segunda-feira, 31 de agosto de 2009

gianni strino

Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.

Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.


Mia Couto


Por que a Vaquejada é uma maldade


A vaquejada encanta multidões, mais ainda quando os vaqueiros obtêm vitórias com a proclamação “Valeu o boi!”. A vitória deles é a vibração de quem assiste. Para os vaqueiros e o público, é uma festa só. Mas e para os animais envolvidos nessa atividade? Eles gostam de ser freneticamente esporados ou de ser perseguidos e derrubados? É algo a se pensar sobre a moralidade de um dito esporte que, se vermos mais a fundo, consiste necessariamente em explorar e agredir animais.

Você que gosta de vaquejadas precisa entender o lado dos bois e dos cavalos também. Eles, ao contrário dos humanos que se divertem à beça, não saem nem um pouco beneficiados com a vida que têm. Se pudessem falar, você se surpreenderia com o desgosto deles por terem que viver com o fim de ser explorados e judiados em competições.

Por mais formosos que pareçam quando aparecem nas exposições de animais, eles sentem dor, bastante dor, e até medo durante as vaquejadas.

O puxão do rabo do boi dói bastante nele. Mesmo que ele seja considerado um boi fortão, considerado ótimo para vaquejadas, o puxão aplicado pelo vaqueiro quando ele vai para um lado e o animal para outro é forte demais para ele não sentir nenhuma dor. Isso é comparável com quando um maratonista que corresse atrás de você num campo de areia puxasse seu cabelo quando te encontrasse para te derrubar no chão. Você sentiria muita dor, assim como o touro sente quando é puxado e derrubado.

Sem falar em quando o animal tomba na pista e se atrita com o chão sertanejo, que não é rígido como cimento duro mas não é nada fofo. Já pensou em quando ele bate a cabeça no solo, o que não é raro?

Já nos cavalos, quando há o uso de esporas pelo vaqueiro, as esporadas dele doem bastante, mesmo quando não são aplicadas com esporas pontudas. Se seu filho pequeno calçasse botas com esporas em forma de moeda – as permitidas pela lei –, subisse em você como se você fosse um cavalo e começasse a te esporar brincando de vaqueirinho, você sentiria bastante dor nas costelas ou na lateral de seu abdômen.

Um outro detalhe: por que o boi sai do brete correndo tanto, se não é normal que um boi calmo corra tão rápido? Você já se perguntou sobre isso? Já passou pela sua cabeça que ele pode estar correndo por medo instintivo de ser caçado por um agressor? Já imaginou que esse medo pode ter sido induzido por agressões ocorridas dentro do brete? Aliás, o que se passa ali dentro? Você já se perguntou sobre isso, que nos é um mistério frequentemente respondido com mentirinhas ditas para desconversar?

É certo que nos divirtamos tanto só porque breteiros e vaqueiros causam medo e dor nos animais envolvidos?

Você pode pensar que esse sofrimento é compensado pelo ótimo tratamento que os cavalos de competição e os bois de puxar recebem quando não estão nos parques de vaquejada. Mas lhe digo que não, não há compensação para a dor e a tortura.

O cavalo de competição pode ser tratado como rei durante seu descanso, mas nada lhe compensa a violência, a dor das esporadas que o vaqueiro lhe aplica quando quer que ele corra o máximo possível para acompanhar o boi na pista. Quanto ao boi, pode ser até endeusado enquanto repousa no campo ou no curral, mas nada lhe pagará o fato de sofrer coisas dentro do brete que não nos são devidamente reveladas, o sentimento negativo que manifesta quando acelera na pista ou a dor sentida quando tem seu rabo tracionado por um cavaleiro de braços fortes que corre para outra direção e quando rola no chão de areia.

Peço a você um pouco de empatia, a capacidade de se ver no lugar de outra pessoa ou ser vivo, e faça um exercício mental em que você se põe numa situação parecida com esses animais supostamente tratados como nobres. Imagine-se preso numa fazenda, sendo servo do fazendeiro. Ele lhe dá a melhor alimentação e as melhores opções de lazer rural. Mas nessa suposição, esse bem-bom tem um preço: ele reservará meia-hora por dia para te prender numa casinha no meio do campo, te agredir de modo a lhe infligir bastante medo, abrir a porta da casinha, correr como um atleta para alcançar você – que estará correndo desesperadamente na ânsia de fugir da fazenda em que você está preso – e derrubá-lo no chão puxando seu cabelo crescido. Ele justifica sua prisão e exploração argumentando que você não tem sentimentos e vive para ser servo dele. Cinco anos depois, ele te vende por 50 mil reais para outro fazendeiro que fará as mesmas coisas com você.

Você gostaria de ter essa vida? Se não gosta, por que então compactua com uma atividade dita esportiva, a vaquejada, que faz algo bastante parecido com tudo isso com os animais?

Você pode argumentar então: “mas a vaquejada é parte de nossa cultura, é tradição, é a expressão esportiva da força do vaqueiro, que é o herói do Nordeste. Como vamos ficar sem uma tradição tão expressiva que é a vaquejada? Proibi-la é mutilar a identidade da região.”

Algo ser tradição não significa necessariamente que é algo bom e ético. Nas aulas de História, aprendemos sobre a escravidão, que moveu a economia brasileira por mais de 300 anos. Naquela época, falavam coisas muito parecidas: “Escravidão é tradição, é parte de nossa essência”, “Como viverá o Brasil sem a escravidão dos negros?”, “Proibir a escravidão negreira seria mutilar nosso país”.

Na Europa de antigamente e também na população brasileira de descendência portuguesa até a época imperial, as mulheres eram submissas aos seus maridos por determinação cristã (se duvida, leia na Bíblia as passagens em Efésios 5:22-24, I Timóteo 2:11-14 e I Coríntios 14:34-35). Essa era uma tradição, era parte da cultura cristã. Você aceitaria preservar a submissão feminina caso ela ainda estivesse em vigor só porque ela era parte de nossa cultura e tradição?

Se nossa região abolisse as vaquejadas e adotasse o respeito incondicional aos animais como parte de seus valores, o povo, como sendo tão criativo como sempre foi, certamente criaria novas formas de diversão e manifestação cultural, do mesmo jeito que criou o forró, o riquíssimo artesanato e tantos outros elementos artístico-culturais.

Então por que você se incomoda tanto com a ideia da abolição das vaquejadas? Por que se apega tanto ao valor cultural dela, se ela não é insubstituível e não é uma tradição saudável e digna de ser preservada?

Não é difícil entender que a vaquejada é uma atividade baseada na exploração e violência contra animais e não é uma tradição indispensável cujo fim vá fazer mal à nossa cultura. Se formos ver que a agressão contra bois e cavalos, para qualquer fim que seja, é um mal porque causa dor e medo neles, veremos que esse dito esporte não é uma atividade moralmente positiva.

Se eu fosse você, passaria a evitar vaquejadas. Começaria a boicotar esses espetáculos violentos que nos tornam pessoas sem sensibilidade e compaixão para com os animais

Autor: Robson Fernando


O dinheiro não te fará como um deus, pois um deus nada tem. Nem a toga pretexta ele usa.

Sêneca

Carnaval




Com os teus dedos feitos de tempo silencioso,
Modela a minha máscara, modela-a…
E veste-me essas roupas encantadas
Com que tu mesmo te escondes, ó oculto!

Põe nos meus lábios essa voz
Que só constrói perguntas,
E, à aparência com que me encobrires,
Dá um nome rápido, que se possa logo esquecer…

Eu irei pelas tuas ruas,
Cantando e dançando…
E lá, onde ninguém se reconhece,
Ninguém saberá quem sou,
À luz do teu Carnaval…

Modela a minha máscara!
Veste-me essas roupas!

Mas deixa na minha voz a eternidade
Dos teus dedos de silencioso tempo…
Mas deixa nas minhas roupas a saudade da tua forma…
E põe na minha dança o teu ritmo,
Para me conduzir… 


Cecília Meireles

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Olhos verdes

Michael and Inessa Garmash_

 
Olhos encantados, olhos cor do mar,
Olhos pensativos que fazeis sonhar!

Que formosas cousas, quantas maravilhas
Em vos vendo sonho, em vos fitando vejo;
Cortes pitorescos de afastadas ilhas
Abanando no ar seus coqueirais em flor,
Solidões tranqüilas feitas para o beijo,
Ninhos verdejantes feitos para o amor...

Olhos pensativos que falais de amor!

Vem caindo a noite, vai subindo a lua...
O horizonte, como para recebê-las,
De uma fimbria de ouro todo se debrua;
Afla a brisa, cheia de ternura ousada,
Esfrolando as ondas, provocando nelas
Bruscos arrepios de mulher beijada...

Olhos tentadores da mulher amada!

Uma vela branca, todo alvor, se afasta
Balançando na onda, palpitando ao vento;
Ei-la que mergulha pela noite vasta,
Pela vasta noite feita de luar;
Ei-la que mergulha pelo firmamento
Desdobrado ao longe nos confins do mar...

Olhos cismadores que fazeis cismar!

Branca vela errante, branca vela errante,
Como a noite é clara! como o céu é lindo!
Leva-me contigo pelo mar... Adiante!
Leva-me contigo até mais longe, a essa
Fimbria do horizonte onde te vais sumindo
E onde acaba o mar e de onde o céu começa...

Olhos abençoados cheios de promessas!

Olhos pensativos que fazeis sonhar,
Olhos cor do mar!


Vicente de Carvalho

"Pode alguém considerar um ser vivente como propriedade, investimento, um pedaço de carne, uma "coisa" , sem degenerar em crueldade contra essa criatura?"

-Karen Davis, PhD (Prisoned Chickens, Poisoned Eggs; 1996)

Projeto de Prefácio

 Gabriel Joseph Marie Augustin Ferrier

Sábias agudezas… refinamentos…
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre…
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.


Mário Quintana

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Arte Poética


Palavras,
só palavras, nada mais
que a vã matéria, o seu sentido
eco de muitos ecos, repetido
reflexo de poderes tão irreais

como essas emoções graças às quais
terei de vez em quando pretendido
dizer um só segredo a um só ouvido
ciente de que nunca são iguais

os segredos e ouvidos que procuro
às cegas neste mar sempre obscuro
onde a voz deságua como um rio

sem nascente nem foz - apenas uma
incerta confidência que se esfuma
e só foi minha enquanto me fugiu.


Fernando Pinto do Amaral

Poema de despedida

fabian perez


Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo.


Mia Couto 

terça-feira, 25 de agosto de 2009

O Silêncio




Dos corpos esgotados que silêncio
tão apaziguador se levantava!

(Tinha uma rosa triste nos cabelos,
uma sombra na túnica de luz...)

Para o fundo das almas caminhava,
devagar, o sonâmbulo silêncio.

(Que apertados anéis nos braços nus!)

Mas o silêncio vinha desprendê-los.


David Mourão-Ferreira

Chamo-te




Chamo-te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.
Peço-te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de teus olhares me purifique e acabe.
Há muitas coisas que não quero ver.
Peço-te que sejas o presente.
Peço-te que inundes tudo.
E que o teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Acontecimento



Haverá na face de todos um profundo assombro
Na face de alguns risos sutis cheios de reserva
Muitos se reunirão em lugares desertos
E falarão em voz baixa em novos possíveis milagres
Como se o milagre tivesse realmente se realizado
Muitos sentirão alegria
Porque deles é o primeiro milagre
E darão o óbolo do fariseu com ares humildes
Muitos não compreenderão
Porque suas inteligências vão somente até os processos
E já existem nos processos tantas dificuldades…
Alguns verão e julgarão com a alma
Outros verão e julgarão com a alma que eles não têm
Ouvirão apenas dizer…
Será belo e será ridículo
Haverá quem mude como os ventos
E haverá quem permaneça na pureza dos rochedos
No meio de todos eu ouvirei calado e atento, comovido e risonho
Escutando verdades e mentiras
Mas não dizendo nada

Só a alegria de alguns compreenderem bastará
Porque tudo aconteceu para que eles compreendessem Que as águas mais turvas contêm às vezes as pérolas mais belas


Vinícius de Moraes

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O guardador de rebanhos IX

johann georg


Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.


Alberto Caeiro 

domingo, 23 de agosto de 2009

Os Dragões Não Conhecem O Paraíso


Tenho um dragão que mora comigo.

Não, isso não é verdade.

Não tenho nenhum dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço - seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser. Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei, sozinho neste apartamento, depois de sua partida. Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque, outro dia, numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência), pensei assim: Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma que precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo.

Isso me pareceu gradiloqüente e sábio como uma idéia que não fosse minha, tão estúpidos costumam ser meus pensamentos. E tomei nota rapidamente no guardanapo do bar onde estava. Escrevi também mais alguma coisa que ficou manchada pelo café. Até hoje não consigo decifrá-la. Ou tenho medo da minha - felizmente indecifrável - lucidez daquele dia.

Estou me confundindo, estou me dispersando.

O guardanapo, a frase, a mancha, o medo - isso deve vir mais tarde. Todas essas coisas de que falo agora - as particularidades dos dragões, a banalidade das pessoas como eu -, só descobri depois. Aos poucos, na ausência dele, enquanto tentava compreendê-lo. Cada vez menos para que minha compreensão fosse sedutora, e cada vez mais para que essa compreensão ajudasse a mim mesmo a. Não sei dizer. Quando penso desse jeito, enumero proposições como: a ser uma pessoa menos banal, a ser mais forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar com um mínimo de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser continuar vivendo.

Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se não fosse nada.

Ninguém perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a contar para mim mesmo, como se fosse ao mesmo tempo o velho que conta e a criança que escuta, sentado no colo de mim. Foi essa a imagem que me veio hoje pela manhã quando, ao abrir a janela, decidi que não suportaria passar mais um dia sem contar esta história de dragões. Consegui evitá-la até o meio da tarde. Dói, um pouco. Não mais uma ferida recente, apenas um pequeno espinho de rosa, coisa assim, que você tenta arrancar da palma da mão com a ponta de uma agulha. Mas, se você não consegue extirpá-lo, o pequeno espinho pode deixar de ser uma pequena dor para se transformar numa grande chaga.

Assim, agora, estou aqui. Ponta fina de agulha equilibrada entre os dedos da mão direita, pairando sobre a palma aberta da mão esquerda. Algumas anotações em volta, tomadas há muito tempo, o guardanapo de papel do bar, com aquelas palavras sábias que não parecem minhas e aquelas outras, manchadas, que não consigo ou não quero ou finjo não poder decifrar.

Ainda não comecei.

Queria tanto saber dizer Era uma vez. Ainda não consigo.

Mas preciso começar de alguma forma. E esta, enfim, sem começar propriamente, assim confuso, disperso, monocórdio, me parece um jeito tão bom ou mau quanto qualquer outro de começar uma história. Principalmente se for uma história de dragões.

Gosto de dizer tenho um dragão que mora comigo, embora não seja verdade. Como eu dizia, um dragão jamais pertence a, nem mora com alguém. Seja uma pessoa banal igual a mim, seja unicórnio, salamandra, harpia, elfo, hamadríade, sereia ou ogro. Duvido que um dragão conviva melhor com esses seres mitológicos, mais semelhantes à natureza dele, do que com um ser humano. Não que sejam insociáveis. Pelo contrário, às vezes um dragão sabe ser gentil e submisso como uma gueixa. Apenas, eles não dividem seus hábitos.

Ninguém é capaz de compreender um dragão. Eles jamais revelam o que sentem. Quem poderia compreender, por exemplo, que logo ao despertar (e isso pode acontecer em qualquer horário, às três ou às onze da noite, já que o dia e a noite deles acontecem para dentro, mas é mais previsível entre sete e nove da manhã, pois essa é a hora dos dragões) sempre batem a cauda três vezes, como se tivessem furiosos, soltando fogo pelas ventas e carbonizando qualquer coisa próxima num raio de mais de cinco metros? Hoje, pondero: talvez seja essa a sua maneira desajeitada de dizer, como costumo dizer agora, ao despertar - que seja doce.

Mas no tempo em que vivia comigo, eu tentava - digamos - adaptá-lo às circunstâncias. Dizia por favor, tente compreender, querido, os vizinho banais do andar de baixo já reclamaram da sua cauda batendo no chão ontem às quatro da madrugada. O bebê acordou, disseram, não deixou ninguém mais dormir. Além disso, quando você desperta na sala, as plantas ficam todas queimadas pelo seu fogo. E, quanto você desperta no quarto, aquela pilha de livros vira cinzas na minha cabeceira.

Ele não prometia corrigir-se. E eu sei muito bem como tudo isso parece ridículo. Um dragão nunca acha que está errado. Na verdade, jamais está. Tudo que faz, e que pode parecer perigoso, excêntrico ou no mínimo mal-educado para um humano igual a mim, é apenas parte dessa estranha natureza dos dragões. Na manhã, na tarde ou na noite seguintes, quanto ele despertasse outra vez, novamente os vizinhos reclamariam e as prímulas amarelas e as begônias roxas e verdes, e Kafka, Salinger, Pessoa, Clarice e Borges a cada dia ficariam mais esturricados. Até que, naquele apartamento, restássemos eu e ele entre as cinzas. Cinzas são como sedas para um dragão, nunca para um humano, porque a nós lembra destruição e morte, não prazer. Eles trafegam impunes, deliciados, no limiar entre essa zona oculta e a mais mundana. O que não podemos compreender, ou pelo menos aceitar.

Além de tudo: eu não o via. Os dragões são invisíveis, você sabe. Sabe? Eu não sabia. Isso é tão lento, tão delicado de contar - você ainda tem paciência? Certo, muito lógico você querer saber como, afinal, eu tinha tanta certeza da existência dele, se afirmo que não o via. Caso você dissesse isso, ele riria. Se, como os homens e as hienas, os dragões tivessem o dom ambíguo do riso. Você o acharia talvez irônico, mas ele estaria impassível quanto perguntasse assim: mas então você só acredita naquilo que vê? Se você dissesse sim, ele falaria em unicórnios, salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros. Talvez em fadas também, orixás quem sabe? Ou átomos, buracos negros, anãs brancas, quasars e protozoários. E diria, com aquele ar levemente pedante: "Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que não é visível".

Ele gostava tanto dessas palavras que começam com in - invisível, inviolável, incompreensível -, que querem dizer o contrário do que deveriam. Ele próprio era inteiro o oposto do que deveria ser. A tal ponto que, quando o percebia intratável, para usar uma palavra que ele gostaria, suspeitava-o ao contrário: molhado de carinho. Pensava às vezes em tratá-lo dessa forma, pelo avesso, para que fôssemos mais felizes juntos. Nunca me atrevi. E, agora que se foi, é tarde demais para tentar requintadas harmonias.

Ele cheirava a hortelã e alecrim. Eu acreditava na sua existência por esse cheiro verde de ervas esmagadas dentro das duas palmas das mãos. Havia outros sinais, outros augúrios. Mas quero me deter um pouco nestes, nos cheiros, antes de continuar. Não acredite se alguém, mesmo alguém que não tenha um mundo pequeno, disser que os dragões cheiram a cavalos depois de uma corrida, ou a cachorros das ruas depois da chuva. A quartos fechados, mofo, frutas podres, peixe morto e maresia - nunca foi esse o cheiro dos dragões.

A hortelã e alecrim, eles cheiram. Quando chegava, o apartamento inteiro ficava impregnado desse perfume. Até os vizinhos, aqueles do andar de baixo, perguntavam se eu andava usando incenso ou defumação. Bem, a mulher perguntava. Ela tinha uns olhos azuis inocentes. O marido não dizia nada, sequer me cumprimentava. Acho que pensava que era uma dessas ervas de índio que as pessoas costumam fumar quando moram em apartamentos, ouvindo música muito alto. A mulher dizia que o bebê dormia melhor quando esse cheiro começava a descer pelas escadas, mais forte de tardezinha, e que o bebê sorria, parecendo sonhar. Sem dizer nada, eu sabia que o bebê sonhava com dragões, unicórnios ou salamandras, esse era um jeito do seu mundo ir-se tornando aos poucos mais largo. Mas os bebês costumam esquecer dessas coisas quanto deixam de ser bebês, embora possuam a estranha facilidade de ver dragões - coisa que só os mundos muito largos conseguem.

Eu aprendi o jeito de perceber quando o dragão estava a meu lado. Certa vez, descemos juntos pelo elevador com aquela mulher de olhos-azuis-inocentes e seu bebê, que também tinha olhos-azuis-inocentes. O bebê olhou o tempo todo para onde estava o dragão. Os dragões param sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com o coração. O ar a meu lado ficou leve, de uma coloração vagamente púrpura. Sinal que ele estava feliz. Ele, o dragão, e também o bebê, e eu, e a mulher, e a japonesa que subiu no sexto andar, e um rapaz de barba no terceiro. Sorríamos suaves, meio tolos, descendo juntos pelo elevador numa tarde que lembro de abril - esse é o mês dos dragões - dentro daquele clima de eternidade fluida que apenas os dragões, mas só às vezes, sabem transmitir.

Por situações como essa, eu o amava. E o amo ainda, quem sabe mesmo agora, quem sabe mesmo sem saber direito o significado exato dessa palavra seca - amor. Se não o tempo todo, pelo menos quanto lembro de momentos assim. Infelizmente, raros. A aspereza e avesso parecem ser mais constantes na natureza dos dragões do que a leveza e o direito. Mas queria falar de antes do cheiro. Havia outros sinais, já disse. Vagos, todos eles.

Nos dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da noite, o coração disparado. As palmas das mãos suavam frio. Sem saber porque, nas manhãs seguintes, compulsivamente eu começava a comprar flores, limpar a casa, ir ao supermercado e à feira para encher o apartamento de rosas e palmas e morangos daqueles bem gordos e cachos de uvas reluzentes e berinjelas luzidias (os dragões, descobri depois, adoram contemplar berinjelas) que eu mesmo não conseguia comer. Arrumava em pratos, pelos cantos, com flores e velas e fitas, para que os espaços ficassem mais bonito.

Como uma fome, me dava. Mas uma fome de ver, não de comer. Sentava na sala toda arrumada, tapete escovado, cortinas lavadas, cestas de frutas, vasos de flores - acendia um cigarro e ficava mastigando com os olhos a beleza das coisas limpas, ordenadas, sem conseguir comer nada com a boca, faminto de ver. À medida que a casa ficava mais bonita, eu me tornava cada vez mais feio, mais magro, olheiras fundas, faces encovadas. Porque não conseguia dormir nem comer, à espera dele. Agora, agora vou ser feliz, pensava o tempo todo numa certeza histérica. Até que aquele cheiro de alecrim, de hortelã, começasse a ficar mais forte, para então, um dia, escorregar que nem brisa por baixo da porta e se instalar devagarzinho no corredor de entrada, no sofá da sala, no banheiro, na minha cama. Ele tinha chegado.

Esses ritmos, só descobri aos poucos. Mesmo o cheiro de hortelã e alecrim, descobri que era exatamente esse quando encontrei certas ervas numa barraca de feira. Meu coração disparou, imaginei que ele estivesse por perto. Fui seguindo o cheiro, até me curvar sobre o tabuleiro para perceber: eram dois maços verdes, a hortelã de folhinhas miúdas, o alecrim de hastes compridas com folhas que pareciam espinhos, mas não feriam. Pergunte o nome, o homem disse, eu não esqueci. Por pura vertigem, nos dias seguintes repetia quanto sentia saudade: alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim.

Antes, antes ainda, o pressentimento de sua visita trazia unicamente ansiedade, taquicardias, aflição, unhas roídas. Não era bom. Eu não conseguia trabalhar, ira ao cinema, ler ou afundar em qualquer outra dessas ocupações banais que as pessoas como eu têm quando vivem. Só conseguia pensar em coisas bonitas para a casa, e em ficar bonito eu mesmo para encontrá-lo. A ansiedade era tanta que eu enfeiava, à medida que os dias passavam. E, quando ele enfim chegava, eu nunca tinha estado tão feio. Os dragões não perdoam a feiúra. Menos ainda a daqueles que honram com sua rara visita.

Depois que ele vinha, o bonito da casa contrastando com o feio do meu corpo, tudo aos poucos começava a desabar. Feito dor, não alegria. Agora agora agora vou ser feliz, eu repetia: agora agora agora. E forçava os olhos pelos cantos de prata esverdeadas, luz fugidia, a ponta em seta de sua cauda pela fresta de alguma porta ou fumaça de suas narinas, sempre mau, e a fumaça, negra. Naqueles dias, enlouquecia cada vez mais, querendo agora já urgente ser feliz. Percebendo minha ânsia, ele tornava-se cada vez mais remoto. Ausentava-se, retirava-se, fingia partir. Rarefazia seu cheiro de ervas até que não passasse de uma suspeita verde no ar. Eu respirava mais fundo, perdia o fôlego no esforço de percebê-lo, dias após dia, enquanto flores e frutas apodreciam nos vasos, nos cestos, nos cantos. Aquelas mosquinhas negras miúdas esvoaçavam em volta delas, agourentas.

Tudo apodrecia mais e mais, sem que eu percebesse, doído do impossível que era tê-lo. Atento somente à minha dor, que apodrecia também, cheirava mal. Então algum dos vizinhos batia à porta para saber se eu tinha morrido e sim, eu queria dizer, estou apodrecendo lentamente, cheirando mal como as pessoas banais ou não cheiram quando morrem, à espera de uma felicidade que não chega nunca. Ele não compreenderia. Eu não compreendia, naqueles dias - você compreende?

Os dragões, já disse, não suportam a feiúra. Ele partia quando aquele cheiro de frutas e flores e, pior que tudo, de emoções apodrecidas tornava-se insuportável. Igual e confundido ao cheiro da minha felicidade que, desta e mais uma vez, ele não trouxera. Dormindo ou acordado, eu recebia sua partida como um súbito soco no peito. Então olhava para cima, para os lados, à procura de Deus ou qualquer coisa assim - hamadríades, arcanjos, nuvens radioativas, demônios que fossem. Nunca os via. Nunca via nada além das paredes de repente tão vazias sem ele.

Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver, não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pântano de antes, cheio de possibilidades - que não aconteciam, mas que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.

Hoje, acho que sei. Um dragão vem e parte para que seu mundo cresça? Pergunto - porque não estou certo - coisas talvez um tanto primárias, como: um dragão vem e parte para que você aprenda a dor de não tê-lo, depois de ter alimentado a ilusão de possuí-lo? E para, quem sabe, que os humanos aprendam a forma de retê-lo, se ele um dia voltar?

Não, não é assim. Isso não é verdade.

Os dragões não permanecem. Os dragões são apenas a anunciação de si próprios. Eles se ensaiam eternamente, jamais estréiam. As cortinas não chegam a se abrir para que entrem em cena. Eles se esboçam e se esfumam no ar, não se definem. O aplauso seria insuportável para eles: a confirmação de que sua inadequação é compreendida e aceita e admirada, e portanto - pelo avesso igual ao direito - incompreendida, rejeitada, desprezada. Os dragões não querem ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que nós, as pessoas banais, inventamos - como eu inventava uma beleza de artifícios para esperá-lo e prendê-lo para sempre junto a mim. Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia.

Quando volto apensar nele, nestas noites em que dei para me debruçar à janela procurando luzes móveis pelo céu, gosto de imaginá-lo voando com suas grandes asas douradas, solto no espaço, em direção a todos os lugares que é lugar nenhum. Essa é sua natureza mais sutil, avessa às prisões paradisíacas que idiotamente eu preparava com armadilhas de flores e frutas e fitas, quando ele vinha. Paraísos artificiais que apodreciam aos poucos, paraíso de eu mesmo - tão banal e sedento - a tolerar todas as suas extravagâncias, o que devia lhe soar ridículo, patético e mesquinho. Agora apenas deslizo, sem excessivas aflições de ser feliz.

As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café, espiar o tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada pensam. Desde que o mandei embora, para que eu pudesse enfim aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto: quase sem sentir.

Resta esta história que conto, você ainda está me ouvindo? Anotações soltas sobre a mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este guardanapo de papel onde anotei frases aparentemente sábias sobre o amor e Deus, com uma frase que tenho medo de decifrar e talvez, afinal, diga apenas qualquer coisa simples feito: nada disso existe.

Nada, nada disso existe.

Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia em mim. Para manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo:

- Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Frêmito

 Anne Dewailly


Frêmito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doído anseio dos meus braços a abraçar-te,

Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!

E vejo-te tão longe! Sinto tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que não me amas…

E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas…


Florbela Espanca - A mensageira das violetas

Acreditei

vicente romero


Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei

Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos


Ana Cristina César

As palavras que te envio são interditas



As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.


Eugénio de Andrade

quinta-feira, 20 de agosto de 2009



Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto -
As almas buscam beber…
Oh! Bendito o que semeia
Livros… livros à mão cheia…
E manda o povo pensar!
O livro caindo n’alma
É germe – que faz a palma, 
É chuva – que faz o mar. 


 Castro Alves

Animais. Ame-os!



"O que não concebo é degolar um cabrito, asfixiar uma pomba, cortar a nuca de uma galinha, ou dar punhaladas em um porco para que eu coma seus restos. Não é por uma questão de química biológica o motivo de eu ter me passado para as fileiras do ovo-lacto-vegetarianismo, mas pelo imperativo moral de que minha vida não seja mantida às custas da vida de outros seres."

- Dr.Eduardo Alfonso, médico naturista espanhol


O inverno desliza
no corpo que espera.

Quanto frio ainda haverá,
antes que ele chegue
e de novo as rosas desabrochem
e com elas a cor pinte meu rosto?

Desde que se foi o meu amado
não há almíscar,
o perfume desertou a vida,
o vinho não sabe a prazer.
já não me acolhe, a noite,
é escuridão sem voz .

O vento não se oculta no deserto,
nem fala aos meus quadris
nenhuma dança.

Desde que se foi o meu amado
o inverno não se cansa de ser eu.


Silvia Chueire

Se abrirán las flores


Flores, las flores se abrirán,
Puras y audaces florecerán en nuestro espíritu.
Blancas, la juventud se arrojará
Resueltamente hacia la transformación, encendiendo las llamas de nuestra certidumbre.
La sabiduría contra el desencanto
Da un paso adelante, hacia las multitudes.
Vida presta al sacrificio
En medio de la confusión, para el bien del pueblo.
Flores, las flores se abrirán en toda su osadía
Lentamente podrán florecer, para durar eternamente.
Aquí, allí y en todo lugar
Frescas flores, para todo el pueblo.


Chiranan Pitpreecha

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Que Presente Te dar



Que presente te darei, eu que tanto quero e
pouco dou, porque mesquinho, egoísta,
distraído não te cumulo daquilo que deveria cumular?

Deveria desatar inúmeros presentes ao pé da árvore,
entreabrindo jóias, tecidos, requintados e pessoais objetos, ou deveria dar-te o que não posso buscar lá fora, mas o que em mim está fechado e mal sei desembrulhar?

Gostaria de dar-te coisas naturais, feitas com a mão, como fazem os camponeses, os artesãos, como faz a mulher que ama e prepara o Natal com seus dedos e receitas, adornos e atenção.

Te dar, talvez, um pedaço de praia primitiva, como aquelas do Nordeste, ou de antigamente - Búzios e Cabo Frio; um pedaço de mar das Ilhas do Caribe, onde a água e o amor são transparentes e onde a areia é fina e brilhante e, sozinhos, habitam a eternidade, os amantes.

Te dar aquele verso de canção um dia ouvida não sei mais aonde, se numa tarde de chuva, se entre os lençóis cansados; um verso, uma canção ou talvez o puro som de um saxofone ao fim do dia, som que tem qualquer coisa de promessa e melancolia.

Fugir uma tarde contigo para os motéis, quando todos os homens se perdem nos papéis e escritórios, números e tensões: fugir contigo para uma tarde assim,um espaço de amor entreaberto na peça que nos prega a burocracia dos gestos.

Gravar numa fita as canções que me fazem lembrar de ti e ouví-las, ou tocar de algum modo, em algum cassete as frases que disseste, que em mim gravaste: frases líricas, precisas, que quando estou cinza, relembro e me iluminam.

Te enviar todos os cartões que colecionas, de todos os lugares que conheço ou que tu nem imaginas, ir a essas paisagens e ilhas e habitá-las com os selos e palavras de interminente paixão.

Dar-te aquela casa de campo entre montanhas, aquele amor entre a neblina, aquele espaço fora do mundo, fora de outros espaços, sem telefone, sem estranhas ligações, para ali nos ligarmos um no outro em una e dupla solidão.

Se queres jóias, te darei. Aqueles corais que vendem na Ponte Vecchia, em Florença; o âmbar ou as pérolas que expõem nas lojas do Havaí; aquelas pedras de vidro para iridescentes colares, que vendem em Atenas, ao pé da Plaka, ao pé da Acrópole, que amorosa nos contempla.

Te dar numa viagem os castelos do Loire, e sair comendo e rindo juntos no roteiro gastronômico franco-italiano; ali comendo e aqueles vinhos bebendo, de tudo nos esquecendo, sobretudo dos remorsos tropicais de quem tem sempre ao lado um faminto desamparado, de culpa nos ferindo.

Te darei flores. Sempre planejei fazer isto. Tão simples: de manhã acordar displicente e começar a colher flores sob a cama. Ir tirando buquês de rosas, margaridas, vasos de íris, orquídeas que estão desabrochando e, uma a uma, de flores ir te cumulando. E amanhecendo dirás: o amado hoje está mel puro, seu amor aflorou e está me perfumando.

Escrever bilhetes pela casa inteira, metê-los entre as roupas, armários, prateleiras, pra que na minha ausência comeces a desdobrar recados daquele que nunca se ausentou, embora esse ar de quem vive partindo, mas, se alguma vez partiu partido foi para reunido regressar.

Te dar um gesto simples. Passar a mão de repente sobre tua mão, como se apalpa a vida ou fruto que pede para ser colhido.

Te dar um olhar, não aquele olhar distraído, alienado de quem está nas coisas prosaícas perdido, mas um olhar de quem chegou inteiro e que se entrega enternecido e desamparado dizendo: olha, sou teu, agora veja lá o que vai fazer comigo.

Affonso Romano de Sant'Anna

terça-feira, 18 de agosto de 2009



Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro.
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto
que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

Eugénio de Andrade

Poema



A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada

Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará
Não tenho explicações

Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas

De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada


Sophia de Mello Breyner Andresen

Fragmentos


Fragmentos disso que chamamos de "minha vida".

Há alguns anos. Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania.


Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

As rosas



Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Aluno Aplicado

sexta-feira, 14 de agosto de 2009


“O homem pôs um embrulho que carregava e seu cajado em um banco. Sentou-se. Contemplava Cosette com atenção. Era uma menina feia. Magra. As mãos cheias de frieiras. Como sempre estava com frio, tinha o hábito de apertar os joelhos um contra o outro. Vestia-se com farrapos. O corpo estava cheio de manchas, resultado das pancadas que levava. Mais que tudo, transpirava medo. No fundo de seus olhos, antes belos, só havia terror.”

“Não dissemos ainda, mas era noite de Natal. De madrugada, o viajante levantou-se. Foi até a lareira. Lá estavam os sapatos de Éponine e Azelma, deixados à espera de um presente. A mãe já tinha colocado uma moeda reluzente em cada um. No canto mais escuro, havia um pequeno tamanco de madeira. Cosette também não perdera a esperança e deixara seu tamanquinho na lareira.
O viajante colocou uma moeda de ouro e voltou para seu quarto. Pela primeira vez na vida, Cosette teria Natal.”

Victor Hugo, Os Miseráveis


Ninguém fala para si mesmo em voz alta.
Já que todos somos um,
falemos desse outro modo.

Os pés e as mãos 
conhecem o desejo da alma.
Fechemos pois a boca 
e conversemos através da alma.
Só a alma conhece o destino de tudo, 
passo a passo.

Vem, se te interessas, posso mostrar-te…

Rumi
Fredrik Borgen.


Gosto, como os animais da floresta e do mar,
De por algum tempo me perder,
De permanecer num amável recanto a cismar, 
E enfim me chamar pela distância,
Seduzindo-me para — voltar a mim.


 Friedrich Nietzsche 

Paixão


A alma do outro
“A alma do outro é uma floresta escura”, disse o poeta Rainer Maria Rilke, meu único autor de cabeceira.
A vida vai nos ensinando quanto isso é verdade. Pais e filhos, irmãos, amigos e amantes podem conviver décadas a fio, podem ter uma relação intensa, podem se divertir juntos e sofrer juntos, ter gostos parecidos ou complementares, ser interessantes uns para os outros, superar grandes conflitos – mas persiste o lado avesso, o atrás da máscara, que nunca se expõe nem se dissipa.
Nem todos os mal-entendidos, mágoas e brigas se dão porque somos maus, mas por problemas de comunicação. Porque até a morte nos conheceremos pouco, porque não sabemos como agir. Se nem sei direito quem sou, como conhecer melhor o outro, meu pai, meu filho, meu parceiro, meu amigo – e como agir direito?
Neste momento escrevo, como já disse, um livro sobre o silêncio. Começou como um ensaio na linha de O Rio do Meio e Perdas & Ganhos, mas acabou se tornando um romance, em pleno processo de elaboração. Isso me faz refletir mais agudamente sobre a questão da comunicação e sua por vezes dramática dificuldade, pois nos mal-entendidos reside muito sofrimento desnecessário.
Amor e amizade transitam entre esses dois “eus” que se relacionam em harmonia e conflito: afeto, generosidade, atenção, cuidados, desejo de partilhamento ou de vida em comum, vontade de fazer e ser um bem, e de obter do outro o que para a gente é um bem, o complicado respeito ao espaço do outro, formam um campo de batalha e uma ponte. Pontes podem ser precárias, estradas têm buracos, caminhos escondem armadilhas inconscientes que preparamos para nossos próprios passos em direção do outro. O que está mergulhado no inconsciente é nosso maior tesouro e o mais insidioso perigo.
Pensar sobre a incomunicabilidade ou esse espaço dela em todos os relacionamentos significa pensar no silêncio: a palavra que devia ter sido pronunciada, mas ficou fechada na garganta e era hora de falar; o silêncio que não foi erguido no momento exato – e era o momento de calar.
Mas, como escrevi várias vezes, a gente não sabia. É a incomunicabilidade, não por maldade ou jogo de poder, mas por alienação ou simples impossibilidade. Anos depois poderá vir a cobrança: por que naquela hora você não disse isso? Ou: por que naquele momento você disse aquilo?
Relacionar-se é uma aventura, fonte de alegria e risco de desgosto. Na relação defrontam-se personalidades, dialogam neuroses, esgrimem sonhos e reina o desejo de manipular disfarçado de delicadeza, necessidade ou até carinho. Difícil? Difícil sem dúvida, mas sem essa viagem emocional a existência é um deserto sem miragens.
No relacionamento amoroso, familiar ou amigo acredito que partilhar a vida com alguém que valha a pena é enriquecê-la; permanecer numa relação desgastada é suicídio emocional, é desperdício de vida. Entre fixar e romper, o conflito e o medo do erro.
Somos todos pobres humanos, somos todos frágeis e aflitos, todos precisamos amar e ser amados, mas às vezes laços inconscientes enredam nossos passos e fecham nosso coração. A balança tem de ser acionada: prevalecem conflitos ásperos e a hostilidade, ou a ternura e aqueles conflitos que ajudam a crescer e amar melhor, a se conhecer melhor e melhor enxergar o outro? O olhar precisa ser atento: mais coisas negativas ou mais gestos positivos? Mais alegria ou mais sofrimento? Mais esperança ou mais resignação?
Cabe a cada um de nós decidir, e isso exige auto-exame, avaliação. Posso dizer que sempre vale a pena, sobretudo vale a pena apostar quando ainda existe afeto e interesse, quando o outro continua sendo um desafio em lugar de um tédio, e quando, entre pais e filhos, irmãos, amigos ou amantes, continua a disposição de descobrir mais e melhor quem é esse outro, o que deseja, de que precisa, o que pode – o que lhe é possível fazer.
Em certas fases, é preciso matar a cada dia um leão; em outras, estamos num oásis. Não há receitas a não ser abertura, sinceridade, humildade que não é rebaixamento. Além do amor, naturalmente, mas esse às vezes é um luxo, como a alegria, que poucos se permitem.
Seja como for, com alguma sorte e boa vontade a alma do outro pode também ser a doce fonte da vida.


- Lya Luft

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Alexei harlamoff


A primavera é a estação dos risos.
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.

Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores,
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.

Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.

A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo


Casimiro de Abreu

[4] - Livro do Desassossego



E do alto da majestade de todos os sonhos, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa.

Mas o contraste não me esmaga — liberta-me; e a ironia que há nele é sangue meu. O que devera humilhar-me é a minha bandeira, que desfraldo; e o riso com que deveria rir de mim, é um clarim com que saúdo e gero uma alvorada em que me faço.
A glória noturna de ser grande não sendo nada! A majestade sombria de esplendor desconhecido…
E sinto, de repente, o sublime do monge no ermo, e do eremita no retiro, inteirado da substância do Cristo nas pedras e nas cavernas do afastamento do mundo.
E na mesa do meu quarto absurdo, reles, empregado e anônimo, escrevo palavras como a salvação da alma e douro-me do poente impossível de montes altos vastos e longínquos, da minha estátua recebida por prazeres, e do anel de renúncia em meu dedo evangélico, joia parada do meu desdém extático.


Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
Livro do Desassossego
 Quint Buchholz.


Nunca escalas em vão as montanhas da Verdade: ou já hoje chegas a tomar altura ou excitas tuas forças para poder subir mais alto amanhã.

Friedrich Nietzsche



Angelo Asti


O mundo estava no rosto da amada –
e logo converteu-se em nada, em
mundo fora do alcance, mundo-além.
Por que não o bebi quando o encontrei
no rosto amado, um mundo à mão, ali,
aroma em minha boca, eu só seu rei?
Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.
Mas eu também estava pleno de
mundo e, bebendo, eu mesmo transbordei.


Rainer Maria Rilke

Canción del amor lejano




Ella no fue, entre todas, la más bella,
Pero me dio el amor más hondo y largo.
Otras me amaron más; y, sin embargo,
A ninguna la quise como a ella.

Acaso fue porque la amé de lejos,
Como una estrella desde mi ventana
Y la estrella que brilla más lejana
Nos parece que tiene más reflejos.

Tuve su amor como una cosa ajena
Como una playa cada vez más sola,
Que únicamente guarda de la ola
Una humedad de sal sobre la arena.

Ella estuvo en mis brazos sin ser mía,
Como el agua en cántaro sediento,
Como un perfume que se fue en el viento
Y que vuelve en el viento todavía.

Me penetró su sed insatisfecha
Como un arado sobre llanura,
Abriendo en su fugaz desgarradura
La esperanza feliz de la cosecha.

Ella fue lo cercano en lo remoto,
Pero llenaba todo lo vacío,
Como el viento en las velas del navío,
Como la luz en el espejo roto.

Por eso aún pienso en la mujer aquella,
La que me dio el amor más hondo y largo
Nunca fue mía. No era la más bella.
Otras me amaron más. Y, sin embargo,
A ninguna la quise como a ella.

José Ángel Buesa

Velha História


fabian perez


Depois de atravessar muitos caminhos
Um homem chegou a uma estrada clara e extensa
Cheia de calma e luz.
O homem caminhou pela estrada afora
Ouvindo a voz dos pássaros e recebendo a luz forte do sol
Com o peito cheio de cantos e a boca farta de risos.
O homem caminhou dias e dias pela estrada longa
Que se perdia na planície uniforme.
Caminhou dias e dias…
Os únicos pássaros voaram
Só o sol ficava
O sol forte que lhe queimava a fronte pálida.
Depois de muito tempo ele se lembrou de procurar uma fonte
Mas o sol tinha secado todas as fontes.
Ele perscrutou o horizonte
E viu que a estrada ia além, muito além de todas as coisas.
Ele perscrutou o céu
E não viu nenhuma nuvem.
E o homem se lembrou dos outros caminhos.
Eram difíceis, mas a água cantava em todas as fontes
Eram íngremes, mas as flores embalsamavam o ar puro
Os pés sangravam na pedra, mas a árvore amiga velava o sono.
Lá havia tempestade e havia bonança
Havia sombra e havia luz.
O homem olhou por um momento a estrada clara e deserta
Olhou longamente para dentro de si
E voltou.


Vinícius de Moraes

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Charles Bukowski - O coração que ri




A tua vida é a tua vida
Não a deixes ser dividida em submissão fria.
Está atento
Há outros caminhos,
Há uma luz algures.
Pode não ser muita luz mas
vence a escuridão.
Está atento.
Os deuses oferecer-te-ão hipóteses.
Conhece-las.
Agarra-las.
Não podes vencer a morte mas
podes vencer a morte em vida, às vezes.
E quanto mais o aprendes a fazê-lo,
mais luz haverá.
A tua vida é a tua vida.
Memoriza-o enquanto a tens.
És magnífico.
Os deuses esperam por se deliciarem
em ti.


Charles Bukowski
(Tradução de Tiago Nené)

Carpe Diem


EDWARD POYNTER


Carpe diem quam minimum credula postero
Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, vina liques et spatio brevi
spem longam reseces. dum loquimir, fugerit invida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.


*****

Colhe o dia, confia o mínimo no amanhã
Não perguntes, saber é proibido, o fim que os deuses
darão a mim ou a você, Leuconoe, com os adivinhos da Babilônia
não brinque. É melhor apenas lidar com o que se cruza no seu caminho
Se muitos invernos Júpiter te dará ou se este é o último,
que agora bate nas rochas da praia com as ondas do mar
Tirreno: seja sábio, beba o seu vinho e para o curto prazo
reescale as suas esperanças. Mesmo enquanto falamos, o tempo ciumento
está fugindo de nós. Colhe o dia, confia o mínimo no amanhã.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Paul Delaroche


As mulheres, ainda hoje, se ajoelham diante de um erro, porque lhes foi dito que alguém morreu na cruz por causa delas. A cruz, então, é um argumento? — Mas sobre todas essas coisas há um, somente um, que há milênios falou o que era preciso — Assim Falava Zaratustra:


Friedrich Nietzsche