quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Necrológio dos Desiludidos do Amor




Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.

Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia...

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e de segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.


Carlos Drummond de Andrade, in 'Brejo das Almas'

Abraça-me


Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.

Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.

Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.

Uma vez que nem sei se tu existes.


Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

O amante invisível



Quero suprimir o tempo e o espaço
A fim de me encontrar sem limites unido ao teu ser,
Quero que Deus aniquile minha forma atual e me faça voltar a ti,
Quero circular no teu corpo com a velocidade da hóstia,
Quero penetrar nas tuas entranhas
A fim de ter um conhecimento de ti que nem tu mesma possuis,
Quero navegar nas tuas artérias e confabular com teu sangue,
Quero levantar tua pálpebra e espiar tua pupila quando acordares,
Quero baixar a nuvem para que teu sono seja calmo,
Quero ser expelido pela tua saliva,
Quero me estorcer nos teus braços
Quando os fundamentos da terra se abalarem nos teus pesadelos,
Quero escrever a biografia de todos os átomos do teu corpo,
Quero combinar os sons
Para que a música da maior ternura embale teus ouvidos,
Quero mandar teu nome nas flechas dos ventos
Para que outros povos te conheçam do outro lado do mar,
Quero forçar teu pensamento a pensar em mim,
Quero desenhar diante de teus olhos
O Alfa e Ômega nos teus instantes de dúvida,
Quero subir em ramagem pelas tuas pernas,
Quero me enrolar em serpente no teu pescoço,
Quero ser acariciado em pedra pelas tuas mãos,
Quero me dissolver em perfume nas tuas narinas,
Quero me transformar em ti.


Murilo Mendes: A Poesia em Pânico


Todos esses louvores, bem o viste,
Não conseguiram demudar-me o aspecto:
Só me turbou esse louvor discreto
Que no volver dos olhos traduziste...

Inda bem que entendeste o meu afeto
E, através destas rimas, pressentiste
Meu coração que palpitava, triste,
E o mal que havia dentro em mim secreto.

Ai de mim, se de lágrimas inúteis
Estes versos banhasse, ambicionando
Das néscias turbas os aplausos fúteis!

Dou-me por pago, se um olhar lhes deres:
Fi-los pensando em ti, fi-los pensando
Na mais pura de todas as mulheres.

Olavo Bilac

"Lágrima"




Orvalho do sofrer - dentro do peito nasce
e nos olhos em pranto sem querer floresce;
aumenta a pouco e pouco, e cada vez mais cresce...
- e rola finalmente em gotas pela face...

sublime florescer da dor... se ela falasse
diria para o mundo a mais sentida prece,
no entanto, em seu silencio humilde é que enternece
pois guarda na mudez um triste desenlace...

Repentina, ela brota, assim como se fosse
( de um mar que em nosso peito as ondas estugisse)
uma gota que o vento, aos nossos olhos, trouxe...

Nuns olhos de mulher, porém, ainda não disse:
- é a pérola de um mar completamente doce,
de um mar feito de amor... de sonho e de meiguice!


J.G. de Araújo Jorge



There is a pleasure in the pathless woods,
There is a rapture on the lonely shore,
There is society, where none intrudes,
By the deep Sea, and music in its roar;
I love not Man the less, but Nature more,
From these our interviews, in which I steal
From all I may be, or have been before,
To mingle with the Universe, and feel
What I can ne'er express, yet cannot all conceal.


Lord Byron

segunda-feira, 28 de novembro de 2011



Que poema, de entre todos os poemas,
Página em branco?
Um gesto que se afaste e se desligue tanto
Que atinja o golpe de sol nas janelas.

Nesta página só há angústia a destruir
Um desejo de lisura e branco,
Um arco que se curve – até que o pranto
De todas as palavras me liberte.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Albert Lynch


Em mim também, que descuidado vistes,
Encantado e aumentando o próprio encanto,
Tereis notado que outras cousas canto
Muito diversas das que outrora ouvistes.

Mas amastes, sem dúvida... Portanto,
Meditais nas tristezas que sentistes:
Que eu, por mim, não conheço cousas tristes,
Que mais aflijam, que torturem tanto.

Quem ama inventa as penas em que vive:
E, em lugar de acalmar as penas, antes
Busca novo pesar com que as avive.

Pois sabei que é por isso que assim ando:
Que é dos loucos somente e dos amantes
Na maior alegria andar chorando.


Olavo Bilac

"História"

A beauty - Moritz Stifter



Eras a Musa
eu, o poeta...

Aconteceu naquele instante
em que, displicente,
me estendeste a mão dizendo adeus
- como que diz até logo, -
e eu tive a impressão de que subitamente,
minha vida era uma nova Pompéia
que submergia em lavas para os séculos.

Agora
revendo as provas dos velhos poemas
que me queimaram,
te desenterro estátua irreconhecível
entre cinzas e palavras,
lembranças de um mundo em que fomos personagens,
e em que hoje, és história,
e eu, - arqueólogo.


J.G. de Araujo Jorge (1914 / 1987 )
do livro "Quatro Damas" 1a ed. 1965

A vida vivida


Liu Yuanshou


Quem sou eu senão um grande sonho obscuro em face do Sonho
Senão uma grande angústia obscura em face da Angústia
Quem sou eu senão a imponderável árvore dentro da noite imóvel
E cujas presas remontam ao mais triste fundo da terra?

De que venho senão da eterna caminhada de uma sombra
Que se destrói à presença das fortes claridades
Mas em cujo rastro indelével repousa a face do mistério
E cuja forma é prodigiosa treva informe?

Que destino é o meu senão o de assistir ao meu Destino
Rio que sou em busca do mar que me apavora
Alma que sou clamando o desfalecimento
Carne que sou no âmago inútil da prece?

O que é a mulher em mim senão o Túmulo
O branco marco da minha rota peregrina
Aquela em cujos braços vou caminhando para a morte
Mas em cujos braços somente tenho vida?

O que é o meu amor, ai de mim! senão a luz impossível
Senão a estrela parada num oceano de melancolia
O que me diz ele senão que é vã toda a palavra
Que não repousa no seio trágico do abismo?

O que é o meu Amor? senão o meu desejo iluminado
O meu infinito desejo de ser o que sou acima de mim mesmo
O meu eterno partir da minha vontade enorme de ficar
Peregrino, peregrino de um instante, peregrino de todos os instantes?

A quem respondo senão a ecos, a soluços, a lamentos
De vozes que morrem no fundo do meu prazer ou do meu tédio
A quem falo senão a multidões de símbolos errantes
Cuja tragédia efêmera nenhum espírito imagina?

Qual é o meu ideal senão fazer do céu poderoso a Língua
Da nuvem a Palavra imortal cheia de segredo
E do fundo do inferno delirantemente proclamá-los
Em Poesia que se derrame como sol ou como chuva?

O que é o meu ideal senão o Supremo Impossível
Aquele que é, só ele, o meu cuidado e o meu anelo
O que é ele em mim senão o meu desejo de encontrá-lo
E o encontrando, o meu medo de não o reconhecer?

O que sou eu senão ele, o Deus em sofrimento
O temor imperceptível na voz portentosa do vento
O bater invisível de um coração no descampado...
O que sou eu senão Eu Mesmo em face de mim?


Vinícius de Moraes
elena dudina


mesmo que eu morra
dessa morte disforme
o esquecimento
não lamento

viver ou morrer
é o de menos
a vida inteira
pode ser
qualquer momento
ser feliz ou não
questão de talento

quanto ao resto
este poema
que não fiz
fica ao vento
mãos mais hábeis
inventem


Alice Ruiz

domingo, 27 de novembro de 2011

Allegro

 Lauri Blank

Sente como vibra
Doidamente em nós
Um vento feroz
Estorcendo a fibra

Dos caules informes
E as plantas carnívoras
De bocas enormes
Lutam contra as víboras

E os rios soturnos
Ouve como vazam
A água corrompida

E as sombras se casam
Nos raios noturnos
Da lua perdida.


Vinicius de Moraes

Você é...

Michel Pellus 

Você é os brinquedos que brincou, as gírias que usava, você é os nervos a flor da pele no vestibular, os segredos que guardou, você é sua praia preferida, Garopaba, Maresias, Ipanema, você é o renascido depois do acidente que escapou, aquele amor atordoado que viveu, a conversa séria que teve um dia com seu pai, você é o que você lembra.
Você é a saudade que sente da sua mãe, o sonho desfeito quase no altar, a infância que você recorda, a dor de não ter dado certo, de não ter falado na hora, você é aquilo que foi amputado no passado, a emoção de um trecho de livro, a cena de rua que lhe arrancou lágrimas, você é o que você chora.
Você é o abraço inesperado, a força dada para o amigo que precisa, você é o pelo do braço que eriça, a sensibilidade que grita, o carinho que permuta, você é as palavras ditas para ajudar, os gritos destrancados da garganta, os pedaços que junta, você é o orgasmo, a gargalhada, o beijo, você é o que você desnuda.
Você é a raiva de não ter alcançado, a impotência de não conseguir mudar, você é o desprezo pelo o que os outros mentem, o desapontamento com o governo, o ódio que tudo isso dá, você é aquele que rema, que cansado não desiste, você é a indignação com o lixo jogado do carro, a ardência da revolta, você é o que você queima.
Você é aquilo que reinvidica, o que consegue gerar através da sua verdade e da sua luta, você é os direitos que tem, os deveres que se obriga, você é a estrada por onde corre atrás, serpenteia, atalha, busca, você é o que você pleiteia.
Você não é só o que come e o que veste. Você é o que você requer, recruta, rabisca, traga, goza e lê. Você é o que ninguém vê.

Martha Medeiros
Alex Alemany.


Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
Teu grande amor que é teu maior segredo!
Que terias perdido, se, mais cedo,
Todo o afeto que sentes se mostrasse?

Basta de enganos! Mostra-me sem medo
Aos homens, afrontando-os face a face:
Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.

Olha: não posso mais! Ando tão cheio
Deste amor, que minh'alma se consome
De te exaltar aos olhos do universo.

Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
E, fatigado de calar teu nome,
Quase o revelo no final de um verso.


Olavo Bilac

Elzbieta Mozyro







sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Café da manhã

Daniel F. Gerhartz 

Pôs café
na xícara
Pôs leite
na xícara com café
Pôs açúcar
no café com leite
Com a colherzinha
mexeu
Bebeu o café com leite
E pôs a xícara no pires
Sem me falar
acendeu
um cigarro
Fez círculos
com a fumaça
Pôs as cinzas
no cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Levantou-se
Pôs
o chapéu na cabeça
Vestiu
a capa de chuva
porque chovia
E saiu
debaixo da chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
Quanto a mim pus
a cabeça entre as mãos
E chorei.


Jacques Prévert




Déjeuner du matin


Il a mis le café
Dans la tasse
Il a mis le lait
Dans la tasse de café
Il a mis le sucre
Dans le café au lait
Avec la petite cuiller
Il a tourné
Il a bu le café au lait
Et il a reposé la tasse
Sans me parler
Il a allumé
Une cigarette
Il a fait des ronds
Avec la fumée
Il a mis les cendres
Dans le cendrier
Sans me parler
Sans me regarder
Il s'est levé
Il a mis
Son chapeau sur sa tête
Il a mis son manteau de pluie
Parce qu'il pleuvait
Et il est parti
Sous la pluie
Sans une parole
Sans me regarder
Et moi j'ai pris
Ma tête dans ma main
Et j'ai pleuré.

Jacques Prévert
Daniel F. Gerhartz


A vida é assim, segue e verás, — a vida
é um dia de esperança, um longo poente
de incertezas cruéis, e finalmente
a grande noite estranha e dolorida…

Hoje o sol, hoje a luz, hoje contente
a estrada a percorrer suave e florida…
— amanhã, pela sombra, inutilmente
outra sombra a vagar, triste e perdida…

A vida é assim, é um dia de esperança,
uma réstia de luz entre dois ramos
que a noite envolve cedo, sem tardança…

E quando as sombras chegam, nós, ao vê-las,
ainda somos felizes se encontramos
a saudade infinita das estrelas!…


J.G.de Araújo Jorge

A Roda Branca

Pétala alta: que extrema superfície. Catedral de vidro, superfície da superfície, inatingível pela voz. Pelo teu talo duas vozes à terceira e à quinta e à nona se unem - crianças sábias abrem bocas de manhã e entoam espírito, espírito, superfície, espírito, superfície intocável de uma rosa.
Estendo a mão esquerda que é mais fraca, mão escura que logo recolho sorrindo de pudor. Não te posso tocar. Teu novo entendimento de gelo e glória meu rude pensamento quer cantar.
Tento lembrar-me da memória, entender-te como se vê a aurora, uma cadeira, outra flor. Não temas, não quero possuir-te. Alço-me em direção de tua superfície que já é perfume.
Alço-me até atingir minha própria aparência. Empalideço nessa região assustada e fina, quase alcanço tua superfície divina . . .
Na queda ridícula as asas de um anjo quebrei. Não abaixo a cabeça rosnante: quero ao menos sofrer tua vitória com o sofrimento angélico de tua harmonia, de tua alegria. Mas dói-me o coração grosseiro como de amor por um homem.

E das mãos tão grandes sai a palavra envergonhada.

Clarice Lispector

Fazes-me falta

 


1. Estou sozinho. Sozinho com o coração em bocados espalhados pelas tuas imagens. Já não posso oferecer-te o meu coração numa salva de prata. Alguma vez o quis? Alguma vez o quiseste? Dava-me agora jeito um deus qualquer para moço de recados. Um deus que te afagasse os cabelos e me recordasse como eram macios. Um deus que me libertasse desta imagem fixa do teu corpo encaixotado. Logo tu, que tantas vezes te rias daquilo a que chamavas o meu encaixotamento compulsivo:
- Um dia chego cá e encontro-te no meio dessa papelada, morto de cansaço, pronto a encaixotar. Olha, eu é que não te empacoto - ganhei medo a mortos.
Sempre te disse que o medo atrai a desgraça - podes rir-te.
Ri agora tudo que ninguém te ouve. Isso; se o teu Deus existe solta uma gargalhada forte para que eu acredite. Mas não, é melhor que não te incomodes: essa gargalhada póstuma destoaria do meu belo arquivo de gargalhadas tuas. Estragava-lhe a estética, entendes?
E a estética, para falarmos com franqueza, nunca foi o teu forte. Não suportavas as meias-tintas. Odiavas a renúncia engatilhada sobre os paradoxos da vida. Não podias ter morrido de uma coisa menos esdrúxula, por exemplo? Não podias aguardar a dignidade das primeiras rugas? Que tendência para o kitsch, minha querida - mas Deus sai-se sempre em kitsch, não é verdade?
Descansa em paz. Fizeste uma morta bonita - mais bonita e serena do que alguma vez foste, cachopa. Compuseram-te a imagem. Disso vivem as figuras públicas, mesmo na morte. Viva a imagem. Talvez fosse melhor não te ter visto, não ter beijado a tua testa. Agarrei-me a essa derradeira nota do teu calor. Ficaste-me com um travo a incenso e flores mortas. O cheiro do amor vedado que abandonáramos pela paisagem na nossa pré-história. Chamo-lhe amor para simplificar. Há palavras assim, que se dizem como calmantes. Palavras usadas em série para nos impedir de pensar. O que existia, existe, entre nós, é uma ciência do desaparecimento. Comecei a desaparecer no dia em que os meus olhos se afundaram nos teus. Agora que os teus olhos se fecharam sei que não voltarás a devolver-me os meus.
Dentro da História onde já não estou, da História que percorri como um carrossel, da História que nos serve sempre de morada provisória, as pessoas perguntam. Que sentido faz a morte de uma rapariga de 37 anos, catano, roída pela própria posteridade? Tinhas deixado de fumar para não morreres de cancro. Não era a morte que te incomodava, dizias, mas o vagar dela, a tortura da doença. A História. Creio que nunca te vi doente - a não ser de amor. Cultivavas o vício da paixão com um método implacável. Corrias em contra-relógio. Procuravas a imobilidade de um tempo-pedra que já era o teu. O nosso - mas como podíamos dizê-lo, se tínhamos de continuar vivos? Nos breves dias em que vivias desapaixonada, tornavas-te impossível. Nada te entusiasmava.
Depois iniciaste uma carreira de Poder e perdeste esse gosto profundo pelo romance extático. Entraste na narrativa, no burburinho tranquilizante das intrigas. Até a tua carroçaria se modificou; das últimas vezes que te vi, usavas uns saia-e-casaco pavorosos, umas coisas de mau corte e mau tecido a imitar Armani, nuns cinzentos berrantes. Disse-te: "Ena!
Disfarçada de executiva!" e tu explicaste que se tratava apenas de uma farda de trabalho. Que aos fins-de-semana mantinhas o estilo de sempre. Mas o estilo é uma maneira de ser, não uma farda de fim-de-semana. A política retirou-te o estilo e afastou-te de mim. Os políticos não precisam de amigos, precisam de uma corte - vem nos livros. Tu foste simplesmente à tua vida e eu fui à minha. Como sabes, eu vivo por relâmpagos; contigo partilhei uma trovoada um pouco mais longa do que o habitual. Foi apenas isso. De qualquer modo, a morte espreita sobre todos os prazeres dessa cronologia a que nos agarramos para escapar ao tempo. O que somos para além do que vamos sendo? O meu além eras tu - íman da minha íntima, impessoal temporalidade. Redenção dos males que me amputaram.
Tu. Agora puro vapor do universo. Serves-me de Deus - quem diria? Serves-me no que não sei ser, e é a verdade. Olho para o mar do Guincho, para essas ondas frias e violentas em que tanto gostavas de mergulhar, e sinto-me também eu meio morto, meio frio. Feliz por estar ao teu lado outra vez. Ao lado dessa que já estava morta um bom par de anos antes de tu morreres. Fazes-me falta. Mas a vida não é mais do que essa sucessão de faltas que nos animam. A tua morte alivia-me do medo de morrer. Contigo fora de jogo, diminui o interesse da parada. E se tu morreste, também eu serei capaz de morrer, sem que as ondas nem o céu nem o silêncio se transtornem. Cair em ti, cada vez mais longe da mísera ficção de mim.

Inês Pedrosa, Fazes-me falta

“Nós nos definimos como inteligentes. Isso é estranho, porque nós fizemos a definição. Nós criamos nossa própria definição e dissemos que éramos inteligentes!”

“Toda descrição de um poder superior que eu já vi, de todas as religiões que eu conheci, inclui várias declarações em relação à benevolência desse poder. Quando eu olho o universo e todas as maneiras pelas quais ele quer nos matar, eu acho difícil conciliar isso com as afirmações de generosidade.”

“No momento em que alguém te atrela a um movimento, vão atribuir todo o repertório e a filosofia que estão por trás desse movimento a você. E se você tentar ter uma conversa, eles irão se assegurar de que já sabem tudo que há de importante para saber sobre você por causa dessa associação. Eu prefiro ter uma conversa do que colar uma etiqueta em alguém e ter certeza de qual será a próxima resposta.”

“Hoje você pode ouvir as pessoas dizerem ‘por que você está gastando dinheiro com o espaço se há tantos problemas na Terra…’  e as pessoas não se tocam! Elas não percebem que há um intervalo entre as fronteiras do pensamento científico e a transformação da sua vida por elas no futuro."

“Eu quero ser enterrado, em vez de cremado. Para que a fauna e a flora possam se alimentar do meu corpo como eu me alimentei da fauna e da flora por toda a minha vida.”


Neil Degrasse Tyson

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Cigana




Eu me vesti de cigana
Pra cantar o sol
Fiz comício e deu cana
Pra cantar o sol
Ah, que riso bacana
Pra cantar o sol
Virtuosa e sacana
Pra cantar o sol
Dança, dança, dança pra cantar o sol
Todo amor que emanar, pra cantar o sol
Dança, dança, dança pra cantar o sol
Todo amor que emanar, pra cantar o sol
Fui quem se dava e se dana
Pra cantar o sol
Quem não mente, te engana
Pra cantar o sol
Quem teu hálito abana
Pra cantar o sol
Virtuosa e profana
Pra cantar o sol
Dança, dança, dança pra cantar o sol
Todo amor que emanar, pra cantar o sol
Dança, dança, dança pra cantar o sol
Todo amor que emanar, pra cantar o sol
Fiz do meu corpo cabana
Pra cantar o sol
Fiz de um ano semana
Pra cantar o sol
Fiz do amor porcelana
Pra cantar o sol
Fui cigarra e cigana
Pra cantar o sol
Dança, dança, dança pra cantar o sol
Todo amor que emanar, pra cantar o sol
Fui tua mão que me esgana
Pra cantar o sol
O que o brilho não empana
Pra cantar o sol
Meu amor tinha gana
De cantar o sol
Virgem santa e sacana
Pra cantar o sol
Dança, dança, dança pra cantar o sol
Todo amor que emana, pra cantar o sol


Oswaldo Montenegro

Amor mais-que-imperfeito




Não do amor. De mim duvido.
Do jeito mais que imperfeito
que ainda tenho de amar.
Com frequência reconheço
a minha mão escondida
dentro da mão que recebe
a rosa de amor que dou.
Espiando o meu próprio olhar,
escondido atrás estou
dos olhos com que me vês.
Comigo mesmo reparto
o que pretende ser dádiva,
mas de mim não se desprende.
Por mais que me prolongue
no ser que me reparte,
de repente me sinto
o dono da alegria
que estremece a pele
e faz nascer luas
no corpo que abraço.
Não do amor. De mim duvido
quando no centro mais claro
da ternura que te invento
engasto um gosto de preço.
Mesmo sabendo que o prêmio
do amor é apenas amar.


Thiago de Mello


Poema da Hilda Hilst, musicado por Zeca Baleiro e interpretado por Zélia Duncan

Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.

Viagem


Se eu voltasse a nascer, e
as minhas mãos me ensinassem o caminho
que vai do coração ao mundo, e
os meus olhos me abrissem o círculo
que o mar desenha no horizonte,
e o meu nariz respirasse a luz que a manhã
solta de dentro da névoa, e os meus lábios
pedissem o pão de estrelas que as aves
trocam entre si, e os meus passos me conduzissem
para onde ninguém precisa de voltar,
o tecido da minha vida seria transparente
como o vidro da janela que não abro,
o fio que vou puxando seria eterno
como os números que contam os dias de um deus,
a tesoura da noite ficaria na caixa
que não precisei de abrir. Se eu voltasse
a nascer, e as velas do sonho me envolvessem
com o linho do seu vento.

Nuno Júdice

Se a preguiça é pecado,
o que Deus estará fazendo agora?
Em que se ocupa aquele que tudo pode?
Terá restado algo por fazer
depois que o mundo foi criado?

Se o desejo é fraqueza,
Deus nunca deseja?
Mas se é verdade que nos criou,
algo nele desejou.

Se a vaidade é um erro,
por que nos fez
À sua imagem e semelhança?
Ou terá sido o contrário?

Por que criar alguém
capaz de duvidar da criação?
Por que nós e ele não?

Alice Ruiz

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Barulho e música



Barulho é música? Quem pode me dizer se barulho é. Música?
E se as falas das pessoas falando forem. Canções?
Velhas orelhas ouvem o rock e dizem:
— Essa barulheira infernal não é. Música.
Abaixe o volume! — berram as orelhas velhas.
Mas não dá pra passar a vida ouvindo só canções de ninar.
E se os carros nas ruas forem tão bons compositores quanto o vento nos bambus?
E os sabiás? Música. Pode ser feita por alguém mas também se faz.
Um compositor chamado John Cage disse: "Os sons que a gente ouve são. Música".
O que a lavadeira faz com as roupas no tanque. O que o guarda noturno faz com seu apito.
O que os dentes fazem com a batatas chips dentro da cabeça. O que fazem a chuva, o mar, a televisão, os passos, o piano, as panelas, os relógios. Tic tac tic tac. O coração. Bom bom bom bom. Uma música que não é brasileira, nem americana, nem africana, nem de nenhuma parte do planeta porque é. Do planeta todo. Fechando os olhos fica mais fácil da gente escutar. Ela.


Arnaldo Antunes


Na nudez das mãos o poema tarda.
Ébria de um proibido mel recuso
dedilhar, ao acaso, definições simbólicas,
ou românticas entoações, a justificar
o ritmo das palavras. Cativa de outras falas,
rodeio-me de letras perturbadas para dizer paixão.
A semente e a seiva, o parto e a morte,
a montanha e a vertigem,
incendeiam-me os lábios
e fustigam os meus passos em direção
a todas as madrugadas.
Quero um poema, ainda que imperfeito,
mas que fale de amor.
Que diga o corpo inteiro,
antevendo o júbilo das mãos.
Que diga a boca adjacente à boca,
e os olhos em festa, e a lua
ardendo, atônita, nas veias.
Um poema onde doa a ausência
dos abraços, onde se redima
a mendicidade do olhar.


 Graça Pires

Mar absoluto





Foi desde sempre o mar,
E multidões passadas me empurravam
como o barco esquecido.

Agora recordo que falavam
da revolta dos ventos,
de linhos, de cordas, de ferros,
de sereias dadas à costa.

E o rosto de meus avós estava caído
pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas,
e pelos mares do Norte, duros de gelo.

Então, é comigo que falam,
sou eu que devo ir.
Porque não há ninguém,
tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.

E tenho de procurar meus tios remotos afogados.
Tenho de levar-lhes redes de rezas,
campos convertidos em velas,
barcas sobrenaturais
com peixes mensageiros
e cantos náuticos.

E fico tonta.
acordada de repente nas praias tumultuosas.
E apressam-me, e não me deixam sequer mirar a
rosa-dos-ventos.
"Para adiante! Pelo mar largo!
Livrando o corpo da lição da areia!
Ao mar! - Disciplina humana para a empresa da vida!
"Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas.
A solidez da terra, monótona,
parece-mos fraca ilusão.
Queremos a ilusão grande do mar,
multiplicada em suas malhas de perigo.

Queremos a sua solidão robusta,
uma solidão para todos os lados,
uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar
do mundo,e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.

O alento heróico do mar tem seu pólo secreto,
que os homens sentem, seduzidos e medrosos.

O mar é só mar, desprovido de apegos,
matando-se e recuperando-se,
correndo como um touro azul por sua própria sombra,
e arremetendo com bravura contra ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.

Não precisa do destino fixo da terra,
ele que, ao mesmo tempo,
é o dançarino e a sua dança.

Tem um reino de metamorfose, para experiência:
seu corpo é o seu próprio jogo,
e sua eternidade lúdica
não apenas gratuita: mas perfeita.

Baralha seus altos contrastes:
cavalo, épico, anêmona suave,
entrega-se todos, despreza ritmo
jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos,
mas é desfolhado, cego, nu, dono apenas de si,
da sua terminante grandeza despojada.

Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:
água de todas as possibilidades,
mas sem fraqueza nenhuma.

E assim como água fala-me.
Atira-me búzios, como lembranças de sua voz,
e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.

Não me chama para que siga por cima dele,
nem por dentro de si:
mas para que me converta nele mesmo.
É o seu máximo dom.
Não me quer arrastar como meus tios outrora,
nem lentamente conduzida.
como meus avós, de serenos olhos certeiros.

Aceita-me apenas convertida em sua natureza:
plástica, fluida, disponível,igual a ele, em constante solilóquio,
sem exigências de princípio e fim,
desprendida de terra e céu.

E eu, que viera cautelosa,
por procurar gente passada,
suspeito que me enganei,
que há outras ordens, que não foram ouvidas;
que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos,
e o mar a que me mandam não é apenas este mar.

Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,
mas outro, que se parece com ele
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
E entre água e estrela estudo a solidão.

E recordo minha herança de cordas e âncoras,
e encontro tudo sobre-humano.
E este mar visível levanta para mimuma face espantosa.

E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.
E é logo uma pequena concha fervilhante,
nódoa líquida e instável,
célula azul sumindo-se
no reino de um outro mar:
ah! do Mar Absoluto.

Cecília Meireles
ocean rhapsody killer whale by Robert Bat

Ocelot, a wonderful animal portrait by Karen Talasco

Photo by Mark Warrillow-Thomson ~ Mother protecting her child

One of the images of a wild polar bear coming upon his tethered sled dogs in the wilds of Canada's Hudson Bay, taken by Norbert Rosing

segunda-feira, 21 de novembro de 2011


Não pode tocar

Agostino Arrivabene


Entro num museu, paro em frente a um quadro, a uma escultura, a uma cerâmica, e enxergo o aviso: não pode tocar. Não posso, então não toco, tudo bem. Não tocarei pra não estragar, pra não quebrar, pra durar por muitos séculos. Nada de sentir a textura do material, nada de deixar minhas digitais impressas, nada de arranhar a tela com minhas unhas mal lixadas, de desgastar as cores com meus dedos imundos. Então a gente respeita, não chega muito perto, não atravessa a linha amarela, nada de macular a obra com nosso hálito quente e nosso olhar aproximado demais.

Assim é também entre homens e mulheres, entre pais e filhos, entre amigos que procuram se proteger: não se pode tocar em determinados assuntos.

Há questões que arriscam ser maculadas com palavras, que um olhar aproximado demais poderia danificar. Instaura-se sempre um silêncio de museu ao nos aproximarmos de temas perigosos. Tolera-se apenas o som da tevê, de um teclado de computador, de alguém falando ao telefone, ruídos parecidos com silêncio, já que não fazem barulho excessivo, não incomodam o suficiente. Palavras incomodam o suficiente. Vamos falar sobre o que nos aconteceu dez anos atrás. Vamos conversar sobre a morte do seu pai. Vamos tentar entender juntos a razão de você estar bebendo desse jeito. Me diz o que te perturbou na infância. Não, não quero tocar neste assunto.

Mantenha-se atrás da faixa amarela, não chegue muito perto, não acerque-se de meus traumas, não invada meus mistérios, não atrite-se com o meu passado, não tente entender nada: é proibido tocar no sagrado de cada um.

Todas as relações do mundo possuem sua prateleira de cristais. Há sempre um suspense, uma delicadeza ao transitar pela fragilidade do outro. Melhor não falar muito alto, é mais prudente ir devagar e com cuidado. Para não estragar, pra não quebrar, pra durar por muitos séculos.

Martha Medeiros

fabian perez


Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugiu como um furacão,

Turbou, partiu, abateu
Queimou sem razão nem dó -
Ah, que dor!
Magoado e só,
- Só - meu coração ardeu:

Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.

- Esta pouca cinza fria.


Manuel Bandeira

Tudo o que vejo são telas digitais, um novo mundo feito de chips e megabytes, e você vêm falar de amor, um amor que deixaria a todos incrédulos por ser real demais.
Não recebi suas cartas, mas sei que elas foram escritas, o universo regido por ícones eletrônicos induz a fantasias telepáticas. Ser intuitiva também é uma forma de conexão, há muitas cartas extraviadas viajando pelo espaço, sem fios ou cabos, sem satélites, palavras silenciadas e igualmente transmitidas. Amor é um troço raro e sempre de vanguarda.
Também escrevo minhas cartas que não são postadas, cartas digitalizadas no sonho, um mundo de excelentes intenções, nostalgias, poesias, essas coisas quase fluviais.
Você vem falar de amor de um modo que emociona, e eu vou falar de amor como se fosse sua resposta. Agradeço, primeiramente, o amor recebido e negado, demonstrado e não, seus adjetivos, seus diagnósticos e o tempo percorrido, se foi um amor de verão ou se comemorou vinte bodas anuais, o amor que sinto não é dado a configurações, o amor transcende, nunca foi mortal como a gente.
Gosto destes sons, embala o amor a rima, navego empurrada pelos ais e por sufixos e sílabas que remam, remam, aqui vão minhas palavras navais. O amor não tem ancoradouro, porto, cais – o amor é navegante e recolhe pessoas neste mar de distraídos, salva vidas. O amor que você narra e a mim dirige é amor primitivo, fora de catálogo, é sorte dos amores ambientais, estão por toda parte, para senti-lo requer apenas querê-lo. Conceitos fugazes do amor? Não creio. Há os amores produzidos e os amores naturais, os amores duros e os rarefeitos, há os que nascem do peito e os ancestrais, amores vários, todos iguais.
Em diversas cartas há seu apelo e sua culpa pelo amor não-vivido. O amor vive apesar de nós, tudo o que se sente é validado por ser existente, não sofra mais. Foram cartas não assinadas, não enviadas, talvez escritas por mais de uma pessoa, tanto faz. São cartas de amor, e mesmo com angústia e anonimato, sobrevive nelas o tesouro de um sentimento bruto, porém não violento. O amor comentado nestes tempos que correm é produto, assunto de revistas e jornais, o amor nos tempos que correm deveria ir mais devagar, aceitarem-se múltiplos, gozo, gás. Você que escreve mentalmente, você que escreve cartas para ficar, você que não sabe direito que amor é esse e que só quer se desculpar, você que ama livre e você, entre grades, você que ama em pensamento, você e você e você, nós todos e nossos amores ornamentais, que ainda nos fazem chorar e mal entender, carentes existenciais, você e você e você e nossas cartas abortadas, digamos para nós mesmos: comunicar é lindo e gritar o amor é nobre, dizer te amo é bálsamo e mais ainda, escutar. Mas o amor independe, o amor, remetente, é transcrito no olhar, há quem entenda e há quem procure lê-lo em outro lugar. Amor é carta que mesmo extraviada está ora chegando e partindo, e pode cair em mãos que não as destinadas, mas onde estiverem as palavras, escritas ou caladas, onde estiverem os desejos e seus códigos postais, não importa a data em que foram selados, serão sempre cartas de amor e amores que alcançaram seus finais.

Martha Medeiros
Tão dado como sou ao tédio, é curioso que nunca, até hoje, me lembrou de meditar em que consiste. Estou hoje, deveras, nesse estado intermédio da alma em que nem apetece a vida nem outra coisa. E emprego a súbita lembrança de que nunca pensei em o que fosse, em sonhar, ao longo de pensamentos meio impressões, a análise, sempre um pouco factícia, do que ele seja.
Não o sei, realmente, se o tédio é somente a correspondência desperta da sonolência do vadio, se é coisa, na verdade, mais nobre que esse entorpecimento. Em mim, o tédio é frequente, mas, que eu saiba, porque reparasse, não obedece a regras de aparecimento. Posso passar sem tédio um domingo inerte; posso sofrê-lo, repentinamente, como uma nuvem externa, em pleno trabalho atento. Não consigo relacioná-lo com um estado da saúde ou da falta dela; não alcanço conhecê-lo como produto de causas que estejam na parte evidente de mim.
Dizer que é uma angústia metafísica disfarçada, que é uma grande desilusão incógnita, que é uma poesia surda da alma aflorando aborrecida à janela que dá para a vida - dizer isto, ou o que seja irmão disto, pode colorir o tédio, como uma criança ao desenho cujos contornos transborde e apague, mas não me traz mais que um som de palavras a fazer eco nas caves do pensamento.
O tédio… Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não queira, com a náusea de não querer - tudo isto está no tédio sem ser o tédio, nem é dele mais que uma paráfrase ou uma translação. E, na sensação direta, como se de sobre o fosso do castelo da alma se erguesse a ponte levadiça, nem restasse, entre o castelo e as terras, mais que o poder olhá-las sem as poder percorrer. Há um isolamento de nós em nós mesmos, mas um isolamento onde o que separa está estagnado como nós, água suja cercando o nosso desentendimento.
O tédio… Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio… É como a possessão por um demônio negativo, um embruxamento por coisa nenhuma. Dizem que os bruxos, ou os pequenos magos, conseguem, fazendo de nós imagens, e a elas infligindo maus-tratos, que esses mau- tratos, por uma transferência astral, se reflitam em nós. O tédio surge-me, na sensação transposta desta imagem, como o reflexo maligno de bruxedos de um demônio das fadas, exercidas, não sobre uma imagem minha, senão sobre a sua sombra. E na sombra íntima de mim, no exterior do interior da minha alma, que se colam papéis ou se espetam alfinetes. Sou como o homem que vendeu a sombra, ou, antes, como a sombra do homem que a vendeu.
O tédio… Trabalho bastante. Cumpro o que os moralistas da ação chamariam o meu dever social. Cumpro esse dever, ou essa sorte, sem grande esforço nem notável desinteligência. Mas, umas vezes em pleno trabalho, outras vezes no pleno descanso que, segundo os mesmos moralistas, mereço e me deve ser grato, transborda-se-me a alma de um fel de inércia, e estou cansado, não da obra ou do repouso, mas de mim.
De mim por que, se não pensava em mim? De que outra coisa, se não pensava nela? O mistério do universo, que baixa às minhas contas ou ao meu reclínio? A dor universal de viver que se particulariza subitamente na minha alma mediúnica? Para que enobrecer tanto quem não se sabe quem é? É uma sensação de vácuo, uma fome sem vontade de comer, tão nobre como estas sensações do simples cérebro, do simples estômago, vindas de fumar de mais ou de não digerir bem.
O tédio… É talvez, no fundo, a insatisfação da alma íntima por não lhe termos dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino. É talvez a insegurança de quem precisa mão que o guie, e não sente, no caminho negro da sensação profunda, mais que a noite sem ruído de não poder pensar, a estrada sem nada de não saber sentir…
O tédio… Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é a falta de uma mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o cepticismo não tem força para desconfiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.

Bernardo Soares - Livro do Desassossego

sábado, 19 de novembro de 2011

[18] - O livro do desassossego



Encaro serenamente, sem mais nada que o que na alma represente um sorriso, o fechar-se-me sempre a vida nesta Rua dos Douradores, neste escritório, nesta atmosfera desta gente. Ter o que me dê para comer e beber, e onde habite, e o pouco espaço livre no tempo para sonhar, escrever — dormir — que mais posso eu pedir aos Deuses ou esperar do Destino?

Tive grandes ambições e sonhos dilatados — mas esses também os teve o moço de fretes ou a costureira, porque sonhos tem toda a gente: o que nos diferença é a força de conseguir ou o destino de se conseguir conosco.
Em sonhos sou igual ao moço de fretes e à costureira. Só me distingue deles o saber escrever. Sim, é um ato, uma realidade minha que me diferença deles. Na alma sou seu igual.
Bem sei que há ilhas ao Sul e grandes paixões cosmopolitas, e se eu tivesse o mundo na mão, trocava-o, estou certo, por um bilhete para Rua dos Douradores.
Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou a literatura uma borboleta que, pousando-me na cabeça, me torne tanto mais ridículo quanto maior for a sua própria beleza.
Terei saudades do Moreira, mas o que são saudades perante as grandes ascensões?
Sei bem que o dia em que for guarda-livros da casa Vasques e Cia. será um dos grandes dias da minha vida. Sei-o com uma antecipação amarga e irônica, mas sei-o com a vantagem intelectual da certeza.


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
O livro do desassossego

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Delphin Enjolras


Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
- que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.


Pedro Tamen

Além do Amor

Aurelio Rodríguez López


Se tu queres que eu não chore mais
Diga ao tempo que não passe mais
Chora o tempo o mesmo pranto meu
Ele e eu, tanto
Que só para não te entristecer
Que fazer, canto
Canto para que te lembres


Quando eu me for
Deixa-me chorar assim
Porque eu te amo
Dói a vida
Tanto em mim
Porque eu te amo
Beija até o fim
As minhas lágrimas de dor
Porque eu te amo, além do amor!


Vinícius de Moraes

La boca

imagem:  X Maya


Boca que arrastra mi boca:
boca que me has arrastrado:
boca que vienes de lejos
a iluminarme de rayos.

Alba que das a mis noches
un resplandor rojo y blanco.
Boca poblada de bocas:
pájaro lleno de pájaros.
Canción que vuelve las alas
hacia arriba y hacia abajo.
Muerte reducida a besos,
a sed de morir despacio,
das a la grama sangrante
dos fúlgidos aletazos.
El labio de arriba el cielo
y la tierra el otro labio.

Beso que rueda en la sombra:
beso que viene rodando
desde el primer cementerio
hasta los últimos astros.
Astro que tiene tu boca
enmudecido y cerrado
hasta que un roce celeste
hace que vibren sus párpados.

Beso que va a un porvenir
de muchachas y muchachos,
que no dejarán desiertos
ni las calles ni los campos.

¡Cuánta boca enterrada,
sin boca, desenterramos!

Beso en tu boca por ellos,
brindo en tu boca por tantos
que cayeron sobre el vino
de los amorosos vasos.
Hoy son recuerdos, recuerdos,
besos distantes y amargos.

Hundo en tu boca mi vida,
oigo rumores de espacios,
y el infinito parece
que sobre mí se ha volcado.

He de volverte a besar,
he de volver, hundo, caigo,
mientras descienden los siglos
hacia los hondos barrancos
como una febril nevada
de besos y enamorados.

Boca que desenterraste
el amanecer más claro
con tu lengua. Tres palabras,
tres fuegos has heredado:
vida, muerte, amor. Ahí quedan
escritos sobre tus labios.


Miguel  Hernandez