sábado, 30 de novembro de 2013

Das cátedras da virtude



Elogiaram a Zaratustra um sábio que falava doutamente do sono e da virtude; por isso se via cumulado de honrarias e recompensas, e todos os mancebos acorriam à sua cátedra. Zaratustra foi ter com ele, e, como todos os mancebos, sentou-se diante da sua cátedra. E o sábio falou assim:

“Honrai o sono e respeitai-o! É isso o principal. E fugi de todos os que dormem mal e estão acordados de noite.

O próprio ladrão se envergonha em presença do sono. Sempre vagueia silencioso durante a noite: mas o relento é insolente.

Não é pouco saber dormir; para isso é preciso aprontar-se durante o dia.

Dez vezes ao dia deves saber vencer-te a ti mesmo; isto cria uma fadiga considerável, e esta é a dormideira da alma.

Dez vezes deves reconciliar-te contigo mesmo, porque é amargo, vencermo-nos, e o que não está reconciliado dorme mal.

Dez verdades hás de encontrar durante o dia; se assim não for, ainda procurarás verdades durante a noite e a tua alma estará faminta.

Dez vezes ao dia precisas rir e estar alegre, senão incomodar-te-á de noite o estômago, esse pai da aflição.

Ainda que poucas pessoas o saibam, é preciso ter todas as virtudes para dormir bem.

Levanto falsos testemunhos? Cometi adultério?

Cobiço a serva do próximo? Tudo isto se combina mal com um bom sono.

E se se tivessem as virtudes, seria preciso saber fazer coisa: adormecer a tempo todas as virtudes.

É mister que estas lindas mulheres se não desavenham! E por tua causa, infeliz!

Paz com Deus e com o próximo: assim o quer o bom sono. E também paz com o diabo do próximo, senão, atormentar-te-á de noite.

Honra e obediência à autoridade, mesmo à autoridade que claudique! Assim o exige o bom sono! Acaso tem uma pessoa culpa do poder gostar de andar com pernas coxas?

Aquele que conduz as suas ovelhas ao prado mais viçoso, para mim será melhor pastor: isto é conveniente ao bom sono.

Não quero muitas honras nem grandes tesouros; isto exacerba a bilis. Dorme-se mal, porém, sem uma boa reputação e um pequeno tesouro.

Prefiro pouca ou má companhia; mas é mister que venha e se vá embora no momento oportuno. É isto o que convém ao bom sono.

Também me agradam muito os pobres de espírito: apressam o sono. São bem-aventurados, mormente quando se lhes dá sempre razão.

Assim passam o dia os virtuosos. Quando chega a noite, livro-me bem de chamar o sono. O sono, que é o rei das virtudes, não quer ser chamado.

Somente penso no que fiz e pensei durante o dia. Ruminando, interrogo-me pacientemente como uma vaca. Então, quais foram as tuas dez vitórias sobre ti mesmo?

E quais foram as dez reconciliações, e as dez verdades, e os dez risos, com que se alegrou o meu coração?

Maquinando nestas coisas e acalentado por quarenta pensamentos, o sono, que eu não chamei, logo me surpreende.

O sono dá-me nos olhos, e sinto-os pesados. O sono aflora à minha boca, e a boca fica aberta.

Sutilmente se introduz em mim o ladrão predileto e rouba-me os pensamentos. Estou de pé, feito um tronco; mas ainda há pouco de pé, logo me estendo”.

Ouvindo falar o sábio, Zaratustra riu-se consigo mesmo.

“Parece-me doido este sábio com os seus quarenta pensamentos, mas creio que compreende bem o sono.

Bem-aventurado o que habite ao pé deste sábio! Um sono assim é contagioso, mesmo através de uma parede espessa.

Na sua cátedra mesmo há um feitiço. E não era debalde que os mancebos estavam sentados ao pé do pregador da virtude.

Diz a sua sabedoria: “Velar para dormir bem”. E, na verdade, se a vida faltasse senso e eu tivesse que eleger um contra-senso, esse contra-senso parecer-me-ia o mais digno de eleição.

Agora compreendo o que se procurava primeiro que tudo em nossos dias, quando se procurava mestres de virtude. O que se procurava era um bom sono, e para isso virtudes coroadas de dormideiras.

Para todos estes sábios catedráticos, tão ponderados, a sabedoria era dormir sem sonhar: não conheciam melhor sentido da vida.

Hoje ainda há alguns como este pregador da virtude, e nem sempre tão honestos como ele; mas o seu tempo já passou.

E ainda bem não estão em pé, já se estendem.

Bem-aventurados tais dormentes porque não tardarão a dormir de todo”.

Assim falou Zaratustra.


Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Inútil sou

Kiera Malone

Por seguir das coisas o compasso,
às vezes, quis neste século ativo,
pensar, lutar, viver com o que vivo,
ser no mundo algum parafuso a mais.

Mas, atada ao sonho sedutor,
do meu instinto voltei ao escuro poço,
pois, como algum inseto preguiçoso
e voraz, eu nasci para o amor.

Inútil sou, pesada, torpe, lenta,
meu corpo, ao sol estendido, se alimenta
e só vivo bem no verão,

quando a selva cheira e a enroscada
serpente dorme em terra calcinada;
a fruta se abaixa até minha mão. 


Alfonsina Storni
Tradução de Héctor Zanetti
Ken Hamilton
 

Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:
“Parece Sexta-Feira de Paixão.
Sempre a cismar, cismar d’olhos no chão,
Sempre a pensar na dor que não existe...

O que é que tem?! Tão nova e sempre triste!
Faça por ’star contente! Pois então?!...”
Quando se sofre, o que se diz é vão...
Meu coração, tudo, calado, ouviste...

Os meus males ninguém mos adivinha...
A minha Dor não fala, anda sozinha...
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera!...

Os males d’Anto toda a gente os sabe!
Os meus... ninguém... A minha Dor não cabe
Nos cem milhões de versos que eu fizera!...


Florbela Espanca

E então, que quereis?


 
Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.

Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.



Vladimir Maiakóvski

O Casal Comum

Jon PAUL

Depois da época de palavras de amor, de palavras de raiva, de palavras, as relações entre os dois tornaram-se aos poucos impossíveis de resultar numa frase ou numa realidade clara. À medida que estavam casados há tanto tempo, as divergências, as desconfianças, certa rivalidade jamais chegavam à tona, embora elas existissem entre eles como o plano dentro do qual se entendiam. Esse estado quase impedia uma ofensa e uma defesa, e jamais uma explicação. Formavam o que se chama um casal comum.


Clarice Lispector, in Crônicas no 'Jornal do Brasil (1972)'
Fabian Perez


O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas… e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada…

As horas morrem sobre as horas… Nada!
E ao poente, o Homem, com a sombra recolhida
Volta, pensando: “Se o Ideal da Vida
Não vejo hoje, virá na outra jornada…

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera;

E a Vida passa… efêmera e vazia:
Um adiantamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia…


Raul de Leoni

Querido Caio Fernando Abreu



Me explica, bruxo? Onde estiver me explica.

Como alguém pode vir morar contigo, dizer que te ama na noite anterior, e sumir de repente sem nenhum arrependimento?

Amor muda de ideia? Amor é leviano assim? Amor é brincar de destruir?

O que digo agora também já está morrendo?

Morrer produz barulho, sei, mas e o barulho de viver? Não dá para ouvir daí?

Como dos homens dos sonhos você se torna um homem sem sonho?

Como uma manhã sem falar doía nela e hoje o amanhã sem falar nem provoca ansiedade?

Como alguém não guarda em si o mínimo de autocrítica para refletir as últimas semanas?

Eu dividiria até meu egoísmo, Caio, com ela. Não ficaria com ele sem partilhar. Como não se fracionar? No momento em que a gente se guarda a gente se perde, não?

Como alguém que ama decide alguma coisa? Logo no amor, Caio? Amor não é adiar? Amor não é humildade?

O erro é arrogante, Caio? Como existe soberba na maldade, hein?

Foi vingança de relações passadas? Eu era um intervalo de um ódio?

Será que não devia ser sincero, ser fiel, não podia confessar minhas fraquezas, falar o que temia? Honestidade não combina com amor?

Eu que sou garrancho, arredondei a letra no caderno de caligrafia, escrevi entre as linhas de baixo e de cima, bem certinho, você ficaria orgulhoso conhecendo minha pressa, mas só você, Caio, só você sabe o enorme sacrifício que é escrever entre as linhas.

Será que a felicidade machuca? Será que a felicidade nunca é suficiente? Será que os casais se separam porque acreditam que podem ser felizes sem ninguém? Ou acreditam que podem ser ainda mais felizes do que estão sendo?

Será que a solidão mente o que somos?

Será que é só conhecer uma intimidade que somos empurrados para fora? Será que a pessoa não se gosta nem um pouco para admitir testemunhas? Será que sabemos demais, enxergamos demais, e nosso corpo é obrigado a desaparecer? Amar é coisa de máfia?

Será que recebemos a culpa por problemas pessoais? Que é mais fácil encerrar a relação do que assumir os medos?

Será? O amor é um mal-entendido, é ilógico, Caio? Estou começando a crer nesta hipótese.

Como alguém pode se entregar loucamente e depois declara que nada tem mais importância?

Que piração é esta, Caio? Isso também acontece no mundo dos mortos? Ou os mortos são mais estáveis? Ou os mortos são mais confiáveis?

Como alguém faz declaração pública do amor e depois diz que desejava invisibilidade?

Como confiar no silêncio se não há esperança?

Eu fingi que era diferente? Não expressei como era desde sempre?

Como alguém cultiva os meus amigos e filhos, defende o nosso destino, numa hora e na hora seguinte se mostra surda a todo conselho, surda a toda dúvida, surda a toda incerteza?

Como alguém pode jogar a história fora? Por facilidade? Não conheço nada fácil, nem a amizade. Não pode ser.

Será que ninguém mais lê mais poemas hoje, Caio? Poemas não têm final. O amor deveria ser como um livro de poesia. Para se ler fora de ordem. Para se ler um pouco por dia. Desprovido de desfecho. Poema é sempre uma releitura.

Caio, não suporto que digam que mulher não gosta de homem que se entrega, que temos que omitir, que temos que jogar? É uma cilada machista, não lhe parece, para justificar a grosseria e a ausência de interesse?

O que será da intensidade longe da doação?

Onde foi parar a delicadeza dela, a ternura de antes? Foi uma miragem?

Onde as pessoas escondem o amor, Caio? Onde as pessoas enterram os ossos de suas alegrias?

Como alguém pode ser frio, indiferente, insensível a ponto de usar as frases mais duras e impessoais, sem se importar com o sofrimento que causa?

Como alguém manda mensagens como se estivesse realizando um favor? Que superioridade é esta? Cadê a instabilidade que pede abraço?

Como alguém não se esforça para retroceder os dias, as horas, zerar os meses? Por amor, a gente esquece que nasceu um dia, não é mesmo?

Como alguém não cancela sua atitude? Que obstinação é essa de machucar, de sangrar ruas e lugares prediletos?

Como alguém não sente saudade, não inventa saudade, não cria saudade? É um produto em falta por aqui, Caio, pode mandar material? Mande vento de palavra para recriar saudade, por favor?

Como não retornar pela verdade, se eu voltaria ainda que fosse uma mentira?

Como não caminhar recuando se avançar é lembrar?

Como o outro termina sem conversar, termina por terminar, termina de modo cruel o que não havia sinalizado?

Como alguém pisa uma vez , continua pisando, permanece agredindo quem merecia a compreensão?

Como alguém afirma que nada muda da noite para o dia, sem esquecer todas as noites que mudaram seus dias?

Como esse mesmo alguém é outro, já outro, tão outro que nem sei mais quem fui?

Como não desconfiar de todo o passado, como não imaginar que tudo foi uma mentira?

Como não se sentir usado pelos anjos, corrompido pela dor?

Como, Caio?

Alguém mentiu, Caio, para mim. Para si. E para todos.

Eu não desisto do que falei um dia com todo o coração. Mas sou eu, Caio, sou eu. Não posso exigir isso de ninguém.

Viver é incompreensível.

Um beijo. Cuide-se.


Fabrício Carpinejar

Caio F, referindo-se à Ana C.



Senti dor e raiva por ela nos ter abandonado tão brutalmente no meio do caminho, deixando aquela sensação de que poderíamos ter feito alguma coisa. Tão arrogantes: quem tem, afinal, o poder de salvar o outro de seus próprios abismos?
Não fomos felizes para sempre. Nem infelizes. Já a perdoei, já me perdoei. Fica esta dor de saber que toda a literatura brasileira perdeu o prenúncio de sua maior voz poética contemporânea. Nossa Sylvia Plath, nossa Zelda Fitzgerald. Fugaz como elas, doida, bela, chique, insuportável-irresistível. Ficou ainda um buraco, um vácuo, solavanco na continuidade. Cartas, poemas. Vestígios, souvenirs.  Palavras, nossa asa e arma. Às vezes mortífera, sabes?
                                              

Caio Fernando Abreu
OESP – Cultura – Sábado, 29 de julho de 1995


De vez em quando visita-te

o vazio.

Nunca se faz anunciar, ignoras
por onde e como entra, sabes apenas que entrou
quando o vês passear pela tua casa
como à vontade de quem inspeciona um lugar
onde planeja
alojar-se longos dias.

Vasculha tudo, revira todos os avessos
retira tuas parcas certezas e sonhos
dos lugares onde os guardas
enrodilha-se nos lençois
cerca, com seu hálito azedo
a suave cova das almofadas.
onde tua nuca
já não encontra repouso

Em todo o lado paira
como fino pó negro que não se refugia
nos recantos, antes te empurra para eles
não se instala na capa dos livros
mas no interior
das tuas mais amadas páginas.

E não tens forma de o aspirar
porque é ele quem te aspira...


António Gil in « Por estas alturas »

Si Muero Antes Que Tú

InertiaK

Si Muero Antes Que Tú Hazme Un Favor
Llora Cuanto Quieras Pero No Te Enojes Con
Dios Por Haberme Llevado
Si No Quieres Llorar No Llores, Si No Logras Llorar
No Te Preocupes
Si Quieres Reír, Ríe
Si Algunos Amigos Te Cuentan Algo
De Mi, Óyelos Y Cree Lo Que Te Digan
Si Me Elogian Demasiado Corrige La
Exageración
Si Me Critican Demasiado Defiéndeme
Si Quieren Hacerme Un
Santo Solo Por Que Me Morí
Di Que Yo Tenía Algo De Santo, Pero Que Estaba
Lejos De Ser El Santo Que Dicen
Si Quieren Hacerme Un Terrible Perverso

Muestra Que Tal Vez Yo Tuve Algo De Malo Pero Que Toda La Vida Procure Ser
Bueno Y Sobre Todo Que Toda La Vida Trate De Ser Mejor
Si Sientes Tristeza Y
Deseas Rezar Por Mi, Puedes Hacerlo
Pues Tal Vez Necesite De Tu Oración

Si Quieres Hablar Conmigo Habla Con Dios Y Yo Te Escuchare
Espero Estar
Con El Lo Suficiente Para Continuar Siendo Util Para Ti
Donde Quiera Que Me
Encuentre
Y Si Quieres Escribir Algo De Mí
Ojalaras Decir Solo Una Frase

Fue Mi Todo, Creyó En Mí Y Me Adoro
Ahí Entonces Derrama Una Lágrima

Yo No Estaré Presente Para Enjugarla Pero No Hace Falta
Pues Tal Vez
Alguien Lo Hará En Mi Lugar
Y Viéndome Bien Sustituido
Iré A Atender Mi
Nueva Tarea En El Cielo
Pero De Vez En Cuando, Da Una Escapadita Hacia Dios

Seguramente No Me Veras Pero Yo Estaré Muy Feliz Viéndote A Ti
Mirando
Hacia El
Crees En Estas Cosas,
Entonces Reza Para Que Los Dos Vivamos
Como Quien Sabe Que Va A Morir Un Dia
Y Que Podamos Morir Como Quien Supo
Vivir Bien
Si Muero Antes Que Tu Creo Que Nada Vos A Extrañar
Por Que
Sabes Algo
Tenerte A Ti Ya Era Como Tener Un Pedacito De Cielo.


Mariano Osorio

Como é difícil ser natural

Luiza Gelts

É curioso como é difícil ser natural. Como a gente está sempre pronta a vestir a casaca das ideias, sem a humildade de se mostrar em camisa, na intimidade simples e humana da estupidez ou mesmo da indiferença. Fiz agora um grande esforço para dizer coisas brilhantes da guerra futura, da harmonia dos povos, da próxima crise. E, afinal de contas, era em camisa que eu devia continuar quando a visita chegou. No fundo, não disse nada de novo, não fiquei mais do que sou, não mudei o curso da vida. Fui apenas ridículo. Se não aos olhos do interlocutor, que disse no fim que gostou muito de me ouvir, pelo menos aos meus, o que ainda é mais penoso e mais trágico.

Miguel Torga, in "Diário (1947)"

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Sylvia Plath - Ryan Adams




I wish I had a Sylvia Plath
Busted tooth and a smile
And cigarette ashes in her drink
The kind that goes out and then sleeps for a week
The kind that goes out on her
To give me a reason, for well, I dunno

And maybe she'd take me to France
Or maybe to Spain and she'd ask me to dance
In a mansion on the top of a hill
She'd ash on the carpets
And slip me a pill
Then she'd get pretty loaded on gin
And maybe she'd give me a bath
How I wish I had a Sylvia Plath

And she and I would sleep on a boat
And swim in the sea without clothes
With rain falling fast on the sea
While she was swimming away, she'd be winking at me
Telling me it would all be okay
Out on the horizon and fading away
And I'd swim to the boat and I'd laugh
I gotta get me a Sylvia Plath

And maybe she'd take me to France
Or maybe to Spain and she'd ask me to dance
In a mansion on the top of a hill
She'd ash on the carpets
And slip me a pill
Then she'd get pretty loaded on gin
And maybe she'd give me a bath
How I wish I had a Sylvia Plath
I wish I had a Sylvia Plath

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Receita

Claudia Lucia McKinney

Ingredientes:

2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos beatles

Modo de preparar

dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração

leve a mistura ao fogo
adicionando dois conflitos de gerações
às esperanças perdidas

corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos beatles
o mesmo processo usado com os sonhos
eróticos mas desta vez deixe ferver um
pouco mais e mexa até dissolver

parte do sangue pode ser substituído
por suco de groselha
mas os resultados não serão os mesmos
sirva o poema simples ou com ilusões


Nicolas Behr

Não deixe de sair com o casaco, meu filho, alguma mulher pode precisar



O homem só depende de um casaco para ser gentil.

Deve levar sempre um casaco consigo. Estar preparado para o arrebatamento.

Mesmo que seja um sol de rachar. Ou um mormaço amazônico.

Ele vai precisar oferecer para uma mulher em algum momento. O casaco é que diferencia o cavalheiro dos outros mortais.

O casaco é a arma romântica, a elegância do improviso. Evidencia seriedade de princípios, já que a educação desenvolve intimidade.

É só oferecer o casaco, que ele mostra ser capaz de ceder sua vida, cria empatia com o mundo feminino, assinala vigilância e cuidado.

O casaco é um dos itens obrigatórios para sair de casa. Por isso, a mãe sempre pedia para nunca esquecê-lo na infância.

Não é somente um casaco, mas um colete salva-vidas para as situações amorosas.

Nosso casaco não é para nós, mas para elas.

É óbvio que sua namorada estará desprotegida, toda mulher sai com pouca roupa de noite para se manter sensual.

Ela se sacrifica por você, você se sacrifica por ela. Dois sacrifícios formam uma escolha.

O casaco é um reforço secreto na saída do bar ou do restaurante, nossa alma de linho a desafiar nevoeiros e ventos.

Representa nosso farol, nosso castelo, nossa fortaleza viril.

Simples de tirar e se converter em novos significados. Multifuncional por essência, o equivalente a um canivete suíço. Numa única versão de pano, temos abridor de condicionamentos, tesoura de conversa, serra a críticas, lima para frieza, alicate de travas e chaves de fenda do coração.

Com um casaco, o homem saca um guarda-chuva para sua companhia atravessar a tempestade.

Com um casaco, o homem inventa uma almofada para ela deitar a cabeça ou sentar no chão.

Com um casaco, o homem espanta o frio incômodo dos ombros na madrugada.

Com um casaco, o homem salva sua parceira das sessões gélidas de cinema.

Com um casaco, o homem inaugura um cobertor nas pernas.

Além de eliminar a necessidade do telefonema do dia seguinte. Ele cria automaticamente a necessidade do segundo encontro, e ainda transferindo a responsabilidade para a mulher de entrar em contato.

Ao deixar o casaco, ela terá que devolvê-lo. Duvido que não ponha um bilhete de agradecimento no bolso.

O casaco é também a primeira correspondência de amor.


Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 06/08/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17514
Nydia Lozano 


Faça o seguinte:
Assopre o pensamento triste,
deixe escorrer a última lágrima,
conte até vinte.
Abra então a janela,
aquela que dá para o voo dos pardais,
procure a luz que pisca lá na frente
(evite as sombras que ficaram lá para trás).
Ao encontrá-la,
coloque-a dentro do peito
de tal jeito, que possa ser notada
do lado de fora.
Acrescente agora uma pitada de poesia,
do tipo que passa por nós todos os dias
e nem sequer consegue ser notada.
Aumente o brilho
com toda a intensidade
de que um sorriso é capaz.
A felicidade é o seu limite,
e o paraíso é você mesmo(a) quem faz.

Flora Figueiredo

Girassol

Nydia Lozano 


Em minha mão fechada cabe o dia,
o fogo aleatório dos instantes
e o silêncio que espalham os amantes
quando termina a festa e nada resta

da luz petrificada entre as montanhas.
Em minha mão aberta cabe a sombra
largada pela vida que me espera
além do inverno, quando a primavera

devolve ao caule a rosa fenecida
e o que foi volta a ser, e toda perda
retorna como um lucro imerecido.

A minha mão sustenta um girassol.
Sou sobra e o excesso, como o vento
ou como a luz incômoda do sol.


 Lêdo Ivo, in "Curral de Peixe", 1995

O poema




O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo


Sophia de Mello Breyner Andresen

Cenário

 Gianni Strino

Tudo é só, a montanha é só, o mar é só,
A lua ainda é mais só.
Se encontrares alguém
Ele está só também.
Que fazes a estas horas nesta rua?
Que solidão é a tua
Que te faz procurar
O cenário maior,
O de uma solidão maior que a tua?

Dante Milano

O perigo do dragão

 



Me falaram do perigo do dragão
o homem não
consegue se livrar da castidade
da religião
da lei imposta da moralidade.

Dentro de mim mora o dragão
da natureza
espontâneo e suficiente
e por mais que me obriguem a fugir
não há nada que me tente
tanto.

Tem o caráter do fogo
o nervo, o temperamento
do proibido
e rompe a linha do extremo
além do sentido.

Dança o movimento sublime
ultrapassa o cerco
o limite, o crime, o desatino
além da nossa dualidade
na dimensão perigosa
de onde se extrai o destino.

Tudo está contido em tudo, cada coisa
se transforma em outra
contínuo o fio da ação
cada um carrega em si o seu oposto
a vida é o germe da destruição.

Buna Lombardi, in O perigo do dragão,

Para atravessar contigo os desertos do mundo

foto Sergio P.


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei
Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento


Sophia de Mello Breyner Andresen,
in Livro sexto,  1962, A Estrela


"Um grupo é um rebanho obediente, que nunca poderia viver sem um senhor. Possui tal anseio de obediência, que se submete instintivamente a qualquer um que se indique a si próprio como chefe.
Embora, dessa maneira, as necessidades de um grupo o conduzam até meio caminho ao encontro de um líder, este, contudo, deve ajustar-se àquele em suas qualidades pessoais. Deve ser fascinado por uma intensa fé (numa ideia), a fim de despertar a fé do grupo; tem de possuir vontade forte e imponente, que o grupo, que não tem vontade própria, possa dele aceitar."

Sigmund Freud em "Psicologia de Grupo e a Análise do Ego", 1921

São gostos

 Paul Kelley


Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
livre como o vento e repetido
como o florir das ondas ordenadas.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Mário Quintana - 7 poemas floridos

Fala Brasília



"Direitos Animais é hoje o conceito mais completo relacionado à justiça social, pois abrange não somente os direitos dos outros animais, mas também os direitos dos animais humanos, isto é, os Direitos Humanos, e a defesa do meio ambiente onde todos nós animais estamos inseridos, ou seja, o Direito Ambiental."

- Bruno Pinheiro, líder da FALA - Frente de Ações pela Libertação Animal (www.fb.com/FALABrasilia)

Deus hipotético



Um religioso dirá que não faltam provas da existência de Deus e da sua influência em nossas vidas. Quem não tem a mesma convicção não pode deixar de se admirar com o poder do que é, afinal, apenas uma suposição.

A hipótese de que haja um Deus que criou o mundo e ouve as nossas preces tem sobrevivido a todos os desafios da razão, independentemente de provas.

Agora mesmo assistimos ao espetáculo de uma empresa multinacional às voltas com a sucessão no comando do seu vasto e rico império, e o admirável é que tudo — o império, a riqueza e o fascínio dos rituais e das intrigas da Igreja de Roma — seja baseado, há 2000 anos, em nada mais do que uma suposição.

Todas as religiões monoteístas compartilham da mesma hipótese, só divergindo em detalhes como o nome do seu deus. E todas têm causado o mesmo dano, em nome da hipótese.

Não é preciso nem falar no fundamentalismo islâmico, que aterroriza o próprio islã. Há o fundamentalismo judaico, com sua receita teocrática e intolerante para a sobrevivência de Israel.

O fundamentalismo cristão, que representa o que há de mais retrógrado e assustador no reacionarismo americano, e as religiões neopentecostais que se multiplicam no Brasil, quase todas atuando no limite entre o curandeirismo e a exploração da crendice.

A Igreja Católica pelo menos dá espetáculos mais bonitos, mas luta para escapar do obscurantismo que caracterizou sua história nestes 2000 anos, contra um conservadorismo ainda dominante. A hipótese de Deus não tem inspirado as religiões a serem muito religiosas.

Há aquela parábola do Dostoievski sobre o encontro do Grande Inquisidor com Jesus Cristo, que volta à Terra — o filho da hipótese tornado homem — para salvar a humanidade outra vez, já que da primeira vez não deu certo.

Os dois conversam na cela onde Cristo foi metido por estar perturbando a ordem pública, e o Grande Inquisidor não demora a perceber que a pregação do homem ameaçará, antes de mais nada, a própria Igreja, a religião institucionalizada e os privilégios do poder.

Não me lembro como termina a parábola. Desconfio que, se fosse hoje, deixariam o Cristo trancado na cela e jogariam a chave fora.



Luis Fernando Veríssimo

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Moreno

 Jon Paul Ferrara


Respira na minha nuca
e me abre o fechecler
passa a mão nas minhas costas
e diz que quer me comer
diz que eu vou ficar maluca
de tanto sentir prazer
me puxa, me arranca a saia
que é pra poder me ver
.
depois ele se encolhe nos meus braços
cabeça no meu peito, seu regaço
transpira de carência e de cansaço
sonha um sonho qualquer
e eu fico ninando esse menino
transformo ele depressa em meu destino
em meu único filho pequenino
como faz toda mulher.


Bruna Lombardi

Receita para não engordar sem necessidade de ingerir arroz integral e chá de jasmim


 
Pratique amor integral
uma vez por dia
desde a aurora matinal
até a hora em que o mocho espia.

Não perca um minuto só
neste regime sensacional.
Pois a vida é um sonho e, se tudo é pó,
que seja pó de amor integral.


Carlos Drummond de Andrade, In: Poesia Errante, 1988.


Je m'en allais, les poings dans mes poches crevées;
Mon paletot soudain devenait idéal;
J'allais sous le ciel, Muse, et j'étais ton féal;
Oh! là là! que d'amours splendides j'ai rêvées!

Mon unique culotte avait un large trou.
Petit-Poucet rêveur, j'égrenais dans ma course
Des rimes. Mon auberge était à la Grande-Ourse.
Mes étoiles au ciel avaient un doux frou-frou

Et je les écoutais, assis au bord des routes,
Ces bons soirs de septembre où je sentais des gouttes
De rosée à mon front, comme un vin de vigueur;

Où, rimant au milieu des ombres fantastiques,
Comme des lyres, je tirais les élastiques
De mes souliers blessés, un pied près de mon coeur!


 Arthur Rimbaud

XXXV - O guardador de rebanhos




O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.
Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
E, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.


Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

Querem acabar comigo


  
A gente corre. Para ganhar
            Ou perder a vida? Resta cantar
        aquele velho Roberto Carlos

São nove horas da manhã de segunda-feira. Estou sentado aqui na escrivaninha, mas hoje não tenho nada a dizer. Quase nada. Ou o que teria a dizer são coisas que só interessam a mim, não a quem lê. Então, hoje vocês vão ter paciência comigo. Hoje tem sessão queixa.
Andei fazendo contas: há 13 meses escrevo aqui, uma vez por semana. São pelo menos 52 semanas, pelo menos 52 crônicas como esta. Eu achomuito. É que nem sempre consigo escrever sem sofrer um pouco. Mesmo quando até me divirto, sempre é necessário remexer um pouco mais fundo, e remexer mais fundo cansa. Ando cansado. Porque não é muito simples escrever, não é assim: você senta, põe papel na máquina e escreve. Às vezes não vem nada. Outras, vem confusamente. Só depois de escrever três ou quatro laudas, aparece uma frase – e essa frase é a coisa, o resto não interessa.

Escrevo geralmente aos domingos, ou às segundas de manhã. Mas desde a quinta ou sexta-feira começo a sofrer vagamente. Nos últimos tempos tem sido mais grave. Porque ando muito – digamos – espantado com o mundo, daquele jeito que só dá vontade de olhar para ele (às vezes nem isso), sem nenhum comentário a fazer. Escrevo lento demais, preciso de tempo para pensar, reler, reescrever. Um domingo inteiro nem sempre basta. Há 13 meses não tenho domingos – aquele dia em que os outros vão ao cinema, namoram, visitam amigos. Os outros, não eu. Eu fico em casa, escrevendo. O mais complicado é que, para escrever, é preciso ver o mundo. Aos domingos ou nos outros dias. Ir ao cinema, namorar, visitar amigos – essas coisas. Não se arrancam palavras do nada: as palavras brotam de coisas e seres viventes. Há 52 semanas, vivo muito pouco. Porque além dessa crônica, fico no mínimo seis horas diárias dentro do jornal. E jornal – quem não sabia, fique sabendo – acaba com a cabeça (e o corpo) de qualquer um.
 Essa escassez de tempo está clara agora, pouco mais de nove horas da manhã de segunda-feira, na desordem absoluta sobre a escrivaninha. Pilhas de cartas não respondidas, livros que só comecei a ler e não consigo terminar (uma Susan Sontag aqui, um Edmund Wilson ali), se olhar para o lado há também pilhas de discos não ouvidos (conseguisse alguns segundos para aquele U2, aquele Raul Seixas...)  E a vida gritando nos cantos.

Os amigos se queixam: você não telefona, não aparece. Tem gente que pede release, reportagens, textos os mais diversos, apresentações para exposições, ler originais, e os que exigem coisas do tipo: você não vem ver minha peça? Como bom ascendente Libra, não sei dizer não. Digo sempre sim, depois não consigo cumprir. Cobram, cobram. Ultimamente, toda vez que otelefone toca, já sei: é alguém pedindo alguma coisa. Têm me pedido muito, ultimamente. E dado pouco. Normal: gente é assim mesmo.
Agora você me pergunta: bom, e daí? Daí que ando cansado. Hoje estou me permitindo escrever sobre este cansaço indivisível, sobre minha falta de tempo, sobre a desordem que se instaurou em minha vida. Por trás disso tudo, o mais perigoso espreita: a grande traição que estou cometendo, todo dia, comigo mesmo. Porque escrevendo assim, para sobreviver, não escrevo o que me mantém vivo – outras coisas que não estas.

O relógio avançõu. Já cheguei às minhas 50 linhas semanais. Amanhã vamosembrulhar peixe na feira. Tomo um café, acendo um cigarro. Durante um minuto, fico pensando em parar.
Parar como param os monges budistas. Parar e olhar. Só um minuto. Pronto: agora tenho que sair correndo outra vez para ganhar a vida. Ganhar ou perder?Eu sei a resposta. Mas posso cantar baixinho um velho Roberto Carlos, aquele assim: “Querem acabar comigo/ isso eu não vou deixar”. Juro que não.



Caio Fernando Abreu                                                                   
OESP - Caderno 2 – 1987

Grandes




 Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
 Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto 
 Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. 
 Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes 
 Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, 
 Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
 Grandes são os desertos, minha alma! 
 Grandes são os desertos.

 Não tirei bilhete para a vida, 
 Errei a porta do sentimento, 
 Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. 
 Hoje não me resta, em vésperas de viagem, 
 Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, 
 Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, 
 Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado) 
 Senão saber isto: 
 Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
 Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,

 Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar 
 Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem) 
 Acendo o cigarro para adiar a viagem, 
 Para adiar todas as viagens. 
 Para adiar o universo inteiro.

 Volta amanhã, realidade! 
 Basta por hoje, gentes! 
 Adia-te, presente absoluto! 
 Mais vale não ser que ser assim.

 Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro, 
 E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

 Mas tenho que arrumar mala, 
 Tenho por força que arrumar a mala, 
 A mala.

 Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. 
 Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. 
 Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, 
 A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

 Tenho que arrumar a mala de ser. 
 Tenho que existir a arrumar malas. 
 A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. 
 Olho para o lado, verifico que estou a dormir. 
 Sei só que tenho que arrumar a mala, 
 E que os desertos são grandes e tudo é deserto, 
 E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

 Ergo-me de repente todos os Césares.   
 Vou definitivamente arrumar a mala.   
 Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;  
 Hei de vê-la levar de aqui, 
 Hei de existir independentemente dela.

 Grandes são os desertos e tudo é deserto, 
 Salvo erro, naturalmente. 
 Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

 Mais vale arrumar a mala. 
 Fim.


Álvaro de Campos
(heterônimo de Fernando Pessoa)

Marcha

Amalia Iuliana Chitulescu

As ordens da madrugada
romperam por sobre os montes:
nosso caminho se alarga
sem campos verdes nem fontes.
Apenas o sol redondo
e alguma esmola de vento
quebram as formas do sono
com a ideia do movimento.

Vamos a passo e de longe;
entre nós dois anda o mundo,
com alguns mortos pelo fundo.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas,
mais minha dúvida aumento.

Também não pretendo nada
senão ir andando à toa,
como um número que se arma
e em seguida se esboroa,
- e cair no mesmo poço
de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras, águas, pensamento.

Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga
como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga, é tudo
que tenho, entre o sol e o vento:
meu vestido, minha música,
meu sonho e meu alimento.

Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudade;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos ristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
já me dá contentameno.

Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava
tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta a vida
isento de tudo, isento...
Não há lágrima nem grito:
apenas consentimento.

Cecília Meireles

Leitura natural



Tendo lido os jornais
- infectado a mente, enauseado os olhos -
descubro, lá fora, o azul do mar
e o verde repousante que começa nas samambaias da sala
e recrudesce nas montanhas.

Para que perco tantas horas do dia
nessas leituras necessárias e escarninhas?
Mais valeria, talvez, nas verdes folhas, ler
o que a vida anuncia.

Mas vivo numa época informada e pervertida.
Leio a vida que me imprimem
e só depois
o verde texto que me exprime.


Affonso Romano de Sant'Anna

Saio de mim




Saio de mim
para quem sou
e jamais chego ao destino.

No caminho do ser
meu gozo é me perder.

Meu coração só tem morada
onde se acende um outro peito.

Meu anjo está cego,
meu poeta está mudo,
meu guru ficou amnésico.

O poeta
sabia que não ia por ali.
Eu vou por onde não sei.
Meu aqui
é sempre além.


Mia Couto, in Idades Cidades Divindades

O vento lavou as pedras



O vento lavou as pedras,
mas ficaram as palavras.
O vento lavou as pedras
com sabor de madrugada.

O vento lavou as noites,
mas ficaram as estrelas.

O vento lavou a noite
com água límpida e mansa.
Mas não lavou a salsugem.

O vento lavou as águas,
mas não lavou a inocência
que amadurece nas águas.

O vento lavou o vento.


Carlos Nejar

Paintings - Francine Van Hove

O que acontece no meio



No meio, a gente descobre que precisa guardar a senha não apenas do banco, mas a que nos revela a nós mesmos.

Vida é o que existe entre o nascimento e a morte. O que acontece no meio é o que importa.

No meio, a gente descobre que sexo sem amor também vale a pena, mas é ginástica, não tem transcendência nenhuma. Que tudo o que faz você voltar pra casa de mãos abanando (sem uma emoção, um conhecimento, uma surpresa, uma paz, uma ideia) foi perda de tempo.

Que a primeira metade da vida é muito boa, mas da metade pro fim pode ser ainda melhor, se a gente aprendeu alguma coisa com os tropeços lá do início. Que o pensamento é uma aventura sem igual. Que é preciso abrir a nossa caixa preta de vez em quando, apesar do medo do que vamos encontrar lá dentro. Que maduro é aquele que mata no peito as vertigens e os espantos.

No meio, a gente descobre que sofremos mais com as coisas que imaginamos que estejam acontecendo do que com as que acontecem de fato. Que amar é lapidação, e não destruição. Que certos riscos compensam – o difícil é saber previamente quais. Que subir na vida é algo para se fazer sem pressa.

Que é preciso dar uma colher de chá para o acaso. Que tudo que é muito rápido pode ser bem frustrante. Que Veneza, Mykonos, Bali e Patagônia são lugares excitantes, mas que incrível mesmo é se sentir feliz dentro da própria casa. Que a vontade é quase sempre mais forte que a razão. Quase? Ora, é sempre mais forte.

No meio, a gente descobre que reconhecer um problema é o primeiro passo para resolvê-lo. Que é muito narcisista ficar se consumindo consigo próprio. Que todas as escolhas geram dúvida, todas. Que depois de lutar pelo direito de ser diferente, chega a bendita hora de se permitir a indiferença.
Que adultos se divertem muito mais do que os adolescentes. Que uma perda, qualquer perda, é um aperitivo da morte – mas não é a morte, que essa só acontece no fim, e ainda estamos falando do meio.

No meio, a gente descobre que precisa guardar a senha não apenas do banco e da caixa postal, mas a senha que nos revela a nós mesmos. Que passar pela vida à toa é um desperdício imperdoável. Que as mesmas coisas que nos exibem também nos escondem (escrever, por exemplo).
Que tocar na dor do outro exige delicadeza. Que ser feliz pode ser uma decisão, não apenas uma contingência. Que não é preciso se estressar tanto em busca do orgasmo, há outras coisas que também levam ao clímax: um poema, um gol, um show, um beijo.

No meio, a gente descobre que fazer a coisa certa é sempre um ato revolucionário. Que é mais produtivo agir do que reagir. Que a vida não oferece opção: ou você segue, ou você segue. Que a pior maneira de avaliar a si mesmo é se comparando com os demais. Que a verdadeira paz é aquela que nasce da verdade. E que harmonizar o que pensamos, sentimos e fazemos é um desafio que leva uma vida toda, esse meio todo.


Martha Medeiros


Amei-te como na vida se ama uma só vez;
e todos os afetos que dividi depois eram
apenas cinzas que evocavam o brilho dessa
imensa chama. Troquei suspiros e beijos

com muitas outras bocas quando, na minha,
o travo da solidão era uma amarga desculpa
para repartir o pouco que não tinha; mas

em nenhuma quis morder fruto mais
suculento que o silêncio nem permiti que
pousasse sequer o meu nome verdadeiro -
que só nos teus lábios era graça e canção

e eco de loucura. Foi o meu corpo tão vão displicente
naqueles que o cingiram que me faria velha
a tentar recordar-lhes os gestos hesitantes,
as convulsões da pressa e os veios de sal que
descreviam no litoral da pele o aviso de uma
paisagem interior abandonada. Mas de nada

me serviu amar-te assim - pois, ao dizer-te o
que não pude ser longe de ti, digo-te o que sou
e isso há de guardar-te para sempre de voltares.


Maria do Rosário Pedreira

O engano

© Abbas Arabzadeh

Sou tua, Deus o sabe por quê, já que compreendo
Que haverás de abandonar-me, friamente, amanhã,
E que embaixo dos meus olhos, te encanto
Outro encanto o desejo, porém não me defendo.

Espero que isto um dia qualquer se conclua,
Pois intuo, ao instante, o que pensas ou queiras
Com voz indiferente te falo de outras mulheres
E até ensaio o elogio de alguma que foi tua.

Porém tu sabes menos do que eu, e algo orgulhoso
De que te pertence, em teu jogo enganoso
Persistes, com ar de ator do papel dono.

Eu te olho calada com meu doce sorriso,
Não és tu o que me engana, quem me
engana é meu sonho.


Alfonsina Storni
Tradução de Maria Teresa Almeida Pina

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Abandonada

Vidan

Bem depressa sumiu-se a vaporosa
Nuvem de amores, de ilusões tão bela;
O brilho se pagou daquela estrela
Que a vida lhe tornava venturosa!

Sombras que passam, sombras Cor-de-rosa
— Todas se foram num festivo bando,
Fugazes sonhos, gárrulos voando
— Resta somente um'alma tristurosa!

Coitada! o gozo lhe fugiu correndo,
Hoje ela habita a erma soledade,
Em que vive e em que aos poucos vai morrendo!

Seu rosto triste, seu olhar magoado,
Fazem lembrar em noute de saudade
A luz mortiça d'um olhar nublado.

 
Augusto dos Anjos, Eu e outras poesias

Analogia

Steve Hanks


“Sempre que o frio chega o meu pesar sorri,
pois te adoro no Inverno e adoro o Inverno em ti...”

Amo o Inverno assim triste, assim sombrio,
lembrando alguém que já não sabe amar;
e sempre, quando o sinto e quando o espio,
julgo-te eterizado, esparso no ar.

Afoita, a alma do Inverno desafio,
para inda te querer e te pensar…
para gozá-lo e gozar-te, que arrepio!…
que semelhança em ambos singular!…

Loucura pertinaz do meu anelo:
— emprestar-te, emprestar-lhe uma emoção,
— pelo mal de perder-te querer tê-lo…

Amor! Inverno! Minha aspiração!
quem me dera resfriar-me no teu gelo!
quem me dera aquecer-te em meu Verão!…


 Gilka Machado, in "Mulher Nua"

Soneto do amigo

Vladimir Volegov


Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...


Vinicius de Moraes

Insisto num rosto efêmero

Renso Castaneda

 
Do outro lado do disfarce,
insisto num rosto efêmero.
A que punhal ou perigo me insinuo?
Sou o encontro adiado,
neste prenúncio de muros
ou de mãos indomáveis.
Quero, no reverso da névoa,
onde não dancei os sonhos,
um teatro de papel.
Diante da muralha da noite
ensaio as sombras sob as pálpebras
e altero o nome das cantigas
que me circulam no sangue, em sobressalto


Graça Pires, Conjugar afetos

Gotán

Renso Castaneda


Esa mujer se parecía a la palabra nunca,
desde la nuca le subía un encanto particular,
una especie de olvido donde guardar los ojos,
esa mujer se me instalaba en el costado izquierdo.

Atención atención yo gritaba atención
pero ella invadía como el amor, como la noche,
las últimas señales que hice para el otoño
se acostaron tranquilas bajo el oleaje de sus manos.

Dentro de mí estallaron ruidos secos,
caían a pedazos la furia, la tristeza,
la señora llovía dulcemente
sobre mis huesos parados en la soledad.

Cuando se fue yo tiritaba como un condenado,
con un cuchillo brusco me maté
voy a pasar toda la muerte tendido con su nombre,
él moverá mi boca por la última vez.


Juan Gelman

Canção

Rachel Ferguson


Grande sono alcança,
Negro, a minha vida:
Dorme, ó esperança,
Dorme, ânsia perdida!

Nada vejo, além,
Foi-se-me a memória
Do mal e do bem...
Desgraçada história!

Sou berço, no fulcro,
Baloiçando imenso
Em fundo sepulcro:
Silêncio, silêncio!


Paul Verlaine, in oiro de vário tempo e lugar. Trad. e Org.: A. Herculano de Carvalho

domingo, 10 de novembro de 2013



Eu queria ser um sábio
Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria:
Manter-se afastado dos problemas do mundo
e sem medo passar o tempo que se tem para
viver na terra;
Seguir seu caminho sem violência,
pagar o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Sabedoria é isso!
Mas eu não consigo agir assim.
É verdade, eu vivo em tempos sombrios!

II

Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
quando a fome reinava.
Eu vim para o convívio dos homens no tempo
da revolta
e me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.
Eu comi o meu pão no meio das batalhas,
deitei-me entre os assassinos para dormir,
Fiz amor sem muita atenção
e não tive paciência com a natureza.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.

III

Vocês, que vão emergir das ondas
em que nós perecemos, pensem,
quando falarem das nossas fraquezas,
nos tempos sombrios
de que vocês tiveram a sorte de escapar.
Nós existíamos através da luta de classes,
mudando mais seguidamente de países que de
sapatos, desesperados!
quando só havia injustiça e não havia revolta.
Nós sabemos:
o ódio contra a baixeza
também endurece os rostos!
A cólera contra a injustiça
faz a voz ficar rouca!
Infelizmente, nós,
que queríamos preparar o caminho para a
amizade,
não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão.


Bertolt Brecht

Coração Polar

Watchara Klakhakhai 

1.

Não sei de que cor são os navios
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures no mar
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial
a tua promessa nos mastros de todos os veleiros
a ilha perfumada das tuas pernas
o teu ventre de conchas e corais
a gruta onde me esperas
com teus lábios de espuma e de salsugem
os teus naufrágios
e a grande equação do vento e da viagem
onde o acaso floresce com seus espelhos
seus indícios de rosa e descoberta.
Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.


Manuel Alegre
In Senhora das Tempestades

Obituario con hurras



Vamos a festejarlo
Vengan todos
Los inocentes
Los damnificados
Los que gritan de noche
Los que sufren de día
Los que sufren el cuerpo
Los que alojan fantasmas
Los que pisan descalzos
Los que blasfeman y arden
Los pobres congelados
Los que quieren a alguien
Los que nunca se olvidan

vamos a festejarlo
vengan todos
el crápula se ha muerto
se acabó el alma negra
el ladró
el cochino
se acabó para siempre
hurra
que vengan todos
vamos a festejarlo
a no decir
la muerte
siempre lo borra todo
todo lo purifica

cualquier día
la muerte
no borra nada
quedan
siempre las cicatrices

hurra
murió el cretino
vamos a festejarlo
a no llorar de vicio
que lloren sus iguales
y se traguen sus lágrimas

se acabó el monstruo prócer
se acabó para siempre
vamos a festejarlo
a no ponernos tibios
a no creer que éste
es un muerto cualquiera

vamos a festejarlo
a no volvernos flojos
a no olvidar que éste
es un muerto cualquiera

vamos a festejarlo
a no volvernos flojos
a no olvidar que éste
es un muerto de mierda.


Mario Benedetti

Oscar Niemeyer


"De um traço nasce a arquitetura. E quando ele é bonito e cria surpresa, ela pode atingir, sendo bem conduzida, o nível superior de uma obra de arte."
- "Conversa de arquiteto" - página 9, Oscar Niemeyer - Revan, 1993 - 54 páginas

"Quando uma forma cria beleza tem na beleza sua própria justificativa."
- "Meu sósia e eu", Oscar Niemeyer - Editora Revan, - 121 páginas

"A gente tem é que sonhar, senão as coisas não acontecem".
- revista Caros Amigos, conforme citado em "Teoría & debate: revista trimestral do Partido dos Trabalhadores", Volume 19, Edições 64-68, Partido dos Trabalhadores (Brazil) - 2005

"Enquanto houver miséria e opressão, ser comunista é a nossa decisão"
- citado em "PCB, 80 anos de luta" - página 167, Hiran Roedel - Fundação Dinarco Reis, 2002 - 183 páginas

"Vocês vão ver os palácios de Brasília, deles podem gostar ou não, mas nunca dizer terem visto antes coisa parecida."
- Minha arquitetura - página 62, Oscar Niemeyer - Editora Revan, 2002 - 92 páginas

"A vida nos leva pra onde ela quer. Cada um vem, escreve sua historinha e vai embora. Não vejo segredo em levar a vida".

"Centenário é o cacete"
- (a respeito de 100º aniversário para a revista Domingo, do Jornal do Brasil) [2]

"Quando eu faço o projeto, a gente pensa que a decoração é uma coisa qualquer, que não tem grande importância para a arquitetura, mas ela é suficiente para destruir a arquitetura. Os que fazem decoração não compreenderam até hoje que o importante na decoração são os espaços vazios, os espaços entre um grupo e outro. Então, enchem de móveis e fica uma merda."

"Não há nada mais importante que a mulher, o resto é bobagem. É ou não é?"
- sobre as mulheres
- Fonte: Revista IstoÉ Gente. Edição 373

“Esse negócio de centenário eu acho ridículo. O importante é a vida, o passado e principalmente o presente. A arquitetura é secundário”.

"Alcançar essa idade é uma merda, mas é bom."

"O mais importante não é a arquitetura, mas a vida, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar".
- entrevista à Revista IstoÉ, edição 132, 11/02/2002

"Nem meus amigos, que me ajudaram muito, como o JK, entendiam. As pessoas viam os projetos e diziam: 'Que bonito!' Mas não estavam entendendo nada."
- Falando sobre seu projeto de construção de Brasília; citado em Revista Veja, Especial 2000

"Cem anos é uma bobagem, depois dos 70 a gente começa a se despedir dos amigos. O que vale é a vida inteira, cada minuto também, e acho que passei bem por ela".
- citado em Uol Notícias, 12/12/2007

"Meu trabalho não tem importância, nem a arquitetura tem importância pra mim. Para mim o importante é a vida, a gente se abraçar, conhecer as pessoas, haver solidariedade, pensar num mundo melhor, o resto é conversa fiada."
- entrevista a Isabel Murray; Portal BBC Brasil, 20 de abril, 2001

"Eu não dou a menor importância a dinheiro. Nem à própria vida. A vida é um sopro, um minuto. A gente, nasce, morre. O ser humano é um ser completamente abandonado..."
- entrevista a Isabel Murray; Portal BBC Brasil, 20 de abril, 2001

"O trabalho me distrai. Na minha idade a gente não pode ficar desocupado, que só pensa besteira."
- (aos 93 anos); entrevista a Isabel Murray; Portal BBC Brasil, 20 de abril, 2001

"Não entendo quem tem medo dos vãos livres. O espaço faz parte da arquitetura".
- Sem rodeios: conto, Oscar Niemeyer - Editora Revan, 2006, ISBN 8571063397, 9788571063396 - 53 páginas

"Estou surpreso. Sou apenas um arquiteto."
- Oscar Niemeyer, arquiteto, ao receber o prêmio de Intelectual do Ano de 2004, concedido pelo Fórum do Rio de Janeiro; citado em Revista ISTOÉ Gente, edição 280, 20/12/2004

"A gente quer se informar melhor sobre tudo, aprender outras coisas. O importante é a pessoa ser curiosa. Não é um interesse de um intelectual, é um interesse de um sujeito normal que sente a vida, que é solidário, que acha que o mundo pode ser melhor, que um dia o homem possa ter prazer em ajudar o outro, é isso que é a generosidade num certo sentido. E o ser – humano, é verdade, a perspectiva dele é muito pouco."
- Em entrevista para Paulo Henrique Amorim.

Pensar é transgredir

Jose Royo


Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos.

Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.


Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.


Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: "Parar pra pensar, nem pensar!"

O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação.

Sem ter programado, a gente pára pra pensar.

Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.

Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.

Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida.

Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.

Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo.


Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos.


Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.

Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.
Parece fácil: "escrever a respeito das coisas é fácil", já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.

Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança.

Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.

Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.

E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.


Lya Luft