sábado, 28 de dezembro de 2013

 Gun Legler


Os que são raízes
amam as profundezas.
Crescem em segredo
em busca de fontes.

Os que são asas inquietas
anseiam amplidões.
Desenham signos de voo
no azul do sonho infinito


Helena Kolody

Teoria sentada

 Landi-Michelle 

I

Um lento prazer esgota a minha voz. Quem
canta empobrece nas frementes cidades
revividas. Empobrece com a alegria
por onde se conduz, e então é doce
e mortal. Um lento
prazer de escrever, imitando
cantar. E vendo a voz disposta
nos seus sinais, revelada entre a humidade
dos corpos e a sua
glória secular. Uma dor esgota
a idade, com cravos, da minha voz.
E eu escrevo como quem imita uma vida e a vida
de uma inconcebível
magnitude. Ou somente de uma
voz. Um lento desprazer, uma
solidão verde, ou azul, esgota por dentro e para cima,
como um silêncio, o antigo
de minha voz.

O que digo é rápido, e somente o modo
de sofrer
é lento e lento. É rapidamente fácil e mortal
o que agora digo, e só
as mãos lentamente levantam o álcool
da canção e a formosura
de um tempo absorvido. Digo tudo o que é
mais fácil da vida, e o fácil
é duro e batido pela paciência.
Porque a terra dorme e acorda de uma
para outra estação.

Porque vi crianças alojadas nos meus
melhores instantes, e vi
pedaços celestes fulminados na minha
paixão, e vi
textos de sangue marcados desordenadamente
pelo ouro. Porque vi e vi, na saída
de um dia para o começo
da primeira noite, e no despedaçar da noite.
E porque me levantei para sorrir
e ser cândido. E porque então
estremeci com a rapidez das palavras e a quente
morosidade
da vida. Eu disse o que era fácil
para dizer e eu tão
dificilmente havia reconhecido. Porque eu disse:
um prazer, um pesado prazer de cantar
a vida, consome a única voz
de uma vida mais sombria e mais funda.
E eu mudo sobre este campo parado
de cravos, quando a lua
rebenta, quando
sóis e raios crescem para todos os lados do seu
fulminante país.

Alguém se debruça para gritar e ouvir em meus
vales
o eco, e sentir a alegria de sua expressa
existência. Alguém chama por si próprio,
sobre mim, em seus terríficos confins.
E eu tremo de gosto, ardo, consumo
o pensamento, ressuscito
dons esgotados. Escrevo à minha volta,
esquecido de que é fácil, crendo
só no antigo gesto que alarga a solidão contra
a solidão do amor.
Escrevo o que bate em mim — a voz
fria, a alarmada malícia
das vozes, os ecos de alegria e a escuridão
das gargantas lascadas. Para os lados,
como se abrisse, com a doçura de um espelho
infiltrado na sombra. Fiel
como um punhal voltado para o amor
total de quem o empunha.

Alguém se procura dentro de meu ardor
escuro, e reconhece as noites
espantosas do seu próprio silêncio. E eu falo,
e vejo as mudanças e o imóvel
sentido do meu amor, e vejo
minha boca aberta contra minha própria boca
num amargo fundo de vozes
universais.

Alguém procura onde eu estou só, e encontra
o campo desbaratado
e branco da sua
solidão


Herberto Helder

Noturna



passam as horas
lentas na chuva
que passa
na janela

exaustas dos dias
ardentes

passa sua dor
silenciosa nos olhos
que miram a chuva
por trás dos vidros    

alheia pelo que
somos

silêncio e melancolia


Adair Carvalhais Júnior

Soneto LXXXII

 Michel Pellus


La dulce boca que a gustar convida
Un humor entre perlas distilado,
Y a no invidiar aquel licor sagrado
Que a Júpiter ministra el garzón de Ida,

Amantes, no toquéis, si queréis vida;
Porque entre un labio y otro colorado
Amor está, de su veneno armado,
Cual entre flor y flor sierpe escondida.

No os engañen las rosas que a la Aurora
Diréis que, aljofaradas y olorosas
Se le cayeron del purpúreo seno;

Manzanas son de Tántalo, y no rosas,
Que pronto huyen del que incitan hora
Y sólo del Amor queda el veneno.


Luis de Góngora y Argote, "Soledades" 

Liberdade



– Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre nosso que sabia
A pedir-te, humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.
– Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
– Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.


Miguel Torga

Carta


Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.


Carlos Drummond de Andrade, Poesia completa

Solicitude



É preciso orientar as notas musicais
E cuidar do asilo das flores.
A criatura menos órfã do universo é a estrela
E a mais indiscreta, o homem.

O poeta guia a música.
A morte atrai o tempo,
O demônio atrai a guerra.

Tenho pena dos que vão nascer.


Murilo Mendes, "O Menino Experimental"

       
arthur braginski


 Es un sueño la vida,
pero un sueño febril que dura un punto;
         cuando de él se despierta,
se ve que todo es vanidad y humo...

         ¡Ojalá fuera un sueño
         muy largo y muy profundo!
¡Un sueño que durara hasta la muerte!...
Yo soñaría con mi amor y el tuyo.


Gustavo Adolfo Bécquer
De: Rimas, leyendas y narraciones




Vendo a noite

 Nik Helbig


Júpiter, Saturno.
De dentro de meu corpo
estou vendo
o universo noturno.

Velhas explosões de gás
que meu corpo não houve:
vejo a noite que houve
e não existe mais —

a mesma, veloz, em Troia,
no rosto de Heitor
— hoje na pele de meu rosto
no Arpoador.


Ferreira Gullar

Quartetos



Desdenho os teus passos
Retórica triste:
Sorrio na alma
De ti nada existe

Eu morro e remorro
Na vida que passa
Eu ouço teus passos
Compasso infernal

Nasci para a vida
De morte vivi
mas tudo se acasa
silêncio. Morri


Ana Cristina César, In Inéditos e dispersos

Para mim mesma

Svetlana Valueva


Para os meus olhos, quando chorarem,
Terem belezas mansas de brumas,
Que na penumbra se evaporarem...

Para os meus olhos, quando chorarem,
Terem doçuras de auras e plumas...

E as noites mudas de desencanto
Se constelarem, se iluminarem
Com os astros mortos que vêm no pranto...

As noites mudas de desencanto...
Para os meus olhos, quando chorarem...

Para os meus olhos, quando chorarem,
Terem divinas solicitudes
Pelos que mais os sacrificarem...

Para os meus olhos, quando chorarem,
Verterem flores sobre os paludes...

Para que os olhos dos pecadores
Que os humilharem, que os maltratarem,
Tenham carinhos consoladores.

Se, em qualquer noite de ânsias e dores,
Os olhos tristes dos pecadores
Para os meus olhos se levantarem...


Cecília Meireles

A Recepção



A recepcionista que me recebe na porta do céu é simpática. Digita meu nome no computador, sorrindo. Mas o sorriso desaparece de repente. É substituído por uma expressão de desapontamento.
Ai, ai, ai… – diz a recepcionista. – Aqui onde diz “Religião”. Está: “Nenhuma”
- Pois é…
- O senhor não tem nenhuma religião? Pode ser qualquer uma. Nós encaminhamos para o céu correspondente. Ou, se o senhor preferir reencarnação…
- Não, não. Não tem céu só pra ateu?
Não existe um céu só para ateus. Nem para agnósticos. Também não são permitidas conversões “post-mortem” ou adesões de última hora. E me deixar entrar numa eternidade em que nunca acreditei, talvez tirando o lugar de um crente, não seria justo, eu não concordo?
- Espere! – digo, dando um tapa na testa. – Me lembrei agora. Eu sou Univitalista.
- O que?
- Univitalista. É uma religião nova. Talvez por isso não esteja no computador.
- Em que vocês acreditam?
- Numa porção de coisas que eu não me lembro agora, mas a vida eterna é certamente uma delas. Isso eu garanto. Pelo menos foi o que me disseram quando me inscrevi.
A recepcionista não parece muito convencida mas pega um livreto que mantem ao lado do computador e vai direto na letra U. Não encontra nenhuma religião com aquele nome.
- Ela é novíssima – explico. – Ainda estava em teste.
A recepcionista sacode a cabeça mas diz que irá consultar o supervisor. Eu devo voltar ao meu lugar e esperar a decisão. Sento ao lado de outro descrente, que pergunta
- Você acredita nisto?
Eu… – começo a dizer, mas o outro não me deixa falar. – É tudo encenação. Tudo truque. Quem eles pensam que estão enganando?
E o outro se levanta e começa a chutar as nuvens que cobrem o chão da sala de espera.
- Olha aí. Isto é gelo seco! Você acha mesmo que existe vida depois da morte? Você acha mesmo que nós estamos aqui? É tudo propaganda religiosa! É tudo…
Salto sobre o homem, cubro sua cabeça com a camisola, atiro-o no chão e sento em cima dele. Para ele não estragar tudo. Claro que também acredito que aquilo é uma encenação. Mas seja o que for, durará uma eternidade.


Luís Fernando Veríssimo

Penélope, meio-dia

Serhiy Reznichenko


Está na cozinha, a sopa ao lume, os pratos na
mesa, talheres para dois, como se ele viesse. Hoje.
Ele não volta, anda embarcado há muitos anos num
navio com sal e ferrugem nos porões. Mas ela espera,
sabe que ele pode chegar a qualquer momento. Às
vezes espreita a telenovela ou as ervas a crescer junto
ao muro do quintal. No resto do tempo, faz e desfaz
o mesmo naperon, para enganar as horas, o frio,
a solidão e um corpo esquecido do que é o amor.


José Mário Silva

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Se Deus fosse mulher



“¿Y si Dios fuera una mujer?”
Juan Gelman


E se Deus fosse uma mulher?
Indaga Juan sem pestanejar
Ora, ora se Deus fosse mulher
É possível que agnósticos e ateus
Não disséssemos não com a cabeça
E disséssemos sim com as entranhas

Talvez nos aproximássemos de sua divina nudez
Para beijar seus pés não de bronze,
Seu púbis não de pedra,
Seus peitos não de mármore,
Seus lábios não de gesso.

Se Deus fosse mulher a abraçaríamos
Para arrancá-la de sua distância
E não haveria que jurar
Até que a morte nos separe
Já que seria imortal por antonomásia
E em vez de transmitir-nos Aids ou pânico
Nos contaminaria de sua imortalidade

Se Deus fosse mulher não se instalaria
Solitária no reino dos céus
Mas nos aguardaria no saguão do inferno
Com seus braços não cerrados,
Sua rosa não de plástico,
E seu amor não de anjo

Ai meu Deus, meu Deus
Se até sempre e desde sempre
Fosses uma mulher
Que belo escândalo seria,
Que afortunada, esplêndida, impossível,
Prodigiosa blasfêmia!


Mário Benedetti

As três palavras mais estranhas

photo © Alex Greenshpun



Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.

Quando pronuncio a  palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.




Wislawa Szymborska
Trad. Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011

Retrato 3


E a mim que ali me sentava, no pátio da Pousada Francesa, pareceu que o segredo da existência nada era senão um esqueleto de morcego no armário; e que nada era o enigma senão o entrecruzamento de uma teia de aranha; tão sólida ela parecia ser. Ela estava no sol, sentada. Não usava chapéu. A luz a fixava. Não havia sombra. Seu rosto era amarelo e vermelho; e arredondado; uma fruta num corpo; outra maçã, só que não no prato. Seios que se formaram no seu corpo com a dureza de maçãs sob a blusa.

Eu a observava. Sua pele vibrou como se uma mosca tivesse andado nela. Alguém passou; vi as folhas estreitas das macieiras tremerem vibradas por seu olhar. Sua rudeza, sua crueldade, era como casca grossa com líquen, e ela era, perenemente e inteiramente resolvido, o problema da vida.

Virgínia Woolf, Contos completos, p. 351

Poesias, a poesia é

Katarzyna Kurkowska


...poesias, a poesia é

- é como a boca
dos ventos
na harpa

nuvem
a comer na árvore
vazia que
desfolha a noite

raiz entrando
em orvalhos...

os silêncios sem poro

floresta que oculta
quem aparece
como quem fala
desaparece
na boca

cigarra que estoura o
crepúsculo
que a contém

o beijo dos rios
aberto nos campos
espalmando am álacres
os pássaros

- e é livre
como um rumo
nem desconfiado...


Manoel de Barros

Cartas a um jovem poeta (excerto)



Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda não podem amar: precisam aprender o amor. Com todo o seu ser, com todas as forças reunidas em seu coração solitário, receoso e acelerado, os jovens precisam aprender a amar. Mas o tempo de aprendizado é sempre um longo período de exclusão, de modo que o amor é por muito tempo, ao longo da vida, solidão, isolamento intenso e profundo para quem ama. A princípio o amor não é nada do que se chama ser absorvido, entregar-se e se unir com outra pessoa. Pois o que seria uma união do que não é esclarecido, do inacabado, do desordenado? O amor constitui uma oportunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa.


Rainer Maria Rilke


Ser feliz é uma responsabilidade muito grande. Pouca gente tem coragem. Tenho coragem mas com um pouco de medo. Pessoa feliz é quem aceitou a morte. Quando estou feliz demais, sinto uma angústia amordaçante: assusto-me. Sou tão medrosa. Tenho medo de estar viva porque quem tem vida um dia morre. E o mundo me violenta. Os instintos exigentes, a alma cruel, a crueza dos que não têm pudor, as leis a obedecer, o assassinato — tudo isso me dá vertigem como há pessoas que desmaiam ao ver sangue: o estudante de medicina com o rosto pálido e os lábios brancos diante do primeiro cadáver a dissecar. Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo o abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Deus.

Clarice Lispector, in 'Um Sopro de Vida'

L'amoureuse / A enamorada

Katarina Kiseleva


Elle est debout sur mes paupières
Et ses cheveux sont dans les miens,
Elle a la forme de mes mains,
Elle a la couleur de mes yeux,
Elle s’engloutit dans mon ombre
Comme une pierre sur le ciel.
Elle a toujours les yeux ouverts
Et ne me laisse pas dormir.
Ses rêves en pleine lumière
Font s’évaporer les soleils,
Me font rire, pleurer et rire,
Parler sans avoir rien à dire

***

Ela está de pé sobre minhas pálpebras
e seus cabelos estão nos meus
Ela tem a forma de minhas mãos
Ela tem a cor de meus olhos
Ela é devorada por minha sombra
Como uma pedra contra o céu.
Ela tem sempre os olhos abertos
E não me deixa dormir.
Seus sonhos em plena luz
Fazem evaporar os sóis
Me fazem rir, chorar e rir,
Falar sem ter nada a dizer.


Paul Éluard
Kadri Umbleja  


Meus amigos de vento e nuvem,
meus amigos sem rosto algum,
abrem caminhos, mudam casas,
estendem paredes sem fim.

Meus fluidos amigos, num mundo
que existe apenas para mim.

Que longas escadas tão belas,
que luzes sem chama, que amável
cena para uma vida eterna
em cor de amizade e jardim.

Meus amigos estão construindo
um mundo aéreo para mim.

Mãos tão frágeis levantam muros,
corpos voantes transportam ruas,
todos num silencio conjunto
e gestos de anjo e volantim.

Ah, meus invisíveis amigos
que entre os céus trabalhais por mim!


Cecília Meireles
In: Poesia Completa

Soneto



Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.


Mário Faustino

Estado de alma

Julia Davila lampe Photography


Se eu fosse pintor,
pintaria este dia de chuva...

Depois
me mudaria
para o meu quadro...


J.G. de Araújo Jorge

Amor em paz

Jeff Rowland


Eu amei
Eu amei, ai de mim, muito mais
Do que devia amar
E chorei
Ao sentir que iria sofrer
E me desesperar

Foi então
Que da minha infinita tristeza
Aconteceu você
Encontrei em você a razão de viver
E de amar em paz
E não sofrer mais
Nunca mais
Porque o amor é a coisa mais triste
Quando se desfaz


Vinicius de Moraes, Antonio Carlos Jobim

Arrebatamento

Howard Rogers


Eu não quero a ternura
quero o fogo
a chama da loucura desatada
quero a febre dos sentidos
e o desejo
o tumulto da paixão arrebatada

Eu não quero só o olhar
quero o corpo
abismo de navalha que nos mata
quero o cume da avidez
e do delírio
sequiosa faminta apaixonada

Eu não quero o deleite
do amor
quero tudo o que é voraz
Eu quero a lava


Maria Teresa Horta
Howard Rogers

 
Em tuas mãos o rumor
da vida que aqui crepita
que faz do fogo, pepita
e do seu brilho, calor

alma, percurso e casa
és tu ainda insígnia
e cerne da brasa ígnea
e carne da ígnea brasa

*

seja o poema abrigo
percurso, rosa acesa
rio, raio de surpresa
aura de rosto amigo

não me ocupa entrar
no poema ou dele sair:
se nele estou deixo-me ir
se dele saio é para voltar


António Gil  in «Obra ao rubro»

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Cor e destino

franz-dvorak-fd


Tive uma amiga chamada Ana – Ana Maria Scaraboto Asef. Digo tive, infelizmente, e não tenho, porque a Ana morreu, há pouco mais de um ano. Um dia, me contaram, sentou na sala, colocou a mão sobre o coração e disse: “Estou sentindo uma coisa estranha aqui". Fechou os olhos e morreu. Como um passarinho, diria minha avó, e eu sempre achava esquisito: passarinho, pra mim, morria com pedrada de bodoque. Não era nada suave, imagino. Prefiro pensar que Ana morreu como uma fada, se é que as fadas morrem. Mas isso é detalhe. O que importa é que Ana era mesmo meio fada.


Durante anos, ela estudou astrologia, quiromancia, numerologia, cabala, radiestesia, essas coisas. Estudou porque gostava, porque era mesmo meio fada. Não por causa de dinheiro. Ana era uma advogada muito conceituada. Bem, com tanto estudo, ela acabou formulando suas próprias teorias: descobriu as cores do tempo, as cores das horas, as cores dos nomes, as cores dos destinos. Quando nos conhecemos e ficamos amigos à primeira vista, batizei as teorias da Ana de cromologia (ou “conhecimento das cores”). Ela gostou do nome, costumava usá-lo quando começou a dar entrevistas e a ficar muito conhecida. Estava preparando um livro, quando um dia veio a morte e crau! De alguma forma, devia estar certa que fosse naquele dia, daquele jeito – levando a mão no coração, suspirando e fechando os olhos. Como uma fada.

Ana ficou em mim de muitas formas. A mais constante delas é que dei para pensar nas pessoas – não só nas pessoas, mas também nas situações, nas emoções – como tendo cores. Metade por causa das teorias de cromologia, metade por pura piração (ou poesia: quem é capaz de estabelecer a diferença?). Claro, tudo isso misturado com gosto pessoal. Que, você sabe, não se discute.

Então, acordar de manhã bem cedo, sair para a rua antes que as lojas se abram, com poucas pessoas e certa névoa ainda no ar, para mim é indiscutivelmente branco. Como são alaranjadas certas noites de energia solta no ar, na mesa de um bar ou assistindo a algum show. Como são verde bem clarinho certas tardes, principalmente as de inverno, quando há sol e, de repente, as coisas meio que param, infinitamente calmas. Há também momentos marrons: tentar trocar a fita corretiva desta máquina elétrica, coisa que nunca consigo fazer direito, embora consulte sempre as instruções. Esperar horas numa fila de banco, tentar atravessar a avenida Nove de Julho, em São Paulo, para mim, é completamente marrom. Quando surge alguma irritação, então vira marrom riscado de vermelho. Mas, vermelho total, só quando pinta ódio, vontade de gritar e bater. Filme de Stallone ou Schwarzenegger é vermelho – nada a ver com ideologia.

Tem também vozes, caras, pessoas. Suzanne Vega cantando Tom’s Diner é azul bem clarinho, azul-aquarela, meio transparente, quase branco. Já Vida Bandida, com Lobão, pende mais para o bordô. E Billie Holiday será sempre roxo, às vezes mais carregado, com a voz mais rouca das últimas gravações, às vezes suavemente violeta. A cara de Jânio Quadros varia do cinza-chumbo ao negro, mas a de Xuxa é enjoativamente rosa-choque, daquele que Jayne Mansfield adorava.

Destinos também têm cores – não sei até que ponto você escolhe ou as coisas se armam e, quando você se dá conta, a cor já está ali, definitiva. Sarney, por exemplo, acho que escolheu ou foi vítima de um destino marrom. Pelo menos a sensação que ele me dá é a mesma de tentar atravessar aquele corredor de ônibus na Nove de Julho. Aliás, políticos quase sempre são marrons. Elba Ramalho – quer apostar? – é puro amarelo: amarelo-grito, amarelo-estridente. Augusto de Campos me parece mais um destino azul-marinho, todo sóbrio. Caetano Veloso: azul-claro, às vezes vermelho. Lygia Fagundes Telles: puro bege.

E assim fico pensando em Ana. Que tinha um destino não de uma, mas de todas as cores. Quem dera o meu, o seu, o nosso fossem assim também. Que marrom não há de ser, nem cinza-chumbo. Pois, quando eu daqui, você daí, tão vadio quanto eu, pára e lê – deve haver alguma cor nisso. Espero que bem clarinha.

                                                 

Caio Fernando Abreu
(HV – Agosto/setembro 1987)

Cartas a um jovem poeta (trecho)



"(...)por isso, que fique registrado aqui, desde logo, um pedido meu: leia o mínimo possível de textos críticos e estéticos - ou são considerações parciais, petrificadas, que se tornaram destituídas de sentido em sua rigidez sem vida, ou são hábeis jogos de palavras, nos quais hoje uma visão sai vitoriosa, amanhã predomina a visão contrária. Obras de arte são de uma solidão infinita e nada pode passar tão longe de alcançá-las quanto a crítica. Apenas o amor pode compreendê-las, conservá-las e ser justo em relação a elas. Dê razão sempre a si mesmo e a seu sentimento, diante de qualquer discussão, debate e introdução; se o senhor estiver errado, o crescimento natural de sua vida íntima o levará lentamente, com o tempo, a outros conhecimentos. Permita a suas avaliações seguir o desenvolvimento próprio, tranquilo e sem perturbação, algo que, como todo avanço, precisa vir de dentro e não pode ser forçado nem apressado por nada. Tudo está em deixar amadurecer e então dar à luz. Deixar cada impressão, cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si, na escuridão do indizível e do inconsciente, em um ponto inalcançável para o próprio entendimento, e esperar com profunda humildade e paciência a hora do nascimento de uma nova clareza: só isso se chama viver artisticamente, tanto na compreensão quanto na criação.
Não há nenhuma medida de tempo nesse caso, um ano de nada vale, e mesmo dez anos não são nada. Ser artista significa: não calcular nem contar."


Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta. Porto Alegre: L&PM, 2009

Saudade a dois

© beckas
 
 A saudade tem prazo de validade. Não pode permanecer muito tempo guardada. Não pode permanecer muito tempo não sendo correspondida. Depois de aberta e fora do convívio, assim como o leite, a saudade azeda. E não há memória refrigerada para conservá-la. Quando passa da hora, aquela falta ansiosa e comovente é capaz de se tornar ironia e sarcasmo. O suspiro se transforma em ofensa – nos enxergaremos tolos e burros por confiar cegamente em alguém e esperar à toa. Reclamaremos nossa idiotice por termos feito uma vigília em vão, por termos esquecido de viver. Já não queremos que o outro volte, já desejamos que ele nunca mais apareça em nossa frente. Violentaremos as lembranças, fecharemos a reza. A ternura de antes será trocada pela raiva de não ser atendido. Mudaremos a personalidade de nossa conversa, de doce para ácida. Pois o segredo (a saudade é um segredo!) que nos alimentou durante meses não fora respeitado. Infelizmente, a saudade apodrece. Quando deixamos de pedir a presença para cobrar a ausência. É sutil o movimento. Toda a atenção dedicada ao longo de um período começa a ser vista como desperdício. Não aconteceu retorno das juras, nem o estorno das expectativas. Você mandou centenas de mensagens, renunciou saídas com amigos e bares, teve uma vida discreta e fiel, só para honrar uma despedida, e percebeu que, no fim, sempre esteve sozinho na saudade. Saudade é como o amor. Perece quando não é a dois. Aliás, quando a saudade não é a dois, deixa de ser saudade para se descobrir solidão. A saudade é o que guardamos do amor para o futuro. É o que deixamos para amar no futuro. Nada dói tanto quanto um amor que não vingou após os cuidados do plantio. Nada dói tanto quanto a saudade que envelhece, uma saudade que definhou pela indiferença, que não foi valorizada pela nossa companhia, que não desembocou em festa. Nada dói tanto quanto promessas feitas gerando ressentimento. A saudade não é eterna. Acaba quando percebemos que o amor era da boca para fora, que a urgência era interesse, que a necessidade era falsa. A saudade é uma esperança de amor. Precisa ser consumida rapidamente, não mais que três meses. Senão, nos consome e nos estraga.


Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora Coluna semanal, p. 2, 03/12/2013 Porto Alegre (RS), Edição N° 17633

Ilusão



Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes
Tudo que sentes. A infelicidade
Parece às vezes com a felicidade
E os infelizes mostram ser felizes!

Assim, em Tebas - a tumbal cidade,
A múmia de um herói do tempo de Ísis,
Ostenta ainda as mesmas cicatrizes
Que eternizaram sua heroicidade!

Quem vê o heroi, inda com o braço altivo,
Diz que ele não morreu, diz que ele é vivo,
E, persuadido fica do que diz...

Bem como tu, que nessa crença infinda
Feliz me viste no Passado, e ainda
Te persuades de que sou feliz!


Augusto dos Anjos

Em meu ofício ou arte taciturna

Haleh Bryan


 Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.

Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso 
Que se afasta da lua enfurecida 
Nem para os mortos de alta estirpe 
Com seus salmos e rouxinóis, 
Mas para os amantes, seus braços 
Que enlaçam as dores dos séculos, 
Que não me pagam nem me elogiam 
E ignoram meu ofício ou minha arte.


Dylan Thomas
(tradução: Ivan Junqueira) 
Emilia Wilk 


inventei a dança para me disfarçar. 
Ébria de solidão eu quis viver. 
E cobri de gestos a nudez da minha alma 
Porque eu era semelhante às paisagens esperando 
E ninguém me podia entender. 


Sophia de Mello Breyner Andresen
In Coral, 1950 


[12] - O livro do desassossego



Invejo — mas não sei se invejo — aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.

Que há de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço.
Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Crochê das coisas… Intervalo… Nada…
De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo… Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter… Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo… Sim, crochê…


Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
O livro do desassossego

Para Cecília Meireles



Nós colhíamos flores de hastes muito longas
E cujos nomes nem ao menos conhecíamos...
E nem sequer, também, sabíamos os nossos nomes...
E para quê, se um para o outro éramos Tu, apenas...
Ou quem sabe a Morte nos houvera bordado
numa tapeçaria
A que o vento emprestasse a vida por um momento?
E por isso os nossos gestos eram ondulantes como
as plantas marinhas
E as nossas palavras como asas suspensas no vento...


Mario Quintana
In: Preparativos de Viagem


Chico Buarque, Leite Derramado (trecho)




Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda ainda não houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você ver televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposentos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. Não sei se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tanta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mulher gostava de sol, voltava sempre afogueada das tardes no areal de Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo, e de qualquer forma eu não moraria com você na casa de outro casamento, moraremos na fazenda da raiz da serra. Vamos nos casar na capela que foi consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro em mil oitocentos e lá vai fumaça. Na fazenda você tratará de mim e de mais ninguém, de maneira que ficarei completamente bom. E plantaremos árvores, e escreveremos livros, e se Deus quiser ainda criaremos filhos nas terras de meu avô. Mas se você não gostar da raiz da serra por causa das pererecas e dos insetos, ou da lonjura ou de outra coisa, poderíamos morar em Botafogo, no casarão construído por meu pai. Ali há quartos enormes, banheiros de mármore com bidês, vários salões com espelhos venezianos, estátuas, pé-direito monumental e telhas de ardósia importadas da França. Há palmeiras, abacateiros e amendoeiras no jardim, que virou estacionamento depois que a embaixada da Dinamarca mudou para Brasília. Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro. Mas se amanhã eu vender a fazenda, que tem duzentos alqueires de lavoura e pastos, cortados por um ribeirão de água potável, talvez possa reaver o casarão de Botafogo e restaurar os móveis de mogno, mandar afinar o piano Pleyel da minha mãe. Terei bricolagens para me ocupar anos a fio, e caso você deseje prosseguir na profissão, irá para o trabalho a pé, visto que o bairro é farto em hospitais e consultórios. Aliás, bem em cima do nosso próprio terreno levantaram um centro médico de dezoito andares, e com isso acabo de me lembrar que o casarão não existe mais. E mesmo a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia. Estou pensando alto para que você me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que você me transcreva sem precisar ser taquígrafa, você está aí? Acabou a novela, o jornal, o filme, não sei por que deixam a televisão ligada, fora do ar. Deve ser para que esse chuvisco me encubra a voz, e eu não moleste os outros pacientes com meu palavrório. Mas aqui só há homens adultos, quase todos meio surdos, se houvesse senhoras de idade no recinto eu seria mais discreto. Por exemplo, jamais falaria das putinhas que se acocoravam aos faniquitos, quando meu pai arremessava moedas de cinco francos na sua suíte do Ritz. Meu pai ali muito compenetrado, e as cocotes nuinhas em postura de sapo, empenhadas em pinçar as moedas no tapete, sem se valer dos dedos. A campeã ele mandava descer comigo ao meu quarto, e de volta ao Brasil confirmava à minha mãe que eu vinha me aperfeiçoando no idioma. Lá em casa como em todas as boas casas, na presença de empregados os assuntos de família se tratavam em francês, se bem que, para mamãe, até me pedir o saleiro era assunto de família. E além do mais ela falava por metáforas, porque naquele tempo qualquer enfermeirinha tinha rudimentos de francês. Mas hoje a moça não está para conversas, voltou amuada, vai me aplicar a injeção. O sonífero não tem mais efeito imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio de pensamentos. Ouço ruídos de gente, de vísceras, um sujeito entubado emite sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa. O médico plantonista vai entrar apressado, tomar meu pulso, talvez me diga alguma coisa. Um padre chegará para a visita aos enfermos, falará baixinho palavras em latim, mas não deve ser comigo. Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustém pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco.


Chico Buarque, Leite derramado
Companhia das letras, p. 5-8

domingo, 15 de dezembro de 2013

Amadurecendo com as pedras

Duong Quoc Dinh


Do lado de fora da casa, umas pedras. Muitas pedras. E de muitos tamanhos. Estamos chegando na casa-ateliê de um escultor. Há também flores. Pedras e flores. E o amor-perfeito, que floresce bem no inverno aqui em Bento Gonçalves. Entramos nessa casa (fora da cidade) e damos de cara com um estúdio onde estão expostas obras de Bez Batti .Os amigos o chamam de João, seu primeiro nome. Cabelos brancos, simples. Dizem que foi carteiro. Conheciam-no apenas como o carteiro João. Mas era um condenado à arte. As pedras o olhavam. Ele olhava as pedras. Havia uma tensão amorosa entre eles. Um dia se encontrariam como a pedra e a água que se moldam na correnteza do rio. Ontem ele esteve ao meu lado, calado, assistindo à abertura do Festival Internacional de Poesia (onde homenagearam Mariana Colasanti). As coisas sucediam no palco, poetas, atores e mímicos se apresentavam e ele estava ali ao meu lado, mas eu não conhecia suas obras. Erro meu. Tenho errado muito com meus desconhecimentos. Agora em sua casa/ateliê constato: é um escultor visceral. E modesto. Trabalha no duro, sobre o dificílimo, nessa pedra chamada basalto de cor escura, na verdade quase intrabalhável. Ele diz que os egípcios esculpiam essa pedra, enquanto os gregos preferiam o mármore. Mas o mármore é frágil, as esculturas gregas tem marcas dessa destruição temporal. Andando pelo seu ateliê vendo a transformação que opera sobre a matéria bruta, falamos sobre arte. Surpreendo-me: vejo sobre a mesa o exemplar do "O Enigma Vazio", que furtivamente autografo para ele. Guimarães Rosa dizia aquela frase (que o Israel Vargas colocou em sua tese sobre física nuclear: "quem mói no aspr’o não fantaseia"). A frase tem sabedoria, mas tirada do contexto, pode ser contestada: o escultor que trabalha no "aspr’ o" também "fantaseia" que nem o poeta. E Bez Batti, desanimado diante do que apresentam como arte nas galerias e bienais, me pergunta: -Você acha que ainda pode haver um novo Renascimento? Questão preenhe de dilacerações. Como seria bom que as artes conhecessem novo florescimento! Como seria bom que saíssemos desse "nonada" em que as artes se meteram no século XX e redescobríssemos o passado, como fizeram os mestres do Renascimento! Bez Batti ama Matisse. Também acha que Picasso pilhava obras alheias. Lembrei-me aquela frase de Picasso: "eu não procuro, eu acho". Claro, ele via o que Matisse, Juan Griz e Cézanne estavam fazendo e fazia sua "releitura". Com talento, claro. O que um poeta pode aprender com um escultor? Quais as lições da pedra? Um dia, junto com Rubem Braga, visitei o ateliê do escultor gaúcho Francisco Stockinger. E este disse uma coisa que gravei: as pedras amadurecem. Há pedras verdes e maduras. O problema é que temos pouco tempo de vida para ver as transformações milenares da pedra. Uma vez no deserto de Atacama, no Chile, contemplei abismado as pedras que ali estavam amadurecendo há milhões de anos. Quando eu desaparecer, elas continuarão sua intemporal trajetória. Bez Batti nos mostra algo assombroso. Uma pedra de milhões de anos que tem dentro de si uma poça d´agua. Exatamente. Por sortilégios vários a água filtrou-se pedra adentro e ficou ali retida. Assombroso: uma pedra com água dentro. A água se move atrás da superfície polida da pedra. Há milhões e milhões de anos. O liquido e o sólido num só corpo. Olho aquilo. Tomo a pedra com água dentro em minhas mãos. É uma metáfora viva, a convivência dos opostos e dos elementos complementares. A pedra tem lições a dar mesmo nos desertos. A água nos dá sempre lições de vida, com seus ventos e tormentos. E prossegue nos esculpindo.

Affonso Romano de Sant’Anna
Estado de Minas, 6.10.2013
Jon PAUL  


Ao golpe da onda contra a pedra indócil
estala a claridade e estabelece sua rosa
e o círculo do mar se reduz a um cacho,
a uma só gota de sal azul que tomba.

Oh radiante magnólia desatada na espuma,
magnética viageira cuja morte floresce
e eternamente volta a ser e a não ser nada:
sal roto, deslumbrante movimento marinho.

Juntos tu e eu, amor meu, selamos o silêncio,
enquanto o mar destrói suas constantes estátuas
e derruba suas torres de enlevo e brancura,

porque na trama destes tecidos invisíveis
da água entornada, da incessante areia,
sustentamos a única e acossada ternura.


Pablo Neruda



Uma pessoa adormece:
ramo de vida sozinho
na pedra escura da noite
pousado.

E em sua cabeça a flor
dos sonhos já se arredonda,
com muitas seivas trazidas
do caos.

Uma leve brisa apenas
anima esse ramo calmo
e os lábios desse perfume
exausto.

Ah... se essa brisa parasse!
que sonhariam os sonhos
do frágil ramo, na vida
pousado? 


Cecília Meireles
Metal Rosicler (1960)

Dísticos

Aimee Stewart

No princípio era o luar, com as suas
veias de leite e os seios a arfar.

E vieram os sonhos brancos da madrugada,
que vestiram as folhas de geada.

Nasceu nos teus ombros a manhã,
curvada como a figueira anã.

Nada disto se pode dizer
quando não há maneira de te esquecer.


Nuno Júdice

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O Primeiro Beijo



Durante todas as noites desse verão, as estrelas foram líquidas no céu. Quando eu as olhava, eram pontos líquidos de brilho no céu. Na primeira vez, encontramo-nos durante o dia: eu sorri-lhe, ela sorriu-me. Dissemos duas ou três palavras e contivemo-nos dentro dos nossos corpos. Os olhos dela, por um instante, foram um abismo onde fiquei envolto por leveza luminosa, onde caía como se flutuasse: cair através do céu dentro de um sonho.

Naquela noite, fiquei a esperá-la, encostado ao muro, alguns metros depois da entrada da pensão. As pessoas que passavam eram alegres. Eu pensava em qualquer coisa que me fazia sentir maior por dentro, como a noite. As folhas de hera que cobriam o cimo do muro, e que se suspendiam sobre o passeio, eram uma única forma noturna, feita apenas de sombras. Primeiro, senti as folhas de hera a serem remexidas; depois, vi os braços dela a agarrarem-se ao muro; depois, o rosto dela parado de encontro ao céu claro da noite. E faltou uma batida ao coração.

O mundo parou. Sombras pousavam-lhe, transparentes, na pele do rosto. O ar fresco, arrefecido, moldava-lhe a pele do rosto. E o mundo continuou. Ajudei-a a descer. Corremos pelo passeio de mãos dadas. A minha mão a envolver a mão fina dela: a força dos seus dedos dentro dos meus. Na noite, os nossos corpos a correrem lado a lado. Quando paramos: as nossas respirações, os nossos rostos admirados um com o outro: olhamo-nos como se nos estivéssemos a ver para sempre. Quando os meus lábios se aproximaram devagar dos lábios dela e nos beijamos, havia reflexos de brilho, como pó lançado ao ar, a caírem pela noite que nos cobria.


José Luís Peixoto, in 'Cemitério de Pianos'


Bebedor de luas me embriago,
negro no fundo negro das vielas
e me dissolvo, sem passo, no abismo
onde o tempo naufraga sem lembrança.

Um rio sustenta a tua boca,
duas margens de água e carne,
duas feridas de um desejo que do corpo se perdeu.

Não fosse a tua boca
água nua esperando um barco
e morreria eu de amar,
e morrerias tu sem mar.

Mas do sempre que fomos
o que restou?
Silêncio aos pedaços,
palavras que em lágrima se soletram.

E são de aves
as folhas que tombam
e não há chão nem vento onde se deitem.

Melhor dormir se o tempo se faz sem ti
e guardar-te em sonho
até tu mesmo seres noite.

Desperto: todas as pedras secaram,
saudosas de carícia tua.
Todas as luas ficaram por nascer
sedentas dos olhos que são teus.

Depois volto a beber
o luminoso veneno em que escureço
e o dia regressa,
mendigo e magro,
buscando em mim
lembrança de um amor
que de tanto ser
não saberá nunca ter lembrança.

Mia Couto

Atravesso a noite na curva das dunas



Não é fácil esquecer as praias
em que se desdobram cenas de algas e navios.
Em qualquer parte da suspeita
há uma ilha encantada com castelos de areia,
um litoral de silêncios para além das metáforas,
uma insônia entreaberta a todos os mares.
Atravesso a noite na curva das dunas.
Amanhã, o cais será o coração dos homens,
e as pedras perguntarão por que motivo
é mais soluçado o bater das ondas.
Então, celebrarei a brevidade
do êxtase que não cabe no poema.


Graça Pires

A mudança

Christiane Vleugels

 
Mudo todas as horas.
E o tempo, sem demora,
muda mais do que fia.

Mudo mas permaneço
bem longe das mudanças.
Como uma flor, floresço.
Sou pétala e esperança.

Mudo e sou sempre o mesmo,
igual a um tiro a esmo.
Como um rio que corre.

Sem sair de onde estou,
de tanto mudar sou
o que vive e o que morre.


Lêdo Ivo, in "Plenilúnio"

Nada duas vezes

Arthur Braginski


Duas vezes nada acontece
nem acontecerá. E assim sendo,
nascemos sem prática
e sem rotina vamos morrendo.

Nesta escola que é o mundo,
mesmo os piores
nunca repetirão
nenhum inverno, nenhum verão.

Os dias não podem ser repetidos,
não há duas noites iguais,
não há beijos parecidos,
não se troca o mesmo olhar.

Ontem, o teu nome
em voz alta pronunciado
foi como se uma rosa
me tivessem atirado.

Hoje, ao teu lado,
voltei a cara para a parede.
Rosa? O que é uma rosa?
Será flor? Talvez rocha?

Porque tu, ó má hora,
me trazes a vã tristeza?
Se és, tens de passar.
Passarás - e daí a tua beleza.

Abraçados, enlevados,
tentaremos vencer a mágoa,
mesmo sendo diferentes
como duas gotas de água.


Wislawa Szymborska in "Alguns gostam de poesia"
Christian Schloe  


Entre mil dores palpitava a flor antiga,
quando o tempo anunciava um suspiro do vento.
Cada seta de sombra era um sinal de morte.

Lento orvalho embebeu de um consante silêncio
o manso labirinto em que a abelha sussurra,
o aroma de veludo em seus bosques perdido.

Hoje, um céu de cristal protege a flor imóvel.
Não se sabe se é morta e parada em beleza,
ou viva e acostumada às condições da morte.

Mas o vento que passa é um passante longíquo:
à flor antiga não perturba o exato rosto
sem esperanças nem temores nem certezas.

Pálido mundo só de memória.


Cecilia Meireles, In Solombra
Chen Yifei

 Quem terá deixado esquecida
esta música ouvida num canto de rua?
Ninguém de quem passa nela repara
No entanto - é ela - faltava
no dia de chuva
No meu dia de chuva?
Meu seria decerto este dia
pois por mais precário que eu seja
nenhuma chuva fora podia
cair se acaso em mim não caísse
Cai chuva e há música em meu coração
Era mera ilusão o dia de chuva


Ruy Belo

Strip-Tease


41

se vivo só
é marcha-a-ré
se nego o sol
Só penso em mi
se sofro lá
ninguém tem dó
se você fá
eu quero si


42

se você for
exatamente como imagino
igualzinho aos meus sonhos
eu vou embora
detesto desmancha-prazeres


43

caprichei na meia-calça
preparei a meia-luz
irrompi à meia-noite

ficou tudo meia-boca



44

quando dou pra ti
Sou mulher
quando dou por mim
solidão


45

estou assim tão melada de coisas
prontas
tudo começou a pouco
e já estou tão tonta...


 46

bicho papão
viu moça em flor
e papoula


47

strip-tease
compreender que a gente
e morre e nasce
e morre
e nasce
todo dia

strip-tease
todo dia a gente nasce
pra noite

strip-tease
toda noite
ainda é o mesmo dia


Martha Medeiros
Illustrations by Soleil Ignacio