sábado, 30 de março de 2013

Se me quiseres amar

bruno di maio


Se me quiserem amar, terá de ser agora: 
depois, estarei cansada. 
Minha vida 
foi feita de parceria com a morte: 
pertenço um pouco a cada uma, 
para mim sobrou quase nada. 

Ponho a máscara do dia, 
um rosto cômodo e fixo: 
assim garanto a minha sobrevida. 
Se me quiserem amar, terá de ser hoje: 
amanhã, estarei mudada.


Lya Luft, In Mulher no Palco, 1984

Remo Anzovino - Amante

Reflexo

 Michael Woloszynowicz


Olha: vem sobre os olhos
Tua imagem contemplar,
Como as madonas do céu
Vão refletir-se no mar
Pelas noites de verão
Ao transparente luar!

Olha e crê que a mesma imagem
Com mais ardente expressão
Como as madonas no mar
Pelas noites de verão,
Vão refletir-se bem fundo,
Bem fundo — no coração!


Machado de Assis

Desígnios

zindy-zone


alguém pode me dizer
se estava prevista na palma da minha mão
esta paixão inesperada
se estava já escrita e demarcada
na linha da minha vida
se fazia já parte da estrada
e tinha que ser vivida

ou foi um desgoverno repentino
que surpreendeu os deuses, todos
os que desenham o nosso destino
ou foi um desatino, uma loucura
uma imprevisível subversão
que só a partir de agora eu trago marcada
na palma da minha mão"


Bruna Lombardi
O Perigo do Dragão, Editora Record, Rio de janeiro, 1984, p.14
"E subitamente - querida. Subitamente - querida Sandra. Tenho tanta necessidade de estar contigo. Se deixássemos entretanto o senhor Paixão? Bem sei que não é ainda a hora de tu vires à minha vida. Há que fazer o liceu em Penalva, há que ir depois para a Universidade. E só então - tu. Mas estou tão cheio de pressa. Estou só, neste casarão deserto, deixa-me falar já de ti. Deixa-me fazer-te existir antes de existires. De que me serve tudo quanto me aconteceu, se me não aconteceres tu? Estás lá, em Penalva, esperas-me no alto da vida com os teus olhinhos vivos pretos. Estás lá, não tu, talvez, oh, foste sempre tão difícil. O que me existes neste instante, não é decerto o que foste. O que me existes é o que em mim te faz existir. Estou só. E isto é horrível, não sei se fazes bem ideia aí na cova. Tens mortos de companhia e a comodi­dade de não seres. Eu não. Estou vivo ainda, sou ainda, e isto não é um modo cômodo de haver mortos à minha volta. Vou fazer-te existir na intensidade absoluta da beleza, na eternidade do teu sorriso. Vou fazer-te existir na realidade da minha palavra. Da minha imaginação. Estou absolutamente decidido, como é que vou suportar tantos anos ainda sem ti? Estás alta, na memória, ao apelo do meu cansaço. Como vou suportar a vida toda e a terra e o universo sem ti no centro da minha cosmogo­nia? Tudo isto é absurdo - tu foste sempre tão difícil. Mas estás morta, posso inventar-te agora como quiser. Agora ao menos, depois talvez te esqueça, enquanto a tarde lá fora, é uma tarde de Verão. E estou só, quase morto também. Passei a vida toda à procura de uma palavra que me dissesse. Não a encontrei. Na casa de banho ao lado - em que é que estava a pensar? São portadas de alto a baixo, estão fechadas empenadas - em que é que estava? Realizar a vida em torno de uma ilusão qualquer. Vou amar-te intensamente como se o amor o fosse - eu disse os teus olhinhos pretos? Creio que já há bocado, tu sentada à borda da cama, o teu chapéu de grandes abas flexíveis, uma fita azul e pontas cruzadas, mas agora não. Possivelmente serás assim, morena, minúscula, os olhinhos pretos e vivos - agora não. Vejo-te na mata da cidade, vejo-te de costas. Vais a correr com um bando de colegas por um caminho de neve, e os teus cabelos louros. São louros, como é que me não lembrei? Saem de um gorro azul de malha, espalham-se nas costas, agitam-se na corrida como o seu triunfo. E as pernas engrossadas de meias azuis, erguem-se alternada­mente na corrida sem razão. A mata cobre-se de neve, há neve na beira do caminho, um sol rígido ao alto. Depois parais num largo, pequenas pugnas de neve entre vós, festa de riso. Enquanto nós, eu e uns colegas, tínhamos corrido também, vou atirar-te uma bola de neve. No centro do teu riso e do teu olhar. É azul como agora a minha imagem da sublimação. Uma estrela de neve na testa, vou atirar-te uma pequena bola, ela embate-te na fronte, explode em pedaços para todos os lados do teu riso. E de súbito ficas imóvel assim, instantânea de luz, a boca enorme de alegria e os dentes visíveis de sol, e os olhos rápidos de cintilação. Fica-te assim, oh, não te mexas.Tenho tanto que dar uma volta à vida toda. Não te movas. Sob a eternidade do sol e da neve. Uma malícia súbita no teu riso, no teu olhar. Um clarão à volta de deslumbramento. Irradiante fixo. Não te tires daí. Instantâneo da minha desolação. Tenho mais que fazer agora. Não saias daí. A boca enorme de riso, os olhos oblíquos de um pecado futor. Fica-te aí assim, talvez te procure ainda, talvez te escreva uma carta de amor. Daqui donde estou, está uma tarde quente. De amor."


 Vergílio Ferreira, in "Para Sempre"


quinta-feira, 28 de março de 2013

Não tire seus lindos sapatos



É uma agressão exigir que a mulher tire os sapatos para entrar em sua casa.

Você pode ser oriental, budista, maníaco por limpeza, não peça.

Sei que é higiênico, livra a residência de sujeira e contaminações, e também é um modo de erradicar as energias negativas do vaivém da rua, e ainda de poupar o piso de madeira dos arranhões.

Mas não peça. É um crime estético obrigar a mulher a tirar o sapato.

Ela somente deve renunciar esse direito ao baixar a hospital. Em nenhum outro lugar. E no hospital, tanto faz o que calça, irá se desvencilhar da vaidade de qualquer jeito com a deprimente camisola aberta nas costas e aqueles detestáveis chinelos descartáveis.

Afora as emergências, é um vexame se despedir subitamente dos sapatos.

Em festa ou encontro com amigos, ela se verá altamente constrangida. Não se trata de vergonha dos pés ou do joanete, não é um recalque e problema psicológico, não é receio de chulé.

Ao tirar os calçados, ela desmancha sua roupa. Acaba com seu traje. Liquida com sua produção. Ela definiu a combinação inteira das peças a partir deles: a cor, o tecido, o humor. Toda mulher é uma cinderela adormecida, não pise em seus calos.

Obrigá-la a permanecer descalça é o equivalente a ordenar que ela fique nua. O sapato é tão íntimo quanto a lingerie. Escolhido com esmero para repercutir as virtudes do corpo.

Forçar sua dispensa é um estupro social. Sem o cobiçado par, a visitante não encontrará sentido e posição relaxante. O temperamento murcha, o tom sobre tom perde o brilho. Mais drástico que receber chuvarada, mais agressivo que estragar um zíper.

Se ela está com vestido negro curto e abdica das botas altas, trocará o clima de totalmente selvagem pelo desamparo de alma penada.

Para a mulher, até o sofrimento precisa ser ensaiado. Odeia ser pega desprevenida, desprovida de plano alternativo.

O acessório determina o estilo, nunca será um detalhe insignificante. Influencia, inclusive, seu penteado. Põe altura e equilibra o conjunto. Dois centímetros a menos podem destruir um figurino. Deixar de lado o salto no momento de reencontrar o ex é chamar a morte, é anular alguma chance de superioridade.

O homem dificilmente entenderá. Sem sapato, a meia-calça vai desfiar, não tem como andar. Ou, pior, a meia-calça com um furinho estratégico nos dedos acabará sendo revelada.

O sapato não faz parte do vestuário, está muito além disso, representa um fígado para a ala feminina, de transplante difícil e delicado.

Não ouse humilhá-la com normas e restrições.

A mulher ama mesmo um capacho.


Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 19/03/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17376

Poema da Tarde

an-he


A tarde move-se entre os galhos das minhas mãos.
Uma estrela aparece no fim do meu sangue,
Minha nuca recebeu o hálito fino de uma rosa branca.
Todas as formas servem-se mutuamente,
Umas em pé, outras se ajoelhando, outras sentadas,
Regando o coração e a cabeça do homem:

E dentre os primeiros véus surge Maria da Saudade
Que, sem querer, canta.


Murilo Mendes
francine-van-hove


Tu és a terra em que pouso:
Macia, suave, tenra, e dura o quanto baste
a que teus braços como tuas pernas
tenham de amor a força que me abraça.
és também pedra qual a terra à vezes
contra que nas arestas me lacero e firo,
mas de musgo coberta refrescando
as próprias chagas de existir contigo.
E sombra de árvores, e flores e frutos,
rendidos a meu gosto e meu sabor.
E uma água cristalina e murmurante
que me segreda só de amor no mundo.
És a terra em que pouso. Não paisagem,
não Madre. Terra nem raptada ninfa
de bosques e montanhas. Terra humana
em que me pouso inteiro e para sempre.


Jorge de Sena


Cinderella




The prince leans to the girl in scarlet heels, 
Her green eyes slant, hair flaring in a fan 
Of silver as the rondo slows; now reels 
Begin on tilted violins to span 

The whole revolving tall glass palace hall 
Where guests slide gliding into light like wine; 
Rose candles flicker on the lilac wall 
Reflecting in a million flagons' shine, 

And glided couples all in whirling trance 
Follow holiday revel begun long since, 
Until near twelve the strange girl all at once 
Guilt-stricken halts, pales, clings to the prince 

As amid the hectic music and cocktail talk 
She hears the caustic ticking of the clock. 


Sylvia Plath
Artur Demchenko


não atravesso pontes
com a esperança
de que elas me levem
ao fim do arco-íris
e nem para apenas
seguir em frente

tem vezes
que faço a travessia
só para descobrir
o que tem aonde o meu olhar
não alcança


Ademir Antonio Bacca

quarta-feira, 27 de março de 2013



"É triste explicar um poema. É inútil também. Um poema não se explica. É como um soco. E, se for perfeito, te alimenta para toda a vida. Um soco certamente te acorda e, se for em cheio, faz cair tua máscara, essa frívola, repugnante, empolada máscara que tentamos manter para atrair ou assustar. Se pelo menos um amante da poesia foi atingido e levantou de cara limpa depois de ler minhas esbraseadas evidências líricas, escreva, apenas isso: fui atingido. E aí sim vou beber, porque há de ser festa aquilo que na Terra me pareceu exílio: o ofício de poeta."


Hilda Hilst

Sentimental




Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos completam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!
- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!
Eu estava sonhando…
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
“Neste país é proibido sonhar.”


Carlos Drummond de Andrade

Faltas-me...

Francine Van Hove


Faltas-me. Se aqui estivesses isto não seriam
palavras. Um trinco por dentro, essa ilusão
de voltar a ti olhando os papéis, desconheço
o que de mim resta quando as horas quase trazem
o silêncio e a boca se abre, faz a passagem
do teu corpo a um corpo que aproveita
a substituição que não sabe. Mudaremos o tempo
para nenhuma exigência, faltas-me quando estás
a caminho, já oiço os teus passos subindo
no fundo da escada. Amanhece. Nos sonhos
que não sou capaz de lembrar vens tocar-me
nos ombros e dizer ainda não são horas, ainda
não é alba. As palavras faltam-me, vou
calar-me nas duas voltas da chave, este papel
apagado, sujo da ausência dos teus gestos.


Helder Moura Pereira
Geiranger fjord, Norway

Meteora, Thessaly, Greece

Maravilhoso mundo animal


A anêmona-bolha ( 'Entacmaea quadricolor')

A Aranha Caranguejeira Ravine ('Cyclocosmia truncata')

Caracóis sobre cogumelos...


Mariposa 'Dryocampa rubicunda' família Saturniidae.
Martim-pescador da espécie 'Alcedo cristata'


O Régulo-de-coroa-dourada ('Regulus satrapa')
Cogumelos pastel!

Orquídea cara-de-macaco ('Dracula simia')

Sapo-de-Leite-da-Amazônia ('Trachycephalus resinifictrix').

Os machos da mariposa 'Creatonotos gangis'

Tamanduá bandeira carregando seu filhote

almoço sincronizado

Serpentes da espécie 'Atheris squamigera' em três cores diferentes...

'Poecilotheria metallica' é uma espécie de tarântula (família Theraphosidae )

terça-feira, 26 de março de 2013

Capítulo 20 - A revelação


  Cada um descobre o seu anjo tendo um caso com o demônio.
  
(Avô Mariano)


(...)   Um pássaro-martelo rodopia sobre mim. Pousa e se aproxima, sem medo. Fica-me olhando, sereno como se eu lhe fosse familiar. Me apetece tocar-lhe mas me guardo, imóvel. Ele se anicha em seu próprio corpo, parece adormecido. Fecho os olhos, afrouxado naquela quietude. Quando me levanto e, pé ante pé, tento despertar o pássaro, ele se conserva imóvel. Estaria adoentado, ainda me ocorreu. Um pássaro adoece? Ou desmorona-se logo na morte, sem enfermidade pelo meio? Encorajado pela atitude da ave acabo tocando-lhe, num leve roçar dos dedos. É então que do corpo do mangondzwane se libertam dezenas de outras aves semelhantes, num deflagrar de asas, bicos e penas. E o bando, em espesso cortejo, se afasta, rente ando o rio Madzimi, lá onde minha mãe se converteu em água.
   Volto a casa, já anoitece. Procuro Dulcineusa, quero-lhe contar o sucedido com a ave dos presságios. Não está no quarto nem na cozinha. Surpreendo-a na sala deitada no escuro com o Avô. Está de costas, ainda meio despida. A blusa está desabotoada e as costas nuas luzem, gotejadas de suor. Parecem ter acabado de ter relações.
A Avó ainda está ofegante. Receio que fique ali, ao rigor do frio e da cacimba. Chamo-a, com carinho:
- Avó Dulcineusa!
Lentamente ela se vira. Um choque quase me atira ao chão. Não é Dulcineusa. É minha Tia Admirança! E sua ofegação não resulta de cansaço. Ela está chorando. Mãos nas mãos, dedos num entrelaço cego. Chora junto de Mariano.
- Esse homem, você não sabe quanto eu o amei!.. Quanto eu o amo.
- O Avô?
- Esse homem não é seu Avô, Mariano.
Ergue-se e sai chorando. Fico no escuro, vazio de ideia, deserto de sentimento. Mariano não era meu avô? Teria eu escutado bem? Ou a Tia estaria já contaminada pela morte que pairava em casa?

A sombra do pássaro-martelo atravessa o chão da minha alma.
Regresso ao quarto e sento na mesa. À minha frente, olho a folha em branco. Nada está nela escrito. Alguma vez terá havido realmente qualquer palavra escrita?
Seguro a caneta. O desejo arde em minhas mãos mas, ao mesmo tempo, o medo me paralisa. É um receio profundo de que qualquer coisa esteja desabando. Começo escrevendo, a mão obedece a uma voz antiga enquanto vou redigindo:

    Desculpe sua Tia. Mas eu careço de lhe fazer uma revelação: Admirança foi a mulher em minha vida. Não foi Dulcineusa, nem Miserinha, nem nenhuma. Foi ela, minha Admirança. Ela é muito mais nova que a irmã Dulcineusa. Quando casei, ela estava longe de ser mulher. Era menina, a mais nova das irmãs de Dulcineusa. Depois, foi completando formas, enchendo-se de redondeada polpa. Não imagina como ela detinha belezas! Vivia conosco, em nossa casa, e Dulcineusa nem suspeitava como sua irmã
recheava meu coração e apaladava meus sonhos.
    Dimira, assim eu lhe chamava. Minha Dimira que eu sempre tanto desejei! Em miúda, ela se costumava meter numa canoa e subir o rio. Nas noites sem luar, Admirança empurrava a embarcação até quase não ter pé. Depois saltava para dentro da canoa e, à medida que se afastava, ia despindo suas roupas. Uma por uma, as lançava na água e as vestes, empurradas pela corrente, vinham ter à margem. Desse modo, eu sabia quando ela já estava inteiramente nua. Sucedia, porém, quando eu deixava de
vislumbrar a canoa, perdida que estava na distância. Não vendo, eu adivinhava a sua nudez e prometia que, um dia, aquela mulher me pertenceria. E era como se, naquele instante, uma luz abrisse o ventre da escuridão. Eu era o acendedor das noites.
    Não houve lua nova que eu não ficasse na margem espreitando sua invisível presença, entre as neblinas do rio. (...)
    Naquela noite regressei ao rio e encontrei Admirança ainda no bote. Ela acreditou que eu vinha para propósitos de corpo e beijo. Mas eu, mal entrei na embarcação, me prostrei como que de joelhos e lhe pedi se podia dormir ali com ela. Dormir, sem mais demais. Que eu nunca havia dormido com mulher nenhuma. Ela me olhou, espantada, como se a ausência do luar me escangalhasse o juízo. E estendeu a mão, ajudando-me a deitar, todo estendido no barquito.
No embalo da ondulação acabei adormecendo.
    Admirança, entretanto, foi mandada para Lualua, onde havia uma missão católica. Nós nos encontrávamos lá, não havia mês que não o fizéssemos. Foi assim que ela engravidou. E não podia. Pensei, rápido, num modo de sanar o pecado. Pedi a Mariavilhosa, sua mãe, que fizesse de conta que estava grávida. Se ela fingisse bem, os xicuembos lhe dariam, mais tarde, um filho verdadeiro. Sua mãe fingiu tão bem, que a barriga lhe foi crescendo.
    Sua mãe aumentava de um vazio. Seu pai sorria, todo saciado. E até ela mesma acreditava estar dando guarida a um novo rebento. Na missão de Lualua, entretanto, nascia um menino do ventre de Admirança. Trouxemos o pequeno bebê na encobertura da noite e fizemos de conta que se dava um parto na casa grande, em Nyumba-Kaya.
Até seu pai chorou, crente de que o vindouro era genuíno fruto de seu sangue.
    Mas com o tempo o menino cresceu, foi ganhando feições. Admirança definhava só ao pensar que esse moço ia revelando a identidade do pai verdadeiro. Ela me suplicou que deixasse esse seu filho sair da Ilha. Ele que crescesse fora, longe das vistas. E longe de sua culpa. E o menino foi mandado para a cidade. Lá se fez homem, um homem acertado no sentimento. Esse homem é você, Mariano. Admirança é sua mãe.



Mia Couto, in  "Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra"

   

La nuit n'est jamais complète

© Jan Scholz


  
La nuit n'est jamais complète. 
Il y a toujours puisque je le dis, 
Puisque je l'affirme, 
Au bout du chagrin, 
une fenêtre ouverte, 
une fenêtre éclairée. 
Il y a toujours un rêve qui veille, 
désir à combler, 
faim à satisfaire, 
un cœur généreux, 
une main tendue, 
une main ouverte, 
des yeux attentifs, 
une vie : la vie à se partager.

**

A noite nunca é total.
Há sempre – eu o digo,
Eu o afirmo –
No fim do sofrimento uma janela aberta
Uma janela iluminada
Há sempre um sonho que vela
Desejo a preencher fome a saciar
Um coração generoso
Uma mão estendida uma mão aberta
Olhos atentos
Uma vida a partilhar


Paul Éluard

A Viagem da Paixão





Tenho os caprichos inerentes à natureza da mulher
abro a caixa de pandora que eu quiser
e lanço mão de todo mal e todo bem
avanço a passos largos
alcanço o ponto extremo e vou além
onde se estende a palpitação das células
e se prolongam feixes de neurônios
onde se nasce, morre ou se enlouquece
íntima de deuses e demônios.
Onde habitam as feras, os espíritos das florestas
onde se determina a primavera
e se marcam as nossas testas.
Onde se aprende a sabedoria do fogo
e todas as forças de atração
e se descobre o ponto que orienta
esse mapa de navegação.
Estrela solitária, asteróide desgarrado
luz que aponta o caminho
da viagem da paixão.


Bruna Lombardi, in O Perigo do Dragão, p. 19

O Livro dos Amantes




Glorifiquei-te no eterno. 
Eterno dentro de mim 
fora de mim perecível. 
Para que desses um sentido 
a uma sede indefinível. 

Para que desses um nome 
à exatidão do instante 
do fruto que cai na terra 
sempre perpendicular 
à umidade onde fica. 

E o que acontece durante 
na rapidez da descida 
é a explicação da vida. 


II 

Harmonioso vulto que em mim se dilui. 
Tu és o poema 
e és a origem donde ele flui. 
Intuito de ter. Intuito de amor 
não compreendido. 
Fica assim amor. Fica assim intuito. 
Prometido. 


III 

Príncipe secreto da aventura 
em meus olhos um dia começada e finita. 
Onda de amargura numa água tranquila. 
Flor insegura enlaçada no vento que a suporta. 
Pássaro esquivo em meus ombros de aragem 
reacendendo em cadência e em passagem 
a lua que trazia e que apagou. 


IV 

Dá-me a tua mão por cima das horas. 
Quero-te conciso. 
Adão depois do paraíso 
errando mais nítido à distância 
onde te exalto porque te demoras. 



Toma o meu corpo transparente 
no que ultrapassa tua exigência taciturna 
Dou-me arrepiando em tua face 
uma aragem noturna. 

Vem contemplar nos meus olhos de vidente 
a morte que procuras 
nos braços que te possuem para além de ter-te. 

Toma-me nesta pureza com ângulos de tragédia. 
Fica naquele gosto a sangue 
que tem por vezes a boca da inocência. 


VI 

Aumentamos a vida com palavras 
água a correr num fundo tão vazio. 
As vidas são histórias aumentadas. 
Há que ser rio. 

Passamos tanta vez naquela estrada 
talvez a curva onde se ilude o mundo. 
O amor é ser-se dono e não ter nada. 
Mas pede tudo. 


VII 

Tu pedes-me a noção de ser concreta 
num sorriso num gesto no que abstrai 
a minha exatidão em estar repleta 
do que mais fica quando de mim vai. 

Tu pedes-me uma parcela de certeza 
um desmentido do meu ser virtual 
livre no resultado de pureza 
da soma do meu bem e do meu mal. 

Deixa-me assim ficar. E tu comigo 
sem tempo na viagem de entender 
o que persigo quando te persigo. 

Deixa-me assim ficar no que consente 
a minha alma no gosto de reter-te 
essencial. Onde quer que te invente. 



VIII 

Eis-me sem explicações 
crucificada em amor: 
a boca o fruto e o sabor. 



IX 

Pusemos tanto azul nessa distância 
ancorada em incerta claridade 
e ficamos nas paredes do vento 
a escorrer para tudo o que ele invade. 

Pusemos tantas flores nas horas breves 
que secam folhas nas árvores dos dedos. 
E ficamos cingidos nas estátuas 
a morder-nos na carne dum segredo. 


Natália Correia, in Poemas (1955) Arts by Marina Podgaevskaya

segunda-feira, 25 de março de 2013

Loteria

Nikola Borissov 


na estação do amor
o trem passa apitando
só de vez em quando...


 Ademir Antonio Bacca

Labirinto ou não foi nada

Mark Arian 



Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua. . .
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!

Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua...
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.

Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada:
podia ter sido amor.


David Mourão-Ferreira

Maturidade

Paul Kelley


Caminho entre as minhas perdas 
que são insetos escuros, 
e os meus ganhos: douradas borboletas. 

A luz de uma paixão, o dedo da morte, 
o grave pincel da solidão 
desenharam meus contornos, firmaram 
meu chão. 

Que liberdade, não precisar pensar; 
que alívio não ter de administrar 
minha vida: 
apenas andar, e olhar, 
apenas ouvir essas vozes 
que vêm de longe, passam por mim 
e não me dão importância. 

Porque no vasto oceano, 
a minha eventual desarmonia 
é só uma gota 
desafinada. 
Mais nada.


Lya Luft
In Para Não Dizer Adeus, 2005

Um Tigre de Papel

Romero Britto 

Sabendo que a ele caberia determinar seus movimentos e controlar sua fome, o escritor começou lentamente a materializar o tigre. Não se preocupou com descrições de pelo ou patas. Preferiu introduzir a fera pelo cheiro. E o texto impregnou-se do bafo carnívoro, que parecia exalar por entre as linhas.

Depois, com cuidado, foi aumentando a estranheza da presença do tigre na sala rococó em que havia decidido localizá-lo. De uma palavra a outro, o felino movia-se irresistível, farejando o dourado de uma poltrona, roçando o dorso rajado contra a perna de uma papeleira.

Em vez de escrever um salto, o escritor transmitiu a sensação de movimento com uma frase curta. Em vez de imitar o terrível miado, fez tilintar os cristais acompanhando suas passadas. Assim, escolhendo o autor as palavras com o mesmo sedoso cuidado com que sua personagem pisava nos tapetes persas,
criava-se a realidade antes inexistente.

O quarto parágrafo pareceu ao escritor momento ideal para ordenar ao tigre que subisse com as quatro patas sobre o tamborete de "petit-point". E já a fera aparentemente domesticada tencionava os músculos para obedecer quando, numa rápida torção do corpo, lançou-se em direção oposta. Antes que chegasse a vírgula, havia estraçalhado o sofá, derrubado a mesa com a estatueta de Sévres, feito em tiras o tapete. Rosnados escapavam por entre letras e volutas. O tigre apossava-se da sua natureza. Já não havia controle possível. O autor só podia acompanhar-lhe a fúria, destruindo a golpes de palavras a bela decoração rococó que havia tão prazerosamente construído, enquanto sua criatura crescia, dominando o texto.

Impotente, via aos poucos espalharem-se no papel cacos de móveis e porcelanas, estilhaçar-se o grande espelho, cair por terra a moldura entalhada. Não havia mais ali um animal exótico na sala de um palácio, mas um animal feroz em seu campo de batalha.

O escritor esperava tenso que o cansaço dominasse a fera, para que ele pudesse retomar o domínio da narrativa, quando o viu virar-se na sua direção, baixar a cabeça em que os olhos amarelos o encaravam, e lentamente avançar.

Antes que pudesse fazer qualquer coisa, a enorme pata do tigre abatendo-se sobre ele obrigou o texto ao ponto final.


Marina Colasanti

Pra não dizer que não falei de flores