quinta-feira, 30 de abril de 2009

Sonhos da menina

Mark Arian


A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?

Sonho
risonho:

O vento sozinho
no seu carrinho.

De que tamanho
seria o rebanho?

A vizinha
apanha
a sombrinha de teia de aranha...

Na lua há um ninho
de passarinho.

A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?


Cecília Meireles

Eles


O que eles deixaram foram estes três postulados: importante é a luz, mesmo quando consome; a cinza é mais digna que a matéria intacta e a salvação pertence apenas àqueles que aceitarem a loucura escorrendo em suas veias. Nem foram notados a princípio, por isso ninguém sabe dizer a data exata de sua chegada. É provável que desde o começo tivessem se estabelecido no bosque, afinal você sabe que por aqui não há outro lugar onde pessoas como eles pudessem passar assim despercebidas como eles passaram, a princípio. Aqui todos se conhecem, tudo é pequeno e sem mistério, ou era, antes, há apenas esse bosque sobre a colina, e talvez por medo de penetrarem no impenetrável de um mistério qualquer, ou mesmo por preguiça de se movimentarem de seus lugares, os moradores daqui nunca vão ao bosque, ou nunca iam, não sei mais. Apenas alguns namorados, mas muito raramente, porque ao voltarem todos sabiam que tinham ido e as mulheres daqui, as mulheres mais velhas, não perdoam jamais. Por isso, às vezes, eu penso que talvez eles estivessem aqui desde sempre, desde um começo que não se sabe quando começou. E ninguém saberia jamais se aquele menino não tivesse ido lá.

Aqui as pessoas dormiam muito, você sabe, não há sequer lenhadores porque existe o mar do outro lado, e é sempre mais fácil pescar do que derrubar árvores. Naquele tempo, as pessoas dormiam, pescavam, à noite colocavam suas cadeiras na frente das casas e ficavam olhando o céu. Às vezes apareciam luzes estranhas no céu, luzes estranhas fazendo estranhos percursos, mas nem isso os interessava, antes. Eu? Eu não tenho importância, não procure saber nada sobre mim porque ninguém saberá dizer, nem eu próprio, estou apenas contando esta história que não é minha e a que assisti como todos os outros habitantes da vila assistiram, talvez com um pouco mais de lucidez, eu, mas de qualquer forma, embora a bomba esteja nas minhas mãos, estamos todos no mesmo barco, no mesmo beco.

Se você quer ouvir, ouça. Mas não pergunte nada além do que eu direi, porque eu não saberia dizer, ou talvez não devesse, ou talvez mesmo eu chegue a dizer — por que não? Se você não quiser ou achar que estou mentindo ou que a história é desinteressante, diga logo, você não precisa ouvir, ninguém precisa ouvir: eu só queria que vocês soubessem que eles estão aqui, no meio de vocês, ainda que vocês não queiram ou não saibam.

Mas como eu ia dizendo, se aquele menino não tivesse ido lá ninguém saberia jamais, porque não creio que um outro menino ou qualquer outra pessoa se atrevesse a ir, inventavam coisas, cobras, plantas, animais estranhos, medos — e não se atreviam. Aquele menino, não. Aquele menino trazia na testa a marca inconfundível: pertencia àquela espécie de gente que mergulha nas coisas às vezes sem saber por que, não sei se na esperança de decifrá-las ou se apenas pelo prazer de mergulhar. Essas são as escolhidas — as que vão ao fundo, ainda que fiquem por lá. Como aquele menino. Ele não voltou. Quero dizer, ele voltou, mas já não era o mesmo, e quando se foi em definitivo não era mais o mesmo menino que tinha ido ao bosque um dia.

Não sei se você sabe que muitas pessoas trazem a mesma marca daquele menino. Algumas, a maioria delas, passam a vida inteira sem saber disso, outras descobrem cedo, outras tarde, algumas tarde demais, algumas nunca. Sei que se o menino não tivesse ido lá, não teria descoberto, seria no máximo um desses pescadores que olham o mar com olhar profundo. Você deve ter notado que há os que olham o mar com olhar profundo e os que olham o mar com ar torvo. Não só o mar. Os que trazem a marca, mesmo que não saibam dela, esses olham as coisas com olhar de sangue. Os que sabem da marca ganham uma luz estranha e uma lentidão e um jeito de quem sabe todas as coisas. Os outros todos olham todas as coisas com um olhar torvo. Os outros são escuros, estúpidos, pobres. Os outros não sabem. Quando aquele menino foi lá pela primeira vez, tinha apenas um olhar de sangue — mas quando foi pela última vez, o seu olhar já era de luz, era todo lentidão, complacência, compreensão, todo ele amor e sol.

Ele não era um menino comum, isso eu soube desde que o vi. Ainda que andasse vestido da mesma maneira que os outros, tivesse as mesmas conversas e as mesmas brincadeiras, eu sempre pressenti nele aquele sangue que não corria nos outros. As vezes, fazia perguntas que assustavam. E ficava horas sentado num lugar olhando qualquer coisa sem importância, uma pedra, um inseto, um grão de areia. Ninguém compreendia. Andava sozinho por lugares desconhecidos e voltava com o sangue dos olhos quase em luz. Eu pressentia que ele acabaria descobrindo, porque só ele poderia descobrir. Não, eu não sabia deles, talvez eu soubesse sempre, mas no fundo, ou na superfície, não sei, eu não sabia, não me pergunte agora, em algum lugar de mim eu não sabia, embora em outros soubesse, não tem importância que você não compreenda isso, porque estou acostumado com a incompreensão alheia, com a minha própria incompreensão, mais do que tudo.

Da minha janela eu via quando o menino voltava, todas as tardes, e foi numa dessas tardes que eu o vi descendo lento o caminho do bosque. Vinha mais lento do que de costume, e desde o momento em que sua silhueta apareceu na curva do morro, desde esse momento eu soube. Não que houvesse algo especial, além daquela lentidão não havia nada — mas é preciso estar com as sete portas abertas para saber quando as coisas se modificam. As coisas começaram a se modificar quando o menino apareceu lento na curva que levava ao bosque.
Foi quando eu senti, mais uma vez, que amar não tem remédio.

Acho que ele soube que eu sabia, porque baixou a cabeça quando me viu. Nunca tínhamos conversado, nunca conversei com ninguém daqui, desde que cheguei, e faz muito tempo, mas havia uma espécie de clima, eles tinham um certo respeito por mim, os habitantes da vila, e assim o menino. Por isso não me surpreendi quando a mãe dele me procurou, no dia seguinte. Chegou acanhada, sentou num canto, fez comentários sobre o tempo, olhou espantada para esses livros e esses quadros, e depois de várias palavras sem importância disse que estava muito preocupada com o filho. Então contou: ele havia visto três seres estranhos no bosque. Não sabia dizer se homens ou mulheres, eram altos, claros, tinham grandes olhos azuis e gestos compassados, cabelos compridos até os ombros, movimentavam-se mansos dentro de vestes brancas com amuletos sobre o peito. Falavam uma língua estranha e sorriam fazendo círculos em torno do menino e tocando-o de leve às vezes nos ombros, no peito, na testa Agora de tinha febre e delirava. Ela me pediu que eu fosse ao bosque, e eu disse que esperaria o menino melhorar para irmos juntos. Ela achou que eu tinha medo e disse que não queria que o menino voltasse lá. Mas eu disse que não iria sozinho, que o bosque era muito grande e apenas o menino poderia mostrar-me onde estavam as criaturas. Ela concordou, e quando o menino melhorou, poucos dias depois, uma tarde subimos ao bosque.

Nem eu nem ele falamos nada enquanto subíamos a montanha. Não era preciso. Quando entramos no bosque, senti que ele se modificava e seu olhar ganhava aquela espécie de luz de que falei a você. Foi então que eu o senti maior do que eu — maior porque sendo apenas um menino se atrevera a penetrar no que me assustava, embora soubesse do irreversível do que o menino vira. Porque você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se recusar a ver, o tempo que quiser: até o fim de sua maldita vida, você pode recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu lugarzinho confortável. Mas a partir do momento em que você vê, mesmo involuntariamente, você está perdido: as coisas não voltarão a ser mais as mesmas e você próprio já não será o mesmo. O que vem depois, não se sabe. Há aquele olhar de que lhe falei, e aquelas outras coisas, mas nada sei de você por dentro, depois de ver.
Por isso eu não compreendia mais aquele menino a partir do momento em que penetramos no bosque. Não compreendia seu ato de coragem e seu despojamento em enfrentar o que eu desconhecia, e sua disponibilidade em se modificar penetrando em regiões talvez escuras e perigosas. Aquele menino era um homem mais velho e mais corajoso do que eu quando entramos no bosque. Não foi difícil encontrá-los. Acho que vieram logo ao sentir a presença do menino. Chegaram devagar, do meio das árvores, com suas vestes brancas e seus enormes olhos de luz.
Não sei explicá-los. Sei que eram espantosos. Pareciam não pisar sobre o chão, pareciam não ter peso nenhum: eram inteiros leveza, amor, bondade, embora houvesse na lentidão de seus gestos qualquer coisa de definitivo. Ainda que fossem belos e bons e mansos, qualquer coisa no seu gesto pressagiava o terrível de sua condição. Eram fortes. Cercaram o menino como velhos amigos, talvez irmãos, pois o menino se parecia com eles no jeito e no olhar. Emitiam sons estranhos e fragmentados, andavam à volta do menino numa ciranda, tocavam-no no ponto central da testa, e então seus olhos se faziam ainda mais claros, tocavam-no no plexo, e eu senti que o coração do menino batia com mais força, renovando um sangue que fluía nas veias feito fogo.

A mim? quase não deram atenção. Lembro apenas que em certo momento um deles tentou tocar-me, da mesma maneira como tocavam o menino, mas os outros dois detiveram seu gesto. Confabularam um instante entre si, depois sorriram como a desculpar-se por não poderem iniciar-me, por enquanto, pelo menos. Mas não fiquei humilhado. Sabia que meu papel era outro, sabia que eu ficaria, assim como o menino também sabia o que lhe estava destinado.

Apoiado numa árvore, deixei-me ficar durante muito tempo olhando aquela espécie de dança, e acho que de repente adormeci, um pouco porque anoitecia, mas principalmente porque talvez a minha ausência talvez fosse importante naquela hora. Quando acordei, estava tudo escuro e em silêncio. Não consegui encontrá-los, nem ao menino. Lembrei então que me espreitavam, antes que eu dormisse, e que colavam seus pulsos aos pulsos do menino e comunicavam qualquer coisa como ordens, e ele parecia entender, concordar. Um pressentimento me veio. Soube apenas que precisava voltar o quanto antes à vila. Era difícil me movimentar no meio dos galhos e das folhas e das raízes sem enxergar absolutamente nada, formas se enredavam em meus pés, coisas geladas tocavam meus braços, arranhavam meu rosto. Não sei quantas horas fiquei por ali, tentando sair, andando em círculos, aquele pressentimento negro me oprimindo o peito.

Acho que já era muito tarde quando consegui alcançar a estrada. E lá de cima vi o fogo. A vila ardia. Desci a montanha correndo, estava muito cansado mas havia alguma coisa que precisava ser salva antes que fosse demasiado tarde, embora eu soubesse que não conseguiria salvar nada, e que tanto o menino como aqueles três seres haviam escolhido o mais fundo que a simples salvação. Quando cheguei, a vila era um inferno. As casas queimavam e as pessoas corriam desesperadas tentando apagar o fogo. Fui perguntando como aquilo acontecera, disseram-me que tudo havia começado na casa do prefeito e se alastrara depois pelas casas dos outros líderes e que ninguém sabia ao certo como tudo começara: haviam apenas visto aquele menino olhando fixamente do meio da praça para a casa do prefeito, e depois o fogo, e que o menino não se movera do meio da praça, e repetira que o mais importante é a luz, mesmo quando consome, isso lhe dissera o primeiro ser, e que a cinza é mais digna que a matéria intacta, isso lhe dissera o segundo ser, e que se salvariam apenas aqueles que aceitassem a loucura escorrendo em suas veias. Com o olhar, ateava fogo às casas dos líderes, um a um. Chamaram sua mãe para que o detivesse, e foi ela quem falou dos estranhos seres. Dividiram a população em dois grupos: um deles tentava apagar o fogo enquanto o outro partia armado de tochas em direção à montanha.

Fiquei um instante sem saber o que fazer, procurei o menino no meio da praça, dos escombros e da cinza, mas não consegui encontrá-lo. Saí então para a montanha, tentei chegar na frente do grupo, mas eles estavam enfurecidos, os olhos torvos, as bocas cheias de espuma, ódio, incompreensão e noite. Eles estavam os três na entrada do bosque, como se esperassem. Exatamente como se esperassem. Não reagiram quando as pessoas caíram sobre eles, espancando-os até que uma substância clara e perfumada começasse a escorrer das feridas. Ao aspirarem essa substância as pessoas caíam ao chão, os olhos desmesurados, os movimentos descontrolados, fazendo e dizendo coisas sem nexo, como se tivessem tomado alguma droga. Pareciam embriagadas, loucas e felizes com o sangue dos três seres alucinando suas mentes. Não teriam conseguido subjugá-los se alguns dos habitantes não tivessem arrancado as camisas para taparem as narinas, evitando aspirar aquele perfume enlouquecedor.

A mim, não aconteceu quase nada: pouco mais que uma vertigem e algumas cores nunca suspeitadas e extremamente nítidas. Os homens com os narizes tapados pelas camisas amarraram e amordaçaram os três seres, depois carregaram-nos a pontapés pela montanha abaixo. Levei algum tempo para despertar da tontura e daquela loucura de cores e formas que envolviam meus sentidos. Quando consegui movimentar-me desci correndo a montanha. Ao chegar à vila era madrugada, o fogo fora dominado, embora as casas estivessem calcinadas e a cinza cobrisse as ruas. Havia apenas um grande fogo no meio da praça. Caminhei até lá, na esperança de salvá-los. Mas já não era possível. Estavam os três sobre uma fogueira que começava a lamber-lhes os pés. Afastei as pessoas que jogavam pedras e gritavam insultos — alguma coisa me dizia que precisava tocá-los. Quando consegui me aproximar, os três deixaram seu olhar cair sobre mim, seus olhos de luz deslizaram por sobre todo meu corpo até se deterem nos pulsos.

Então, senti a carne queimar e abrir numa ferida — voltaram os próprios olhos para os próprios pulsos, abrindo as mesmas feridas que libertaram uma substância clara —, depois, um de cada vez, colaram seus pulsos escorrendo substância clara contra meus pulsos escorrendo sangue. Senti que o meu sangue se dissolvia em contato com o sangue deles — e em breve sentia escorrer dentro de minhas veias aquele mesmo líquido ardente de loucura e alegria. O fogo já atingia seus joelhos quando, entontecido, comecei a me afastar. As cores se chocavam contra minhas retinas. E tudo era: belo não: não belo tudo: as coisas: elas próprias: as coisas verdadeiras: e profundas belas como: pode ser belo: também o terrível eu: me afastava entre céu e inferno tentando ver: beleza no fogo carbonizando: suas carnes claras o líquido: escorria farto e as: pessoas correndo enlouquecidas: vastas e miúdas: ruas. Fui afundando aos poucos numa vertigem em direção sem direção às cores multifacetadas multifacientes as faces e as formas e depois os roxos do amor e do nojo sobre um branco silêncio em branco como contra um muro nem fundo sem fim.

Quando acordei, só restavam cinzas. Três pequenos montículos de cinza clara boiando na substância estagnada — loucura coagulada. A população enlouquecida se estraçalhava pelas ruas. E de repente vi outra vez o menino: saía da vila em direção ao bosque. Corri atrás dele quis detê-lo para que me explicasse alguma coisa, mas quando voltou-se tive certeza de que não conseguiria mais atingi-lo: não era mais aquele menino. Era um deles, com os mesmos olhos azuis em luz, sem sexo, lento e decidido. Voltou-se e disse a única coisa que ouvi de sua voz. Uma coisa assim:
— Deixa que a loucura escorra em tuas veias. E quando te ferirem, deixa que o sangue jorre enlouquecendo também os que te feriram.

Depois se foi. Nunca mais o vi. Mas sei que existem outros como ele, isso eu queria dizer a você: eles estão aqui.
Os habitantes da vila levaram muitos dias para voltarem ao normal — depois dos homens terem provado do sexo de outros homens, e também dos peitos das mães e das irmãs, e de terem bebido dos pais o mesmo líquido de que foram feitos, e de terem cruzado com animais e se submetido à luxúria dos cães e dos cavalos e dos touros, e de terem possuído a terra e a palha como se fossem mulheres ou o reverso de homens iguais a eles —, mas não voltaram. Agora os dias não são mais de pesca, sono, sesta, cadeiras sem procuras na frente das casas. Todos buscam com olhos desvairados luzes estranhas no céu, alfa, beta, gama, delta, sinas, signos, cumprem esquisitos rituais de devoção e perdição. Nada sabem. Nem sequer lembram dos três seres e do menino: foram apenas despertos para o oculto. Mas não sabem o que fazer do desconhecido — do imensamente permitido — revelado. E não podem voltar atrás.
Eu disse a você que ver era irreversível. Eles viram. Às vezes penso se eles não sabem que eu sei, e desta substância clara correndo dentro de minhas veias. Às vezes escuto murmúrios indistintos e agressivos quando saio às ruas. Mais cedo ou mais tarde, alguma coisa vai acontecer. Talvez me firam, mas, quando isso acontecer, das minhas veias vai escorrer tanta loucura que eles não voltarão nunca do inferno onde serão jogados por meu sangue. Ainda não os odeio o suficiente. Mas esse ódio cresce dia a dia: eles mataram a claridade. Não souberam entender que haviam sido escolhidos. Os seres não voltarão jamais. A vingança foi perfeita. Eles ficarão perdidos na treva da insatisfação até o fim de seus dias. E mesmo aquele menino que eu amava porque era como eu não me atrevi a ser ou os outros como ele que existem por aí consigam que a luz se faça em outros pontos do mundo, aqui não chegará um raio.
Por isso meu ódio cresce Quando atingir um nível insuportável, não será difícil: basta uma lâmina contra o pulso. Nem isso. Uma simples picada de alfinete. Menos até Um arranhão. Talvez aquele menino volte, talvez eu esteja mesmo sozinho, talvez você ache que sou louco. Queria que você entendesse que apenas contei o que realmente aconteceu, e se isso que aconteceu é loucura, quem enlouqueceu foi o real, não eu, ainda que você não acredite. Não tem importância. A história é essa, talvez eu tenha falado mais do que devia, mas tenho uma certeza dura de que nem você nem os outros todos perdem por esperar. Cuidado: eles estão aqui: à nossa volta: entre nós: ao seu lado: dentro de você.


Caio F. Abreu

quarta-feira, 29 de abril de 2009

O Crepúsculo Romântico

 Sunset in Briere -  Ferdinand du Puigaudeau. 

Quão belo é o sol quando no céu se ergue risonho, 
E qual uma explosão nos lança o seu bom-dia! 
- Feliz quem pode com amor e ébria alegria 
Saudar-lhe o ocaso mais glorioso do que um sonho! 


 Charles Baudelaire

Amores...






Para uma Avenca Partindo


Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viveras superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualqueratraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? Por isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que eu dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente e nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um diadestes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas as coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai ......... ............ ............. ............ .......... ........... ............. ............ ............ ............ ......... ........... ............ ............ sim, eu sei, eu vou escrever, não eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as botas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.

Caio Fernando Abreu

terça-feira, 28 de abril de 2009

 James Archer
Podemos representar-nos um animal zangado, temoroso, triste, amistoso, assustado. Mas podemos representá-lo esperançoso? E por que não?
O cão acredita que seu dono está à porta. Mas também acreditará que seu dono chegará depois de amanhã? — E o “que” ele não pode? — E eu, como faço? Que resposta devo dar?
Apenas quem fala é que pode ter esperança? Apenas aquele que domina o emprego da linguagem. Isto é, os fenômenos da esperança são modificados dessa complicada forma de vida. (Se um conceito visa a um caráter de escrita humana, não tem aplicação com a relação a seres que não escrevem).

Ludwig Wittgenstein, in Investigações Filosóficas

O Sonho de um Homem Ridículo


É que agora vejo tudo isso claro como o dia, mas escutem: quem é que não se desencaminha? E no entanto todos seguem em direção a uma única e mesma coisa.... do mais sábio ao último dos bandidos, só que por caminhos diferentes...
Eu vi a verdade, eu vi e sei que as pessoas podem ser belas e felizes, sem perder a capacidade de viver na terra. Não quero e não posso acreditar que o mal seja o estado normal dos homens.

E eles ,ora, continuam rindo dessa minha fé... A imagem daquilo que vi vai estar sempre comigo e sempre vai me corrigir e me dirigir. Ah, eu estou cheio de ânimo, eu estou novo em folha, eu vou seguir, vou seguir, ainda por mais mil anos!...
Mas como instaurar o paraíso – isso eu não sei, porque não sou capaz de transmitir isso em palavras. Depois do meu sonho , perdi as palavras...

E digo mais: não importa, não importa que isso nunca se realize e que não haja o paraíso ( já isso eu entendo!)... E no entanto é tão simples: num dia qualquer, numa hora qualquer – tudo se acertaria de uma vez só! O principal é – ame aos outros como a si mesmo, eis o principal, só isso, não é preciso nem mais nem menos: imediatamente você vai descobrir o modo de se acertar. E no entanto isso é só – uma velha verdade, repetida e lida um bilhão de vezes, e mesmo assim ela não pegou! Basta que todos queiram e tudo se acerta agora mesmo.


Fiódor Dostoiévski

O apanhador de poemas

edward john cobett -an  attentive friend


Um poema sempre me pareceu algo assim como um pássaro engaiolado... E que, para apanhá-lo vivo, era preciso um cuidado infinito. Um poema não se pega a tiro. Nem a laço. Nem a grito. Não, o grito é o que mais o espanta. Um poema, é preciso esperá-lo com paciência e silenciosamente como um gato. É preciso que lhe armemos ciladas: com rimas, que são o seu alpiste; há poemas que só se deixam apanhar com isto. Outros que só ficam presos atrás das catorze grades de um soneto. É preciso esperá-lo com assonâncias e aliterações, para que ele cante. É preciso recebê-lo com ritmo, para que ele comece a dançar. E há os poemas livres, imprevisíveis. Para esses é preciso inventar, na hora, armadilhas imprevistas.

Mário Quintana,  Da preguiça como método de trabalho

Albert Camus, O Estrangeiro


As luzes da rua acenderam-se bruscamente e fizeram empalidecer as primeiras estrelas que subiam na noite. Senti os olhos se cansarem, de tanto olhar as calçadas, com sua carga de homens e de luzes.

Respondi que nunca se muda de vida; que, em todo caso, todas se equivaliam, e que a minha, aqui, não me desagradava em absoluto.

Todo o problema, ainda uma vez, estava em matar o tempo. Acabei por não me entediar mais, a partir do instante em que aprendi a recordar.

Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem dificuldade passar 100 anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar.

Nunca conseguira arrepender-me verdadeiramente de nada.Assaltaram-me as lembranças de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: cheiros de verão, o bairro que eu amava, um certo céu de entardecer, o riso e os vestidos de Marie.

Mamãe costumava dizer que nunca se é completamente infeliz.

Mas todos sabem que a vida não vale a pena ser vivida.

— Não tem, então nenhuma esperança e consegue viver com o pensamento de que vai morrer todo por inteiro?

— Sim — respondi.

— Não, não consigo acreditar. Tenho certeza de que já lhe ocorreu desejar uma outra vida.

Respondi-lhe que naturalmente, mas que isso era tão importante quanto desejar ser rico, nadar muito de pressa ou ter uma boca mais bem feita. Era da mesma ordem. Mas ele me deteve e quis saber como eu imaginava essa outra vida. Então gritei:

— Uma vida na qual me pudesse lembrar desta vida.

Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua passagem, tudo o que me haviam proposto nos anos, não mais reais, que eu vivia.

Tudo quanto eu fazia de inútil neste lugar subiu-me, então, à garganta e só tive uma pressa: acabar com isto e voltar à minha cela, para dormir. Mal ouvi o advogado clamar, para concluir, que os jurados não gostariam certamente de condenar à morte um trabalhador honesto, perdido por um minuto de desvario; e pedir as circunstâncias atenuantes para um crime cujo remorso eterno, o mais seguro dos castigos, eu já arrastava comigo.

Reencontrei a calma, depois que ele partiu. Estava esgotado. Atirei-me sobre o leito. Acho que dormi, pois acordei com estrelas sobre o rosto. Subia até mim os ruídos do campo. Aromas de noite de terra e de sol refrescavam-me as têmporas. A paz maravilhosa deste verão adormecido entrava em mim como uma maré. Neste momento, e no limite da noite, soaram sirenes. Anunciavam partidas para um mundo que me era para sempre indiferente.

Também eu me sinto pronto a reviver tudo. Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu me abria pela primeira vez à tenra indiferença do mundo. Por senti-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que fora feliz e que ainda o era.


Albert Camus, O Estrangeiro

Para Viver Um Grande Amor




Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor.

Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor.

Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.

Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.

É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...

Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?

Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor.

É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que — que não quer nada com o amor.

Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor.


Vinicius de Moraes

domingo, 26 de abril de 2009

Deus é Naja



Estás desempregado? Teu amor sumiu? Calma: sempre pode pintar uma jamanta na esquina.

Tenho um amigo, cujo nome, por muitas razões, não posso dizer, conhecido como o mais dark. Dark no visual, dark nas emoções, dark nas palavras: darkésimo. Não nos conhecemos há muito tempo, mas imagino que, quando ainda não havia darks, ele j'era dark. Do alto de sua darkice futurista, devia olhar com soberano desprezo para aquela extensa legião de paz e amor, trocando flores, vestida de branco e cheia de esperança.Pode parecer ilógico, mas o mais dark dos meus amigos é também uma das pessoas mais engraçadas que conheço. Rio sem parar do humor dele- humor dark, claro. Outro dia esperávamos um elevador, exaustos no fim da tarde, quando de repente ele revirou os olhos, encostou a cabeça na parede, suspirou bem fundo e soltou essa: -"Ai, meu Deus, minha única esperança é que uma jamanta passe por cima de mim..." Descemos o elevador rindo feito hienas. Devíamos ter ido embora, mas foi num daqueles dias gelados, propícios aos conhaques e às abobrinhas.

Tomamos um conhaque no bar. E imaginamos uma história assim: você anda só, cheio de tristeza, desamado, duro, sem fé nem futuro. Aí você liga para o Jamanta Express e pede: -"Por favor, preciso de uma jamanta às 30h15, na esquina da rua tal com tal. O cheque estará no bolso esquerdo da calça". Às 20h14, na tal esquina (uma ótima esquina é a Franca com Haddock Lobo, que tem aquela descidona) , você olha para esquina de cima. E lá está- maravilha!- parada uma enorme jamanta reluzente, soltando fogo pelas ventas que nem um dragão de história infantil. O motorista espia pela janela, olha para você e levanta o polegar. Você levanta o polegar: tudo bem. E começa a atravessar a rua. A jamanta arranca a mil, pneus guinchando no asfalto. Pronto: acabou. Um fio de sangue escorrendo pelo queixo, a vítima geme suas últimas palavras: -"Morro feliz. Era tudo que eu queria..."

Dia seguinte, meu amigo dark contou: - "Tive um sonho lindo. Imagina só, uma jamanta toda dourada..." Rimos até ficar com dor na barriga. E eu lembrei dum poema antigo de Drummond. Aquele Consolo na Praia, sabe qual? "Vamos não chores / A infância está perdida/ A mocidade está perdida/ Mas a vida não se perdeu" – ele começa, antes de enumerar as perdas irreparáveis: perdeste o amigo, perdeste o amor, não tens nada além da mágoa e solidão. E quando o desejo da jamanta ameaça invadir o poema – Drummond, o Carlos, pergunta: "Mas, e o humour?" Porque esse talvez seja o único remédio quando ameaça doer demais: invente uma boa abobrinha e ria, feito louco, feito idiota, ria até que o que parece trágico perca o sentido e fique tão ridículo que só sobra mesmo a vontade de dar uma boa gargalhada. Dark, qual o problema?

Deus é naja - descobrimos outro dia.

O mais dark dos meus amigos tem esse poder, esse condão. E isso que ele anda numa fase problemática. Problemas darks, evidentemente. Naja ou não, Deus (ou Diabo?) guarde sua capacidade de rir descontroladamente de tudo. Eu, às vezes, só às vezes, também consigo. Ultimamente, quase não. Porque também me acontece – como pode estar acontecendo a você que quem sabe me lê agora - de achar que tudo isso talvez não tenha a menor graça. Pode ser: Deus é naja, nunca esqueça, baby. Segure seu humor. Seguro o meu, mesmo dark: vou dormir profundamente e sonhar com uma jamanta. A mil por hora.

Caio Fernando Abreu
O Estado de S. Paulo, 15/07/86
(A crônica também está no livro: Pequenas Epifanias)

sábado, 25 de abril de 2009



O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!

Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?

O meu amor não tem
importância nenhuma.


Cecília Meireles



His blood on my arm is warm as a bird
his heart in my hand is heavy as lead
his eyes through my eyes shine brighter than love
O send out the raven ahead of the dove

His life in my mouth is less than a man
his death on my breast is harder than stone
his eyes through my eyes shine brighter than love
O send out the raven ahead of the dove

O send out the raven ahead of the dove
O sing from your chains where you’re chained in a cave
your eyes through my eyes shine brighter than love
your blood in my ballad collapses the grave

O sing from your chains where you’re chained in a cave
your eyes through my eyes shine brighter than love
your heart in my hand is heavy as lead
your blood on my arm is warm as a bird

O break from your branches a green branch of love
after the raven has died for the dove


Leonard Cohen


"Pluralidade que não se reduz à unidade é confusão; unidade que não depende de pluralidade é tirania."

(La multitude qui ne se réduit pas à l'unité est confusion ; l' unité qui ne dépend pas de la multitude est tyrannie.)


Blaise Pascal

Landscapes...


The Magic Pool, Scotland

The Pyramids of Egypt at Sunset

The reflection of Rome, Italy

The Rock of Cashel, Ireland

training place by zzjimzz

Tree tunnel in Portugal

Trübbach, Switzerland

Venice, Italy 

Venice, Italy

Vettica – Campania, Italy

Villnöss, Funes, Italy

Where the Caribbean meets the Atlantic, Bahamas.

Wisteria Tunnel in Japan

Zagori, Greece

Сингапур, Singapore


Se me é negado o amor, por que, então, amanhece;
por que sussurra o vento do sul entre as folhas recém nascidas?
Se me é negado o amor, por que, então,
A noite entristece com nostálgico silêncio as estrelas?
E por que este desatinado coração continua,
Esperançado e louco, olhando o mar infinito?

Rabindranath Tagore

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Eternidade inútil

 Last rays of the sun - Paul Hoecker


Até morrer estarei enamorada
de coisas impossíveis:

tudo que invento, apenas,
e dura menos que eu,
que chega e passa.

Não chorarei minha triste brevidade:
unicamente alheia,
a esperança plantada em tristes dunas,
em vento, em nuvem, n'água.

A pronta decadência,
a fuga súbita
de cada coisa amada.

O amor sozinho vagava.
Sem mais nada além de mim...
numa eternidade inútil.

Cecília Meireles

Final


Pois bem, adeus. Nada esqueceu?... Tem tudo já? Não temos nada mais a dizer face a face. Pode ir... Mas, não! Espere um pouco! Como está chovendo!... Espere que isso passe. Agasalhe-se bem! Está frio lá fora. Você devia por um “manteau” mais pesado. Já tem tudo o que é seu? Nada me resta agora? As suas cartas? O retrato?... Já que a gente se vai separar, olhe-me ainda um instante... Mas sem chorar: seria idiota. Como é horrível agora a lembrança remota Do que nós fomos numa vida antiga e linda! Nossas vidas se confundiram totalmente... E agora cada qual retoma o seu caminho! nós vamos partir, cada qual mais sozinho, Recomeçar, vagar por aí... Certamente, Sofreremos também... Mas há de vir, depois, O esquecimento, a única cousa que perdoa. E há de haver eu haver você; sermos dois; Sermos isto: uma pessoa e outra pessoa. Veja! Você já vai entrar no meu passado! Havemos de nos ver na rua, casualmente... Eu hei de olhar e de ir, sem ter atravessado... Você irá com vestidos novos, diferentes... E viveremos nossas vidas paralelas... E amigos contarão a você minha história... E eu direi de você, que foi a minha glória, A minha força e a minha fé: “Como vai ela?” O nosso amor... era esta cousa sem valor!... No entanto, que loucura a dos primeiros dias! Lembra-se bem? Que apoteose, que magia!... Se nos amávamos!... E era isto o nosso amor! Mesmo nós, até nós então, quando dizemos “eu te amo!”, o que é que vale o que estamos dizendo?... É humilhante, meu Deus!... Somos todos os mesmos? Iguais aos outros, nós?... Mas, como está chovendo! Você não sai com um tempo assim... Fique comigo! Fique! Vamos viver – não sei... – mais conformados... Os nossos corações, embora bem mudados, Se reforçam talvez à luzes do sonho antigo... Vamos tentar. Ser bons, de novo. Que remédio! Podem falar: a gente tem seus hábitos... Então? Não vá! Fique! E retome a meu lado o seu tédio, Eu retomo a seu lado a minha solidão.


Paul Geraldy

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Amores...





Medo...

Não posso socorrer um aparente acidentado, nem dar informações a estranhos na rua, nem abrir a porta para um desconhecido, nem dar informações ao telefone, preciso ter cuidado ao parar em sinais, em shoppings, no banco 24 horas, ao entrar em casa, ao sair, ao.... escambau senão vou ser assaltada, roubada, raptada, sequestrada, estuprada... morta! Tenho que usar antivirus, mil seguros, planos de doença (dizem que é de saúde), fazer inúmeros exames preventivos... usar mil truques com os telefones, os carros, os cartões de crédito, as contas no banco etc etc para evitar violência, evitar que outro ser humano me ataque (e dizem que o ser humano é racional, civilizado!)

E há seres humanos que tem medo de bichos (cobra, lagartas, lagartixas, baratas, tigres...)!


O Retrato de Dorian Gray


"A arte não é uma forma de vida, mas é a vida que é uma forma de arte, pois 'a natureza imita a arte'. 'A arte', é o nosso energético protesto, o nosso corajoso esforço pra ensinar a natureza qual é o seu verdadeiro lugar"

"A moralidade moderna consiste em acompanhar o modelo da época. Considero, para qualquer homem culto, o simples fato de aceitar o padrão da época uma forma da mais indecorosa imoralidade"

"A vida era muito breve para que se pudesse suportar sobre os ombros o peso dos erros do próximo. Cada homem vivia sua própria vida e pagava seu próprio preço pra vivê-la. O que era para lamentar é que uma pessoa tivesse de pagar tanto por um só erro. E era preciso pagar cada vez mais, com efeito. Em suas relações com os homens, o destino nunca cessa de cobrar suas dívidas"

"As únicas opiniões que ouço com respeito são as de pessoas muito mais jovens que eu. Tenho a impressão de que estão na minha frente, pois a vida lhes revelou suas últimas maravilhas. Quanto aos velhos, sempre os contradigo. Faço-o por princípio. Se lhes perguntar sua opinião sobre algo que sucedeu ontem, eles lhe responderão solenemente com palavras e modos de pensar correntes em 1820, quando toda gente usava colarinho alto, acreditava em tudo e não sabia absolutamente nada"

"Alegro-me de que você nunca tenha feito nada: nem uma estátua, nem um quadro, enfim, que não tenha produzido coisa alguma à exceção de você mesmo! A vida foi sua arte. Você é a própria música. Seus dias são seus sonetos"

"Meu caro amigo, vejo que você começa a se tornar, com efeito, um verdadeiro moralista. Talvez chegue até a ficar como esses convertidos, ou como os pregadores protestantes, que nos previnem contra os pecados que eles próprios estão cansados de cometer" (muito boa!)

"A arte não tem influência sobre a ação. Faz desaparecer o desejo de agir. É soberbamente estéril. Os livros que o mundo considera imorais são os que mostram a própria vergonha deles"

"Alma e corpo, corpo e alma ... que mistério! Há animalidade na alma, e o corpo tem momentos de espiritualidade. Os sentidos podem purificar-se e a inteligência degradar-se. Quem poderá dizer onde cessam os impulsos da carne, ou onde começam os impulsos físicos? Quão superficiais são as arbitrárias definições dos psicólogos vulgares! E, no entanto, como é difícil decidir entre as pretensões das diversas escolas! Era a alma uma sombra reclusa na casa do pecado? Ou estava realmente o corpo preso à alma, como pensava Giordano Bruno? A separação do espírito com a matéria era um mistério, e a união do espírito com a matéria era tambem um mistério"



Oscar Wilde - O Retrato de Dorian Gray

terça-feira, 21 de abril de 2009

Parabéns Brasília, pelos seus 49 anos!



Naquela noite
Suzana estava
mais W3
do que nunca
toda eixosa
cheia de L2

Suzana,
vai ser superquadra
assim lá na minha cama.

##

Aconteceu na 103

O porteiro do bloco "I" da 103 sul
pegou a filha do síndico do bloco
"O" da 413 norte com o cara do
302 do bloco "D" da 209 sul
dentro do carro do zelador do
bloco "F" da 314 norte.



(Teatro Nacional)

Manchete de 2001

Objetos voadores
não identificados
sobrevoam a cidade.

(eram duas borboletas)


(Casa do Cantador)


A bandeira é verde
a banana é amarela

As duas palavras começam com "b"
e terminam com "a"

O que há entre "a" e "b"
é assunto
de segurança nacional


(Interior da Catedral)

Subo aos céus
pelas escadas rolantes
da rodoviária de brasília

O corpo de cristo
aqui não é pão,
é pastel de carne

O sangue de cristo
aqui não é vinho,
é caldo de cana

O padroeiro desta cidade
é Dom Bosco
ou é o padim Ciço?



(Biblioteca Nacional de Brasília)

Travessia do eixão

Nossa Senhora do Cerrado
Protetora dos pedestres
Que atravessam o eixão
Às seis horas da tarde
Fazei com que eu chegue são e salvo
Na casa da Noélia


Poemas de Nicolas Behr, poeta da cidade.




"ninguém me ama
ninguém me quer

ninguém me chama nicolas behr"