terça-feira, 30 de dezembro de 2014




"Tudo flui", dizia Heráclito. Tudo está em movimento, e nada dura para sempre. Por esta razão, “não podemos "entrar duas vezes no mesmo rio”. Isto porque quando entro pela segunda vez no rio, tanto eu como o rio estamos mudados.


Jostein Gaarder, O mundo de Sofia

“Não quero que fique sem uma saudação minha pelo Natal, quando, no meio da festa, carregar a sua solidão mais dificilmente do que nunca. Mas se verificar, nesse momento, a que a sua solidão é grande, alegre-se com isto. Que seria, com efeito, uma solidão (faça esta pergunta a si mesmo) que não tivesse grandeza? Há uma solidão só: é grande e difícil de se carregar. Quase todos, em certas horas, gostariam de trocá-la por uma comunhão qualquer , por mais banal e barata que fosse; por uma aparência de acordo insignificante com quem quer que seja; com a pessoa mais indigna. Mas talvez sejam estas, justamente, as horas em que ela cresce, pois o seu crescimento é doloroso como o de um menino e triste como o começo das primaveras. Mas tudo isto não o deve desorientar. O que se torna preciso, é no entanto isto: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas – eis o que se deve saber alcançar. Estar sozinho como se estava quando criança,enquanto os adultos iam e vinham, ligados as coisas que pareciam importantes e grandes porque esses adultos tinham um ar tão ocupado e porque nada se entendia de suas ações.”

Rainer Maria Rilke, in Cartas a um jovem poeta

domingo, 14 de dezembro de 2014

O Homem — um ser pensante?

fabian perez

Quando consideramos como é vasto e próximo de nós o problema da existência, essa existência ambígua, perturbada, fugidia, semelhante a um sonho — um problema tão grande e tão próximo, que encobre e sobrepõe todos os outros problemas e finalidades logo que tomamos consciência dele — e quando consideramos que todos os homens, com exceção de alguns poucos, não são claramente conscientes desse problema, nem parecem perceber sua existência, mas se preocupam antes com qualquer outro assunto e vivem apenas no dia de hoje sem levar em conta a duração não muito longa de seu futuro pessoal, seja renegando expressamente aquele problema, ou contentando-se em relação a ele com algum sistema da metafísica popular; digo, quando consideramos tudo isso, podemos chegar à conclusão de que o homem só pode ser chamado de ser pensante num sentido muito amplo. Nesse caso, não nos surpreenderá nenhum gesto de irreflexão ou tolice, pois saberemos que o horizonte intelectual do homem normal pode até ultrapassar o do animal — cuja existência, sem nenhuma consciência do futuro e do passado, é inteiramente presente —, mas não está tão distante deste quanto se supõe. Isso explica porque os pensamentos da maioria dos homens, quando conversam, parecem cortados tão rentes quanto um gramado, de modo que não é possível encontrar nenhum fio mais longo.

Se esse mundo fosse habitado por verdadeiros seres pensantes, seria impossível haver essa tolerância ilimitada em relação aos ruídos de toda espécie, inclusive os mais horríveis e despropositados. De fato, se a natureza tivesse destinado o homem a pensar, ela não lhe daria ouvidos, ou pelo menos os proveria de tampões herméticos, como é o caso dos morcegos, que invejo por isso. Mas, na verdade, o homem é um pobre animal assim como os outros, cujas forças são apenas suficientes para conservar sua existência.

Por isso precisa de ouvidos sempre abertos que lhe anunciem a aproximação do perseguidor seja de noite ou de dia.


Arthur Schopenhauer, in A Arte de Escrever.

Fire and Ice




Some say the world will end in fire,
Some say in ice.
From what I've tasted of desire
I hold with those who favor fire.

 But if it had to perish twice,
I think I know enough of hate
To say that for destruction ice
Is also great
And would suffice.


Robert Frost
Santiago Carbonell


você engole borboletas
eu tenho o sol na barriga
você sempre anda de óculos
eu leio coisas antigas

você vara a noite
eu desenho cataventos
você gosta de ficção
eu tenho outros inventos

você anda desligado
e eu busco perspectivas
você me conta seus sonhos
e me ri e me cativa

eu tenho medo da noite
você ama a solidão
o meu amor se reflete
nas pupilas dos olhos de um cão

você teoriza a matéria
e eu adoro hidrantes
você quer a liberdade
e eu só vivo o instante

a gente faz uma viagem
e vê estrelas cadentes
e eu sonho um mar onde nado
e me afundo contra a corrente

você geme e se revolta
e eu penso no seu beijo
e enquanto você conversa
me dói no corpo o desejo

me arde no corpo o desejo
eu me espreguiço me espicho
e me chego e te provoco
meio anjo meio bicho

você me conta um segredo
eu te mostro um encanto
enquanto você toca flauta
desafinada eu canto

você absorve a paisagem
eu procuro a maravilha
você deixa alguns vestígios
e eu vou seguindo a trilha

você fala em liberdade
e eu me prendo no teu traço
você é abstrato divaga
eu te olho e te embaraço

ando na rua devagar
você corre na avenida
você tem melancolia
eu tenho medo da vida

você fala ao telefone
cercado dos seus amigos
eu passo os dias muito só
e só entendo depois que digo

de repente vem o encontro
sem que a gente entenda o nexo
eu te vejo e me compreendo
e me vejo em teu reflexo

eu te transmito fluidos
de uma forte ligação
e recebo uma corrente
quando pego na tua mão

você tem um magnetismo
eu sou dotado à magia
nossas auras se atraem
por uma questão de energia

você cospe margaridas
tem o mundo nas entranhas
eu fico horas olhando
o orvalho na teia de aranha

e a gente se precisa
como a um aditivo
numa coisa estranha a nós
sem razão e sem motivo

são coisas transcendentais
é inútil que eu lhe diga
você engole borboletas
eu tenho o sol na barriga


Bruna Lombardi, in ""No Ritmo dessa Festa"


o trabalho aprisiona
o dinheiro aprisiona
os relacionamentos aprisionam
a propriedade aprisiona
a "justiça" aprisiona
as religiões aprisionam...
Que pelo menos
O amor liberte!

 Wernner Lucas, Maquinações Interiores

Poética


Se o poema não se diz,
cada verso se desfaz.
A ideia é a matriz
e todo o resto é fugaz.
Mais o conciso é loquaz
se falta ao verbo raiz.
O prolixo se desdiz
se tanto verbo é falaz.
Ao poeta, a diretriz;
ao poema, tanto faz.

Antoniel Campos

O medo: o maior gigante da alma

 William Whitaker.

Para quem tem medo, e a nada se atreve, tudo é ousado e perigoso. É o medo que esteriliza nossos abraços e cancela nossos afetos; que proíbe nossos beijos e nos coloca sempre do lado de cá do muro. Esse medo que se enraíza no coração do homem impede-o de ver o mundo que se descortina para além do muro, como se o novo fosse sempre uma cilada, e o desconhecido tivesse sempre uma armadilha a ameaçar nossa ilusão de segurança e certeza.
O medo, já dizia Mira Y Lopes, é o grande gigante da alma, é a mais forte e mais atávica das nossas emoções. Somos educados para o medo, para o não-ousar e, no entanto, os grandes saltos que demos, no tempo e no espaço, na ciência e na arte, na vida e no amor, foram transgressões, e somente a coragem lúdica pode trazer o novo, e a paisagem vasta que se descortina além dos muros que erguemos dentro e fora de nós mesmos.
E se Cristo não tivesse ousado saber-se o Messias Prometido? E se Galileu Galilei tivesse se acovardado, diante das evidências que hoje aceitamos naturalmente? E se Freud tivesse se acovardado diante das profundezas do inconsciente? E se Picasso não tivesse se atrevido a distorcer as formas e a olhar como quem tivesse mil olhos? “A mente apavora o que não é mesmo velho”, canta o poeta, expressando o choque do novo, o estranhamento do desconhecido.
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.


 Fernando Teixeira de Andrade

"Aqueles que se juntam à noite e se entrelaçam num balançar de volúpia executam obra grave, reunindo profundezas, doçuras, e forças para a canção de algum poeta vindouro que há de surgir para dizer indizíveis prazeres."


Rainer Maria Rilke, Cartas a um Jovem Poeta
 Willem Haenraets

Não dês o coração nunca por inteiro, porque o amor
se for certo não interessa às mulheres,
nem elas sonham que o mesmo se vai
de beijo em beijo;
pois tudo o que é do amor
é deleite, amável, fugaz e fantástico.
Não dês o coração nunca sem reserva,
já que elas jogaram o delas,
digam seus lábios o que disserem.
E quem saberia do jogo o bastante
estando surdo e mudo e cego de amor?
Quem isto escreve sabe bem o que custa,
posto que deu o coração por inteiro
e perdeu.

William Butler Yeats

Be Near Me When My Light Is Low





Be Near Me When My Light Is Low
In Memoriam A. H. H. - Section 50
by Alfred Lord Tennyson (1809-1892)

Be near me when my light is low,
When the blood creeps, and the nerves prick
And tingle; and the heart is sick,
And all the wheels of Being slow.

Be near me when the sensuous frame
Is rack'd with pangs that conquer trust;
And Time, a maniac scattering dust,
And Life, a Fury slinging flame.

Be near me when my faith is dry,
And men the flies of latter spring,
That lay their eggs, and sting and sing
And weave their petty cells and die.

Be near me when I fade away,
To point the term of human strife,
And on the low dark verge of life
The twilight of eternal day.

Alfred Lord Tennyson
 In Memoriam A. H. H. - Poem 50 - From the 1984 series Six Centuries Of Verse
Fabiano Millani

"A justiça, cega para um dos dois lados, já não é justiça. Cumpre que enxergue por igual à direita e à esquerda."

"Saudade da justiça imparcial, exata, precisa. Que estava ao lado da direita, da esquerda, centro ou fundos. Porque o que faz a justiça é o “ser justo”. Tão simples e tão banal.Tão puro. Saudade da justiça pura, imaculada. Aquela que não olha a quem nem o rabo de ninguém. A que não olha o bolso também. Que tanto faz quem dá mais, pode mais, fala mais. Saudade da justiça capaz. (...)

"A injustiça, por ínfima que seja a criatura vitimada, revolta-me, transmuda-me, incendeia-me, roubando-me a tranquilidade do coração e a estima pela vida."

"[...] se o juiz é intérprete da lei, porque não há julgar, sem interpretar, intérprete da lei é também o legislador, porque sem interpretar não há legislar. Toda lei se destina a vigorar o direito existente, a modificá-lo, a revogá-lo, ou a substituí-lo. Toda lei, pois, vem apoiar, alterar, ab-rogar, ou transformar outras leis."

"A publicidade é o princípio, que preserva a justiça de corromper-se".


Rui Barbosa


Você não quer ver nada além do seu mundinho
E eu prefiro escrever meu próprio caminho
Fique com os seus bonsais, seus haicais
Sua paz, suas flores, seu jardim de inverno
Se isso é céu
Eu prefiro meu inferno
Porque você não quer ver nada além
Que ninguém ensina nada a ninguém

 Zeca Baleiro, Nada além

O Prazer é Abrir as Mãos


O prazer é abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que se estava encarniçadamente prendendo. E de súbito o sobressalto: ah, abri as mãos e o coração, e não estou perdendo nada! E o susto: acorde, pois há o perigo do coração estar livre!



Até que se percebe que nesse espraiar-se está o prazer muito perigoso de ser. Mas vem uma segurança estranha: sempre ter-se-á o que gastar. Não ter pois avareza com esse vazio-pleno: gastá-lo.

Clarice Lispector, in Crónicas no 'Jornal do Brasil (1972)'