quarta-feira, 29 de novembro de 2017

O beijo

Jon Paul


Ainda toda quente da roupa tirada
Fechas os olhos e moves-te
Como se move um canto que nasce
vagamente mas em toda a parte
Perfumada e saborosa
Ultrapassas sem te perder
As fronteiras do teu corpo
Passaste por cima do tempo
Eis-te uma nova mulher
Revelada até ao infinito.

Paul Éluard

Rut, Tomasz - Ecstasy


Ataquei a tua boca. Como um animal
uivando a fome ancestral dos primeiros predadores.
Devorei-te os lábios, o pescoço, a língua, deslizei pelo
interior da tua boca, e tentei penetrar pela tua garganta
até ao peito para apoderar-me, deslumbrado e faminto,
do teu coração. Beijei como quem morde. E mordi
como quem devora e se sacia de carne fresca,
os músculos, os nervos, os centros do desejo. Bebi
dos poços mais profundos, das nascentes da tua pele,
até me escorrerem pela face os fios molhados da felicidade,
até sentir o gosto que só têm o êxtase e a alegria.
E de súbito todo o teu corpo era um festim.
Os teus seios, as tuas coxas, as tuas nádegas
longamente gritaram na minha boca, entregando-se
como presas resignadas ao sacrifício que
o meu sangue enfurecido cantou, e cantou, e cantou.
Depois, com a mais azul serenidade,
lambi-te os golpes e as feridas. Beijei o teu corpo
espantado por ver descer a madrugada suplicante,
num ritual que o fez regressar à vida.
E reparei que as marcas, os golpes, as feridas,
estavam também doendo em mim. Que eu fora
igualmente dominado, mordido, que havia sangrado até
no interior da voz, no pensamento, no desejo infinito
de confundir no teu corpo os limites do meu corpo.
E voltei a uivar. Cantei na noite o obscuro domínio
de um animal que outro animal possui e é também
possuído numa luta, numa vitória que é de ambos, onde
se misturam o sal, a saliva, o sangue, a sombra,
para que assim se penetrem, se amem, se confundam.
Demarquei no teu corpo o meu território. Agora,
defendê-lo-ei até aos meus limites.
Com a própria vida.


Joaquim Pessoa 
in ANO COMUM - 2ª edição

Karen Hollingsworth (setembro)

Quero dormir na água das palavras
que amam o silêncio
e a lentidão da luz
que é o fulgor de uma evidência indecifrável

Quero ser a concha do ingênuo sossego
de uma flor branca
como o monótono murmúrio
de uma respiração solar

Quero ser o ouvido de veludo
de um inseto azul
e quero beber a linfa do olvido
numa boca de argila
para sentir a monotonia ardente
da garganta da terra


António Ramos Rosa, Numa Folha, Leve e Livre (2013)

Tony_Chow

Posso beber o amor pelo copo dos teus
lábios?» O disco chega ao fim; um ruído de rua
entra pela janela; não sei se ainda é dia,
ou se a noite começa. Mas o mundo
não interfere no equilíbrio frágil
das nossas vidas. Este copo não se esvazia; e
os teus olhos levam-me à fronteira
do sonho, para que a passe, e entre
contigo num país de nuvem. O meu passaporte
são as tuas mãos; o mapa que nos guia,
a respiração incerta do desejo. «Por
isso me perco», dizes. «Por isso te
encontro», respondo. E a noite que
nos separa é o dia que nos reúne.


Nuno Júdice

Felicidade

Andrei Markin


Pela flor pelo vento pelo fogo
Pela estrela da noite tão límpida e serena
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia – por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci a tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta

 Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Livro sexto", 1962

Soneto


Albert Linch


Senhora, eu trajo o luto do passado,
Este luto sem fim que é o meu Calvário
E anseio e choro, delirante e vário,
Sonâmbulo da dor angustiado.

Quantas venturas que me acalentaram!
Mau peito, túm’lo do prazer finado,
Foi outrora do riso abençoado,
O berço onde as venturas se embalaram.

Mas não queiras saber nunca, risonha,
O mistério d’um peito que estertora
E o segredo d’um’alma que não sonha!

Não, não busques saber por que, Senhora,
É minha sina perenal, tristonha
- Cantar o Ocaso quando surge a Aurora.


Augusto dos Anjos
Eu e outras poesias, 1920

Os homens ocos




"A penny for the Old Guy"
(Um pêni para o Velho Guy)

Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada

Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;

Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam - se o fazem - não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.

II

Os olhos que temo encontrar em sonhos
No reino de sonho da morte
Estes não aparecem:
Lá, os olhos são como a lâmina
Do sol nos ossos de uma coluna
Lá, uma árvore brande os ramos
E as vozes estão no frêmito
Do vento que está cantando
Mais distantes e solenes
Que uma estrela agonizante.

Que eu demais não me aproxime
Do reino de sonho da morte
Que eu possa trajar ainda
Esses tácitos disfarces
Pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas
E comportar-me num campo
Como o vento se comporta
Nem mais um passo

- Não este encontro derradeiro
No reino crepuscular

III

Esta é a terra morta
Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
Estão eretas, aqui recebem elas
A súplica da mão de um morto
Sob o lampejo de uma estrela agonizante.

E nisto consiste
O outro reino da morte:
Despertando sozinhos
À hora em que estamos
Trêmulos de ternura
Os lábios que beijariam
Rezam as pedras quebradas.

IV

Os olhos não estão aqui
Aqui os olhos não brilham
Neste vale de estrelas tíbias
Neste vale desvalido
Esta mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos

Neste último sítio de encontros
Juntos tateamos
Todos à fala esquivos
Reunidos na praia do túrgido rio

Sem nada ver, a não ser
Que os olhos reapareçam
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
Do reino em sombras da morte
A única esperança
De homens vazios.

V

Aqui rondamos a figueira-brava
Figueira-brava figueira-brava
Aqui rondamos a figueira-brava
Às cinco em ponto da madrugada

Entre a ideia
E a realidade
Entre o movimento
E a ação
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino

Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a reação
Tomba a Sombra
A vida é muito longa

Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino
Porque Teu é
A vida é
Porque Teu é o

Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.

T.S.Eliot
tradução: Ivan Junqueira


Amém


arthur bragisnski

Hoje acabou-se-me a palavra,
e nenhuma lágrima vem.
Ai, se a vida se me acabara
também!

A profusão do mundo, imensa,
tem tudo, tudo – e nada tem.
Onde repousar a cabeça?
No além?

Fala-se com os homens, com os santos,
consigo, com Deus. . . E ninguém 
entende o que se está contando
e a quem. . .

Mas terra e sol, luas e estrelas
giram de tal maneira bem
que a alma desanima de queixas.
Amém. 


Cecília Meireles
In: Vaga Música

Estabelecei a crítica, mas a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade; estabelecei a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada - será esse o meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos; condenai o ódio, a camaradagem e a indiferença — essas três chagas da crítica de hoje; ponde, em lugar deles, a sinceridade, a solicitude e a justiça — e só assim que teremos uma grande literatura.

Machado de Assis, em "Diário do Rio de Janeiro" 8 out.1865.

Água noturna

zhao chun

A noite de olhos de cavalo que tremem na noite
a noite de olhos de água no campo adormecido,
está nos teus olhos de cavalo que treme,
está nos teus olhos de água secreta.

Olhos de água de sombra,
olhos de água de fonte,
olhos de água de sonho.

O silêncio e a solidão,
como dois animais pequenos que a lua guia,
bebem nesses olhos,
bebem nessas águas.

Se abres os olhos,
abre-se a noite de portas de musgo,
abre-se o reino secreto da água
que emana do centro da noite.

E se os fechas,
um rio, uma corrente doce e silenciosa,
inunda-te por dentro, avança, torna-te obscuro:
a noite molha margens na tua alma.


Octavio Paz

Celebração do instante

Daniel Del Orfano

hoje é sempre melhor
do que ontem,
porque hoje é hoje,
esta coisa mágica,
única, surpreendente,
que se acaba de repente.

hoje é melhor
do que amanhã,
porque hoje é hoje
e estamos vivos
e plenos de tanto,
até não se sabe
como e quando.

hoje é sempre
melhor que sempre,
porque o hoje foge,
amanhã é um mistério
e ontem é só memória,
história, já era.

hoje é sempre
o maior presente,
porque a vida é agora,
esta hora de som
e luz e festa,
e este instante é tudo
o que nos resta.

Cairo Trindade