terça-feira, 30 de abril de 2013

O cesto




Pela milésima vez me preparo para ir visitar meu marido ao hospital. Passo uma água pela cara, penteio-me com os dedos, endireito o eterno vestido. Há muito que não me detenho no espelho. Sei que, se me olhar, não reconhecerei os olhos que me olham. Tanta vez já fui em visita hospitalar, que eu mesma adoeci. Não foi doença cardíaca, que coração, esse já não o tenho. Nem mal de cabeça porque há muito que embaciei o juízo. Vivo num rio sem fundo, meus pés de noite se levantam da cama e vagueiam para fora do meu corpo. Como se, afinal, o meu marido continuasse dormindo a meu lado e eu, como sempre fiz, me retirasse para outro quarto no meio da noite. Tínhamos não camas
separadas, mas sonos apartados.

Hoje será como todos os dias: lhe falarei, junto ao leito, mas ele não me escutará. Não será essa a diferença. Ele nunca me escutou. Diferença está na marmita que adormecerá, sem préstimo, na sua cabeceira. Antes, ele devorava os meus preparados. A comida era onde eu não me via recusada.

Olho em redor: não mais a mesa posta o aguarda, pontual e perfumosa. Antes, eu não tinha hora. Agora perdi o tempo. Qualquer momento é de meu debicar, encostada a um canto, sem toalha nem talheres. Onde eu vivo não é na sombra. É por detrás do sol,onde toda a luz há muito se pôs. Só tenho um caminho: a rua do hospital.

Vivo só para um tempo: a visita. Minha única ocupação é o quotidiano cesto onde embalo os presentes para o meu adoecido esposo.

A meu homem deram transfusão de sangue. Para mim, o que eu queria era transfusão de vida, o riso me entrando na veia até me engolir, cobra de sangue me conduzindo à loucura.

Desde o mês passado que evito falar. Prefiro o silêncio, que condiz melhor com a minha alma. Mas o não haver conversa nos deu outro laço entre nós. O silêncio abriu um correio entre mim e o moribundo. Agora, pelo menos, já não sou mais corrigida. Já
não recebo enxovalho, ordem de calar, de abafar o riso.

Já me ocorreu trocar fala por escrita. No lugar desse monólogo, eu lhe escreveria cartas. Assim, eu descontaria no sofrer. Nas cartas, o meu homem ganharia distância. Mais que distância: ausência. No papel, eu me permitiria dizer tudo o que nunca ousei.

E renovo promessa: sim, eu lhe escreveria uma carta, feita só de desabotoada gargalhada, decote descaído, feita de tudo o que ele nunca me autorizou. E nessa carta, ganharia coragem e proclamaria:

- Você, marido, enquanto vivo me impediu de viver. Não me vai fazer gastar mais vida, fazendo demorar, infinita, a despedida.

Regresso a mim, ajeito no fatídico cesto o farnel do dia, nesse fazer de conta que ele me irá receber, de riso aberto, apetite devorador. Estou de saída, para a minha rotina de visitadora quando, de passagem pelo corredor, reparo que o pano que cobria o espelho havia tombado. Sem querer, noto o meu reflexo. Recuo dois passos e me contemplo como nunca antes o fizera. E descubro a curva do corpo, o meu busto ainda hasteado. Toco o rosto, beijo os dedos, fosse eu outra, antiga e súbita amante de mim. O cesto cai-me da mão, como se tivesse ganhado alma.

Uma força me aproxima do armário. Dele retiro o vestido preto que, faz vinte e cinco anos, meu marido me ofereceu. Vou ao espelho e me cubro, requebrando-me em imóvel dança. As palavras desprendem-se de mim, claras e nítidas:

- Só peço um oxalá: que eu fique viúva o quanto antes!

O pedido me surpreende, como se fosse outra que falasse. Poderia eu proferir tão terrível desejo? E, de novo, a minha voz se afirma, certeira:
- Estou ansiosa que você morra, marido, para estrear este vestido preto.

O espelho devolve a minha antiquíssima vaidade de mulher, essa que nasceu antes de mim e a que eu nunca pude dar brilho. Nunca antes eu tinha sido bela. No instante, confirmo: o luto me vai bem com meus olhos escuros. Agora, reparo: afinal, nem envelheci. Envelhecer é ser tomado pelo tempo, um modo de ser dono do corpo. E eu nunca amei o suficiente. Como a pedra, que não tem espera nem é esperada, fiquei sem idade.

E experimento, em vertigem, pose e lágrima. No funeral, o choro será assim, queixo erguido para demorar a lágrima, nariz empinado para não fungar. Dessa feita, marido, não será você, mas serei eu o centro. A sua vida me apagou. A sua morte me fará nascer. Oxalá você morra, sim, e quanto antes.

Deponho o vestido na mesa da sala, bato porta e saio rumo ao hospital. Ainda hesito perante o cesto. Nunca antes eu o vira assim, desvalido. Vitória é eu dar costas a esse inutensílio. Pela primeira vez, há céu sobre a minha casa. Na berma do passeio, sinto o aroma dos franjipanis. Só agora reparo que nunca cheirei meu homem. Nem sequer meu nariz não amou nunca. Hoje descubro a rua, feminina. A rua, pela primeira vez, minha
irmã.

Na entrada da enfermaria, o milesimamente mesmo enfermeiro me aguarda. Uma sombra lhe espessa o rosto.

- Seu marido morreu. Foi esta noite.

Eu estava tão preparada, aquilo já tanto acontecera, que nem procurei amparo. Depois de tanta espera, eu já queria que sucedesse. Mais ainda depois de descobrir no espelho essa luz que, toda a vida, se sepultara em mim.

Saio do hospital à espera de ser tomada por essa nova mulher que em mim se anunciava. Ao contrário de um alívio, porém, me acontece o desabar do relâmpago sem chão onde tombar. Em lugar do queixo altivo, do passo estudado, eu me desalinho em pranto. Regresso a casa, passo desgrenhado, em solitário cortejo pela rua fúnebre. Sobre a minha casa de novo se tinha posto o céu, mais vivo que eu.

Na sala, corrijo o espelho, tapando-o com lençóis, enquanto vou decepando às tiras o vestido escuro. Amanhã, tenho que me lembrar para não preparar o cesto da visita.


Mia Couto,  "O Fio das Missangas"

Bem-vindo, meu amor

signe-vilstrup


Bem-vindo, meu amor, nosso soluço não é mais do choro, agora é do riso, pelo excesso de alegria.

Deixe para trás os ossos dos homens que não souberam lhe amar. Os ossos não têm olhos.

Deixe as despedidas ingratas, a avareza dos outros.

Deixe o que não traz mais lembrança; mentiras jamais acalmam.

Não seremos prisioneiros da culpa e do remorso, não seremos reféns das incertezas.

Incertezas envelhecem, as dúvidas não.

Você cria mistérios, sou mais vivo porque me questiona, sou mais seu porque não para de me perguntar o que aconteceu.

Venha engolir vento comigo, inspirar o primeiro ar da manhã da estrada, lavar as mãos no solzinho tímido.

Vem comigo, amor, cheira meu pescoço. É cheirando meu pescoço que descobrirá se falo a verdade. O cheiro é minha confidência. Meu cheiro tem o seu cheiro. Transpiro o que leio em sua pele.

Amar só traz simplicidade.

Amar só traz humildade.

Amar antes só me trouxe para perto.

Para aqueles que pensam que caso e me separo com facilidade, você será minha contradição, a insistência da virtude, a volúpia dos sapatos.

E vamos rir de soluçar. Pois ninguém acreditou na gente, a não ser a gente. Temos a vantagem da intuição, amor.

Você dormiu colada em meu corpo desde o início. E não pedimos trégua, água, tempo.

Sua respiração me assobia, me canta, me compõe.

Você não escondeu nada de mim.

Você conversa comigo como se eu fosse seu próprio pensamento.

Você já fez minha barba para sentir o quanto custa ferir meu rosto.

Eu já penteei seus cabelos para sentir o quanto um nó puxa a cabeça para baixo.

Bem-vindo, amor, nosso passado é o nosso futuro.

Você escolhe a roupa na última meia hora de sono. Eu me visto de suas escolhas pelo resto do dia.

Bem-vindo, amor.

Brigaremos no supermercado para definir nossa janta. Faremos festa ao descobrir um pequeno aumento no salário. Puxaremos assunto com os garçons. Receberemos elogios de estranhos comovidos com nosso abraço e inveja dos casais mais antigos. Tocaremos os pés na madrugada e ficaremos com vontade de acordar. Encostaremos os braços nos filmes e ficaremos com vontade de dormir. Jamais trocaremos de lado na cama. Dividiremos o jornal de domingo. Gostaremos das mesmas coisas das vitrines. Seu número em meu telefone constará como um segundo nome. Seus anéis estarão dentro de meus livros. Minhas mãos estarão dentro de suas mãos.

Bem-vindo, amor.

Felicidade não é para ser vivida sozinha. Sozinha, ainda é segredo.

A felicidade é uma denúncia. Vou denunciá-la com um beijo.

Denunciá-la para minha eternidade.


Fabrício Carpinejar
Coluna na Revista IstoÉ Gente
São Paulo, abril de 2013, p. 80, Edição Nº 696
Viktoria Stutz


Pode ser que chuva, que cheiro, que colo, que abraço, que mãos, que lábios, que falas, que preguiça, que exageros, que delícias, que disposição, que acalanto, que música, que dia, que noite, que lua, que chão. Pode ser que fome, que alegria, que tranquilidade, que magia, que beleza, que poesia. Pode ser que tanto, que tudo, que nada, que quanto, que mundo. Pode ser que vento, que nuvem, que aurora, que arco-íris, que enrosco, que cores, que árvores, que mar, que folhas, que fotografias. Pode ser que sorrisos, que lágrimas, que gargalhadas, que piadas, que emoção.
Pode ser palavras.
Pode ser que sim. Pode ser que não.
Pode ser em ti. Pode ser em mim.
Pode ser então.


Marla de Queiróz

¡Todo era amor!

MaXu


¡Todo era amor... amor! 
No había nada más que amor. 
En todas partes se encontraba amor. 
No se podía hablar más que de amor. 
Amor pasado por agua, a la vainilla, 
amor al portador, amor a plazos. 
Amor analizable, analizado. 
Amor ultramarino. 
Amor ecuestre. 
Amor de cartón piedra, amor con leche... 
lleno de prevenciones, de preventivos; 
lleno de cortocircuitos, de cortapisas. 
Amor con una gran M, 
con una M mayúscula, 
chorreado de merengue, 
cubierto de flores blancas... 
Amor espermatozoico, esperantista. 
Amor desinfectado, amor untuoso... 
Amor con sus accesorios, con sus repuestos; 
con sus faltas de puntualidad, de ortografía; 
con sus interrupciones cardíacas y telefónicas. 
Amor que incendia el corazón de los orangutanes, 
de los bomberos. 
Amor que exalta el canto de las ranas bajo las ramas, 
que arranca los botones de los botines, 
que se alimenta de encelo y de ensalada. 
Amor impostergable y amor impuesto. 
Amor incandescente y amor incauto. 
Amor indeformable. Amor desnudo. 
Amor-amor que es, simplemente, amor. 
Amor y amor... ¡y nada más que amor!


Oliverio Girondo 

domingo, 28 de abril de 2013

Bilhete Em Papel Rosa

William Haenraets


Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio. 
Vê estas olheiras dramáticas, 
este poema roubado:
"o cinamomo floresce em frente do teu postigo.
Cada flor murcha que desce,
morro de sonhar contigo." 
Ó bardo, eu estou tão fraca 
e teu cabelo é tão negro, 
eu vivo tão perturbada, 
pensando com tanta força 
meu pensamento de amor, 
que já nem sinto mais fome, 
o sono fugiu de mim. Me dão mingaus, 
caldos quentes, me dão prudentes conselhos, 
eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido, 
a tua boca de brasa, Antônio, as nossas vidas ligadas
Antônio lindo, meu bem, ó meu amor adorado,
Antônio, Antônio. 
Para sempre tua. 


Adélia Prado

Os Invasores

Roy Tabora



Há muito tempo que os marcianos invadiram o mundo:
são os poetas
e
como não sabem de nada de nada
limitam-se a ter os olhos muito abertos
E a disponibilidade de um marinheiro em terra...
Eles não sabem nada nada
- e só por isso é que descobrem tudo.


Mário Quintana
In: Poesia Completa Mario Quintana v. 1
Ed. Nova Aguilar , "A Vaca e o Hipogrifo", p. 552-3
RJ:2005

Poema de amor para domingo




Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo com que sonhas
e o que só por mim poderá ter sonhado.

Se eu pudesse dar-te o sopro que me foge
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo que descubro
e descobrir-te o que de mim se esconde.

Então serias aquele que existe
e o que só por mim poderá ter sonhado.


Ana Hatherly

Agonia

 Robert Foster


No teu grande corpo branco depois eu fiquei.
Tinha os olhos lívidos e tive medo.
Já não havia sombra em ti - eras como um grande deserto de areia
Onde eu houvesse tombado após uma longa caminhada sem noites.
Na minha angústia eu buscava a paisagem calma
Que me havias dado tanto tempo
Mas tudo era estéril e mostruoso e sem vida
E teus seios eram dunas desfeitas pelo vendaval que passara.
Eu estremecia agonizando e procurava me erguer
Mas teu ventre era como areia movediça para os meus dedos.
Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando em ti mesma
Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía como a voragem.

Depois foi o sono, o escuro, a morte.

Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente
Vinha cheio do pavor das tuas entranhas. 


Vinícius de Moraes

sábado, 27 de abril de 2013

Beijo

Jon Paul Ferrara



Não quero o primeiro beijo:
basta-me
o instante antes do beijo.
Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.
O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.
Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.


Mia Couto, in "Tradutor de chuvas"


Um rosto

 Angéla Vicedomini


Apenas
uma coisa inteiramente transparente:
o céu, e por baixo dele a linha obscura do horizonte
nos teus olhos, que pude ver ainda
através de pálpebras semicerradas, pestanas úmidas
da geada matinal, uma névoa de palavras murmuradas
num silêncio de hesitações. Há quanto tempo,
tudo isto? Abro o armário onde o tempo antigo
se enche de bolor e fungos; limpo os papéis,
cartas que talvez nunca tenha lido até ao fim, foto-
grafias cuja cor desaparece, substituindo os corpos
por manchas vagas como aparições; e sinto, eu
próprio, que uma parte da minha vida se apaga
com esses restos.


Nuno Júdice

En el Instituto y en la Universidad



 La primera vez
no te conocí.
La segunda, sí.

   Dime
si el aire te lo dice.

   Mañanita fría
yo me puse triste,
y luego me entraron
ganas de reírme.

   No te conocí.
Sí me conociste.
Sí te conocí.
No me conociste.

   Ahora entre los dos
se alarga impasible,
un mes, como un
biombo de días grises.

   La primera vez
no te conocí.
La segunda, sí.


Federico García Lorca

O mundo filtra-se pelos ouvidos

Viktoria Stutz 


O mundo filtra-se pelos ouvidos 
de quem, como eu, só vê a própria noite: 
meus olhos pegam sons com gestos falhos, 
a máscara que vesti não tinha frestas. 
Sons como peixes nesta sombra eterna 
chegam e nadam, giram, se entrechocam, 
em desenhos de luz que não entendo. 
Abro meu coração, ouvido inquieto, 
em busca de algum tom definitivo 
que abra em claridade estes meus olhos 
e me lance desta ilha ao mar aberto.


Lya Luft, In Mulher no palco

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Minha mulher não é um furacão


Você não é um furacão.

Trata-se de uma cilada masculina.

Não aceite ser nomeada desse jeito.

Representa um falso cumprimento.

Todo homem diz que a mulher é um furacão como projeção: é o que ele deseja da companhia, não é o que ela é.

Pode soar sedutor, pode sugerir passionalidade, pode sugerir fogo e charme, porém é uma armadilha.

Sua intenção não é boa.

Furacão não é convidado.

Furacão passa rápido.

Furacão é somente sexo.

Furacão é pressa.

Furacão não tem endereço, nem infância.

Furacão destrói lares, arrebenta relacionamentos.

Furacão não chora, não se arrepende de colecionar vítimas.

Furacão não pergunta duas vezes.

Furacão não volta, não cria raízes, não se despede.

Furacão é triste, solitário, assim como vulcão.

Furacão é vazio, repetitivo, rancoroso.

Furacão não deixa bilhetes, não tem recaídas.

Chamar uma mulher de furacão é uma forma machista de se expressar e impor brevidades amorosas.

Quando alguém lhe caracteriza de furacão, não está festejando sua vida.

Pretende usá-la e não se responsabilizar pelas consequências, busca explorar sua fugacidade, destacar sua intemperança, avisar que é fácil, que não pensa, que age por impulso, que não mede a força.

Furacão é carente, perdido, uma nuvem dançando seu sofrimento.

Furação deserda, não conquista.

Furacão devasta, não reúne.

Ninguém namora um furacão. Ninguém casa com um furacão.

Furacão é reduzir a mulher ao papel de amante, é considerá-la uma ameaça da intimidade, um rastro desorganizado e provisório.

A mulher que amo não é um furacão, e sim brisa, um sopro calmo que veio estudado das marés.

É a soma das ondas, o resto de estrelas, o cheiro casado das rochas e das conchas.

Não subestime a intensidade da insistência.

A brisa é mais contundente do que o furacão.

A brisa me faz virar o rosto, pressinto alguém chegando.

A brisa tem o peso exato de uma palavra no ouvido.

É vento, mas também é um chamado.

É vento, mas também é saudade.

É vento, mas também é música.

É espuma de vento, levemente úmido, meio água, meio ar.

Mulher minha não é furacão. Mulher minha é brisa.

E nunca será minha porque vento não se enjaula.

Teremos casa, filhos, pátio, varanda, e não cansaremos de contar como nos conhecemos.

Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 14/04/2013 Edição N° 17402

Deleuze, Nietzsche e a Filosofia ..........

Quando alguém pergunta para que serve a filosofia, a resposta deve ser agressiva, visto que a pergunta pretende-se irônica e mordaz. A filosofia não serve nem ao Estado nem à Igreja que têm outras preocupações. Não serve a nenhum poder estabelecido. A filosofia serve para entristecer. Uma filosofia que não entristece a ninguém e não contraria ninguém não é uma filosofia. Ela serve para prejudicar a tolice, faz da tolice algo de vergonhoso. Não tem outra serventia a não ser a seguinte: denunciar a baixeza do pensamento sob todas as suas formas. Existe alguma disciplina, fora da filosofia, que se proponha a criticar todas as mistificações, quaisquer que sejam sua fonte e seu objetivo? Denunciar todas as ficções sem as quais as forças reativas não prevaleceriam. Denunciar, na mistificação, essa mistura de baixeza e tolice que forma tão bem a espantosa cumplicidade das vítimas e dos autores. Fazer enfim do pensamento algo agressivo, ativo, afirmativo. Fazer homens livres, isto é, homens que não confundam os fins da cultura com o proveito do Estado, da moral ou da religião. Vencer o negativo e seus falsos prestígios. Quem tem interesse em tudo isso a não ser a filosofia? A filosofia como crítica nos mostra o mais positivo de si mesma: obra de desmistificação. E que não se apressem em proclamar o fracasso da filosofia a esse respeito. A tolice e a bizarria por maiores que sejam, seriam ainda maiores se não subsistisse um pouco de filosofia que as impedisse, em cada época, de ir tão longe quanto desejariam, que lhes proibisse, mesmo que fosse por ouvir-dizer, de serem tão tola e tão baixa quanto cada uma desejaria por sua conta. Alguns excessos lhes são proibidos, mas quem lhes proíbe a não ser a filosofia? Quem as força a se mascararem, a assumirem ares nobres e inteligentes, ares de pensador? Certamente existe uma mistificação propriamente filosófica; a imagem dogmática do pensamento e a caricatura da crítica são testemunhos disso. Mas a mistificação da filosofia começa a partir do momento em que esta renuncia a seu papel... desmistificador e faz o jogo dos poderes estabelecidos, quando renuncia a contrariar a tolice, a denunciar a baixeza. É verdade, diz Nietzsche, que os filósofos de hoje tornaram-se cometas. Mas de Lucrécio aos filósofos do século XVIII, devemos observar esses cometas, segui-los se possível, reencontrar seu caminho fantástico. Os filósofos-cometas souberam fazer do pluralismo uma arte de pensar, uma arte crítica.

Gilles Deleuze, Nietzsche e a Filosofia

O primeiro amor



Dizem
que o primeiro amor é o mais importante.
É muito romântico,
mas não é o meu caso.

Algo entre nós houve e não houve,
deu-se e perdeu-se.

Não me tremem as mãos
quando encontro pequenas lembranças,
aquele maço de cartas atadas com um cordel,
se ao menos fosse uma fita.

O nosso único encontro, passados anos,
foi uma conversa de duas cadeiras
junto a uma mesa fria.

Outros amores
continuam até hoje a respirar dentro de mim.
A estes falta fôlego para suspirar.

No entanto, sendo como é,
não lembrado,
nem sequer sonhado,
consegue o que os outros não conseguem:
acostuma-me com a morte.


Wislawa Szymborska

Talvez

 Irina Egorova 


Talvez nem tenha nome.
Anunciado só pelo frêmito
da folhagem.
O riso invisível, o grito
de um pássaro, o escuro
da voz. Certa doçura,
certa violência.
O espesso, volúvel
tecido da noite agora a roçar
o corpo da água. E por fim
a muito lenta paixão
do fogo, sufocada.
Era o verão.


Eugénio de Andrade

Cancioncilla del primer deseo

 Martin McRostie Cornfoot


   En la mañana verde,
quería ser corazón.
Corazón.

   Y en la tarde madura
quería ser ruiseñor.
Ruiseñor.

   (Alma,
ponte color de naranja.
Alma,
ponte color de amor.)

   En la mañana viva,
yo quería ser yo.
Corazón.

   Y en la tarde caída
quería ser mi voz.
Ruiseñor.

   ¡Alma,
ponte color naranja!
¡Alma,
ponte color de amor!


Federico García Lorca 

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Silêncio

Damian Kłaczkiewicz_


Assim como do fundo da música 
brota uma nota 
que enquanto vibra cresce e se adelgaça 
até que noutra música emudece, 
brota do fundo do silêncio 
outro silêncio, aguda torre, espada, 
e sobe e cresce e nos suspende 
e enquanto sobe caem 
recordações, esperanças, 
as pequenas mentiras e as grandes, 
e queremos gritar e na garganta 
o grito se desvanece: 
desembocamos no silêncio 
onde os silêncios emudecem.

***
Así como del fondo de la música
brota una nota
que mientras vibra crece y se adelgaza
hasta que en otra música enmudece,
brota del fondo del silencio otro silencio,
aguda torre, espada,
y sube y crece y nos suspende
y mientras sube caen
recuerdos, esperanzas,
las pequeñas mentiras y las grandes,
y queremos gritar y en la garganta
se desvanece el grito:
desembocamos al silencio
en donde los silencios enmudecen


Octavio Paz, in "Liberdade sob Palavra" 
Tradução de Luis Pignatelli

Vidan



Apaga-te 
O rio não está diante de ti 
Como imaginas. 
Há apenas o fosso 
E a mesa inundada de papéis: 
Conjeturas lassas 
Sobre a aspereza das palavras. 

O rio não está diante de ti. 
Está além. Viaja. 


Hilda Hilst, "Estar sendo, ter sido"

Fin des circonstances


Un bouquet tout défait brûle les coqs des vagues
et le plumage entire de la perdition
rayonne dans la nuit et dans la mer du ciel.
Plus d’horizon, plus de ceinture,
les naufragés, pour la première foi, font des gestes
qui ne les soutiennent pas. Tout se diffuse, rien ne
s’imagine plus.

***

Fim das Circunstâncias

Um buquê todo desfeito incendia as cristas das ondas
e a plumagem inteira da perdição
ilumina dentro da noite e dentro do mar do céu.
Não mais o horizonte, não mais a cintura,
os naufrágos, pela primeira vez, fazem gestos
que não os sustentam. Tudo se difunde, nada se
imagina mais.


Paul Éluard
Tradução: Virna Teixeira

Narciso



   Narciso.
Tu olor.
Y el fondo del río.

   Quiero quedarme a tu vera.
Flor del amor.
Narciso.

   Por tus blancos ojos cruzan
ondas y peces dormidos.
Pájaros y mariposas
japonizan en los míos.

   Tú diminuto y yo grande.
Flor del amor.
Narciso.

   Las ranas, ¡qué listas son!
Pero no dejan tranquilo
el espejo en que se miran
tu delirio y mi delirio.

   Narciso.
Mi dolor.
Y mi dolor mismo.


Federico García Lorca

O Existencialismo é um humanismo


O existencialismo ateu que eu represento é mais coerente. Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede à essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede à essência? Significa que numa primeira instância o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo, e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo.  Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade: a subjetividade de que nos acusam. Porém nada mais queremos dizer que a dignidade do homem é maior do que a da pedra ou da mesa. Pois, queremos dizer que, antes de mais nada, o homem existe, ou seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se projeta num futuro e que tem consciência de estar projetando num futuro. De início, o homem é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente, ao invés de musgo, podridão ou couve-flor; nada existe antes desse projeto; não há nenhuma inteligibilidade no céu, e o homem será apenas o que ele projetou ser. Não o que ele quis ser, pois entendemos vulgarmente o querer como uma decisão consciente que, para quase todos nós, é posterior àquilo que fizemos de nós mesmos. Eu quero aderir a um partido, escrever um livro, casar-me, tudo isso são manifestações de uma escolha mais original, mais espontânea do que aquilo que chamamos de vontade. Porém, se realmente a existência precede à essência, o homem é responsável pelo que é. Desse modo, o primeiro passo do existencialismo é o de pôr todo homem na posse do que ele é, de submetê-lo à responsabilidade total de sua existência. Assim, quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens. A palavra subjetivismo tem dois significados (...). Subjetividade significa, por um lado, escolha do sujeito individual por si próprio, e por outro lado, impossibilidade em que o homem se encontra em transpor os limites da subjetividade humana. É esse segundo significado que constitui o sentido profundo do existencialismo. Ao afirmarmos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós se escolhe, mas queremos dizer também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens. De fato, não há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja criando, simultaneamente, a imagem de um homem tal qual julgamos que ele deva ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar concomitantemente o valor do que estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós se não o ser para todos. Se, por um lado, a existência precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo tempo que moldamos a nossa imagem, essa imagem é válida para todos e para todas a nossa época.

Jean-Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo


terça-feira, 23 de abril de 2013

Elogio Da Dialética



A injustiça avança hoje a passo firme.
Os tiranos fazem planos para dez mil anos.
O poder apregoa: as coisas
continuarão a ser como são.
Nenhuma voz além da dos que mandam.
E em todos os mercados proclama a exploração:
Isto é apenas o meu começo.
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem:
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos.
Quem ainda está vivo nunca diga: nunca.
O que é seguro não é seguro.
As coisas não continuarão a ser como são.
Depois de falarem os dominantes, falarão os dominados.
Quem pois ousa dizer: nunca?
De quem depende que a opressão prossiga? De nós.
De quem depende que ela acabe? De nós.
O que é esmagado, que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe e o que se chegou, que há aí que o retenha?
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.
E nunca será: ainda hoje.


Bertolt Brecht
Vladimir Volegov



violetas secas entre páginas de livros
onde em tempos anunciaram o amargor da noite
e a humidade tremenda das insônias

o mar
o mar ao longe

debruça-se então para o interior do livro
lê qualquer coisa sobre o coração dos líquenes
ou deambula de sílaba em sílaba onde
os dedos se mancham de tinta e no cérebro
ergue-se uma planta de cinza noite adiante

fechou o livro ao amanhecer
era como se tivesse envelhecido séculos
com as violetas
fecha a persiana e adormece


Herberto Helder

Perder, ganhar


Robert Hagan


Com as perdas, só há um jeito: 
perdê-las. 
Com os ganhos, 
o proveito é saborear cada um 
como uma fruta boa da estação. 
A vida, como um pensamento, 
corre à frente dos relógios. 
O ritmo das águas indica o roteiro 
e me oferece um papel: 
abrir o coração como uma vela 
ao vento, ou pagar sempre a conta 
já vencida.


Lya Luft, In Para Não Dizer Adeus

Cierto cansancio


“No quiero estar cansado solo,
quiero que te canses conmigo.
Cómo no sentirse cansado
de cierta ceniza que cae
en las ciudades de otoño,
algo que ya no quiere arder,
y que en los trajes se acumula
y poco a poco va cayendo
destiñendo los corazones.

Estoy cansado del mar duro
y de la tierra misteriosa.
Estoy cansado de las gallinas:
nunca supimos lo que piensan,
y nos miran con ojos secos
sin concedernos importancia.

Te invito a que de una vez
nos cansemos de tantas cosas,
de los malos aperitivos
y de la buena educación.

Cansémonos de no ir a Francia,
cansémonos de por lo menos
uno o dos días en la semana
que siempre se llaman lo mismo
como los platos en la mesa,
y que nos levantan, a qué?
y que nos acuestan sin gloria.

Digamos la verdad al fin,
que nunca estuvimos de acuerdo
con estos días incomparables
a las moscas y a los camellos.

He visto algunos monumentos
erigidos a los titanes, 
a los burros de la energía.
Allí los tienen sin moverse
con sus espadas en la mano
sobre sus tristes caballos.
Estoy cansado de las estatuas.
No puedo más con tanta piedra.

Si seguimos así llenando
con los inmóviles el mundo,
¿cómo van a vivir los vivos?

Estoy cansado del recuerdo.

Quiero que el hombre cuando nazca
respire las flores desnudas,
la tierra fresca, el fuego puro,
no lo que todos respiraron.
¡Dejen tranquilos a los que nacen!
¡Dejen sitio para que vivan!
No les tengan todo pensado,
no les lean el mismo libro,
déjenlos descubrir la aurora
y ponerle nombre a sus besos.

Quiero que te canses conmigo
de todo lo que está bien hecho.
De todo lo que nos envejece.
De lo que tienen preparado
para fatigar a los otros.

Cansémonos de lo que mata
y de lo que no quiere morir.”

Pablo Neruda 

Olhos azuis cabelos pretos (2)


Tarde em meio à noite que se segue àquele crepúsculo,  a beleza do dia tendo desaparecido violentamente como um golpe do destino, eles se encontram.
Quando ele entra no café à beira-mar ela já está ali, com algumas pessoas. Ele não a reconhece. Só poderia reconhecê-la se tivesse chegado ao café acompanhada pelo jovem estrangeiro de olhos azuis e cabelo preto. Sua ausência faz com que permaneça desconhecida.
Ele se senta a uma mesa. Mais do que ele, ela jamais o viu. Ela o olha. É inevitável. Está só, e belo e e extenuado de estar só. Tão só e belo como qualquer pessoa na hora de morrer. Chora. Ele é tão desconhecido para ela como se nunca tivesse nascido.
Ela deixa as pessoas com quem está. Vai até a mesa daquele que acaba de entrar e está chorando. Senta-se diante dele. Ele a olha.
Dela ele nada vê, nem que suas mãos estão inertes sobre a mesa. Nem o sorriso desfeito. Nem que está tremendo.Que está com frio.
Ela nunca o vira nas ruas da cidade. Pergunta-lhe o que tem. Ele diz que não tem nada. Nada. Para ela não se preocupar. A doçura da voz que repentinamente rasga a alma e faria acreditar que.
Ele não consegue reprimir o choro.
Ela diz: Gostaria de impedi-lo de chorar. Ela chora. Ele não quer nada realmente. Não a escuta.
Ela pergunta se ele quer morrer, se é isso que sente, vontade de morrer, talvez ela possa ajudar. Gostaria que falasse novamente. Ele responde que não, nada, para não ligar. Ela não pode agir de outra forma, fala com ele.
- Você está aqui para não voltar para casa.
- É isso.
- Em casa você está só.
- Só sim. Ele procura o que dizer. Pergunta onde ela mora. Ela mora num hotel que fica numa das  rua que dão para a praia.
Ele não ouve. Não ouviu. Para de chorar. Diz que está muito aflito porque perdeu a pista de alguém que gostaria de rever. Acrescenta que tende a sofrer desses tipos de coisa, essas tristezas mortais.
Diz: fique comigo.
Ela fica.Ele parece um pouco incomodado pelo silêncio. Pergunta, acha-se obrigado a falar, se ela gosta de ópera. Ela responde que não gosta muito de óperas, mas da Callas, sim, muito. Como não gostar dela? Fala tão devagar como se houvesse perdido a memória. Diz que esquece, que há também Verdi, e depois, também, Monteverdi. Você percebeu, é desses que se gosta quando não se gosta muito de ópera - acrescenta -  quando não se gosta de mais nada.
Ele ouviu. Vai chorar novamente. Seus lábios tremem. Os nomes de Verdi e Monteverdi faz ambos chorarem. Ela diz que também vagueia pelos cafés à noite quando as noites são tão longas e quentes. quando toda a cidade está fora é impossível ficar dentro de um quarto. Porque ela também está só? Sim.
Ele chora. Não para. E exatamente isso, chorar. ele não fala de mais nada. Não falam mais, nem um, nem outro.
Ficam ai até o café fechar.
Ele está de frente para o mar, e ela, do outro lado da mesa, diante dele. Durante duas horas ela o olha sem o ver. De vez em quando se lembram, sorriem através das lágrimas. Depois novamente esquecem.
Ele pergunta se ela é prostituta. Ela não se espanta. Também ri, diz:
- De certa maneira, mas não cobro.
Ele também pensou que ela fosse um dos empregados do café. Não. Ela brinca com uma chave para não olhar para ele.
Diz: Sou atriz, você me conhece. Ele não pede desculpas por não conhecê-la, não fala nada. É um homem que não acredita em mais nada do que se diz. Deve achar que ela o compreende.
O café havia fechado. Eles se viram do lado de fora. Ele olhara para o céu ao nível do mar. No horizonte ainda restavam vestígios do crepúsculo. Ele falara do verão, dessa noite de suavidade excepcional. Ela parecera não saber do que se tratava. Dissera: Fecham porque estamos chorando.
Ela o leva a um bar mais para o interior, era uma estrada nacional. E ficam ali até raiar o dia. E ali que ele diz estar atravessando um momento difícil. Ela diz: A sua última hora. Não sorri. Ele diz que sim, que é isso, que achara, que ainda acha. Sorri um sorriso forçado. Diz ainda que procurara pela cidade alguém que queria rever, que é por isso que estava chorando, alguém que não conhecia, que vira por acaso nessa mesma noite e era aquele por quem sempre esperava e queria rever custasse o que custasse, mesmo pagando com a própria vida. Que ele era assim. Ela diz: Que coincidência. Acrescenta:
— Foi por isso que o abordei, acho, por causa desse desespero.
Sorri, confusa por usar essa palavra. Ele não entende. E a olha pela primeira vez. Diz: Você está chorando.
Ele olha melhor. Diz:
— Sua pele é tão branca, parece que acabou de chegar à beira-mar.
Ela responde que sua pele não fixa o sol, que isso existe — está prestes a dizer alguma outra coisa que não diz. Ele a olha atentamente, esquece mesmo de vê-la para melhor recordar. Diz:
— É estranho, é como se já a tivesse encontrado.
Ela pensa, é sua vez de olhá-lo, procura onde e quando isso poderia ter sido possível. Diz:
— Não. Nunca o vi antes desta noite.
Ele volta à pele branca e de tal maneira que a pele branca poderia ser um pretexto para buscar o porquê das lágrimas.
Mas não. Diz:
— E sempre um pouco... dá sempre um pouco de medo, olhos tão azuis quanto os seus..., mas talvez seja porque seus cabelos são tão pretos...
Ela deve estar habituada a que lhe falem de seus olhos.
Responde:
— Cabelos pretos e cabelos louros dão um azul dos olhos diferente, como se viesse dos cabelos a cor dos olhos. Cabelos pretos tornam os olhos azul-anil, meio trágicos também, é verdade, enquanto os cabelos louros deixam os olhos azuis mais amarelos, mais cinzentos, que não amedrontam.
Ela certamente diz o que evitou dizer há pouco:
— Conheci alguém que tinha essa espécie de azul nos olhos, não se percebia o centro do olhar, de onde vinha, como se o azul inteiro olhasse.
De repente ele a vê. Vê que está descrevendo os próprios olhos.
Ela está chorando, aconteceu brutalmente, soluços muito fortes, que se entrechocam, ela não tem a força de chorar.
Diz:
— Desculpe, é como se tivesse cometido um crime, eu queria morrer.
Ele tem medo que ela também o deixe, que desapareça na cidade. Mas não, ela está chorando à sua frente, os olhos revelados, afogados em lágrimas. Olhos que a desnudam. Ele segura suas mãos, encosta-as no rosto. Pergunta se são os olhos azuis que a fazem chorar. Ela responde que sim, que é isso, que se pode dizer isso.
Deixa que ele lhe segure as mãos. Ele pergunta quando foi. Hoje. Ele beija as mãos como faria com o rosto, a boca. Diz que ela tem o cheiro leve e doce da fumaça. Ela lhe oferece a boca para beijar. Diz-lhe para beijá-la, a ele, àquele desconhecido, ela diz: Você beija seu corpo nu, sua boca, toda a sua pele, os olhos.
Choram até de manhã a tristeza mortal da noite de verão.

Marguerite Duras, Olhos azuis cabelos pretos

domingo, 21 de abril de 2013

Não abandonamos o quarto no domingo


Acordamos e não nos levantamos.

Desde que nos apaixonamos, a cama é o nosso acampamento.

Despertamos cedo e ficamos conversando, recapitulando a rotina, rindo à toa.

É um domingo inteiro assim, entre travesseiros, almofadas e edredom.

O quarto permanece trancado, as cortinas fechadas, o jornal empilhado na porta.

De vez em quando, um dos dois é sorteado como emissário da geladeira, para buscar frutas ou água. É uma visita rápida pelos demais aposentos, na ponta dos pés para não assustar as pálpebras.

Não é aconselhável demorar pela sala, para a claridade não quebrar o encanto e nos obrigar a sair à rua.

Somos sonâmbulos um do outro. Viciados um no outro. Intoxicados um do outro.

Passamos os dias no colchão travando histórias e revelando segredos.

A cama é o nosso hotel, nossa casa na serra, nossa residência de praia, nosso bunker, nosso pub, nossa água-furtada.

A cama é o que precisamos do mundo, o resto pode levar.

Reduzimos o universo àquele estrado de madeira, e nos divertimos com os problemas antigos, com as dores antigas, com aquilo que nos antecedeu e ainda não era a gente.

Na verdade, sinto que estudo para o vestibular de sua memória. Olho o teto coberto de fórmulas, fotos, cenas, equações e cálculos de sua vida.

Decoro suas sobrancelhas, seus suspiros, sou um mímico atento de seu rosto.

Faço perguntas despropositadas - nunca prevejo o que vai cair na prova do amor.

Interesso-me por qual lugar que sentava no colégio Champagnat. Me diz que era no fundo, com as costas coladas na janela.

E você me interroga a cor da minha térmica no jardim de infância do Santa Inês. Falo rápido que era azul.

Quem teria coragem de fazer essas questões senão quem ama? Mais: quem responderia com naturalidade essas questões senão quem ama?

Não nos assustamos com nenhuma gratuidade. Não estranhamos a curiosidade ou nos envergonhamos da loucura.

Intimidade é não temer o que será feito com nossas palavras.

Deitamos de lado, atravessados, você em meu peito, eu encaixado na moldura de seu pescoço. Giramos para esquerda, tonteamos para direita, argumentamos, confortamos, descrevemos nossos amigos, confessamos nossos pecados, sussurramos bobagens.

Os ouvidos se tornam rápidos como a boca. Falo e ouço na mesma hora.

Nossas mãos se beijam, nossos pés se beijam.

Tudo é intenso entre nós a ponto da lembrança criar a experiência. É como se nossos olhos fossem aquela máquina polaroid cuspindo fotos.

Os vizinhos devem suspeitar que já morremos, mas nunca estivemos tão vivos.


Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 21/04/2013 Edição N° 17409

Autotomia

Omar Ortiz


Em perigo, a holotúria divide-se em duas: uma delas entrega-se à
à voracidade do mundo, a outra lhe escapa. 

Desagrega-se de repente em perdição e salvação, em multa e em prêmio,
no que foi e no que será. 

No meio do corpo da holotúria abre-se um abismo com duas margens
subitamente estranhas. 

Numa a morte, noutra a vida. 
Aqui desespero, alento ali.
Se houver uma balança, os pratos não oscilam,
Se houver justiça, aqui está.

Morrer quanto necessário, sem exceder a medida.
Crescer de novo quanto necessário a parte que se salvou.
É verdade, também nós podemos nos dividir.
Mas apenas em corpo e suspiro cortado.
Em corpo e poesia. 

De um lado a garganta, do outro o riso,
leve, rapidamente sumindo. 

Aqui um coração pesado, ali non omnis moriar,
três palavras apenas como três penas aladas. 

O abismo não nos separa.
O abismo nos circunda.


Wislawa Szymborska



"Hoje parecemos movidos quase exclusivamente pelo medo. Tememos até aquilo que é bom, que é saudável, que é alegre. E o que é um herói? Em princípio, alguém que conquistou seus medos. É possível ser um herói em qualquer domínio; nunca deixamos de o reconhecer quando ele aparece. Sua virtude singular é que ele se unificou com a vida, se unificou consigo mesmo. Tendo deixado de duvidar e questionar, ele acelera o fluxo e o ritmo da vida. O covarde, par contre, procura obstruí-los. Não obstrui nada, é claro, a não ser a si mesmo. A vida continua, quer atuemos como covardes ou heróis. A vida não tem outra disciplina a impor, se apenas percebêssemos isso, em vez de aceitar a vida sem questionar. Tudo aquilo a que fechamos nossos olhos, tudo aquilo de que fugimos, tudo aquilo que negamos, denegrimos ou desprezamos, serve para nos derrotar no final. O que parece desagradável, doloroso, maligno, pode se tornar fonte de beleza, alegria e força, se encarado com uma mente aberta. Cada momento é uma mina de ouro para aquele que tem a visão de reconhecer isso. A vida é agora, cada momento, não importa que o mundo esteja cheio de morte. A morte só triunfa a serviço da vida."

Henry Miller, O mundo dos sexos

Casa

Antonio Sgarbossa


Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão.

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.


David Mourão-Ferreira

Oda a la Poesia

Natan Suglob Photography


Cerca de cincuenta años
caminando
contigo, Poesía.
Al principio
me enredabas los pies
y caía de bruces
sobre la tierra oscura
o enterraba los ojos
en la charca
para ver las estrellas.
Más tarde te ceñiste
a mí con los dos brazos de la amante
y subiste
en mi sangre
como una enredadera.
Luego
te convertiste
en copa.

Hermoso
fue
ir derramándote sin consumirte,
ir entregando tu agua inagotable,
ir viendo que una gota
caída sobre un corazón quemado
y desde sus cenizas revivía.
Pero no me bastó tampoco.
Tanto anduve contigo
que te perdí el respeto.
Dejé de verte como
náyade vaporosa
te puse a trabajar de lavandera,
a vender pan en las panaderías,
a hilar con las sencillas tejedoras,
a golpear hierros en la metalurgia.
Y seguiste conmigo
andando por el mundo,
pero tú ya no eras
la florida
estatua de mi infancia.
Hablabas
ahora
con voz férrea.
Tus manos
fueron duras como piedras.
Tu corazón
fue un abundante
manantial de campanas,
elaboraste pan a manos llenas,
me ayudaste a no caer de bruces,
me buscaste
compañía,
no una mujer,
no un hombre,
sino miles, millones.
Juntos, Poesía,
fuimos
al combate, a la huelga,
al desfile, a los puertos,
a la mina,
y me reí cuando saliste
con la frente manchada de carbón
o coronada de aserrín fragante
de los aserraderos.
Y no dormíamos en los caminos.
Nos esperaban grupos
de obreros con camisas
recién lavadas y banderas rojas.

Y tú, Poesía,
antes tan desdichadamente tímida,
a la cabeza
fuiste
y todos
se acostumbraron a tu vestidura
de estrella cotidiana,
porque aunque algún relámpago delató tu familia
cumpliste tu tarea,
tu paso entre los pasos de los hombres.
Yo te pedí que fueras
utilitaria y útil,
como metal o harina,
dispuesta a ser arado,
herramienta,
pan y vino,
dispuesta, Poesía,
a luchar cuerpo a cuerpo
y a caer desangrándote.

Y ahora,
Poesía,
gracias, esposa,
hermana o madre
o novia,
gracias, ola marina,
azahar y bandera,
motor de música,
largo pétalo de oro,
campana submarina,
granero
inextinguible,
gracias,
tierra de cada uno
de mis días,
vapor celeste y sangre
de mis años,
porque me acompañaste
desde la más enrarecida altura
hasta la simple mesa
de los pobres,
porque pusiste en mi alma
sabor ferruginoso
y fuego frío,
porque me levantaste
hasta la altura insigne
de los hombres comunes,
Poesía,
porque contigo
mientras me fui gastando
tú continuaste
desarrollando tu frescura firme,
tu ímpetu cristalino,
como si el tiempo
que poco a poco me convierte en tierra
fuera a dejar corriendo eternamente
las aguas de mi canto.


Pablo Neruda

sexta-feira, 19 de abril de 2013

O Anticristo


O Deus antigo, inteiramente "espírito", inteiramente sumo sacerdote, plena perfeição, passeia aprazivelmente em seu jardim; contudo, aborrece-se. Também os deuses lutam em vão contra o tédio. Que faz ele? Inventa o homem - o homem distrai... Mas eis que também o homem se aborrece. A misericórdia de Deus para com a única indigência, que todos os paraísos em si têm, não conhece limites; criou então outros animais. Primeiro equívoco de Deus: o homem não achou os animais divertidos - dominou-os, nem sequer quis ser "animal". Deus criou, pois, a mulher. E, efetivamente cessou o tédio, mas também muitas outras coisas! A mulher foi o segundo erro de Deus. "a mulher é, por essência, uma serpente, Eva". Todo o sacerdote sabe disso; "pela mulher vem todo o mal ao mundo" - também isso o sabe o sacerdote. "Logo, a ciência também vem dela"... Foi só pela mulher que o homem aprendeu a saborear a árvore do conhecimento. Que aconteceu? Um pânico de morte se apoderou do Deus antigo. O próprio homem tornara-se o seu maior erro, ele criara um rival, a ciência iguala a Deus: se o homem se torna científico, é o fim dos sacerdotes e dos deuses! Moral: a ciência é a interdição em si, só ela é proibida. A ciência é o primeiro pecado, o germe de todos os pecados, o pecado original. Eis a única moral. "Não deves conhecer": o resto segue-se daí. O pânico mortal de Deus não o impediu de ser astuto. Como se defender contra a ciência? Eis o seu problema principal durante muito tempo. Resposta: expulse o homem do paraíso! A felicidade, o ócio evoca pensamentos - todos os pensamentos são maus pensamentos... O homem não deve pensar: e o "sacerdote em si" inventa a indigência, a morte, o perigo mortal da gravidez, toda espécie de miséria, a velhice, a fadiga, sobretudo a doença - simples meios na luta contra as ciências! A indigência não permite ao homem pensar... E, apesar de tudo, que coisa tremenda! A obra do conhecimento acumula-se, sobe ao céu, anuncia o crepúsculo dos deuses - que fazer? O Deus antigo inventa a guerra, separa os povos, faz com que os homens se aniquilem entre si (os sacerdotes tiveram sempre necessidade da guerra...) A guerra é, entre outras, um grande desmancha-prazeres da ciência! Incrível! O conhecimento, a emancipação relativa ao sacerdote, aumenta apesar das guerras.  E uma última decisão ocorre ao Deus antigo: "O homem tornou-se científico, de nada serve, há que afogá-lo!"...

Friedrich Nietzsche, O Anticristo, af. 48(trecho)

Seria o Amor Português

Antonio Sgarbossa 


Muitas vezes te esperei, perdi a conta, 
longas manhãs te esperei tremendo 
no patamar dos olhos. Que me importa 
que batam à porta, façam chegar 
jornais, ou cartas, de amizade um pouco 
— tanto pó sobre os móveis tua ausência. 

Se não és tu, que me pode importar? 
Alguém bate, insiste através da madeira, 
que me importa que batam à porta, 
a solidão é uma espinha 
insidiosamente alojada na garganta. 
Um pássaro morto no jardim com neve. 

Nada me importa; mas tu enfim me importas. 
Importa, por exemplo, no sedoso 
cabelo poisar estes lábios aflitos. 
Por exemplo: destruir o silêncio. 
Abrir certas eclusas, chover em certos campos. 
Importa saber da importância 
que há na simplicidade final do amor. 
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo. 
«Que me importa que batam à porta...» 
Sair de trás da própria porta, buscar 
no amor a reconciliação com o mundo. 

Longas manhãs te esperei, perdi a conta. 
Ainda bem que esperei longas manhãs 
e lhes perdi a conta, pois é como se 
no dia em que eu abrir a porta 
do teu amor tudo seja novo, 
um homem uma mulher juntos pelas formosas 
inexplicáveis circunstâncias da vida. 

Que me importa, agora que me importas, 
que batam, se não és tu, à porta? 


Fernando Assis Pacheco, in “A Musa Irregular”

Receita de casa

An-He


Uma casa deve ter varandas 
para sonhar,cantos para chorar, 
quartos para os segredos 
e a ambivalência. 

Um amor precisa espaço de voar, 
liberdade para querer ficar, 
alegria, e algum desassossego 
contra o tédio. 

Não se esqueçam os danos a cobrir, 
o medo de partir, e o dom de surpreender 
- que é a sua essência.

Lya Luft

Sensual



Ainda sinto o teu corpo ao meu corpo colado;
nos lábios, a volúpia ardente do teu beijo;
no quarto a solidão, desnuda, ainda te vejo,
a olhar-me com olhar nervoso e apaixonado...

Partiste!... Mas no peito ainda sinto a ânsia e o latejo
daquele último abraço inquieto e demorado...
- Na quentura do espaço a transpirar pecado,
Ainda baila a figura estranha do desejo...

Não posso mais viver sem ter-te nos meus braços!
- Quando longe tu estás, minha alma se alvoroça
julgando ouvir no quarto o ruído dos teus passos...

Na lembrança revejo os momentos felizes,
e chego a acreditar que a minha carne moça
na tua carne moça até criou raízes!...


J.G. de Araújo Jorge 

Do not go gentle into that good night



Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.

**

Não entre tão depressa nessa noite escura;
A velhice queima e estressa ao fim do dia:
Ira, ira de encontro ao fenecer da alvura.
Entanto sábios ao final sancionem a tarde madura
Porque suas palavras não lavraram luz, eles
Não entram tão depressa nessa noite escura.
Boa gente, ao último aceno, clama o quanto dura
A chama de seus feitos vãos valsando na angra verde,
Ira, ira de encontro ao fenecer da alvura.
Rufiões que colhem e cantam o sol que perfura,
E aprendem, demais tarde, que o molestam em sua senda,
Não entram tão depressa nessa noite escura.
Homens graves, à morte, que vêem às escuras
Olhos cegos a chamejar meteoros e ser felizes,
Ira, ira de encontro ao fenecer da alvura.
E tu, meu pai, lá nas tristes alturas,
Maldiz-me, bendiz-me com teu duro pranto, peço.
Não entre tão depressa nessa noite escura.
Ira, ira de encontro ao fenecer da alvura.


Dylan Thomas
Tradução: Ruy Vasconcelos