sábado, 31 de março de 2012

art by Andrius Kovelinas


Há uma altura, antes de acordar, em que
sonho e a realidade se confundem. Por vezes,
o sono impede que se faça essa distinção;
de outras vezes, julgamo-nos metidos
na vida sem saber que ainda não saímos
do limbo noturno. Em todos os casos,
sentimentos e emoções sobressaltam
o corpo; movemo-nos para um e outro lado
com a angústia da dupla existência; nada
dominamos das ações que, no entanto,
sofremos como se algo nos tivesse arrancado
da cama. Durante o pequeno-almoço, pensando
nisso, já pouco resta de qualquer coisa
da noite. Nem as pessoas, nem as palavras,
nem as imagens, nos atormentam com a intensidade
de há pouco. Porém, é como se nos faltasse
alguma coisa de nós. E, durante o dia, repetimos
gestos que não sabemos a quem se dirigem;
ouvimos frases de que não percebemos
o sentido. E não sabemos, de fato,
onde encontrar uma explicação para esse
deambular entre ser
e não ser.


Nuno Júdice

Tentando um novo amor

imagem: nuno boavida


Para curar uma dor de amor, digam o que quiserem, só conheço um remédio: um amor novinho em folha. Enquanto nosso coração não encontrar outro pretendente, ficaremos cultivando o velho amor, alimentando-o diariamente, sofrendo por ele e, no fundo, bem no fundinho, felizes por ter para quem dedicar nossos ais e nossa insônia. A gente só enterra mesmo o defunto quando outra pessoa surge para ocupar o posto. Se isso lhe parece uma teoria simplista, toque aqui. É simplista sim. Isso de enterrar o defunto do dia pra noite só funciona quando o defunto era apenas uma paixonite, um entusiasmo, fogo de palha. Porém, se era algo realmente profundo, um sentimento maduro, aí o efeito do novo amor pode revelar-se um belo tiro pela culatra. Ele acabará servindo apenas para dar a você a total certeza de que aquele amor anterior era realmente um bem durável. E a dor voltará redobrada.
Um beijo que deveria inaugurar uma nova fase em sua vida pode trazer à tona lembranças fortes do passado, e nem é preciso comparar os beijos, apenas as sensações provocadas. Quem já vivenciou isso sabe o constrangimento que é beijar alguém e morrer de saudades do antecessor.
Um novo amor pode transformar o que era opaco em transparência: você não sabia exatamente o que sentia pelo ex, se era amor ou não, então surge outra pessoa e você descobre que sim, era amor, caso contrário não sentiria esse abandono, essa perturbação, essa forte impressão de que está fazendo uma tentativa inútil, de que não conseguirá ir adiante.
Mas o que fazer? Encarar uma vida monástica, celibatária? Nada disso. Viva as tentativas inúteis! Uma, duas, três, até que alguma delas consiga superar de vez a inquietação do passado, que venha realmente inaugurar uma nova fase em sua agenda amorosa, que deixe você tranqüilo em relação ao que viveu e ao que deve viver daqui pra frente.
No entanto, quanto mais escrevo, mais me dou conta de que não há fórmula que dê garantia para nossas atitudes, de que não há pessoa neste mundo que não possa nos surpreender, de que tudo o que vivemos são tentativas, e que inútil, inútil mesmo, nenhuma é.

Martha Medeiros

Do corpo de uma mulher, algo é voz




Há uma química de mãos em seus olhos,
eles arestam meu corpo
e povoam de relâmpagos
cada um dos meus lábios
estes, que se frequentam de silêncios
em dilatação no espaço escandido
por um tempo, ao mesmo tempo,
contínuo e descontínuo.
Morri três vezes neste dia
de lábios que se calam
por sonorização de cômodos
do corpo que por comodidade
chamo de vísceras
— chego a pensar que é mesmo
entre elas que, de seus olhos,
vêm os relâmpagos de calar
lábios e produzir,
no corpo,
arestas sutis
como o instantezerodeumundo.


Wesley Peres

sexta-feira, 30 de março de 2012

Suspensão



Fora de mim, fora de nós, no espaço, no vago
A música dolente de uma valsa
Em mim, profundamente em mim
A música dolente do teu corpo
E em tudo, vivendo o momento de todas as coisas
A música da noite iluminada.
O ritmo do teu corpo no meu corpo...
O giro suave da valsa longínqua, da valsa suspensa...
Meu peito vivendo teu peito
Meus olhos bebendo teus olhos, bebendo teu rosto
E a vontade de chorar que vinha de todas as coisas


Vinicius de Moraes

Noite de Estrelas




Arde na terra a solidão da lua
Iluminando meu olhar perdido
Entre campinas, abismos, chapadas...
Meus olhos queimam a última lembrança
Como fogueira em noite de estrelas.

Me deito só, com vista para o mundo
Calando fundo meus sonhos, minhas queixas,
Mas alço vôo em busca de teus passos
Piso descalço na terra do teu corpo
Suave passo, suave gosto, cheiro de mato
Meu braço lasso, eu lanço em segredo.

Vem ser meu canto, meu verso, meu soneto
Vem ser poema no árido deserto
Serei oásis, silêncio, festejo
Serei sertão nas horas de aconchego...

Maria Bethânia


''Pinto a mim mesmo porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor.''


Poema do diário de Frida

Diego. princípio
Diego. construtor
Diego. meu bebê
Diego. meu noivo
Diego. pintor
Diego. meu amante
Diego. meu marido
Diego. meu amigo
Diego. meu pai
Diego. minha mãe
Diego. meu filho
Diego. eu
Diego. universo
Diversidade na unidade.
Porque é que lhe chamo Meu Diego?
Ele nunca foi e nem será meu.
Ele pertence a si próprio.


Frida Kahlo

O teu sono anoiteceu mais que a noite




O teu sono anoiteceu mais que a noite
e hei-de escrever-te sempre sem que nunca
te escreva sei as palavras que fechaste
nos olhos mas não sei as letras de as dizer
ensina-me de novo se ensinares-me for
ir ter contigo ao teu sorriso ensina-me
a nascer para onde dormes que me perco
tantas vezes numa noite demasiado pequena
para o teu sono num silêncio demasiado fundo
dormes e tento levantar a pedra que te
cobre maior que a noite o peso da pedra que
te cobre e tento encontrar-te mais uma vez
nas palavras que te dizem só para mim
o teu sono anoiteceu mais que as mortes
que posso suportar e hei-de escrever-te
sempre e mais uma vez sozinho nesta noite

José Luís Peixoto


Já és minha, repousa com teu sonho em meu sonho

Irina Vitalievna


Já és minha, repousa com teu
Sonho em meu sonho.
Amor, dor, trabalho, devem
dormir agora.
Gira noite sobre suas
Invisíveis rodas, e junto a mim és
Pura como o âmbar dormindo.
Nenhum mais amor, dorme
Com meus sonhos…
Irás, iremos juntos pelas
Águas do tempo.
Nenhuma viajará pela
Sombra só tu,
Sempre viva, sempre sol…
Sempre lua…
Já tuas mãos abriram os punhos
Delicados e deixaram cair
Sem rumo…
Teus olhos se fecharam como
Duas asas cinzas, enquanto
Eu sigo a água que me leva.
A noite…O mundo… O vento
Enovelam meu destino, e já
Não sou sem ti, senão
Apenas teu sonho…


Pablo Neruda

quinta-feira, 29 de março de 2012

Teu corpo é canoa

Antonio Tordesillas 



Teu corpo é canoa
em que desço
vida abaixo
morte acima
procurando o naufrágio
me entregando à deriva.

Teu corpo é casulo
de infinitas sedas
onde fio
me afio e enfio
invasor recebido
com licores.

Teu corpo é pele exata para o meu
pena de garça
brilho de romã
aurora boreal
do longo inverno.


Marina Colasanti

A Rainha

 Andrei Belichenko



Nomeei-te rainha.
Há maiores do que tu, maiores.
Há mais puras do que tu, mais puras.
Há mais belas do que tu, há mais belas.

Mas tu és a rainha.

Quando andas pelas ruas
ninguém te reconhece.
Ninguém vê a tua coroa de cristal, ninguém olha
a passadeira de ouro vermelho
que pisas quando passas,
a passadeira que não existe.

E quando surges
todos os rios se ouvem
no meu corpo,
sinos fazem estremecer o céu,
enche-se o mundo com um hino.

Só tu e eu,
só tu e eu, meu amor,
o ouvimos.


Pablo Neruda,
in "Poemas de Amor de Pablo Neruda"

quarta-feira, 28 de março de 2012

Teu amor entrou na minha vida Violentamente

Christian Schloe



Teu amor entrou na minha vida
Violentamente,
Como um sopro de vento
Abrindo a janela de repente.
Teu amor desarrumou meu destino
Arrancou da parede
Velhos retratos queridos,
E quebrou uma jarra
No canto da minha alma
Cheia de rosas,
Cheia de sonhos…
Depois…
Teu amor saiu da minha vida de repente
Como um sopro de vento
Fechando uma porta,
Violentamente.


Carlos Drummond de Andrade

Charles Bukovski - Born into this




Quando entre nós
só havia uma carta certa
a correspondência completa
o trem os trilhos
a janela aberta uma certa paisagem
sem pedras ou sobressaltos
meu salto alto
em equilíbrio
o copo d’água
a espera do café


ana cristina césar

Em cada sílaba te escrevo


John Reinhard Weguelin


Em cada sílaba te escrevo,
porque há ventos que amam
a praia e as nossas asas,
teimam em voltar galopantes
de onde nunca partiram.
Toco a areia e não me sinto só;
as rendas das ondas
enfeitam-me os cabelos,
prolongam as algas.
Sou água, areia, tu o búzio das marés.
Sabes, adivinhas,
escutas, silencias.
Por isso o nosso toque
não é breve nem sem gosto,
por isso há rios que
se abrem apenas
porque os momentos
se prolongam e entardecem os corpos.


Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 26 de março de 2012

Silêncios

imagem: haleh bryan


Estes silêncios que chegam sobre nossos males,
Este gelo que nos invade subitamente,
Este cansaço que sinto crescer em ti,
Toda esta melancolia surda que nos separa,
Não vem do nosso amor
Nosso amor está guardado pelos sete anjos:
Os sóis não o poderão queimar,
A sombra e o tédio não o poderão envolver
O cansaço não o poderá tomar,
Porque ele não é do tempo.
Sofremos: é a angústia de nos sentirmos separados do nosso amor.
Sentimos: é a fadiga, porque vamos subindo a sua procura.
E estes silêncios são a poeira que desce dos grandes movimentos
Que o nosso amor realiza para além do tempo.


Augusto Frederico Schmidt

Sem precisar morrer - Letícia Sabatella e Rodrigo Santoro

Glosa




Quem me roubou a minha dor antiga,
E só a vida me deixou por dor?
Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,
Me deixou só no fogo e no torpor?
Quem fez a fantasia minha amiga,
Negando o fruto e emurchecendo a flor?
Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga
A seu infiel e irreal sabor...

Quem me dispôs para o que não pudesse?
Quem me fadou para o que não conheço
Na teia do real que ninguém tece?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava
E me deu só a vida em que me esqueço,
"Onde a minha saudade a cor se trava?"


Fernando Pessoa

O novo homem




O homem será feito
em laboratório.
Será tão perfeito
como no antigório.
Rirá como gente,
beberá cerveja
deliciadamente.
Caçará narceja
e bicho do mato.
Jogará no bicho,
tirará retrato
com o maior capricho.
Usará bermuda
e gola roulée.
Queimará arruda
indo ao canjerê,
e do não-objeto
fará escultura.
Será neoconcreto
se houver censura.
Ganhará dinheiro
e muitos diplomas,
fino cavalheiro
em noventa idiomas.
Chegará a Marte
em seu cavalinho
de ir a toda parte
mesmo sem caminho.
O homem será feito
em laboratório,
muito mais perfeito
do que no antigório.
Dispensa-se amor,
ternura ou desejo.
Seja como flor
(até num bocejo)
salta da retorta
um senhor garoto.
Vai abrindo a porta
com riso maroto:
"Nove meses, eu?
Nem nove minutos."
Quem já conheceu
melhores produtos?
A dor não preside
sua gestação.
Seu nascer elide
o sonho e a aflição.
Nascerá bonito?
Corpo bem talhado?
Claro: não é mito,
é planificado.
Nele, tudo exato,
medido, bem-posto:
o justo formato,
o standard do rosto.
Duzentos modelos,
todos atraentes.
(Escolher, ao vê-los,
nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa
a todos atende.
Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afeto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.
Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio
e, per omnia secula,
livre, papagaio,
sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,
eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito.


Carlos Drummond de Andrade

Eu quero uma mulher Para receber o diadema




Eu quero uma mulher
Para receber o diadema
Construído na perfeição
Quero encontrar uma cabeça
Bela nobre casta e altiva
Filha do povo ou dos deuses
Preciso de uma mulher
Com a majestade no andar
Vaga e lisa a cabeleira
Mulher profunda romântica
Para receber o diadema
Construído pela Poesia.
Aproxima-te.


Murilo Mendes

sábado, 24 de março de 2012

Amor em Lágrimas

 Cricket Diane


Ouve o mar que soluça na solidão
Ouve, amor, o mar que soluça
Na mais triste solidão
E ouve, amor, os ventos que voltam
Dos espaços que ninguém sabe
Sobre as ondas se debruçam
E soluçam de paixão
E ouve, amor, no fundo da noite
Como as árvores ao vento
Num lamento se debruçam
E soluçam para o chão
Deixa amor que um corpo sedento
Como as árvores e o vento
No teu corpo se debruce
E soluce de paixão


Vinicius de Moraes 

sexta-feira, 23 de março de 2012

Não há motivo para te importunar a meio da noite

Anna Marinova


Não há motivo para te importunar a meio da noite,
como não há leite no frigorífico, nem um limite
traçado para a solidão doméstica.

Tudo desaparece. Nada desaparece. Tudo desaparece
antes de ser dito e tu queres dormir descansada. Tens
direito a um subsídio de paz.

Se eu escrever um poema, esse não é motivo para te
importunar. Eu escrevo muitos poemas e tu trabalhas
de manhã cedo.

Toda a gente sabe que a noite é longa. Não tenho o
o direito de telefonar para te dizer isso, apesar dessa
evidência me matar agora.

E morro, mas não morro. Se morresse, perguntavas:
porque não me telefonaste? Se telefonasse, perguntavas:
sabes que horas são?

Ou não atendias. E eu ficava aqui. Com a noite ainda
mais comprida, com a insônia, com as palavras
a despegarem-se dos pesadelos.


José Luís Peixoto

Quietação

Darren BAKER 



No espaço claro e longo
O silêncio é como uma penetração de olhares calmos...
Eu sinto tudo pousado dentro da noite
E chega até mim um lamento contínuo de árvores curvas.
Como desesperados de melancolia
Uivam na estrada cães cheios de lua.
O silêncio pesado que desce
Curva todas as coisas religiosamente
E o murmúrio que sobe é como uma oração da noite...

Eu penso em ti.
Minha boca cicia longamente o teu nome
E eu busco sentir no ar o aroma morno da tua carne.
Vejo-te ainda na visão que te precisou no espaço

Ouvindo de olhos dolentes as palavras de amor que eu te dizia
Fora do tempo, fora da vida, na cessação suprema do instante
Ouvindo, junta de mim, a angústia apaixonada da minha voz
Num desfalecimento.
Pelo espaço claro e longo
Vibra a luz branca das estrelas.
Nem uma aragem, tudo parado, tudo silêncio
Tudo imensamente repousado.
E eu cheio de tristeza, sozinho, parado
Pensando em ti


Vinicius de Moraes

Reflexão




Há certas almas
como as borboletas,
cuja fragilidade de asas
não resiste ao mais leve contato,
que deixam ficar pedaços
pelos dedos que as tocam.

Em seu voo de ideal,
deslumbram olhos,
atraem as vistas:
perseguem-nas,
alcançam-nas,
detêm-nas,
mas, quase sempre,
por saciedade
ou piedade,
libertam-nas outra vez.

Ela, porém, não voam como dantes,
ficam vazias de si mesmas,
cheias de desalento...

Almas e borboletas,
não fosse a tentação das cousas rasas;
- o amor de néctar,
- o néctar do amor,
e pairaríamos nos cimos
seduzindo do alto,
admirando de longe!...


Gilka Machado

quinta-feira, 22 de março de 2012

Jean-Paul Sartre, A Náusea

TERÇA-FEIRA, 30 DE JANEIRO 


Nada de novo. Trabalhei das nove à uma na Biblioteca. Pus em ordem o capítulo XII e tudo quanto se prende com a estada de Rollebon na Rússia, até à morte de Paulo I. É trabalho acabado: não voltarei a mexer-lhe antes da passagem a limpo. É uma e meia. Estou no Café Mably, a comer uma sanduíche; tudo parece mais ou menos normal. De resto, nos cafés tudo é sempre normal, e especialmente no Café Mably, por causa do gerente, o Sr. Fasquelle, que traz sempre pintada na cara uma expressão acanalhada muito positiva e reconfortante. Daqui a nada é a hora da sua sesta: já tem os olhos vermelhos, mas conserva o andar vivo e decidido. Passeia entre as mesas e aproxima-se, confidencialmente, dos fregueses: «Está tudo à vontade de V. Exa.?» Sorrio de o ver tão vivo: à hora em que o estabelecimento se esvazia, esvazia-se também a cabeça dele. Das duas às quatro o café fica deserto;  então o Sr. Fasquelle dá alguns passos como embrutecido, os criados apagam as luzes, e ele resvala pela inconsciência: este homem, assim que fica sozinho, adormece. Ainda estão na casa uns vinte fregueses, rapazes solteiros, engenheiros modestos, empregados. Almoçam todos rapidamente em pensões de família, a que chamam o seu rancho, e, como têm necessidade dum pouco de luxo, vêm aqui, depois da refeição, tomar um café e jogar ao poker de ases; fazem um certo barulho inconsistente que não me incomoda. Também estes, para existir, precisam de se reunir uns com os outros. Eu então vivo sozinho, absolutamente sozinho. Nunca falo a ninguém; não me dão nada, não dou nada a ninguém. O Autodidata não conta. É verdade que há Françoise, a patroa do Rendez-vous dos Ferroviários. Mas pode dizer-se que falo com ela? Às vezes, depois de jantar, quando vem servir-me uma cerveja, pergunto-lhe: «Esta noite você tem tempo?»  Nunca diz que não, e então sigo-a a um dos quartos grandes do 1.º andar, que ela aluga à hora ou ao dia. Não lhe pago senão o quarto. Ela goza (precisa dum homem por dia, e, além de mim, tem muitos outros) e eu purgo-me assim de  certas melancolias cuja causa conheço perfeitamente. Mas mal trocamos algumas palavras. Para quê? Cada um por si; aos olhos dela, de resto, continuo a ser, antes de mais nada, um freguês do café. Diz-me assim, ao despir o vestido: «Ouça lá, você conhece um aperitivo chamado Bricot? É que houve dois fregueses, esta semana, que pediram. A rapariga não sabia, veio prevenir-me. Eram caixeiros viajantes; foi coisa que beberam em Paris, com certeza. Mas não gosto de comprar sem saber.Se não se importa, não tiro as meias»  Dantes - mesmo muito tempo depois de me ter deixado -, Anny inspirava os meus pensamentos, como se eu quisesse ser-lhe útil. Agora já não penso por ninguém; nem sequer me ocupo a procurar palavras. Mais ou menos depressa, uma corrente flui dentro de mim, mas não retenho nada, deixo andar. A maior parte das vezes, como não se prendem a palavras, os meus pensamentos ficam em estado de nevoeiro. Desenham formas vagas e engraçadas, depois imergem, e esqueço-me logo deles. Estes rapazes fazem a minha admiração: contam, ao beber o seu café, histórias nítidas e verossímeis. Se lhes perguntarem o que fizeram ontem, não se perturbam: põem-nos ao corrente em duas palavras. No lugar deles, eu titubearia. É verdade que há muitíssimo tempo que ninguém se preocupa com o que faço. Quando se vive sozinho, deixa de se saber o que seja narrar: a verossimilhança desaparece ao mesmo tempo que os amigos. E os acontecimentos também: deixamo-los afundarem-se; vêem-se surgir bruscamente pessoas que se põem a falar e se retiram, mergulhamos em histórias sem pés nem cabeça: que execrável testemunha se seria nestes casos! Mas não se perde nada, em compensação, de quanto é inverosímil, de tudo em quanto, nos cafés, não se poderia acreditarPor exemplo, sábado à tarde, eram umas quatro horas, pelas tábuas que servem de passeio nas obras da estação nova, uma mulherzinha vestida de azul-celeste corria às recuadas, a rir, dizendo adeus com um lenço. Ao mesmo tempo, um negro, de impermeável creme, sapatos amarelos e chapéu verde, dobrava a esquina da rua, a assobiar. A mulher, sempre às recuadas, veio esbarrar com ele, mesmo por baixo duma lanterna que está pendurada na paliçada e se acende de noite. Havia portanto ali, ao mesmo tempo, aquela paliçada que cheira tanto a madeira molhada, aquela lanterna, aquela mulherzinha loura nos braços dum negro, sob um céu de fogo. Se estivessem comigo três  ou quatro pessoas, suponho que teríamos reparado no choque, em todas essas cores desmaiadas, no belo casaco azul que parecia um edredão, no impermeável claro, nos vidros vermelhos da lanterna; teríamos rido da estupefação que se desenhava naqueles dois rostos de criança. É raro um homem só ter vontade de rir: aquele conjunto animou-se para mim dum sentido muito forte e até feroz, mas puro. Depois desmanchou-se; ficou só a lanterna, a paliçada e o céu: mas subsistia ainda uma certa beleza.  Uma hora depois, a lanterna estava acesa, levantara-se vento, o céu escurecera; já nada restava do caso. Nada disto é muito original; nunca recusei estas emoções inofensivas; pelo contrário. Para as sentir, basta ficar-se sozinho um momento, só o preciso para nos desembaraçarmos, na altura oportuna, da verosimilhança. Antes conservava-me muito perto das pessoas, à superfície da solidão, bem decidido, em caso de alarme, a refugiar-me no meio delas: no fundo, até aqui, era um amador. Agora há em toda a parte coisas como aquele copo de cerveja, além, em cima da mesa. Quando o vejo, tenho vontade de dizer: «Ferrados! Não brinco mais.» Compreendo perfeitamente que fui longe de mais. Acho que não se pode manter a solidão quietinha no seu lugar. Não quer dizer que eu vá olhar para debaixo da cama antes de me deitar, nem que receie ver a porta do quarto abrir-se bruscamente ao meio da noite. Somente, apesar de tudo, estou inquieto: há talvez meia hora que evito olhar para aquele copo de cerveja. Olho para cima, para baixo, para a esquerda, para a direita. Mas o copo, não quero vê-lo. E sei muito bem que nenhum destes homens que me cercam, solteiros como eu, pode prestar-me o menor auxílio: é tarde demais, já não posso refugiar-me entre eles. Viriam dar-me palmadinhas nas costas, dir-me-iam: «Então, que é que tem este copo de cerveja? É como todos os outros. Biselado, com uma asa, tem gravado um escudozinho com uma pá, e por cima do escudo está escrito spatenbrüu.» Tudo isto eu sei, mas sei também que há outra coisa. Quase nada. Mas já não posso explicar o que vejo. A ninguém. É isso: vou deslizando suavemente para o fundo da água, direto ao medoEstou sozinho no meio destas vozes alegres e razoáveis. Todos estes fulanos passam o seu tempo a explicar-se uns aos outros, a reconhecer com contentamento que são da mesma opinião. Que importância que ligam, meu Deus, ao fato de pensarem todos juntos as mesmas coisas. Basta ver a cara que fazem quando passa pelo meio deles um desses homens com olhos de paigo, que parece que andam a olhar para dentro, e com quem, de forma nenhuma, se pode chegar a acordo. Quando eu tinha oito anos, e brincava no Luxemburgo, havia um que vinha sentar-se numa guarita situada junto ao gradeamento que margina a Rua Auguste-Cornte. Não dizia nada, mas, de vez em quando, estendia uma perna e olhava para o pé com um ar de terror. Esse pé tinha calçada uma bota, mas o outro estava enfiado numa pantufa. O guarda disse ao meu tio que esse homem era um antigo censor. Tinham-no reformado, porque viera ler as notas do período, nas aulas, em traje de acadêmico. Tínhamos um medo horrível dele, porque sentíamos que estava sozinho. Um dia sorriu para Robert, estendendo os braços para ele, de longe: por um pouco, Robert não desmaiou. Não era o ar miserável do tipo que nos metia medo, nem o tumor que tinha no pescoço, e que constantemente esfregava na beira do colarinho: é que sentíamos que ele gerava na cabeça pensamentos de caranguejo ou de lagosta. E a nós aterrorizava-nos que se pudessem alimentar pensamentos de lagosta quanto à guarita, quanto aos nossos arcos, quanto aos tufos de arbustos. É isso então o que me espera? Aborreço-me, pela primeira vez, de estar sozinho. Gostava de falar a alguém do que me está a acontecer, antes que seja tarde, antes de meter medo aos rapazes pequenos. Gostava que Annv. estivesse aqui. É curioso: acabo de escrever dez páginas, e não disse a verdade - não disse, pelo menos, a verdade toda. Se escrevi, por baixo da data, «Nada de novo», foi com a consciência a protestar: com efeito, uma pequena história, que não é vergonhosa nem extraordinária, recusava-se a sair. «nada de novo.» Admiro-me de como se pode mentir com a verdade na mão. Evidentemente, não se produziu nada de novo. se assim quisermos: esta manhã, às oito e um quarto, ao sair do Hotel Printania para ir à Biblioteca, quis apanhar um papel que estava no chão, e não pude. É tudo; nem isso constitui um acontecimento. Sim, mas, para dizer a verdade toda, fiquei profundamente impressionado: pensei que deixara de ser livre. Na Biblioteca procurei libertar-me dessa ideia, e não consegui. Quis fugir-lhe indo para o Café Mably. Esperava que ela se dissipasse com as luzes. Mas a ideia ficou onde estava, em mim, pesada e dolorosa. Foi ela que me ditou as páginas precedentes. Por que é que não falei dela? Deve ter sido por orgulho, e também um pouco por inépcia. Não tenho o costume de contar a mim próprio o que me vai sucedendo; por isso não recordo bem a sucessão dos acontecimentos, não distingo o que é importante. Mas, agora, acabou-se: reli o que tinha escrito no Café Mably, e tive vergonha: não quero segredos, nem estados de alma, nem inefáveis; não sou virgem, nem padre, para brincar à vida interior. Não há grande coisa a dizer: não pude apanhar o papel, mais nada. Gosto   imenso   de   apanhar   do   chão   castanhas, trapos já velhos, principalmente papéis. Sinto prazer em pegar neles, em fechá-los na mão;  pouco falta para os levar à boca, como fazem as crianças. Anny ficava furiosa quando me via levantar por uma ponta bocados de papel pesados e sumptuosos, mas provavelmente sujos de trampa. No Verão ou no começo do Outono encontram-se nos jardins pedaços de jornal que o sol crestou, secos e quebradiços como folhas caídas, tão amarelos que os diriam passados por ácido pieriço.  Outras páginas,  no  Inverno,  aparecem pisadas, trituradas, maculadas, voltam à teiia. Outras novinhas ou, às vezes, lustrosas, muito brancas, palpitantes, alentam no chão como cisnes, mas já a terra por baixo a vai atolando. Torcem-se, arrancam-se da Lama, mas é para se irem estatelar um pouco mais longe, definitivamente. Tudo isso dá prazer apanhar. Às vezes limito-me a talear essas folhas, olhando-as de muito perto, outras vezes rasgo-as para lhes ouvir o largo crepitar, ou então, se- e«tão muito úmidas, deito-lhes fogo, o que tem a sua dificuldade; depois limpo a palma das mãos cheias de lama a uma parede ou ao tronco duma árvore. Ora bem, hoje pusera-me eu a olhar para as bolas fulvas dum oficial de cavalaria que vinha a sair do quartel. Ao segui-las com os olhos, vi um papel que estava caído ao lado duma poça. Julguei que o oficial. com o calcanhar, fosse enterrar o papel na lama, mas não: dum passo só, ultrapassou o papel e a poça. Aproximei-me: era uma página de papel pautado arrancada certamente dum caderno escolar. A chuva tinha-a repassado e retorcido; estava cheia de bolhas e de tumefações, como uma mão queimada. O traço vermelho da  margem desbotara, tornando-se uma umidade cor-de-rosa; em alguns sítios a tinta tinha escorrido. A parte de baixo da página estava escondida sob uma crosta de lama. Abaixei-me; já sentia o prazer de mexer naquela massa tenra e fresca que me rolaria entre os dedos em bolinhas cinzentas .. Não pude. Fiquei curvado um segundo; ainda li: «Ditado - O Mocho Branco»; depois endireitei-me, de braços caídos. Já não sou livre, já não posso fazer o que quero. Os objetos não deviam impressionar-nos o tato, visto que não vivem. Servimo-nos deles, pomo-los no seu lugar, vivemos no meio deles: são úteis, nada mais. E a mim, os objetos tocam-me; é insuportávelTenho medo de entrar em contato com eles, como se fossem animais vivos. Agora percebo; lembro-me melhor do que senti, no outro dia à beira-mar, quando tinha a pedra na mão. Era uma espécie de enjoo adocicado. Que desagradável que era! E a sensação vinha da pedra, tenho a certeza, passava da pedra para as minhas mãos. Sim, é isso. Era exatamente isso: uma espécie de náusea nas mãos. 

Jean-Paul Sartre, A Náusea

Soneto de Contrição



Eu te amo, Maria, eu te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto.

Como a criança que vagueia o canto
Ante o mistério da amplidão suspensa
Meu coração é um vago de acalanto
Berçando versos de saudade imensa.

Não é maior o coração que a alma
Nem melhor a presença que a saudade
Só te amar é divino, e sentir calma...

E é uma calma tão feita de humildade
Que tão mais te soubesse pertencida
Menos seria eterno em tua vida.


Vinicius de Moraes, in 'Antologia Poética'

Suspiro



Minha alma demanda, ó irmã tão serena,
Tua fronte onde sonha um outono sardento,
E o errante céu do teu olhar angélico,
Tal como a suspirar, num jardim melancólico,
Fiel, um jacto branco sobe para o Azul!
— Para o Azul de Outubro pálido, terno e puro,
Nos lagos a mirar o langor infinito:
E deixa à flor da água onde a fulva agonia
Das folhas voga ao vento abrindo um frio sulco
O sol quente a arrastar seu longo raio ruivo.


Stéphane Mallarmé

Zina Vasileva


A quem deixar o meu guarda-roupa oculto
o guarda-roupa fantasma
de todos os vestidos
que tive e que me abandonaram
os vestidos
que nunca tive e que vesti em segredo

O vestido que veio demasiado cedo
e que nunca me caiu bem

O vestido
que chegou já tarde
para ir à festa
quando eu já tinha adormecido

O vestido de criança
tão igual ao vestido
da primeira boneca

O da menina com o corpete já estreito
que apertava os seios doendo-lhe em casulo

O da adolescente que pressentia o homem
ladrão de túnicas na sesta sufocante

O vestido esquecido
da mulher que sob a sombra
do homem eclipse ocultou-se uma noite
e amanheceu como a lua cheia
surpreendida pela luz na metade do céu

O vestido de guerra rasgado
como bandeira
da mãe partida em dois
para sentir-se inteira

O vestido de luto que não levei para os meus
mortos que ainda vivem

Os vestidos que alguém me emprestou para sonhar

Quando chegar a morte também será um vestido
que não verei porque estarei a dormir.


Josefina Plá

quarta-feira, 21 de março de 2012

O conhecimento de si próprio

Não passou


Daniel Gerhartz 


Passou?
Minúsculas eternidades
deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente cavernosa.

Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.
A mão - a tua mão, nossas mãos-
rugosas, têm o antigo calor
de quando éramos vivos. Éramos?

Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estarmos sós.
Nada, que eu sinta, passa realmente.
É tudo ilusão de ter passado.


Carlos Drummond de Andrade

A despedida do amor



Existe duas dores de amor. A primeira é quando a relação termina e a gente, seguindo amando, tem que se acostumar com a ausência do outro, com a sensação de rejeição e com a falta de perspectiva, já que ainda estamos tão envolvidos que não conseguimos ver luz no fim do túnel.
A segunda dor é quando começamos a vislumbrar a luz no fim do túnel.
Você deve achar que eu bebi. Se a luz está sendo vista, adeus dor, não seria assim? Mais ou menos. Há, como falei, duas dores. A mais dilacerante é a dor física da falta de beijos e abraços, a dor de virar desimportante para o ser amado.
Mas quando esta dor passa, começamos um outro ritual de despedida: a dor de abandonar o amor que sentíamos. A dor de esvaziar o coração, de remover a saudade, de ficar livre, sem sentimento especial por ninguém. Dói também.
Na verdade, ficamos apegados ao amor tanto quanto à pessoa que o gerou.
Muitas pessoas reclamam por não conseguir se desprender de alguém. É que, sem se darem conta, não querem se desprender. Aquele amor, mesmo não retribuído, tornou-se um souvenir de uma época bonita que foi vivida, passou a ser um bem de valor inestimável, é uma sensação com a qual a gente se apega. Faz parte de nós. Queremos, logicamente, voltar a ser alegres e disponíveis, mas para isso é preciso abrir mão de algo que nos foi caro por muito tempo, que de certa maneira entranhou-se na gente e que só com muito esforço é possível alforriar.
É uma dor mais amena, quase imperceptível. Talvez, por isso, costuma durar mais do que a dor-de-cotovelo propriamente dita. É uma dor que nos confunde. Parece ser aquela mesma dor primeira, mas já é outra.
A pessoa que nos deixou já não nos interessa mais, mas interessa o amor que sentíamos por ela, aquele amor que nos justificava como seres humanos, que nos colocava dentro das estatísticas: eu amo, logo existo.
Despedir-se de um amor é despedir-se de si mesmo. É o arremate de uma história que terminou, externamente, sem nossa concordância, mas que precisa também sair de dentro da gente.

Martha Medeiros

Liberdade

.


O poema é
A liberdade

Um poema não se programa
Porém a disciplina
— Sílaba por sílaba —
O acompanha

Sílaba por sílaba
O poema emerge
— Como se os deuses o dessem
O fazemos


Sophia de Mello Breyner Andresen
in "O Nome das Coisas"

Instante





Que faria eu sem este mundo sem rosto sem perguntas
Onde o ser só dura um instante e onde cada instante
Transborda para o vazio o esquecimento de ter existido
Sem esta onda onde por fim
Corpo e sombra juntos se anulam
Que faria eu sem este silêncio poço fundo de murmúrios
Curvando-se a pedir socorro pedir amor
Sem este céu posto de pé
Sobre o pó do seu lastro

Que faria eu faria como ontem e como hoje
Olhando para a minha janela vendo se não estou sozinho
A errar e a mudar distante de toda a vida
preso num espaço incontrolável
Sem voz no meio das vozes
Que se fecham comigo.


Samuel Beckett

segunda-feira, 19 de março de 2012


imagem: Vahid Naziri


One went to the door of the Beloved and
knocked. A voice asked, 'Who is there?'
He answered, 'It is I.'
The voice said, 'There is no room for Me and Thee.'
The door was shut.

After a year of solitude and deprivation he returned and knocked.
A voice from within asked, 'Who is there?'
The man said, 'It is Thee.'
The door was opened for him.


Jelaluddin Rumi

Detox

Rocco Caputo



Enrolou os ferimentos em gaze. Feridas cicatrizam com o tempo. Ainda que restem entalhes. Memórias desenhadas nos ossos, adornos.
Tirou fotografias como registros. Meses após o trauma. Sem sangue nas conjuntivas.
Deixou para trás a câmera. Travesseiro, lençol branco, a água morna do banho. Inverno, lembrança noturna.
A transformação do rosto. Quando retirou as ataduras, as suturas.
No dia da partida, árvores. De perfil no trem, a luz sobre os cabelos, castanhos.


Virna Teixeira


Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais
Do fundo do mar.
Eu nasci há um instante…


Eugénio de Andrade

Cantos Nuevos

Annick Bouvattier


Dice la tarde: "¡Tengo sed de sombra!"
Dice la luna: "¡Yo, sed de luceros!"
La fuente cristalina pide labios
y suspira el viento.

Yo tengo sed de aromas y de risas,
sed de cantares nuevos
sin lunas y sin lirios,
y sin amores muertos.

Un cantar de mañana que estremezca
a los remansos quietos
del porvenir. Y llene de esperanza
sus ondas y sus cienos.

Un cantar luminoso y reposado
pleno de pensamiento,
virginal de tristeza y de angustias
y virginal de ensueños.

Cantar sin carne lírica que llene
de risas el silencio
(una bandada de palomas ciegas
lanzadas al misterio).

Cantar que vaya al alma de las cosas
y al alma de los vientos
y que descanse al fin en la alegría
del corazón eterno.


Federico García Lorca

sábado, 17 de março de 2012



Que importa se a distância estende entre nós léguas e léguas
Que importa se existe entre nós muitas montanhas?
O mesmo céu nos cobre
E a mesma terra liga nossos pés.

No céu e na terra é tua carne que palpita
Em tudo eu sinto o teu olhar se desdobrando
Na carícia violenta do teu beijo.
Que importa a distância e que importa a montanha
se tu és a extensão da carne
Sempre presente?


Vinícius de Moraes

À Cassandra

Mignone, allons voir si la rose
Qui ce matin avait déclose
Sa robe pourpre au soleil,
A point perdu cette vesprée
Les plis de sa robe pourprée
Et son teint au vôtre pareil

Las! voyez comme en peu d'espace
Mignone, elle a dessus la place
Las! las! ses beautés laissé choir!
Oh vraiment marâtre Nature,
Puisqu'une telle fleur ne dure
Que du matin jusques au soir!

Done, si vous me croyez, mignone,
Tandis que votre âge fleuronne
En sa plus verte nouveauté,
Cueillez, cueillez votre jeunesse:
Comme à cette fleur la veillesse
Fera ternir votre beauté

Pierre de Ronsard 

***

Vejamos, meu bem, se a tal rosa
Que de manhã abriu, formosa,
Ao sol o vestido vermelho,
já perdeu à tarde o esplendor
As pregas de encarnada cor,
E o tom ao vosso tão parelho.

Ai! Vede como em pouco tempo,
Meu bem, veio-lhe o tombamento,
Ai! E o viço deixou morrer!
É mesmo madrasta a Natura,
Pois semelhante flor só dura
Da manhã ao entardecer!

Assim, meu bem, eis a verdade,
Enquanto estais na flor da idade,
Nos primeiríssimos verdores,
Colhei, colhei a juventude:
Pois como à flor a senectude
Há-de ofuscar vossos primores.


tradução Renata Cordeiro

O mergulhador

 Karina Llergo Salto.

"E il naufragar m'è dolce in questo mare". Leopardi


Como, dentro do mar, libérrimos, os polvos
No líquido luar tateiam a coisa a vir
Assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos
Passeiam no teu corpo a te buscar-te a ti.

És a princípio doce plasma submarino
Flutuando ao sabor de súbitas correntes
Frias e quentes, substância estranha e íntima
De teor irreal e tato transparente.

Depois teu seio é a infância, duna mansa
Cheia de alísios, marco espectral do istmo
Onde, a nudez vestida só de lua branca
Eu ia mergulhar minha face já triste.

Nele soterro a mão como a cravei criança
Noutro seio de que me lembro, também pleno...
Mas não sei... o ímpeto deste é doido e espanta
O outro me dava vida, este me mete medo.

Toco uma a uma as doces glândulas em feixes
Com a sensação que tinha ao mergulhar os dedos
Na massa cintilante e convulsa de peixes
Retiradas ao mar nas grandes redes pensas.

E ponho-me a cismar... - mulher, como te expandes!
Que imensa és tu! maior que o mar, maior que a infância!
De coordenadas tais e horizontes tão grandes
Que assim imersa em amor és uma Atlântida!

Vem-me a vontade de matar em ti toda a poesia
Tenho-te em garra; olhas-me apenas; e ouço
No tato acelerar-se-me o sangue, na arritmia
Que faz meu corpo vil querer teu corpo moço.

E te amo, e te amo, e te amo, e te amo
Como o bicho feroz ama, a morder, a fêmea
Como o mar ao penhasco onde se atira insano
E onde a bramir se aplaca e a que retorna sempre.

Tenho-te e dou-me a ti válido e indissolúvel
Buscando a cada vez, entre tudo o que enerva
O imo do teu ser, o vórtice absoluto
Onde possa colher a grande flor da treva.

Amo-te os longos pés, ainda infantis e lentos
Na tua criação; amo-te as hastes tenras
Que sobem em suaves espirais adolescentes
E infinitas, de toque exato e frêmito.

Amo-te os braços juvenis que abraçam
Confiantes meu criminoso desvario
E as desveladas mãos, as mãos multiplicantes
Que em cardume acompanham o meu nadar sombrio.

Amo-te o colo pleno, onda de pluma e âmbar
Onda lenta e sozinha onde se exaure o mar
E onde é bom mergulhar até romper-me o sangue
E me afogar de amor e chorar e chorar.

Amo-te os grandes olhos sobre-humanos
Nos quais, mergulhador, sondo a escura voragem
Na ânsia de descobrir, nos mais fundos arcanos
Sob o oceano, oceanos; e além, a minha imagem.

Por isso - isso e ainda mais que a poesia não ousa
Quando depois de muito mar, de muito amor
Emergindo de ti, ah, que silêncio pousa...
Ah, que tristeza cai sobre o mergulhador!


Vinicius de Moraes,  "O Mergulhador"
imagem: tony duran

A formosura do teu rosto obriga-me
e não ouso em tua presença
ou à tua simples lembrança
recusar-me ao esmero de permanecer contemplável.
Quisera olhar fixamente a tua cara,
como fazem comigo soldados e choferes de ônibus.
Mas não tenho coragem,
olho só tua mão,
a unha polida olho, olho, olho e é quanto basta
pra alimentar fogo, mel e veneno deste amor incansável
que tudo rói e banha e torna apetecível:
cadeiras, desembocaduras de esgotos,
idéia de morte, gripe, vestido, sapatos,
aquela tarde de sábado,
esta que morre agora antes da mesa pacífica:
ovos cozidos, tomates,
fome dos ângulos duros de tua cara de estátua.
Recolho tamancos, flauta, molho de flores, resinas,
rispidez de teu lábio que suporto com dor,
e mais retábulos, faca, tudo serve e é estilete,
lâmina encostada em teu peito. Fala.
Fala sem orgulho ou medo
que à força de pensar em mim sonhou comigo
e passou o dia esquisito,
o coração em sobressaltos à campainha da porta,
disposto à benignidade, ao ridículo, à doçura. Fala.
Nem é preciso que amor seja a palavra.
"Penso em você" – me diz e estancarei os féretros,
tão grande é a minha paixão.


Adélia Prado