoriza,
ensina com amor os que amam sem medidas,
ensina com dor, os que fogem das lições.

Um pedaço de você quer tudo, outro quer se esconder.

Assim, cabe a você, só a você,
dosar ansiedade e apatia,
ter um tempo para criar e outro para executar…

Falar e ouvir, ensinar e aprender, caminhar e correr…

Amar e ser amado, falar baixo e gritar.
Ter um tempo para refletir…

Só não vale cruzar os braços!
Só não vale não ser você!
Só não vale esquecer:
Que nada é mais importante que você.


Paulo Roberto Gaefke
Lauri Blank

Amiga, amiga! De braço dado atravessamos o arco-íris.
Quem nos dá esta força que nos impele acima do mar e das montanhas?

Deixamos lá embaixo os bens materiais e a violência da vida.
Amiga, amiga! Teu rosto é semelhante à lua moça,
Há nas tuas roupas um cheiro bom de mato virgem.
Tua fala saiu da caixinha de música dos meus sete anos,
E te empinas no anzol com a graça dos papagaios que eu soltava.
Ó amiga! Deixamos o reino dos homens bárbaros
Que fuzilam crianças com bonecas ao colo,
E eis-nos livres, soprados pelos ventos,
Até onde não alcançam os aparelhos mecânicos.
Unidos num minuto ou num século, que importa.

Agarrados à cauda de um cometa percorremos a criação.
Teu rosto desvendou os olhos comunicantes.
Não há mistério: só nós dois sabemos nosso nome,
E as fronteiras entre amor e morte.
Eu sou o amante e tu és a amada.
Para que organizar o tempo e o espaço?


Murilo Mendes

Delírios

II

A alquimia do verbo

A mim. A história de uma das minhas loucuras.

Desde há muito eu me vangloriava de possuir todas as paisagens possíveis, e me pareciam irrisórias as celebridades da pintura e da poesia moderna.

Gostava das pinturas idiotas, capitéis, cenários, telas de saltimbancos, tabuletas, iluminuras populares; a literatura fora de moda, latim de igreja, livros eróticos sem ortografia, romances de nossas avós, contos de fadas, livros infantis, óperas antigas, estribilhos idiotas, ritmos ingênuos.

Sonhava com cruzadas, viagens de descobertas da quais não existem notícias, republicas sem historia, guerras religiosas sufocadas, revoluções de costumes, deslocamentos de raças e continentes: eu acreditava em todos os encantamentos.

Inventei a cor das vogais! — A negro, E branco, I vermelho, O azul, U verde. — Ordenei a forma e o movimento de cada consoante e, com ritmos instintivos, pretendi inventar um verbo poético acessível, mais dias menos dias, a todos os sentidos. Eu me reservava sua tradução.

Antes, foi apenas um estudo. Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.

Que bebia eu de joelhos nesta charneca
Rodeada de tenros bosques de avelãs,
Numa verde e morna nevoa vespertina,
Longe dos pássaros, rebanhos e aldeãs?

Que podia beber neste jovem Cise, querida,
— Olmos sem voz, céu coberto, raiva sem flores! —
Longe da tenda, em cabaças amarelas?
Algum licor dourado que provoca suores.

Fiz equívocos sinais de boas vindas.
Tempestade no céu. Ao escurecer
A água dos bosques na areia morria,
O vendaval de Deus os mares gelava.

Chorando, via o ouro — e beber não podia. —

Quatro horas da manhã estival,
O sono de amor ainda persiste.
Nos arbustos já não mais existe
Noturnos odores de festival.

Lá ao longe, ao sol doas Hespérides,
Em seus imensos canteiros
Já se movem — em mangas de camisa —
Os Carpinteiros.

Em seus Desertos de espuma, tranqüilos
Preparam preciosas molduras
Onde a cidade
Pintará céus de impostura.

Ó, por estes Obreiros fascinantes
Quem um rei de Babilônia têm atados,
Vênus! Abandona teus amantes
cujos espíritos tens escravizados.

A todos eles, Rainha dos Pastores,
a aguardente tens de levar
Que estejam mansos os trabalhadores
Quando ao meio-dia se banhem no mar.

As velharias poéticas ocupavam boa parte de minha alquimia do verbo.

Habituei-me à alucinação simples: via, honestamente, uma mesquita no lugar de uma fábrica, uma escola de tambores feita por anjos, carruagens nos caminhos dos céus, um salão no fundo de um lago; os monstros, os mistérios; um título de comedia erigia terrores à minha frente.

Depois explicava meus sofismas mágicos com a alucinação das palavras!

Acabei pr julgar sagrada a desordem de meu espírito. Era cioso, vitima de forte febre: invejava a felicidade dos animais, — as crisálidas, que representavam a inocência dos limbos, as toupeiras, o sono da virgindade!

Meu caráter se tornava acre. Eu me despedia do mundo, com uma espécie de romança:


Canção da torre mais alta

Que venha essa hora
Que nos enamora.

Minha paciência foi tanta
Que não mais a lembro.
Medos e prantos
Aos céus já foram.
E uma sede malsã que cresce
Minhas veias obscurece.

Que venha essa hora
Que nos enamora.

Tal campina esquecida
Imensa, florida,
De incenso e de joio,
Ao zumbido selvagem
De moscas imundas.

Que venha essa hora
Que nos enamora.


Eu amava o deserto, os pomares queimados, lojas decadentes, as bebidas mornas. Eu me arrastava pelas ruelas fedorentas e, com os olhos fechados, me oferecia ao sol, deus do fogo.

“General, se ainda resta um canhão velho em teus baluartes em ruínas, bombardeia-nos com montes de terra seca. Contra as vitrines da das lojas esplêndidas! dentro dos salões! Faz que a cidade coma sua própria poeira. Enferruja as gárgulas. Enche os toucadores de poeira ardente de rubis...

Ó! a mosca embriagada no mictório da taverna, apaixonada pela borragem, e dissolvida por um raio de sol!



Fome

Se tenho apego, não é mais
Que pelas pedras e chão.
Como sempre ar
Rocha, ferro, carvão.

Voltai minhas fomes. Pastai
No prado dos sons.
Atraí o alegre veneno
Das trepadeiras.

Comei os seixos que se quebram,
As velhas pedras de igrejas;
Calhaus de antigos dilúvios,
Pães semeados em vales grises.

Uiva o lobo nas folhagens
Cuspindo as belas plumas
Das aves de seu repasto:
Como ele eu me gasto.

As hortaliças e as frutas
Só esperam a mão que as tome;
Mas a aranha dos tapumes
Só violetas come.

Que eu durma! que ferva
Nos altares de Salomão.
Sobre a ferrugem corre a fervura
E se mistura o Cedrão.

Enfim, ó felicidade, ó razão, eu separava do céu o azul, que é negro, e vivi, centelha dourada da luz natureza. Em minha alegria, eu assumia uma expressão tão burlesca e alucinada quanto possível:

Ela foi reencontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar
Ao sol misturado.

Minha alma eterna,
Segue teu rogo
Contra a noite pura
E o dia em fogo.

Te libertas então
Dos votos humanos,
E ímpetos vãos!
E voas segundo...

Jamais a esperança,
Jamais orietur.
Ciência e paciência
O suplício é seguro.

Tampouco futuro,
Brasas de cetim,
Vossa paixão
É a obrigação.

Ela foi reencontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar
Ao sol misturado.

Tornei-me uma ópera fabulosa: vi que todos os seres têm um fatalismo da felicidade: a ação não é a vida, mas uma forma de dilapidar alguma força, um enfraquecimento. A moral é a debilidade do juízo.

Parecia-me que a cada ser devem ser dadas outras vidas. Este cavalheiro não sabe o que faz: é um anjo. Esta família é uma ninhada de cães. Diante de vários homens, falei em voz alta com um momento de uma de suas outras vidas. — Assim, amei um porco.

Nenhum dos sofismas da loucura, — a loucura de atar, — foi esquecido por mim: eu poderia repeti-los todos, tenho o sistema.

Minha saúde esteve ameaçada. O terror me invadia. Caía em sonos de vários dias e, desperto, continuava os mais tristes sonhos. Estava maduro para a morte, por uma senda de perigos minha fraqueza me conduzia aos confins do mundo e da Ciméria, pátria da sombra e dos turbilhões.

Tive de viajar, dissipar os encantamentos reunidos em meu cérebro. No mar, que amava como se devesse purificar-me de uma mancha, eu via elevar-se a cruz consoladora. Eu fora amaldiçoado pelo arco-íris. A Felicidade era minha fatalidade, meu remorso, meu verme; minha vida seria sempre excessivamente imensa para ser dedicada à força e à beleza.

A Felicidade! Seu dente, doce até a morte, me advertia do canto do galo, —ad matutinum, no Christus venit, — nas mais sombrias cidades.

É estações, ó castelos!
Qual a alma sem defeitos?

Fiz o mágico estudo
Da ventura, que ninguém elude.

Saudemo-la, cada vez
Que cante o galo gaulês.
Ah! Não mais ambições:
Pus minha vida em suas mãos.

Este encanto prendeu-me alma e corpo
E dispersou os esforços.

Ó estações, ó castelos!

A hora de sua fuga, enfim!
Será a hora do meu fim.

Ó estações, ó castelos!

Isto passou. Hoje eu sei saudar a beleza


Arthur Rimbaud

domingo, 22 de maio de 2011


"Bem sabia, experimentaria enfim em pleno a dor do mundo. E a sua própria dor de criatura mortal, a dor que aprendera a não sentir. Mas também seria por vezes tomada de um êxtase de prazer puro e legítimo que ela mal podia adivinhar. Aliás já estava adivinhando porque se sentiu sorrindo e também sentiu uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande de mais. Sempre se retinha um pouco como se retivesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e levá-la sabe Deus aonde. Ela se guardava. Por que e para quê? Para o que estava ela se poupando? Era um certo medo de sua capacidade, pequena ou grande. Talvez se contivesse por medo de não saber os limites de uma pessoa. E quando notou que aceitava em pleno o amor, sua alegria foi tão grande que o coração lhe batia por todo o corpo, parecia-lhe que mil corações batiam-lhe nas profundezas de sua pessoa. Um direito-de-ser tomou-a, como se ela tivesse acabado de chorar ao nascer. Como? Como prolongar o nascimento pela vida inteira? Foi depressa ao espelho para saber quem era Loreley e para saber se podia ser amada. Mas assustou-se ao se ver. Eu existo, estou vendo, mas quem sou eu? E ela teve medo."

Clarice Lispector
Ilustração de Émile Friant.


Ao iniciar um casamento, o homem deve se colocar a seguinte pergunta: você acredita que gostará de conversar com esta mulher até na velhice? Tudo o mais no casamento é transitório, mas a maior parte de tempo é dedicada à conversa.

 Friedrich Nietzsche, in Humano, Demasiado Humano


Ennio Montariello 

É provável sim, é provável que ainda a ame,
que ame ainda nela o que antes soube amar,
a cabeleira escura, o ventre inquietante,
o peito guardando a alegria de um coração solar.

Os meus olhos profundos sempre a contemplaram
visivelmente perturbados, até mesmo perdidos,
quando ela caminhava abrindo rasgões no ar
que se fechavam depois à sua passagem
para cingir-lhe os braços, os seios e as ancas.

A sua boca tremeu na minha com a sede da musica
e o seu contato era o do musgo e da cinza
e dessas cerejas maduras pelo lume de Maio.

Não sei se estou a endeusá-la ou se ela é uma deusa.
Não sei mesmo se conseguirei dizer dela quanto gostaria.
Ela está tão perto do meu corpo que a minha pele se acende
e tão longe dos meus olhos que só poderei lembrá-la.

Fizémos muito amor e sempre muitas vezes
sem que entre nós esvoaçasse uma mínima sombra.
Quando ficávamos tristes, é que o espanto crescia
até ao minuto primeiro da tristeza.

É uma mulher maravilhosa, o seu nome que importa?,
tão frágil como um menino inocente, assim desamparada,
correndo para a loucura como antes correu para os meus braços.

Nenhuma paixão poderia doer-me mais.
Nenhuma ternura poderia mimar-me tanto.

O meu poema é uma casa erguida com a sua beleza
onde ela entra e de onde sai e algumas vezes se demora.

Poderei dizer que o meu coração é uma sala vazia?

A sua recordação ainda me perturba e disso tenho consciência.

Amo-a ainda ou não a amo já, é impossivel dizer,
mas é provável, sim, é provável que ainda a ame. 


Joaquim Pessoa

Carta ao meu Adão


Ó amado
preciso te ver todas a manhãs
caminhando ou de bicicleta vou te ver, eu vou.
(escondida do rei)
Te busco peregrina
é dia claro
eu sem burca
me revelo
embora saia disfarçada
vestida das roupas que tirarei
diante do teu olhar imperador, ó inominável!
Caminho à tua beira e tuas súditas águas
se esparramam, se apressam em apagar meus passos
meus vestígios de mulher traicioneira.
Poemas de amor por ti? Muitos.
Pensamentos de loucura, lascívia e luxúria? Incontáveis.
Amo a tua bravura
a estrutura doce do teu sal
tua doçura insuspeitável.
De minha janela me chamas lindo,
um príncipe azul de lindo és quando assim me procuras.
Adão dessa cor e seus matizes, tu, meu amante espalhafatoso
imponente e importante és aquele que me dizes
O que sou, pra onde vou, quem eu sou e o que posso.
Ó Zeus do maleável,
Idealizador da tolerância
Fundador da serenidade
Justificador das tormentas
Explicador dos afogados,
Ó , és tu quem me tentas.
Não só te amo, é mais que isso,
transbordo.
Sem ir ao teu fundo, por medo, humildade e respeito
ainda assim sou tua e tu inundas meu fundo. Eu deixo, eu deixo...
(Quando era pequena minha calcinha de biquíni ficava cheia de areia e eu nem ligava, mas hoje essa imagem expõe a natureza do nosso negócio)
Te venero,
rei dos meus princípios
conselheiro de minhas vontades
tutor das possibilidades dos limites do meu juízo.
Te preciso todas as manhãs
e nesses quarenta dias longe de minha terra
fui ao teu encontro sorrateira e indiscutível,
como uma mulher busca o seu homem como uma puta ao seu cliente mais assíduo
como uma dama ao seu cavalheiro
como uma galinha ao seu galo,
uma fêmea ao seu macho parceiro.

Pois bem:
Amanhã acordarei com sol e irei ao nosso encontro,
aqui derradeiro.
Tu, ó misterioso senhor,
estarás contudo em outra parte
na costa de minha pátria já a me esperar sob os barcos,
e invadirás certamente algum convés a me buscar,
ó infinito persistente e uno que és!
Eu amanhã me despeço aqui de ti pra dizer que estarei sempre a teus pés com os meus pés, esses mesmos pés a quem primeiro beijas, antes de visitares todo o meu corpo,
A quem primeiro tocas antes de levar-me ao topo,
A quem primeiro batizas antes de eu chamar-te louco, desvairado amante,
Tresloucado céu invertido, meu Deus, meu pai, meu amigo, meu par!
Gracias pelos versos, por estes versos,
por teres me dado
equilíbrio, liberdade, abrigo e lar
Gracias por te amar, ó mar!


Elisa Lucinda

Já disse de nós


Já disse de nós.
Já disse de mim.
Já disse do mundo.
Já disse agora,
eu que já disse nunca.
Todo mundo sabe,
eu já disse muito.

Tenho a impressão
que já disse tudo.
E tudo foi tão de repente.


Paulo Leminski

Tu Queres Sono: Despede-te dos Ruídos

by steve_hanks

Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e

também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a
dor (não ouças)

que se prepara para carpir tua vigília, e os
cantos que
esqueceram teus braços e tantos
movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos
altos

que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.


Ana Cristina César
Renoir

“- comparado a Renoir também, cuja pintura de uma tarde francesa era estupendamente colorida, como as tardes de domingo de nossos sonhos de infância – rosas, púrpuras, vermelhos, volteios, dançarinos, mesas, bochechas coradas e gargalhadas.”

Jack Kerouac

sábado, 21 de maio de 2011

by Xie Chuyu

Este é o maio,
O maio é este,
Este é o maio e floresce
Este é o maio das rosas,
Este é o maio das formosas,
Este é o maio e floresce.
Este é o maio das flores.
Este é o maio dos amores,
Este é o maio e floresce.. .

Gil Vicente