sexta-feira, 30 de julho de 2021

L'étoile a pleuré rose...

 

Zephry and Flora


L'étoile a pleuré rose...

L'étoile a pleuré rose au cœur de tes oreilles,

L'infini roulé blanc de ta nuque à tes reins;

La mer a perlé rousse à tes mammes vermeilles

Et l'Homme saigné noir à ton flanc souverain.


Arthur Rimbaud. in: "Rimbaud Livre". [introdução e tradução Augusto de Campos]. 

Coleção Signos. São Paulo: Editora Perspectiva, 2ª ed., 2002, p. 38.


A estrela chorou rosa...

A estrela chorou rosa ao céu de tua orelha.

O infinito rolou branco, da nuca aos rins.

O mar perolou ruivo em tua teta vermelha.

E o Homem sangrou negro o altar dos teus quadris.

quinta-feira, 29 de julho de 2021


 

"É evidente que a sociedade não pode ser uma última instância. A última instância é a criação, a arte: ou, antes, a arte representa a ausência e a impossibilidade de uma última instância."

Gilles Deleuze


Livro do desassossego [65]

Artist Nuri Duzan

Aquela divina e ilustre timidez que é o guarda dos tesouros e dos regalia da alma.

Ah, mas como eu desejaria lançar ao menos numa alma alguma coisa de veneno, de desassossego e de inquietação. Isso consolar-me-ia um pouco da nulidade de ação em que vivo. Perverter seria o fim da minha vida.

Mas vibra alguma alma com as minhas palavras? Ouve-as alguém que não só eu?


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

Livro do desassossego  [65]




sábado, 24 de julho de 2021

Tocaia

tomasz rut


Que o amor nos possuísse

no meio de um descampado

num jogo que não tem regra

nem pecado.

Numa tortura lenta

com ritual absoluto

que o amor nos possuísse

doce e bruto.

Que houvesse fuga e corrida

e grito agudo na boca.

Que a dança fosse selvagem

e louca.

Com maldade instintiva

guerra de unha e dente

todo impulso desmedido

corpo quente.

Depois na hora do cerco

firmes os cinco sentidos

vem o animal e se envolve

atraído.

Pra que dure mais o jogo

ora foge ora se entrega

se joga se abre provoca

depois nega.

Cúmplice do adversário

de manso se defendendo

vai pouco a pouco à cilada

cedendo.

Corpo todo se espalhando


Bruna Lombardi

Imersão

Alexandre Monntoya 


dormi sobre o teu livro

senti todas as folhas me abraçarem

deste-me longos beijos nos capítulos

as vírgulas lamberam-me

pontuaram-me

no sussurrar das tuas reticências

tu me arrepiavas

mordiscavas-me com a tua sutileza

enfiavas-te pelas minhas fendas

e teus versos deslizavam-se em meu corpo

tais quais versos de seda

pressenti tua presença em cada linha

em todas havia o teu perfume

eras tu que passavas as minhas páginas

conhecias-me os detalhes

desvendavas meus segredos

:

com a língua


* líria porto

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Quando o crime acontece como a chuva que cai

 to remember life - Daniel Gerhartz

Como alguém que chega ao balcão com uma carta importante após o horário de atendimento: o balcão está fechado. Como alguém que quer prevenir a cidade contra uma inundação, mas fala uma outra língua: ele não é compreendido. Como um mendigo que bate pela quinta vez numa porta onde já recebeu algo quatro vezes: pela quinta vez tem fome.

Como alguém cujo sangue flui de uma ferida e que espera pelo médico: seu sangue continua saindo.

Assim chegamos e relatamos que se cometem crimes contra nos.

Quando pela primeira vez foi relatado que nossos amigos estavam sendo mortos, houve um grito de horror. Centenas foram mortos então. Mas quando milhares foram mortos e a matança era sem fim, o silêncio tomou conta de tudo.

Quando o crime acontece como a chuva que cai, ninguém mais grita “alto!”.

Quando as maldades se multiplicam, tornam-se invisíveis.

Quando os sofrimentos se tornam insuportáveis, não se ouvem mais os gritos.

Também os gritos caem como a chuva de verão.


Bertolt Brecht (Augsburg, 1898 — Berlim Leste, 1956)




 — Uma esteira de espumas... — flores perdidas na vasta indiferença do oceano. — Um punhado de versos... — espumas flutuantes no dorso féro da vida!...

E o que são na verdade estes meus cantos?...

Como as espumas que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos da musa — este sopro do alto; do coração — este pelago da alma.

E como as espumas são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles por vezes rebentaram ao estalar fatídico do latego da desgraça.

E como também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas rutilantes do arco-íris, eles por acaso refletiram o prisma fantástico da ventura ou do entusiasmo — estes signos brilhantes da aliança de Deus com a juventude!

Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas a lágrima saudosa do marujo... possam eles, ó meus amigos! — efêmeros filhos de minh′alma — levar uma lembrança de mim às vossas plagas!...


Castro Alves

Sazonais eternidades



Abres-me, janela,

e antigas memórias

me salpicam o rosto,

chuvas ainda por desabar.


Escancaradas portadas,

devolvem-me o corpo,

esse mesmo corpo

que, para febre e desejo,

em outro corpo acendi.


Abres-me, saudade

e o tempo se descalça

pra atravessar

incandescentes brasas.


e quando,

de novo, me encerras

volto a dormir

como dormem os rios

em véspera de serem água.


A saudade

é o que ficou

do que nunca fomos.


Mia Couto

Pele



o dragão do teu braço

eu não conheço

pedaço tão bonito

tão certo

desenho exato

o gato

em movimento

essa coisa sinuosa do felino

super precisa

o arremesso no espaço

um feminino

no traço

rastro que brilha

trilha de luz

gata no cio

de noite cintila

como os pelos suados

de tua axila


Bruna Lombardi

O perigo do dragão (p. 58)


 

só lhe falta saber tudo,

só lhe falta a mulher para morrer com ele,

a mulher que há nele, no fundo,

a morta nele que de noite ressuscita,

e pelo dia todo de cada dia da terra

lhe rouba a alma

o ceptro

o segredo de ser senhor de tudo.


Herberto Helder

Não digas nada


 

Não digas nada – a tua boca já me pertenceu

e agora tenho ciúmes das palavras. O que

disseres será um beijo pousado nos lábios de

outra mulher, dor e mais dor, traição maior

para quem acreditou que o teu amor era para

a morte. Não fales – tenho também ciúmes


da tua voz; ouvir-te é ficar só uma vez mais.


 Maria do Rosário Pedreira



 jurei e juraria até há um minuto atrás que não te voltaria a importunar com

minha existência, amor, mas estive a mentir, como podes agora constatar.

não sei de que loucura se trata, se é assim o amor, só me dá para falhar

qualquer intento que seja o de te esquecer. tanto queria que aqui estivesses a

dizer-me tudo de novo, ainda que mentira fosse mais uma vez.

mais uma vez tudo de novo, como aceitaria recomendar-me esta dor e todo o vexame,

porque já nenhum vexame sinto em coisa alguma e do meu peito, acredita

que to digo, brotou frondosa mulher que nunca vista se viu nestas bandas tão

mesmas de sempre. assim estou, meu sonhado amante.

por favor não me voltes a escrever ignorando quanto te conto. nota que me

curei de males maiores, fiquei só doente de ti, à tua espera, profundamente

confusa mas já feliz. considera o que te digo e fala-me como de antes. fala-me

do que te serviria ainda uma dedicada mulher como eu, e mesmo que te

ajude mulher alguma a quem peças favores outrora tão meus, escreve-me

verdades ou mentiras à medida desta espera, que outra coisa não farei nem

tão só pensarei.

perdoa-me que tenha desfeito tudo quanto me deixaste, como devolvi cartas

e beijos que mandaste, pudesse eu andar para trás, como dizem compete ao

diabo, ainda assim o faria para redimir de tão grave erro meu coração burro

ou só ingênuo.


Valter Hugo Mãe



 A minha saudade tem o mar aprisionado 

na sua teia de datas e lugares.

É uma matéria vibrátil e nostálgica

que não consigo tocar sem receio,

porque queima os dedos,

porque fere os lábios,

porque dilacera os olhos.

E não me venham dizer que é inocente,

passiva e benigna porque não posso acreditar.


A minha saudade tem mulheres

agarradas ao pescoço dos que partem,

crianças a brincarem nos passeios,

amantes ocultando-se nas sebes,

soldados execrando guerras.

Pode ser uma casa ou uma rede

das que não prendem pássaros nem peixes,

das que têm malhas largas

para deixar passar o vento e a pressa

das ondas no corpo da areia.

Seria hipócrita se dissesse

que esta saudade não me vem à boca

com o sabor a fogo das coisas incumpridas.

Imagino-a distante e extinta, e contudo

cresce em mim como um distúrbio da paixão.


José Jorge Letria

quinta-feira, 22 de julho de 2021

(in)visibilidade

► Anna Aksenova •


segunda filha

sumida entre as demais

fez da vida o que bem quis

foi anjo e foi demônio

bailarina puta

atriz


Liria Porto


terça-feira, 20 de julho de 2021

Um dia virá...



Um dia virá

em que a minha porta

permanecerá fechada

em que não atenderei o telefone

em que não perguntarei

se querem comer alguma coisa

em que não recomendarei

que levem os casacos

porque a noite se adivinha fresca.


Só nos meus versos poderão encontrar

a minha promessa de amor eterno.


Não chorem; eu não morri

apenas me embriaguei

de luz e de silêncio.


Rosa Lobato Faria, in  "a noite inteira já não chega"

Greve

 

Nydia Lozano


Calma, diz o poema ao poeta

que quer fazer uma greve:

as rimas circulam na gaveta,

e o verso é de quem o escreve.


Pode esgotar-se a inspiração,

ou subir na bolsa a métrica,

que as metáforas têm mão

nesta fórmula geométrica.


É redonda a linguagem

no quadrado que elas inventam;

e nasce uma nova imagem

de cada vez que as acorrentam.


Nuno Júdice

quinta-feira, 8 de julho de 2021

 



Sonhadores felizes são os pessimistas. Formam o mundo à sua imagem e assim sempre conseguem estar em casa. A mim o que me dói mais é a diferença entre o ruído e a alegria do mundo e a minha tristeza e o meu silêncio aborrecido.

A vida com todas as suas dores e receios e solavancos deve ser boa e alegre, como uma viagem em velha diligência para quem vai acompanhado (e o pode ver).

Nem ao menos posso sentir o meu sofrimento como sinal de Grandeza. Não sei se o é. Mas eu sofro com coisas tão reles, ferem-me coisas tão banais, que não ouso insultar com essa hipótese a hipótese de que eu possa ter génio.

A glória de um poente belo, com a sua beleza entristece-me. Ante eles eu digo sempre: como quem é feliz se deve sentir contente ao ver isto!


Bernardo Soares, Livro do Desassossego. Fernando Pessoa

Acerca da moralidade pública

A confusão entre moral privada e pública produz um obscurecimento acerca da essência da política, ou seja, faz aparecer o moralismo.

De fato, ao confundir os dois espaços, o moralismo suscita dois equívocos igualmente graves: o de tomar o espaço político segundo os critérios da vida familiar (regida pelo princípio da autoridade pessoal e da afeição) e das relações de mercado (regidas pelo princípio da propriedade privada dos meios de produção), quando, na verdade, a política nasce para responder aos problemas, conflitos e contradições dessas duas esferas privadas, não podendo ser regida pelas mesmas normas que as regem.

E, em segundo lugar, ao se supor que as normas e regras da moralidade privada devem estar em vigência na política, será preciso supor que o espaço político encontra-se definido antes da própria política e que esta é simplesmente, no nível público, a retomada de normas preexistentes, de sorte que perdemos o essencial da política, isto é, a diferença entre o privado e o público, fundadora da política, que a faz ser uma ação nova produzida por uma relação nova; novidade que a faz ser sempre indeterminada quanto ao seu curso, mas não indefinida quanto às suas regras.

É isso que a palavra "república" sinaliza e significa. Por isso mesmo o Estado não é nem pode ser uma grande família nem uma grande empresa: se for, não há política possível. Em outras palavras, a moralidade política se define pelas ações e pelo curso das ações numa lógica nova que não é a da autoridade (como na família) nem a da força (como no mercado), mas a do poder.

Pelo mesmo motivo, não se pode falar em "zonas de amoralidade" na política, uma vez que isso significa que estamos supondo uma moralidade externa e heterogênea à política, moralidade puramente íntima, que fica em suspenso para que a ação política se realize com eficácia. Distinguir o público e o privado, afastar o moralismo, admitir a dimensão fundante da ação política e a indeterminação de seu curso não pode significar "vale-tudo", e sim que nos cabe saber como é construída a moralidade propriamente política no curso de ações das quais não temos controle pleno.

Tomemos dois exemplos aparentemente sem ligação, mas que podem nos auxiliar a compreender o que é a moralidade política: o caso da "vaca louca", na Europa, e o caso do "apagão", no Brasil. Ambos têm um primeiro traço comum: a ausência do Estado como responsável pelo bem-estar dos cidadãos, pelo direito à saúde e pelo direito ao mínimo trazido pela tecnologia moderna.

No caso do gado europeu, o abandono das políticas estatais de saúde pública e sua privatização acarretaram a ausência prolongada de fiscalização das condições sanitárias; no caso do apagão, a submissão às imposições do FMI de solução do "déficit público" pelo não-investimento em áreas de serviços à população acarretou um abandono da política energética, cujas consequências só poderemos avaliar quando, em futuro próximo, pudermos medir a queda da produção e o aumento do desemprego, para não mencionarmos o desrespeito a todos os direitos dos cidadãos, contido nas medidas governamentais.

Nos dois casos vemos o que se passa quando a lógica do poder deixa de estar referida aos direitos dos cidadãos e à instância generalizadora da lei para tornar-se um jogo de forças em competição no qual sempre sabemos quem será o perdedor.

Mas esses dois casos indicam também e sobretudo que o poder político não se define pela distribuição de recursos escassos. Se assim fosse, toda instituição de benemerência e de filantropia exerceria poder político. É bem verdade que o modelo neoliberal, ao destruir a institucionalidade estatal e alijar os direitos sociais da esfera política, não poderá pensar o poder senão como distribuição filantrópica de bens escassos (escassos para quem, cara pálida?), mas esse pensamento, exatamente, indica a morte da política por sua perfeita confusão com os princípios da propriedade privada dos meios de produção e com a lógica da força, que define o mercado, assinalando a presença difusa do despotismo (em geral, não esclarecido).

Por onde passa a moralidade política? Desde Aristóteles, o pensamento político aprendeu a distinguir a justiça distributiva e comutativa e a justiça política. A justiça distributiva se refere aos bens partilháveis (é a economia), a justiça comutativa se refere às penas e recompensas legais que reparam danos cometidos contra cidadãos (o tribunal); mas a justiça fundante se refere a um bem que não pode ser partilhado e distribuído, somente participado: o poder político.

O poder se refere ao governo e este se refere à maneira como a totalidade dos cidadãos participa do poder, definindo para a sociedade a justiça distributiva e a comutativa. Por isso mesmo há indeterminação do curso da ação (pois todos dela participam), mas não há amoralidade (pois há regras definidas pelos cidadãos). E há imoralidade política quando um governo opera não só ferindo a justiça distributiva e a comutativa, mas sobretudo quando exerce o poder não em nome dos cidadãos e sim em nome de um grupo poderoso de cidadãos. Não se pode falar em "bens escassos" distribuídos ao banco Marka nem de "bens escassos" distribuídos a parlamentares em momentos cruciais de votação nem de "bens escassos" na parte de dinheiro público que sempre comparece para garantir uma privatização.

Todavia não podemos pensar apenas com a ideia de justiça política entendida como o direito de participação de todos os cidadãos no poder. O pensamento político moderno, exatamente ao propor a distinção entre virtudes privadas e poder político, afirmou dois princípios nucleares da lógica do poder com os quais podemos nos acercar da moralidade propriamente política. Em primeiro lugar, a compreensão de que toda sociedade está dividida originariamente entre o desejo dos grandes de comandar e oprimir e o desejo do povo de não ser comandado nem oprimido, definindo o lugar do governante não acima das classes e sim como aliança necessária com o desejo do povo e como contenção do desejo dos grandes (pois o desejo destes aniquila a instância pública da política). 

Em segundo, a compreensão de que a moralidade pública não depende do caráter dos indivíduos e sim da qualidade das instituições como expressões concretas do lugar e do sentido da lei. A lei é o polo da universalidade numa sociedade dividida em classes (ou cindida em particularidades conflitantes e contraditórias); polo no qual se definem a cidadania e as formas de seu exercício.

Se observamos esses dois princípios, podemos dizer que, neste momento, reina a mais completa imoralidade política no Brasil, o governo é dos grandes para os grandes (a propalada "governabilidade") e as instituições públicas estão corroídas porque a instância da lei foi substituída pela ideia publicitária de "credibilidade".

Examinemos brevemente o modo de aparecer dessa imoralidade nos últimos tempos. Ela tem aparecido sob a forma do embuste, isto é, como a decisão de impedir que os cidadãos possam deliberar, decidir e formar uma opinião consistente sobre as ações políticas porque estão impedidos de demarcar fato e versão, verdade e mentira.

Se nos recordarmos do clássico estudo de Hannah Arendt sobre a mentira política, haveremos de lembrar que ela aponta os dois instrumentos empregados pelo governante para realizar o embuste. Um deles são os "relações públicas", que operam com os recursos da publicidade e têm como princípio a ideia de que os cidadãos são inteiramente manipuláveis pelas opiniões vendidas no mercado político; são os agentes da propaganda do governo.

O outro instrumento são os "resolvedores de problemas", caracterizados pela autoconfiança extrema e pela certeza de sempre prevalecerem porque sabem se livrar dos fatos, tanto destruindo documentos, memórias e testemunhos, como produzindo uma irrealidade que vem à existência, por meio de discursos, chantagens, coações, distribuição de benesses, ameaças veladas ou diretas e sobretudo pela desqualificação sumária dos opositores; são os assessores do governo. Juntos, relações públicas e resolvedores de problemas criam as condições para que o governo nunca possa ser desmentido, pois toda contraprova é invalidada por princípio, graças ao ocultamento da realidade sob a imagem irreal e graças à desqualificação prévia dos oponentes.

Depois de definir o poder como distribuição de bens escassos e de concebê-lo como uma competição cujas regras devem comportar espaço de tolerância para certas faltas (embora o autor não nos diga quais faltas devem ser toleradas nem por que o devem), é dito que a opinião pública deve ser mobilizada na determinação da linha de tolerância entre o que o político deve ou não fazer.

A questão, portanto, é saber quem mobiliza a opinião pública para isso. Os partidos de oposição? Não, diz o autor, pois o fazem como ditadores ou jacobinos, uma vez que não reconhecem que o poder democrático é um misto de deliberação e decisionismo e que empregam o juízo moral como arma para acuar o adversário, submetendo a investigação da verdade à sua própria vitória.

A imprensa? Não, pois embora os jornalistas aspirem pela universalidade e desejem ser guardiães da moralidade pública, trabalham para uma particularidade, a empresa capitalista de que são funcionários. Na medida em que insistem em fazê-lo, transformam a imprensa, no melhor dos casos, em igreja e, no pior, em servidora de interesses totalitários, uma vez que não reconhecem ao fato político "sua necessária aura de amoralidade" e "zonas de indefinição".

Se, portanto, nem os partidos políticos oposicionistas nem a imprensa são os instrumentos políticos de mobilização da opinião pública na definição da linha de tolerância política, quem é o agente dessa mobilização? Só pode ser o próprio governante! Com isso, caímos nas malhas dos relações públicas e dos resolvedores de problemas, isto é, da produção deliberada do embuste. E fazemos o jogo da chamada "tolerância passiva", em que toleramos o governante que nos engana porque é ele quem faz as regras da ausência de regras.

Qual o equívoco de Giannotti? Confundir a indeterminação própria da ação política com uma suposta indefinição de suas regras e deixar nas mãos do governante uma definição nômade, que varia segundo seus interesses. Por outro lado, ao desqualificar os partidos políticos e a imprensa, Giannotti desqualifica politicamente algo mais profundo: a sociedade civil e o conjunto dos cidadãos.

Se é o governante quem diz o que é moral, o que é imoral e o que é amoral na política, se é ele quem nos diz o que é e o que não é tolerável, resta indagar por que Giannotti coloca o totalitarismo como ameaça futura, vinda das oposições e da imprensa


 Marilena Chaui

o corpo utópico

 


Basta eu acordar, que não posso escapar deste lugar que Proust, docemente, ansiosamente, ocupa uma vez mais em cada despertar. Não que me prenda ao lugar – porque depois de tudo eu posso não apenas mexer, andar por aí, mas posso movimentá-lo, removê-lo, mudá-lo de lugar –, mas somente por isso: não posso me deslocar sem ele. Não posso deixá-lo onde está para ir a outro lugar. Posso ir até o fim do mundo, posso me esconder, de manhã, debaixo das cobertas, encolher o máximo possível, posso deixar-me queimar ao sol na praia, mas o corpo sempre estará onde eu estou. Ele está aqui, irreparavelmente, nunca em outro lugar. Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que nunca está sob outro céu, é o lugar absoluto, o pequeno fragmento de espaço com o qual, em sentido estrito, eu me corporizo.

Meu corpo, topia desapiedada. E se, por ventura, eu vivesse com ele em uma espécie de familiaridade gastada, como com uma sombra, como com essas coisas de todos os dias que finalmente deixei de ver e que a vida passou para segundo plano, como essas chaminés, esses telhados que se amontoam cada tarde diante da minha janela? Mas, todas as manhãs, a mesma ferida; sob os meus olhos se desenha a inevitável imagem que o espelho impõe: rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, careca, nada lindo, na verdade. Meu corpo é uma jaula desagradável, na qual terei que me mostrar e passear. É através de suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. Meu corpo é o lugar irremediável a que estou condenado.

Depois de tudo, creio que é contra ele e como que para apagá-lo, que nasceram todas as utopias. A que se devem o prestígio da utopia, da beleza, da maravilha da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas é um lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que será belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal em sua potência, infinito em sua duração, desligado, invisível, protegido, sempre transfigurado; e é bem possível que a utopia primeira, aquela que é a mais inextirpável no coração dos homens, seja precisamente a utopia de um corpo incorpóreo. O país das fadas, dos duendes, dos gênios, dos magos, e bem, é o país onde os corpos se transportam à velocidade da luz, onde as feridas se curam imediatamente, onde caímos de uma montanha sem nos machucar, onde se é visível quando se quer e invisível quando se deseja. Se há um país mágico é realmente para que nele eu seja um príncipe encantado e todos os lindos peraltas se tornem peludos e feios como ursos.

Mas há ainda outra utopia dedicada a desfazer os corpos. Essa utopia é o país dos mortos, são as grandes cidades utópicas deixadas pela civilização egípcia. Mas, o que são as múmias?  São a utopia do corpo negado e transfigurado. As múmias são o grande corpo utópico que persiste através do tempo. Há as pinturas e esculturas dos túmulos; as estátuas, que, desde a Idade Média, prolongam uma juventude que não terá fim. Atualmente, existem esses simples cubos de mármore, corpos geometrizados pela pedra, figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemitérios. E nessa cidade de utopia dos mortos, eis aqui que meu corpo se torna sólido como uma coisa, eterno como um deus.

Mas, talvez, a mais obstinada, a mais poderosa dessas utopias através das quais apagamos a triste topologia do corpo nos seja administrada pelo grande mito da alma, fornecido desde o fundo da história ocidental. A alma funciona maravilhosamente dentro do meu corpo. Nele se aloja, evidentemente, mas sabe escapar dele: escapa para ver as coisas, através das janelas dos meus olhos, escapa para sonhar quando durmo, para sobreviver quando morro. A minha alma é bela, pura, branca. E se meu corpo barroso – em todo o caso não muito limpo – vem a se sujar, é certo que haverá uma virtude, um poder, mil gestos sagrados que a restabelecerão em sua pureza primeira. A minha alma durará muito tempo, e mais que muito tempo, quando o meu velho corpo apodrecer. Viva a minha alma!  É o meu corpo luminoso, purificado, virtuoso, ágil, móvel, tíbio, fresco; é o meu corpo liso, castrado, arredondado como uma bolha de sabão.

E eis que o meu corpo, pela virtude de todas essas utopias, desapareceu. Desapareceu como a chama de uma vela que alguém sopra. A alma, as tumbas, os gênios e as fadas se apropriaram pela força dele, o fizeram desaparecer em um piscar de olhos, sopraram sobre seu peso, sobre sua feiura, e me restituíram um corpo fulgurante e perpétuo.

Mas meu corpo, para dizer a verdade, não se deixa submeter com tanta facilidade. Depois de tudo, ele mesmo tem seus recursos próprios e fantásticos. Também ele possui lugares sem-lugar e lugares mais profundos, mais obstinados ainda que a alma, que a tumba, que o encanto dos magos. Tem suas bodegas e seus celeiros, seus lugares obscuros e praias luminosas. Minha cabeça, por exemplo, é uma estranha caverna aberta ao mundo exterior através de duas janelas, de duas aberturas – estou seguro disso, posto que as vejo no espelho. E, além disso, posso fechar um e outro separadamente. E, no entanto, não há mais que uma só dessas aberturas, porque diante de mim não vejo mais que uma única paisagem, contínua, sem tabiques nem cortes. E nessa cabeça, como acontecem as coisas? E, se as coisas entram na minha cabeça – e disso estou muito seguro, de que as coisas entram na minha cabeça quando olho, porque o sol, quando é muito forte e me deslumbra, vai a desgarrar até o fundo do meu cérebro –, e, no entanto, essas coisas ficam fora dela, posto que as vejo diante de mim e, para alcançá-las, devo me adiantar.

Corpo incompreensível, penetrável e opaco, aberto e fechado: corpo utópico. Corpo absolutamente visível – porque sei muito bem o que é ser visto por alguém de alto a baixo, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreendido quando menos espero, sei o que é estar nu. Entretanto, esse mesmo corpo é também tomado por uma certa invisibilidade da qual jamais posso separá-lo. A minha nuca, por exemplo, posso tocá-la, mas jamais vê-la; as costas, que posso ver apenas no espelho; e o que é esse ombro, cujos movimentos e posições conheço com precisão, mas que jamais poderei ver sem retorcer-me espantosamente. O corpo, fantasma que não aparece senão na miragem de um espelho e, mesmo assim, de maneira fragmentada. Necessito realmente dos gênios e das fadas, e da morte e da alma, para ser ao mesmo tempo indissociavelmente visível e invisível? E, além disso, esse corpo é ligeiro, transparente, imponderável; não é uma coisa: anda, mexe, vive, deseja, se deixa atravessar sem resistências por todas as minhas intenções. Sim. Mas até o dia em que fico doente, sinto dor de estômago e febre. Até o dia em que estala no fundo da minha boca a dor de dentes. Então, então deixo de ser ligeiro, imponderável, etc.: me torno coisa, arquitetura fantástica e arruinada.

Não, realmente, não se necessita de magia, não se necessita de uma alma nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa. Para que eu seja utopia, basta que seja um corpo. Todas essas utopias pelas quais esquivava o meu corpo, simplesmente tinham seu modelo e seu ponto primeiro de aplicação, tinham seu lugar de origem em meu corpo. Estava muito equivocado há pouco ao dizer que as utopias estavam voltadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo: elas nasceram do próprio corpo e depois, talvez, se voltarão contra ele.

Uma coisa, entretanto, é certa: o corpo humano é o ator principal de todas as utopias. Depois de tudo, uma das utopias mais velhas que os homens contaram a si mesmos, não é o sonho de corpos imensos, sem medidas, que devorariam o espaço e dominariam o mundo? É a velha utopia dos gigantes, que se encontra no coração de tantas lendas, na Europa, na África, na Oceania, na Ásia. Essa velha lenda que durante tanto tempo alimentou a imaginação ocidental, de Prometeu a Gulliver.

O corpo é também um grande ator utópico quando se pensa nas máscaras, na maquiagem e na tatuagem. Usar máscaras, maquiar-se, tatuar-se, não é exatamente, como se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível. Tatuar-se, maquiar-se, usar máscaras, é, sem dúvida, algo muito diferente; é fazer entrar o corpo em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. A máscara, o sinal tatuado, o enfeite colocado no corpo é toda uma linguagem: uma linguagem enigmática, cifrada, secreta, sagrada, que se deposita sobre esse mesmo corpo, chamando sobre ele a força de um deus, o poder surdo do sagrado ou a vivacidade do desejo. A máscara, a tatuagem, o enfeite coloca o corpo em outro espaço, o fazem entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem desse corpo um fragmento de um espaço imaginário, que entra em comunicação com o universo das divindades ou com o universo do outro. Alguém será possuído pelos deuses ou pela pessoa que acaba de seduzir. Em todo o caso, a máscara, a tatuagem, o enfeite são operações pelas quais o corpo é arrancado do seu espaço próprio e projetado a outro espaço.

Escutem, por exemplo, este conto japonês e a maneira como um tatuador faz passar a um universo que não é o nosso o corpo da jovem que ele deseja:

“O sol lançava seus raios sobre o rio e incendiava o quarto das sete esteiras. Seus raios refletidos sobre a superfície da água formavam um desenho de ondas douradas sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem em sono profundo. Seikichi, depois de ter corrido os tabiques, tomou entre as suas mãos suas ferramentas de tatuagem. Durante alguns instantes permaneceu imerso numa espécie de êxtase. Precisamente agora saboreava plenamente a estranha beleza da jovem. Parecia-lhe que podia permanecer sentado diante desse rosto imóvel durante dezenas ou centenas de anos sem jamais experimentar nem cansaço nem aborrecimento. Assim como o povo de Mênfis embelezava outrora a terra magnífica do Egito de pirâmides e de esfinges, assim Seikichi, com todo o seu amor, quis embelezar com seu desenho a pele fresca da jovem. Aplicou-lhe de imediato a ponta de seus pincéis de cor segurando-os entre o polegar, e os dedos anular e pequeno da mão esquerda, e à medida que as linhas eram desenhadas, picava-as com sua agulha que segurava na mão direita”.

E quando se pensa que as vestimentas sagradas ou profanas, religiosas ou civis fazem o indivíduo entrar no espaço fechado do religioso ou na rede invisível da sociedade, então se vê que tudo quanto toca o corpo – desenhos, cores, diademas, tiaras, vestimentas, uniformes – faz alcançar seu pleno desenvolvimento, sob uma forma sensível e abigarrada, as utopias seladas no corpo.

Mas, se fosse preciso descer mais uma vez abaixo das vestimentas, se fosse preciso alcançar a própria carne, e então se veria que em alguns casos, em seu ponto limite, é o próprio corpo que volta contra si seu poder utópico e faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do contra-mundo, no interior mesmo do espaço que lhe está reservado. Então, o corpo, em sua materialidade, em sua carne, seria como o produto de suas próprias fantasias. Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo? E também os drogados, e os possuídos; os possuídos, cujo corpo se torna um inferno; os estigmatizados, cujo corpo se torna sofrimento, redenção e salvação, paraíso sangrante.

Bobagem dizer, portanto, como fiz no início, que meu corpo nunca está em outro lugar, quer era um aqui irremediável e que se opunha a toda utopia.

Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar. Está ligado a todos os outros lugares do mundo, e, para dizer a verdade, está num outro lugar que é o além do mundo. É em referência ao corpo que as coisas estão dispostas, é em relação ao corpo que existe uma esquerda e uma direita, um atrás e um na frente, um próximo e um distante. O corpo está no centro do mundo, ali onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo não está em nenhuma parte: o coração do mundo é esse pequeno núcleo utópico a partir do qual sonho, falo, me expresso, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino. O meu corpo é como a Cidade de Deus, não tem lugar, mas é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos.

Depois de tudo, as crianças demoram muito tempo para descobrir que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, não têm mais que um corpo disperso, membros, cavidades, orifícios, e tudo isto não se organiza, tudo isto não se corporiza literalmente, senão na imagem do espelho. De uma maneira mais estranha ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por mais paradoxal que possa parecer, diante de Tróia, sob os muros defendidos por Heitor e seus companheiros, não havia corpo, havia braços levantados, havia peitos valorosos, pernas ágeis, cascos brilhantes acima das cabeças: não havia um corpo. A palavra grega que significa corpo só aparece em Homero para designar o cadáver. É esse cadáver, por conseguinte, é o cadáver e é o espelho que nos ensinam (enfim, que ensinaram os gregos e que ensinam agora as crianças) que temos um corpo, que esse corpo tem uma forma, que essa forma tem um contorno, que nesse contorno há uma espessura, um peso, numa palavra, que o corpo ocupa um lugar. O espelho e o cadáver assinalam um espaço à experiência profunda e originariamente utópica do corpo; o espelho e o cadáver fazem calar e apaziguam e fecham sobre um fecho – que agora está para nós selado – essa grande raiva utópica que deteriora e volatiliza a cada instante o nosso corpo. É graças a eles, ao espelho e ao cadáver, que o nosso corpo não é pura e simples utopia. Ora, se se pensa que a imagem do espelho está alojada para nós em um espaço inacessível, e que jamais poderemos estar ali onde estará o nosso cadáver, se pensamos que o espelho e o cadáver estão eles mesmos em um invencível outro lugar, então se descobre que só utopias podem encerrar-se sobre elas mesmas e ocultar um instante a utopia profunda e soberana de nosso corpo.

Talvez seria preciso dizer também que fazer o amor é sentir seu corpo se fechar sobre si, é finalmente existir fora de toda utopia, com toda a sua densidade, entre as mãos do outro. Sob os dedos do outro que te percorrem, todas as partes invisíveis do teu corpo se põem a existir, contra os lábios do outro os teus se tornam sensíveis, diante de seus olhos semiabertos teu rosto adquire uma certeza, há um olhar finalmente par ver tuas pálpebras fechadas. Também o amor, assim como o espelho e como a morte, acalma a utopia do teu corpo, a cala, a acalma, a fecha como numa caixa, a fecha e a sela. É por isso que é um parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o rodeiam, se gosta tanto de fazer o amor é porque, no amor, o corpo está aqui.


O Corpo Utópico, Michel Foucault.*