domingo, 20 de fevereiro de 2022

Artist Aaron Griffin

  

"Sim, tenho os olhos fechados à vossa luz. Sou um bicho, um negro. Mas posso ser salvo. Vocês são falsos negros, vocês, maníacos, ferozes, avarentos. Mercador, tu és negro; juiz, tu és negro; general, tu és negro; imperador, velha coceira, tu és negro: bebeste de um licor não taxado, da fábrica de Satanás. - Este povo é inspirado pela febre e pelo câncer. Deficientes e velhinhos são tão respeitáveis que pedem para ser fervidos. - O mais esperto é deixar este continente, onde a loucura circula para providenciar reféns a estes miseráveis. Eu entro no verdadeiro reino dos filhos de Cham. Conheço ainda a natureza? Me conheço ainda? - Chega de palavras. Enterro os mortos na minha barriga. Gritos, tambor, dança, dança, dança, dança! Nem vejo a hora quando, os brancos desembarcando, eu cairei no vazio. Fome, sede, gritos, dança, dança, dança, dança!" 


Arthur Rimbaud

arthur-braginsky

 

Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos

me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse

inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia

sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo

senão o grau do Terrível que ainda suportamos

e que admiramos porque, impassível, desdenha

destruir-nos? Todo Anjo é terrível.

E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo

do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia

valer? Nem Anjos, nem homens

e o intuitivo animal logo adverte

que para nós não há amparo

neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,

a árvore de alguma colina, que podemos rever

cada dia; resta-nos a rua de ontem

e o apego cotidiano de algum hábito

que se afeiçoou a nós e permaneceu.

E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços

do mundo desgasta-nos a face – a quem se furtaria ela,

a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o

coração solitário? Será mais leve para os que se amam?

Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino.

Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços

para os espaços que respiramos – talvez os pássaros

sentirão o ar mais dilatado, num voo mais comovido.


Sim, as primaveras precisavam de ti.

Muitas estrelas queriam ser percebidas.

Do passado profundo afluía uma vaga, ou

quando passavas sob uma janela aberta,

um violino d’amore se abandonava. Tudo isto era missão.

Acaso a cumpriste? Não estavas sempre

distraído, à espera, como se tudo

anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la,

se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm

dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)

Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;

ainda não é bastante imortal sua celebrada ternura.

Tu quase as invejas – essas abandonadas

que te pareceram tão mais ardentes que as

apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável

louvor. Lembra-te: o herói permanece, sua queda

mesma foi um pretexto para ser – nascimento supremo.


Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio

esgotado, como se as forças lhe faltassem

para realizar duas vezes a mesma obra.

Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,

cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem

qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou

como ela? Frutificarão afinal esses longínquos

sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se

do objeto amado e superá-lo, frementes?

Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no voo

mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.


Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas

os santos ouviam, quando o imenso chamado

os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados,

os prodigiosos, e nada percebiam,

tão absortos ouviam. Não que possas suportar

a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,

a incessante mensagem que o silêncio prodiga.

Ergue-se agora, para que ouças, o rumor

dos jovens mortos. Onde quer que fosses,

nas igrejas de Roma e Nápoles, não ouvias a voz

de seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,

sublimes? A estela funerária em Santa Maria Formosa…

O que pede essa voz? A ansiada libertação

da aparência de injustiça que às vezes perturba

a agilidade pura de suas almas.


É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,

abandonar os hábitos apenas aprendidos,

às rosas e a outras coisas singularmente promissoras

não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano;

o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,

não mais o ser; abandonar até mesmo o próprio nome

como se abandona um brinquedo partido.

Estranho, não desejar mais nossos desejos. Estranho,

ver no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar,

desligado. E o estar-morto é penoso

e quantas tentativas até encontrar em seu seio

um vestígio de eternidade. – Os vivos cometem

o grande erro de distinguir demasiado

bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem

se caminham entre vivos ou mortos.

Através das duas esferas, todas as idades a corrente

eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.


Os mortos precoces não precisam de nós, eles

que se desabituam do terrestre, docemente,

como de suave seio maternal. Mas nós,

ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes

só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles

poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira

música para lamentar Linos, violentou a rigidez da

matéria inerte? No espaço que ele abandonava, jovem,

quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu

em vibrações – que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.

 

 Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno

Pedro Schirato



A casa como se fosse a crisálida,

e os seus habitantes esperando - os seres

do casulo, aprendendo a vida.


Não bato à porta, para

não os perturbar, nem saber

as feições do seu rosto, o som

da sua voz, a articulação

de uma frase sem fim.


Mas o olhar que atravessa

as paredes, como o vidro transparente

da eternidade, adivinha os corpos

em volta da mesa, os brindes

que secaram nos seus copos,

os olhares cúmplices

no viço dos minutos.


E entro pela porta fechada,

juntando-me ao grupo dos que

acordam para a vida.


 Nuno Júdice 

Painting by Marco Grassi


Quem me fita? Os teus olhos 

ou o teu coração?


Casimiro de Brito

Livro do desassossego [107]



Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e nunca reconhecem quando encontram; daquelas que, se elas as reconhecessem, mesmo assim não as reconheceriam. Sofro a delicadeza dos meus sentimentos com uma atenção desdenhosa. Tenho todas as qualidades, pelas quais são admirados os poetas românticos, mesmo aquela falta dessas qualidades, pela qual se é realmente poeta romântico. Encontro-me descrito (em parte) em vários romances como protagonista de vários enredos; mas o essencial da minha vida, como da minha alma, é não ser nunca protagonista.

Não tenho uma ideia de mim próprio; nem aquela que consiste em uma falta de ideia de mim próprio. Sou um nômade da consciência de mim. Tresmalharam-se à primeira guarda os rebanhos da minha riqueza íntima.

A única tragédia é não nos podermos conceber trágicos. Vi sempre nitidamente a minha coexistência com o mundo. Nunca senti nitidamente a minha falta de coexistir com ele; por isso nunca fui um normal.

Agir é repousar.

Todos os problemas são insolúveis. A essência de haver um problema é não haver uma solução. Procurar um fato significa não haver um fato.

Pensar é não saber existir.

Passo horas, às vezes, no Terreiro do Paço, à beira do rio, meditando em vão. A minha impaciência constantemente me quer arrancar desse sossego, e a minha inércia constantemente me detém nele. Medito, então, em uma modorra de físico, que se parece com a volúpia apenas como o sussurro de vento lembra vozes, na eterna insaciabilidade dos meus desejos vagos, na perene instabilidade das minhas ânsias impossíveis. Sofro, principalmente, do mal de poder sofrer. Falta-me qualquer coisa que não desejo e sofro por isso não ser propriamente sofrer.

O cais, a tarde, a maresia entram todos, e entram juntos, na composição da minha angústia. As flautas dos pastores impossíveis não são mais suaves que o não haver aqui flautas e isso lembrar-mas. 

Os idílios longínquos, ao pé de riachos, doem-me esta hora análoga por dentro,(...)ar


Bernardo Soares. Fernando Pessoa

O livro do desassossego

LER E ESCREVER


“De todo o escrito só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito.

Não é fácil compreender sangue alheio: eu detesto todos os ociosos que leem.

O que conhece o leitor já nada faz pelo leitor. Um século de leitores, e o próprio espírito terá mau cheiro.

Ter toda a gente o direito de aprender a ler é coisa que estropia, não só a letra mas o pensamento.

Noutro tempo o espírito era Deus; depois fez-se homem; agora fez-se populaça.

O que escreve em máximas e com sangue não quer ser lido, mas decorado. Nas montanhas, o caminho mais curto é o que medeia de cimo a cimo; mas para isso é preciso ter pernas altas. Os aforismos devem ser cumeeiras, e aqueles a quem se fala devem ser homens altos e robustos.

O ar leve e puro, o próximo perigo e o espírito cheio de uma alegre malícia, tudo isto se harmoniza bem.

Eu quero ver duendes em torno de mim porque sou valoroso. O valor que afugenta os fantasmas cria os seus próprios duendes: o valor quer rir.

Eu já não sinto em uníssono convosco; essa nuvem que eu vejo abaixo de mim, esse negrume e carregamento de que me rio, é precisamente a vossa nuvem tempestuosa.

Vós olhais para cima quando aspirais a vos elevar. Eu, como estou alto, olho para baixo.

Qual de vós pode estar alto e rir ao mesmo tempo?

O que escala elevados montes ri-se de todas as tragédias da cena e da vida.

Valorosos, despreocupados, zombeteiros, violentos, eis como nos quer a sabedoria. É mulher e só lutadores podem amar.

Vós dizeis-me: “A vida é uma carga pesada”. Mas, para que é esse vosso orgulho pela manhã e essa vossa submissão, à tarde?

A vida é uma carga pesada; mas não vos mostreis tão contristados. Todos somos jumentos carregados.

Que parecença temos com o cálice de rosa que treme porque o oprime uma gota de orvalho?

É verdade: amamos a vida não porque estejamos habituados à vida, mas ao amor.

Há sempre o seu quê de loucura no amor; mas também há sempre o seu quê de razão na loucura.

E eu, que estou bem com a vida creio que para saber de felicidade não há como as borboletas e as bolhas de sabão, e o que se lhes assemelhe entre os homens.

Ver revolutear essas almas aladas e loucas, encantadoras e buliçosas, é o que arranca a Zaratustra lágrimas e canções.

Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar.

E quando vi o meu demônio, pareceu-me sério, grave, profundo e solene: era o espírito do pesadelo. Por ele caem todas as coisas.

Não é com cólera, mas com riso que se mata. Adiante! matemos o espírito do pesadelo!

Eu aprendi a andar; por conseguinte corro. Eu aprendi a voar; por conseguinte não quero que me empurrem para mudar de sítio.

Agora sou leve, agora voo; agora vejo por baixo de mim mesmo, agora salta em mim um Deus”.


Assim falou Zaratustra


 "As palavras mais calmas são aquelas que trazem a tempestade, pensamentos que se aproximam em passos de pomba dirigem o mundo..."

Friedrich Nietzsche

A montanha mágica

 



Com o máximo de impaciência que seu temperamento lhe permitia, procurara olhar para além das semanas vindouras. Nesse momento, porém, parecia-lhe que as circunstâncias exigiam dele plena atenção, não lhe sendo licito menosprezá-las. Essa sensação de ser alçado a regiões cujos ares nunca respirara, e onde, como sabia, reinavam condições de vida particularmente rarefeitas e reduzidas, a que em absoluto não estava acostumado – essa sensação começava a excitá-lo, a enchê-lo de certa angústia. O torrão natal e a rotina de sempre haviam ficado não somente para trás, muito para trás, mas sobretudo a grande profundidade abaixo dele; e a ascensão continuava a afastá-los mais ainda. Pairando entre eles e o desconhecido, Hans Castorp perguntava-se como passaria lá em cima. Talvez fosse imprudente e prejudicial para ele, que nascera a poucos metros acima do mar e se habituara ao ar da sua terra, deixar-se transportar tão subitamente a esses sítios extremos, sem pelo menos se demorar por alguns dias num lugar de altitude média. Ansiava por chegar ao fim da viagem; pois, uma vez lá em cima – pensava –, devia-se viver como em toda parte, sem que lhe fossem recordadas, como agora, durante a escalada, as esferas impróprias em que se encontrava. Hans Castorp olhou pela janela. O trem serpenteava, sinuoso, através de um desfiladeiro estreito. Viam-se os primeiros vagões, via-se a locomotiva vomitando, no seu esforço, golfadas de fumaça parda, esverdeada e negra que logo se dissipavam. Nas profundidades, à direita, murmuravam cursos d'água; à esquerda, pinheiros escuros buscavam por entre os rochedos as alturas de um céu cinzento como pedra. Túneis tenebrosos iam desfilando, e quando reaparecia a luz, rasgavam-se dilatados abismos com povoados no seu fundo. Logo se fechavam os abismos, seguidos por novos desfiladeiros com restos de neve nas gretas e fendas. Havia paradas diante das casinhas miseráveis de estações pequenas; surgiam desvios onde o trem dava marcha à ré, o que produzia um efeito desnorteante, já que era difícil saber em que direção se ia e recordar os pontos cardeais. Abriam-se grandiosos panoramas do universo de cumes alpinos, um amontoado solene e fantasmagórico, que o trem procurava alcançar e galgar; e logo no próximo meandro da estrada voltavam a subtrair-se ao olhar reverente. Hans Castorp notou que deixara para trás a zona das árvores frondosas e, se não se enganava, também a dos pássaros canoros. Esta ideia de cessação e empobrecimento fez com que ele, acometido de um ligeiro acesso de vertigem e mal-estar, cobrisse por dois segundos os olhos com a mão. Mas isso passou. Viu então que terminara a ascensão; estava vencido o ponto culminante do passo. O trem corria confortavelmente no fundo plano de um vale. 


Thomas Mann, A Montanha Mágica 



Festa

Roman Velichko


Eu desdobrei minha orfandade

sobre a mesa, como um mapa.

Desenhei o itinerário

para meu lugar ao vento.

Os que chegam não me encontram.

Os que espero não existem.

E bebi licores furiosos

para transmutar os rostos

em um anjo, em copos vazios.


Alejandra Pizarnik

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Tina Spratt

 

Deixa-me reinar em ti

o tempo apenas de um relâmpago

a incendiar a erva seca dos cumes.

E se tiver que montar guarda,

que seja em redor do teu sono,

num êxtase de lábios sobre a relva,

num delírio de beijos sobre o ventre,

num assombro de dedos sob a roupa.

Eu estava morto e não sabia, sabes,

que há um tempo dentro deste tempo

para renascermos com os corais

e sermos eternos na sofreguidão de um instante.


José Jorge Letria

Livro do Desassossgo [40]

 


Sinto-me às vezes tocado, não sei por quê, de um prenúncio de morte… Ou seja, uma vaga doença, que se não materializa em dor e por isso tende a espiritualizar-se em fim, ou seja, um cansaço que quer um sono tão profundo que o dormir lhe não basta — o certo é que sinto como se, no fim de um piorar de doente, por fim largasse sem violência ou saudade as mãos débeis de sobre a colcha sentida.

Considero então que coisa é esta a que chamamos morte. Não quero dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver.

A humanidade tem medo da morte, mas incertamente; o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribui a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Por que o há de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é o acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo; nem sei como pode alguém assemelhar a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que a comparar.

A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira.


Bernardo Soares. Fernando Pessoa

Livro do Desassossego

Aforismos para a sabedoria de vida

 

Rolf Kullen 


Quando a vida aproxima-se do fim, não sabemos o que aconteceu com ela. Por que na velhice a vida que se tem detrás de si parece tão breve? Porque a consideramos tão curta como a recordação que conservamos dela. Consequentemente, tudo o que nela foi insignificante e grande parte do que foi doloroso foi esquecido e, portanto, resta muito pouca coisa. Porque do mesmo modo como nossa inteligência, em geral, é muito imperfeita, assim também a memória. Devemos exercitar aquilo que aprendemos com a experiência e ruminar nosso passado se não quisermos que ambos desapareçam lentamente no abismo do esquecimento. Porém, normalmente, não gostamos de ruminar o que foi insignificante, menos ainda aquilo que foi doloroso; não obstante, isso é indispensável se quisermos conservar sua lembrança. As coisas insignificantes se fazem cada vez mais numerosas; porque as repetições são frequentes ao princípio, porém no sucessivo se tornam inumeráveis, e muitos fatos que, à primeira vista, nos parecem importantes, perdem todo o interesse à medida que se repetem; assim, recordamos melhor nossos anos de juventude que os que se seguem. Logo, quanto mais tempo vivemos, menos acontecimentos há que pareçam importantes ou significantes o bastante para que mereçam ser ruminados. Entretanto, esse é o único meio de conservar sua recordação; se apenas passarem, os esquecemos. E por isso o tempo foge, deixando cada vez menos traços. Ademais, não gostamos tampouco de voltar às coisas desagradáveis, especialmente quando ofendem nossa vaidade, e isso é o que ocorre com mais frequência, porque poucas coisas desagradáveis nos ocorrem que não sejam por culpa nossa; esquecemos, pois, igualmente, muitas coisas penosas. Nossa memória se torna muito curta devido à eliminação dessas duas categorias de acontecimentos, e se torna cada vez mais curta à medida que mais material é acrescentado. Os anos transcorridos, com nossas aventuras e nossas ações, são como os objetos situados no litoral, que se tornam cada vez menores e mais difíceis de reconhecer e distinguir à medida que nosso barco se distancia. Ademais, há o fato de que a memória e a imaginação por vezes nos trazem uma cena de nossa vida, desaparecida há muito, com tanta vivacidade que nos parece que data de ontem; de modo que o acontecimento em questão parece se situar muito próximo do presente. Esse efeito resulta de que é impossível representarmos de uma só vez e com a mesma vivacidade o grande espaço de tempo que transcorreu entre então e agora. Não podemos abarcá-lo com o olhar em uma só imagem; além disso, os acontecimentos verificados nesse intervalo foram esquecidos em grande parte. Não nos resta disso mais que um conhecimento geral e abstrato daquilo que vivemos, uma simples noção, não uma imagem direta de alguma experiência particular. Então esse passado distante e isolado se apresenta tão próximo que parece ter ocorrido ontem; o tempo intermediário desaparece e nossa vida inteira nos parece uma brevidade incompreensível. Às vezes, na velhice, esse grande passado que temos detrás de nós e, por conseguinte, nossa própria idade, pode em certos momentos parecer-nos como um milagre. Isso resulta principalmente de que vemos sempre ante nós o mesmo presente fixo e imóvel. Os acontecimentos interiores dessa natureza, entretanto, estão fundados no fato de que não é nosso verdadeiro ser-em-si, senão somente sua aparência fenomênica, aquilo que existe sob a forma de tempo e que o presente é o ponto de contato entre o mundo como sujeito e o mundo como objeto. Ainda assim, por que na juventude a vida que temos diante de nós parece imensuravelmente longa? Porque precisamos encontrar espaço para alojar as esperanças ilimitadas com as quais a povoamos, e para cuja realização mesmo Matusalém teria morrido demasiado jovem. Outra razão é que tomamos por escala de sua medida o reduzido número de anos que já temos detrás de nós, cuja recordação é sempre rica em materiais e, portanto, extensa. Pois a novidade faz todas as coisas parecerem importantes; assim, ruminamos sobre elas, as evocamos em nossa memória repetidamente, e acabamos por fixá-las.


Arthur Schopenhauer, Aforismos para a sabedoria de vida 

o médico e o monstro

Há homens que contratam bandidos para cometerem crimes em seu lugar, sem sofrerem uma beliscadura nem na sua reputação nem na sua pessoa. Eu fui o primeiro que o fiz por puro prazer. Fui o primeiro que pôde aparecer ante os olhos do público carregado de respeitabilidade e, ato contínuo, como um colegial, despojando-se daquela capa, para me lançar de cabeça no mar da liberdade. Mas para mim, com um manto impenetrável, a segurança era completa. Pensa nisto: nem sequer existia! Bastava atravessar a porta do meu laboratório, gastar um ou dois segundos a preparar a mistura, que tinha sempre à mão, bebê-la de um trago e, fosse o que fosse que tivesse feito, Edward Hyde desapareceria com a mesma facilidade de um sopro num espelho. E ali, em seu lugar, à luz das lâmpadas do seu escritório, estaria Henry Jekyll, um homem que podia permitir-se ao luxo de se rir de qualquer suspeita. 

Como já disse, os prazeres que me apressei a procurar com tal disfarce eram indignos e dificilmente posso utilizar um termo mais forte. Mas nas mãos de Edward Hyde, de imediato se tornaram  monstruosos. Ao regressar das minhas passeatas, costumava submergir-me no assombro ante a perversidade experimentada pelo outro. Este parente, que havia emergido da minha própria alma e que eu enviava à procura do prazer, era um ser intrinsecamente maligno e infame; todos os seus atos e pensamentos centravam-se apenas em si, bebendo o prazer causado pela tortura alheia, com uma avidez brutal, desapiedado como um homem de pedra. Por vezes, Henry Jekyll ficava assombrado ante os atos de Edward Hyde, mas tratava-se de uma situação tão distante das leis normais que, insidiosamente, relaxava o poder da consciência. Afinal, Hyde, e apenas Hyde, era o culpado. Jekyll, não era pior; de novo despertava as suas boas qualidades aparentemente intactas e, por vezes apressava-se, se tal fosse possível, a reparar o mal causado por Hyde. Deste modo, foi adormecendo a sua consciência. 

Não desejo entrar em pormenores sobre as infâmias de que, de certo modo, fui cúmplice (pois nem mesmo agora posso garantir que as tenha cometido). Só quero assinalar as advertências e os passos sucessivos que me conduziram ao castigo. Uma vez ocorreu um incidente que me limitarei a mencionar, já que não trouxe maiores consequências. Um ato de crueldade, na pessoa de uma menina, atraiu as iras de um transeunte, a quem no outro dia pude reconhecer como um parente teu; o doutor e a família da menina seguiram-no e houve momentos em que cheguei a temer pela minha vida. Finalmente, para aplacar a sua justa indignação, Edward Hyde viu-se obrigado a levá-los até à porta de sua casa e a pagar-lhes com um cheque sacado em nome de Henry Jekyll. Depois de alterar a minha própria caligrafia e de fornecer ao meu duplo uma assinatura, julguei estar já fora do alcance do destino.

 Uns dois meses antes do assassinato de Sir Danvers, voltava uma noite a casa, depois de uma das minhas aventuras quando na manhã seguinte ao despertar reparei numa estranha sensação. Em vão olhei à minha volta, em vão fixei a atenção nos excelentes móveis e no alto teto da casa, em vão reconheci o padrão das cortinas da minha cama e o desenho da sua estrutura de mogno. Algo me dizia com  insistência que não estava onde estava, que não havia acordado onde parecia encontrar-me; mas sim no pequeno quarto do Soho, onde costumava dormir, sob a aparência de Edward Hyde. Sorri e, segundo o meu próprio estilo psicológico, comecei a analisar preguiçosamente os diversos elementos que formavam esta ilusão, submergindo-me num agradável torpor, enquanto o ia fazendo. Estava assim ocupado quando de repente, num dos momentos em que me encontrava mais desperto, o meu olhar caiu sobre uma das minhas mãos. As mãos de Henry Jekyll são as de um profissional, tanto pelo seu tamanho como pela sua forma: grandes, firmes, brancas e proporcionadas. Mas a mão que agora tinha diante dos olhos e que via claramente à luz amarelada da manhã londrina, a mão que repousava meio fechada sobre a roupa da cama, era seca, nervosa, nodosa, de uma palidez cinzenta e coberta por uma espessa camada de pelos. Era a mão de Edward Hyde. Devo ter ficado a contemplá-la durante cerca de meio minuto, paralisado como estava pela estupidez do assombro, antes do terror me inundar o peito, súbito e avassalador como um repicar de sinos. Saltei da cama e corri para o espelho. Perante o que os meus olhos contemplavam, o sangue tornou-se fluido e gelado. Sim, tinha-me deitado como Henry Jekyll e acordava como Edward Hyde. Como explicar o fenômeno?- interroguei-me. E, ato contínuo, com outro calafrio de terror: «como remediá-lo? A manhã ia já bastante avançada, os criados estavam já todos acordados, as drogas encontravam-se todas no gabinete e até lá chegar, paralisado como estava pelo terror, tinha de descer dois lances de escadas, atravessar o pátio e a sala de operações. Claro que podia ocultar o rosto mas de que me valeria isso se não podia modificar a minha estatura? E então, com uma poderosa sensação de agradável alívio, dei conta de que a criadagem estava habituada às idas e vindas do meu segundo eu. Vesti-me o mais depressa possível com um fato do meu tamanho e atravessei toda a casa, cruzando-me com Bradshaw que, ao ver-me, recuou surpreendido por encontrar-se com Mr. Hyde a semelhante hora e com semelhante vestimenta; dez minutos depois, o Dr. Jekyll havia regressado à sua forma e estava sentado à mesa, de cenho franzido, a fingir que tomava o café da manhã.

A verdade é que tinha pouco apetite. Este incidente inexplicável, esta imersão da minha aparência anterior, à semelhança do dedo na parede de Babilónia, parecia a manifestação da minha sentença. E comecei a refletir, com mais seriedade que nunca, nas consequências e possibilidades da minha dupla existência. Essa parte de mim mesmo que possuía o poder de se projetar tinha-se exercitado e nutrido ultimamente de maneira excessiva. Parecia-me que o corpo de Hyde havia crescido como se (quando me encontrava sob a sua forma) tivesse consciência de que o meu sangue fluía mais generosamente; comecei a vislumbrar o perigo: caso este estado de coisas se prolongasse, o equilíbrio da minha natureza poderia alterar-se definitivamente, desapareceria o poder de mudar à minha vontade e a personalidade de Edward Hyde converter-se-ia irremediavelmente na minha. O poder da droga não se manifestara sempre da mesma maneira. Certa vez, muito no início da minha carreira, falhou por completo; desde então, vi-me obrigado, em mais de uma ocasião, a duplicar a dose e até a triplicá-la, com grande risco para a minha própria vida; até à data, essas raras ocasiões eram a única sombra que pairava sobre o êxito conseguido. Contudo, agora, à luz do incidente ocorrido nessa manhã, comecei a dar-me conta de que, se a princípio a dificuldade consistia em me livrar do corpo de Jekyll, agora começava a suceder o contrário, de forma gradual, mas nem por isso menos decidida. Tudo parecia confluir no seguinte: ia perdendo a pouco e pouco o controle sobre o meu ser original e melhor, para me incorporar lentamente no meu segundo e pior. 

Sentia que agora seria preciso escolher entre os dois.

Não creio que quando o ébrio discute consigo mesmo sobre o seu vício se deixe convencer, sequer uma vez entre quinhentas, dos perigos a que o conduz a sua brutal insensibilidade. Tão-pouco eu, apesar de haver considerado tão grandemente a minha situação, havia tido em conta a absoluta insensibilidade moral e a insensata permissividade para com o mal que caracterizavam especialmente Edward Hyde. E, contudo, foi precisamente esse o meu castigo. O meu demônio havia estado encerrado demasiado tempo. Agora escapava-se rugindo. Inclusive, quando tomava a dose, dei-me conta de que a sua tendência para o mal era ainda mais violenta, mais desenfreada.

Deve ter sido isso, suponho, que desencadeou no meu espírito aquela tempestade de impaciência com que escutei os cumprimentos da minha desgraçada vítima. Declaro, perante Deus, que nenhum homem moralmente são podia ser declarado culpado desse crime por uma tão insignificante provocação; e que assestei os golpes com a mesma sem razão com que uma criança enferma despedaça o seu brinquedo. Mas involuntariamente tinha-me libertado de todos os instintos equilibradores, graças aos quais até o pior dos homens prossegue o seu caminho por entre as tentações com um certo grau de firmeza. No meu caso, deixar-me tentar, ainda que ligeiramente, era o equivalente a cair.

Instantaneamente, o espírito do inferno despertou dentro de mim e levantou-se furioso. Transportado pelo júbilo, mutilei aquele corpo indefeso, saboreando o prazer de cada golpe; só quando o cansaço me começou a vencer é que me dei conta de que, no auge do meu delírio, o meu coração estava a ser trespassado por um calafrio de terror.

A neblina dissipou-se. Vi a minha vida perdida e fugi daquele cenário de tão grandes excessos, ao mesmo tempo temeroso e exultante, a minha lascívia gratificada e estimulada, o meu amor pela vida exacerbado sem limites. Corri à minha casa no Soho e (para redobrar a minha segurança) destruí todos os meus documentos; voltei a sair para as ruas iluminadas com o mesmo êxtase contraditório na minha alma, deliciando-me no crime, inventando alegremente outros novos para o futuro, mas temendo, e inclusive ouvindo, no meu caminho os passos do vingador. Hyde tinha uma canção nos lábios enquanto misturava a poção e, antes de a ingerir, brindou à sua vítima. Mas as dores da transformação ainda mal o haviam abandonado e já Henry Jekyll, com abundantes lágrimas de gratidão e remorso, caía de joelhos e elevava a Deus as mãos entrelaçadas. O véu da autoindulgência tinha-se rasgado de alto abaixo e vi a minha vida como um filme: acompanhei-a desde os dias da minha infância quando passeava de mãos dadas com meu pai e através das privações e fadigas da minha profissão até chegar, uma e outra vez, com o mesmo sentimento de irrealidade, aos malditos horrores daquela noite. Podia ter gritado, mas procurei suavizar com lágrimas e súplicas a multidão de sons e de horríveis imagens que a memória lançava contra mim, mas entre súplicas e súplicas, o rosto repugnante da minha iniquidade continuava a fitar fixamente o meu espírito. À medida que a intensidade do remorso ia morrendo, fui sendo inundado por uma sensação de gozo. Tinha resolvido o problema da minha conduta. A partir daquele momento, Hyde seria impossível. Querendo ou não, estava confinado à parte melhor da minha existência. Oh! Como me alegrei com esse pensamento! Com que voluntária humildade abracei outra vez as restrições da vida natural! Com que sincera renúncia fechei a porta pela qual tantas vezes entrava e saía, calcando a chave com os pés! 

Mas tudo tem um fim: a medida de maior capacidade acaba por se encher e esta breve condescendência para com o mal destruiu finalmente o equilíbrio do meu espírito. E, contudo, na altura não me senti alarmado; a queda pareceu-me natural, como um regresso aos velhos dias anteriores à minha descoberta. Era um dia de Janeiro, belo e límpido, a geada a derreter-se e a sentir-se a humidade debaixo dos pés, mas sem uma única nuvem no céu. Regent’s Park fora invadida pelos gorjeios invernais e pelos agradáveis aromas da Primavera. Sentei-me num banco a apanhar sol; o animal que havia em mim roía os ossos da minha memória; o lado espiritual, um pouco diminuído, prometia a penitência subsequente, mas não tomava a iniciativa de a começar. Afinal, pensei, era como todos os demais e então sorri, comparando-me aos outros homens, comparando a minha ativa boa vontade com a negligente crueldade do seu abandono. E nesse mesmo momento em que me vangloriava com estes pensamentos, fui invadido por um mal-estar, seguido de um enjoo horrível e de um terrível estremeção. Isso passou e quando recuperei, sentia-me fraco; quando a fraqueza estava a desaparecer, dei-me conta de que se estava a operar uma alteração na disposição dos meus pensamentos, uma maior audácia, um desprezo pelo medo e uma dissolução dos vínculos que representava qualquer obrigação. Olhei-me de alto abaixo: o fato caía disforme sobre os meus membros encolhidos e a mão que repousava sobre o meu joelho era nodosa e peluda. Uma vez mais, transformara-me em Edward Hyde. Apenas um instante antes, estava confiante pelo respeito que todos me tinham, era rico, estimado e a mesa estava preparada à minha espera na sala de jantar de minha casa. Agora, era uma vítima vulgar da humanidade, um perseguido sem lar, um assassino conhecido, condenado à forca. 

Deitei-me cedo. fatigado com aquela intranquilidade que durara o dia inteiro, mas a natureza venenosa daquele vento e o seu rugir desapiedado e ininterrupto não me permitiram conciliar o sono. Estava deitado, mas muito agitado, com os nervos em franjas. De vez em quando, adormecia e tinha sonhos horríveis que me faziam despertar. Estes intervalos de inconsciência confundiram-me quanto ao tempo. Mas a noite já devia ir avançada quando fui de repente sacudido por uma série de gritos lamentosos. Saltei da cama, pensando estar a sonhar, mas os gritos continuavam a encher a casa. Gritos de dor, pensei, mas também de raiva; tão selvagens e dissonantes que me despedaçavam o coração. Não se tratava de uma ilusão. Algum ser vivo, algum louco ou animal selvagem estava a ser brutalmente torturado. A recordação de Felipe e do esquilo passou-me fugazmente pela imaginação. Dirigi-me à porta e dei com ela fechada à chave do lado de fora. Bem a podia abanar - estava feito prisioneiro. Os gritos continuaram a fazer-se ouvir durante algum tempo mais, embora diminuindo de intensidade até se converterem num gemido inarticulado. Então convenci-me de que se tratava de um ser humano. Novamente rasgaram a noite enchendo a casa com uma fúria própria do inferno. Pus-me a escutar atrás da porta até desaparecerem por completo. Um bom pedaço depois, ouvia-os na minha imaginação, misturados com o rugir do vento e quando por fim cessaram de todo e voltei para a cama, estava cheio de um sombrio horror. Era natural que não conseguisse dormir mais. Porque me tinham fechado à chave? Que havia sucedido? Quem havia dado aqueles gritos horríveis? Era inconcebível. Uma fera? Os gritos eram realmente animalescos, mas que animal que não fosse do tamanho de um leão ou de um tigre poderia sacudir daquela maneira as sólidas paredes da residência? Enquanto dava desta maneira volta aos elementos do mistério, recordei-me que ainda não havia visto a filha da casa. Seria possível que a filha da senhora e irmã de Felipe estivesse louca? Ou que aquela gente ignorante e meio imbecil  procurasse domar pela violência aquela desgraçada? Essa podia ser a solução; e, contudo, quando me recordava dos gritos - o que me produzia sempre um calafrio - parecia-me que esta resposta seria totalmente insuficiente. Nem a mais refinada crueldade poderia arrancar tais gritos da loucura. Mas de uma coisa estava seguro: de que não podia viver numa casa como aquela sem procurar investigar até ao fim e, se necessário, intervir para evitar tal procedimento.

A santa pálida dos meus sonhos havia desaparecido e em seu lugar contemplava aquela donzela em que Deus havia sido pródigo dos mais belos encantos e das mais exuberantes forças da vida, fazendo-a ágil como uma corça, esbelta como um junco e em cujos olhos havia acendido as tochas da sua alma. A emoção da sua jovem vida que vibrava como a de um animal selvagem, tinha entrado em mim. A força da sua alma que lhe havia assomado aos olhos, tinha conquistado a minha, envolvendo o meu coração, fazendo brotar uma canção dos meus lábios. Tinha-se metido no meu sangue, fazendo dos dois um todo único.

Não posso dizer que o meu entusiasmo declinasse. Melhor diria que a minha alma continuava em êxtase e como numa fortaleza estava sitiada por considerações frias e dolorosas. Não duvidava de que me havia apaixonado por ela à primeira vista e desde o primeiro momento, com um ardor trêmulo que nunca antes havia sentido. Que se iria passar? Era descendente de uma estirpe castigada, filha da senhora, irmã de Felipe. Isto via-se claramente na sua beleza, pois possuía a ligeireza e a rapidez de um, veloz como uma flecha e suave como o orvalho e, como a outra, brilhava ante o fundo pálido do mundo com o esplendor das flores. Mas eu não podia chamar irmão àquele moço meio tonto, nem mãe àquele imóvel e belo pedaço de carne com um sorriso bobo que agora me vinha ao pensamento como algo de odioso. E se não podia casar-me com ela, que aconteceria? Estava desamparada e sem proteção. Os seus olhos naquele longo olhar que havia sido a nossa única comunicação, tinham-me confessado a sua debilidade, que era igual à minha. O coração dizia-me que era ela a estudiosa da fria sala da fachada norte, a escritora dos versos tristes e o conhecimento deste fato desarmaria um bruto. Fugir era algo superior às minhas forças, pelo que prometi manter-me numa discrição vigilante. Quando saí da janela, os meus olhos pousaram no retrato.

Dirigi-me ao pátio onde a senhora estava a dormitar perto do fogo, pois para ela nunca havia calor demasiado. 

- Perdoe-me - disse-lhe - se a perturbo, mas tenho que pedir-lhe que me ajude. 

Fitou-me sonolenta e perguntou-me o que se tratava e mal pronunciara estas palavras, pareceu-me que retinha a respiração enquanto dilatava as asas do nariz como se de repente se animasse. 

- Cortei-me; um golpe bastante profundo. Olhe - e levantei a mão ferida, sempre a gotejar. 

Os seus grandes olhos abriram-se esbugalhados e as pupilas contraíram-se até se converterem em dois pontos. Era como se um véu lhe caísse do rosto, deixando-o fortemente expressivo e, no entanto, insondável. Quando ainda me encontrava surpreendido pela sua agitação, curvou-se sobre mim, dobrou-se sobre a minha mão e pegou nela. Um instante depois, levava-a à boca e mordia-a até ao osso. A dor da mordidela, o repentino manar de sangue e o monstruoso horror da ação passaram-me pela mente como um relâmpago. Afastei-a fortemente, mas ela voltou a lançar-se sobre mim dando gritos bestiais. Reconheci naqueles gritos os que me haviam despertado na noite do vendaval. A sua força era a da loucura e as minhas iam-se extinguindo com a perda de sangue. O meu pensamento girava estranhamente e horrorizado ante aquele ataque furioso. Estava encostado à parede quando Olalla apareceu a correr em meu auxílio e Felipe atrás dela, dando um salto, dominou a mãe contra o solo. 

Um torpor de debilidade apoderou-se de mim. Os meus sentidos estavam despertos mas a minha mente não, e era incapaz de me mover. Ouvia forcejar, rebolar pelo chão e os alaridos daquele gato montês que chegavam ao céu quando se esforçava por me alcançar. Reparei que Olalla me apertava nos braços e o seu cabelo caía sobre o meu rosto. Levantou-me com a força de um homem e meio de rastos levou-me até ao meu quarto onde me deixou cair sobre a cama. Depois, vi-a correr para a porta e fechá-la à chave, ficando um instante a escutar aqueles gritos selvagens que faziam estremecer a casa. Rápida e ligeira como o pensamento, voltou de novo para junto de mim, ligou-me a mão e logo a levou ao peito, gemendo e lamentando-se como um murmúrio ou como o arrulhar de uma pomba. Não eram palavras que pronunciava, mas antes sons mais belos, infinitamente ternos, comovedores. Enquanto permanecia deitado, um pensamento sombrio se me cravou no coração. Um pensamento que me feria como uma espada e profanava a santidade do meu amor, como o verme profana a flor. Sim, eram sons belíssimos e inspirados pela ternura humana, mas a sua beleza seria humana?

Permaneci deitado durante todo o dia. Por longo tempo os gritos daquele animal que não tinha nome ecoaram por toda a casa, enchendo-me de tristeza e horror. Eram o grito de morte do meu amor que havia sido assassinado e que até parecia ofender-me. Contudo, ao pensar no fato de a desejar e de a sentir perto de mim, o amor crescia como uma tempestade de doçura e o meu coração fundia-se com os seus olhares e o seu contato. Os temores que me haviam invadido, as dúvidas sobre Olalla, a herança selvagem e bestial que se revelava no comportamento da sua família e que estavam nas mesmas raízes do nosso amor, embora me aterrorizassem e me enchessem de repugnância, não tinham poder suficiente para romper os elos da minha paixão. 

Quando os gritos cessaram, ouvi alguém raspar na porta do meu quarto, pelo que percebi tratar-se de Felipe do lado de fora. Olalla foi falar com ele. À exceção desse momento, esteve o tempo todo junto de mim; umas vezes de joelhos ao lado da cama, rezando fervorosamente, outras sentada com os olhos fixos nos meus. Desta forma, durante seis horas gozei da sua beleza e silenciosamente examinei-a lendo o seu rosto. Via a medalha de ouro a revolver-se por entre os seus seios; via os seus olhos a escurecerem-se e a iluminarem-se, falando uma linguagem sublime de bondade; via o seu rosto perfeito e, através das suas roupas, as linhas impecáveis do seu corpo. Por fim, chegou a noite e a sua crescente escuridão, a sua imagem foi-se dissipando nas trevas até desaparecer, mas continuou o suave contato das suas mãos nas minhas e a consoladora carícia das suas palavras. Permanecer naquele estado, imerso numa debilidade mortal, mas sentindo os mínimos movimentos da amada, era o mesmo que libertar o meu amor de toda a desilusão. Arrazoando comigo mesmo, fechei os olhos aos horrores e ganhei coragem para aceitar o pior. Que importava se aquele imperioso sentimento sobrevivia; se os seus olhos me chamavam e me abraçavam; se tal como antes, todas as fibras do meu corpo embotado a desejavam e se voltavam para ela?


Robert Louis Stevenson, O médico e o Monstro

Canção de uma dama na sombra

- Daniel Gerhartz

Quando vem a taciturna e poda as tulipas:  

Quem sai ganhando? 

                  Quem perde?

                        Quem aparece na janela?  

Quem diz primeiro o nome dela?

É alguém que carrega meus cabelos.  

Carrega-os como quem carrega mortos nos braços.  

Carrega-os como o céu carregou meus cabelos no ano em que amei. 

Carrega-os assim por vaidade.    

E ganha. 

              E não perde. 

                         E não aparece na janela.   

E não diz o nome dela.    

É alguém que tem meus olhos.  

Tem-nos desde quando portas se fecham.  

Carrega-os no dedo, como anéis.  

Carrega-os como cacos de desejo e safira:  

era já meu irmão no outono;  

conta já os dias e noites.  

E ganha.

             E não perde. 

                    E não aparece na janela.    

E diz por último o nome dela.  

É alguém que tem o que eu disse.  

Carrega-o debaixo do braço como um embrulho.  

Carrega-o como o relógio a sua pior hora.  

Carrega-o de limiar a limiar, não o joga fora.  

E não ganha.

                    E perde. 

                              E aparece na janela.  

E diz primeiro o nome dela.    

E é podado com as tulipas. 

 

Paul Celan

(tradução: Claudia Cavalcanti )


Algum dia

escreverei um poema

sem tinta nem papel.

Escreverei com meus dedos

no contorno dos teus lábios,

na luz que teus olhos reflectem,

no teu pulso e nas tuas mãos.


Registarei em ti

a força de todos os mares,

desertos e tempestades,

o perfume de todas as flores,

a luz da alva e do ocaso.


Algum dia

escreverei um poema

em cada centímetro

da tua pele.


Armen Muñoz, Poemas à flor da pele

artes: Viktor Sheleg


Um sopro de vida (Pulsações)

 

clarice lispector - Arte Melinda Hagman


ISTO NÃO É UM LAMENTO, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranquila. O beijo no rosto morto.

Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos.

De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é.

Hoje está um dia de nada. Hoje é zero hora. Existe por acaso um número que não é nada? que é menos que zero? que começa no que nunca começou porque sempre era? e era antes de sempre? Ligo-me a esta ausência vital e rejuvenesço-me todo, ao mesmo tempo contido e total. Redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final. Do zero ao infinito vou caminhando sem parar. Mas ao mesmo tempo tudo é tão fugaz. Eu sempre fui e imediatamente não era mais. O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma. Este livro é a sombra de mim. Peço vênia para passar. Eu me sinto culpado quando não vos obedeço. Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam. Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que os cegos se alegram. É que os infelizes se compensam. Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a ideia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia. O aguilhão de abelha do dia florescente de hoje. Graças a Deus, tenho o que comer. O pão nosso de cada dia.

Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? esgotaram-se os significados. Como surdos e mudos comunicamo-nos com as mãos. Eu queria que me dessem licença para eu escrever ao som harpejado e agreste a sucata da palavra. E prescindir de ser discursivo. Assim: poluição.

Escrevo ou não escrevo?

Saber desistir. Abandonar ou não abandonar — esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido em prosseguir jogando. Serei capaz de abandonar nobremente? ou sou daqueles que prosseguem teimosamente esperando que aconteça alguma coisa? como, digamos, o próprio fim do mundo? ou seja lá o que for, como a minha morte súbita, hipótese que tornaria supérflua a minha desistência?

Eu não quero apostar corrida comigo mesmo. Um fato. O que é que se torna fato? Devo-me interessar pelo acontecimento? Será que desço tanto a ponto de encher as páginas com informações sobre os "fatos"? Devo imaginar uma história ou dou largas à inspiração caótica? Tanta falsa inspiração. E quando vem a verdadeira e eu não tomo conhecimento dela? Será horrível demais querer se aproximar dentro de si mesmo do límpido eu? Sim, e é quando o eu passa a não existir mais, a não reivindicar nada, passa a fazer parte da árvore da vida — é por isso que luto por alcançar. Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente.

Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto — e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras — quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.

Meditação leve e terna sobre o nada. Escrevo quase que totalmente liberto de meu corpo. É como se este estivesse em levitação. Meu espírito está vazio por causa de tanta felicidade. Estou tendo uma liberdade íntima que só se compara a um cavalgar sem destino pelos campos afora. Estou livre de destino. Será o meu destino alcançar a liberdade? não há uma ruga no meu espírito que se espraia em leves espumas. Não estou mais acossado. Isto é a graça.

Estou ouvindo música. Debussy usa as espumas do mar morrendo na areia, refluindo e fluindo. Bach é matemático. Mozart é o divino impessoal. Chopin conta a sua vida mais íntima. Schoenberg, através de seu eu, atinge o clássico eu de todo o mundo. Beethoven é a emulsão humana em tempestade procurando o divino e só o alcançando na morte. Quanto a mim, que não peço música, só chego ao limiar da palavra nova. Sem coragem de expô-la. Meu vocabulário é triste e às vezes wagneriano-polifônico-paranóico. Escrevo muito simples e muito nu. Por isso fere. Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me na fonte seca e na luz fria.

Quero escrever esquálido e estrutural como o resultado de esquadros, compassos e agudos ângulos de estreito enigmático triângulo.

"Escrever" existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta. Eu trabalho com o inesperado. Escrevo como escrevo sem saber como e por quê — é por fatalidade de voz. O meu timbre sou eu. Escrever é uma indagação. É assim:?

Será que estou me traindo? será que estou desviando o curso de um rio? Tenho que ter confiança nesse rio abundante. Ou será que ponho uma barreira no curso de um rio? Tento abrir as comportas, quero ver a água jorrar com ímpeto. Quero que cada frase deste livro seja um clímax.

Eu tenho que ter paciência pois os frutos serão surpreendentes.

Este é um livro silencioso. E fala, fala baixo.

Este é um livro fresco — recém-saído do nada. Ele é tocado ao piano delicada e firmemente ao piano e todas as notas são límpidas e perfeitas, umas separadas das outras. Este livro é um pombo-correio. Eu escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me ler será por conta própria e autorrisco. Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever. Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim.

Sinto que não estou escrevendo ainda. Pressinto e quero um linguajar mais fantasioso, mais exato, com maior arroubo, fazendo espirais no ar.

Cada novo livro é uma viagem. Só que é uma viagem de olhos vendados em mares nunca dantes revelados — a mordaça nos olhos, o terror da escuridão é total. Quando sinto uma inspiração, morro de medo porque sei que de novo vou viajar e sozinho num mundo que me repele. Mas meus personagens não têm culpa disso e eu os trato o melhor possível. Eles vêm de lugar nenhum. São a inspiração. Inspiração não é loucura. É Deus. Meu problema é o medo de ficar louco. Tenho que me controlar. Existem leis que regem a comunicação. A impessoalidade é uma condição. A separatividade e a ignorância são o pecado num sentido geral. E a loucura é a tentação de ser totalmente o poder. As minhas limitações são a matéria-prima a ser trabalhada enquanto não se atinge o objetivo.

Eu vivo em carne viva, por isso procuro tanto dar pele grossa a meus personagens. Só que não aguento e faço-os chorar à toa.

Raízes semoventes que não estão plantadas ou a raiz de um dente? Pois também eu solto as minhas amarras: mato o que me perturba e o bom e o ruim me perturbam, e vou definitivamente ao encontro de um mundo que está dentro de mim, eu que escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma.

Em cada palavra pulsa um coração. Escrever é tal procura de íntima veracidade de vida. Vida que me perturba e deixa o meu próprio coração trêmulo sofrendo a incalculável, dor que parece ser necessária ao meu amadurecimento — amadurecimento? Até agora vivi sem ele!

É. Mas parece que chegou o instante de aceitar em cheio a misteriosa vida dos que um dia vão morrer. Tenho que começar por aceitar-me e não sentir o horror punitivo de cada vez que eu caio, pois quando eu caio a raça humana em mim também cai. Aceitar-me plenamente? é uma violentação de minha vida. Cada mudança, cada projeto novo causa espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda a minha palavra tem um coração onde circula sangue.

Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho enfim em mim até o nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura. Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim. Quer dizer: não sei o que fazer com meu espírito. O corpo informa muito. Mas eu desconheço as leis do espírito: ele vagueia. Meu pensamento, com a enunciação das palavras mentalmente brotando, sem depois eu falar ou escrever — esse meu pensamento de palavras é precedido por uma instantânea visão, sem palavras, do pensamento — palavra que se seguirá, quase imediatamente — diferença espacial de menos de um milímetro. Antes de pensar, pois, eu já pensei. Suponho que o compositor de uma sinfonia tem somente o "pensamento antes do pensamento", o que se vê nessa rapidíssima ideia muda é pouco mais que uma atmosfera? Não. Na verdade é uma atmosfera que, colorida já como símbolo, me faz sentir o ar da atmosfera de onde vem tudo. O pré-pensamento é em preto e branco. O pensamento com palavras tem cores outras. O pré-pensamento é o pré-instante. O pré-pensamento é o passado imediato do instante. Pensar é a concretização, materialização do que se pré-pensou. Na verdade o pré-pensar é o que nos guia, pois está intimamente ligado à minha muda inconsciência. O pré-pensar não é racional. É quase virgem.

Às vezes a sensação de pré-pensar é agônica: é a tortuosa criação que se debate nas trevas e que só se liberta depois de pensar — com palavras.

Vós me obrigais a um esforço tremendo de escrever; ora, me dê licença, meu caro, deixa eu passar. Sou sério e honesto e se não digo a verdade é porque esta é proibida. Eu não aplico o proibido mas eu o liberto. As coisas obedecem ao sopro vital. Nasce-se para fruir. E fruir já é nascer. Enquanto fetos fruímos do conforto total do ventre materno. Quanto a mim, não sei de nada. O que tenho me entra pela pele e me faz agir sensualmente. Eu quero a verdade que só me é dada através do seu oposto, de sua inverdade. E não aguento o cotidiano. Deve ser por isso que escrevo. Minha vida é um único dia. E é assim que o passado me é presente e futuro. Tudo numa só vertigem. E a doçura é tanta que faz insuportável cócega na alma. Viver é mágico e inteiramente inexplicável. Eu compreendo melhor a morte. Ser cotidiano é um vício. O que é que eu sou? sou um pensamento. Tenho em mim o sopro? tenho? mas quem é esse que tem? quem é que fala por mim? tenho um corpo e um espírito? eu sou um eu? "É exatamente isto, você é um eu", responde-me o mundo terrivelmente. E fico horrorizado. Deus não deve ser pensado jamais senão Ele foge ou eu fujo. Deus deve ser ignorado e sentido. Então Ele age. Pergunto-me: por que Deus pede tanto que seja amado por nós? resposta possível: porque assim nós amamos a nós mesmos e em nos amando, nós nos perdoamos. E como precisamos de perdão. Porque a própria vida já vem mesclada ao erro.

O resultado disso tudo é que vou ter que criar um personagem — mais ou menos como fazem os novelistas, e através da criação dele para conhecer. Porque eu sozinho não consigo: a solidão, a mesma que existe em cada um, me faz inventar. E haverá outro modo de salvar-se? senão o de criar as próprias realidades? Tenho força para isso como todo o mundo — é ou não é verdade que nós terminamos por criar uma frágil e doida realidade que é a civilização? essa civilização apenas guiada pelo sonho. Cada invenção minha soa-me como uma prece leiga — tal é a intensidade de sentir, escrevo para aprender. Escolhi a mim e ao meu personagem — Ângela Pralini — para que talvez através de nós eu possa entender essa falta de definição da vida. Vida não tem adjetivo. É uma mistura em cadinho estranho mas que me dá em última análise, em respirar. E às vezes arfar. E às vezes mal poder respirar. É. Mas às vezes há também o profundo hausto de ar que até atinge o fino frio do espírito, preso ao corpo por enquanto.

Eu queria iniciar uma experiência e não apenas ser vítima de uma experiência não autorizada por mim, apenas acontecida. Daí minha invenção de um personagem. Também quero quebrar, além do enigma do personagem, o enigma das coisas.

Este ao que suponho será um livro feito aparentemente por destroços de livro. Mas na verdade trata-se de retratar rápidos vislumbres meus e rápidos vislumbres de meu personagem Ângela. Eu poderia pegar cada vislumbre e dissertar durante páginas sobre ele. Mas acontece que no vislumbre é às vezes que está a essência da coisa. Cada anotação tanto no meu diário como no diário que eu fiz Ângela escrever, levo um pequeno susto. Cada anotação é escrita no presente. O instante já é feito de fragmentos. Não quero dar um falso futuro a cada vislumbre de um instante. Tudo se passa exatamente na hora em que está sendo escrito ou lido. Este trecho aqui foi na verdade escrito em relação à sua forma básica depois de ter relido o livro porque no decorrer dele eu não tinha bem clara a noção do caminho a tomar. No entanto, sem dar maiores razões lógicas, eu me aferrava exatamente em manter o aspecto fragmentário tanto em Ângela quanto em mim.

Minha vida é feita de fragmentos e assim acontece com Ângela. A minha própria vida tem enredo verdadeiro. Seria a história da casca de uma árvore e não da árvore. Um amontoado de fatos em que só a sensação é que explicaria. Vejo que, sem querer, o que escrevo e Ângela escreve são trechos por assim dizer soltos, embora dentro de um contexto de...

É assim que desta vez me ocorre o livro. E, como eu respeito o que vem de mim para mim, assim mesmo é que eu escrevo.

O que está escrito aqui, meu ou de Ângela, são restos de uma demolição de alma, são cortes laterais de uma realidade que se me foge continuamente. Esses fragmentos de livro querem dizer que eu trabalho em ruínas.

Eu sei que este livro não é fácil, mas é fácil apenas para aqueles que acreditam no mistério. Ao escrevê-lo não me conheço, eu me esqueço de mim. Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim. Nunca te disse e nunca te direi quem sou. Eu sou vós mesmos. Tirei deste livro apenas o que me interessava — deixei de lado minha história e a história de Ângela. O que me importa são instantâneos fotográficos das sensações — pensadas, e não a pose imóvel dos que esperam que eu diga: olhe o passarinho! Pois não sou fotógrafo de rua.

Já li este livro até o fim e acrescento alguma notícia neste começo. Quer dizer que o fim, que não deve ser lido antes, se emenda num círculo ao começo, cobra que engole o próprio rabo. E, ao ter lido o livro* cortei muito mais que a metade, só deixei o que me provoca e inspira para a vida: estrela acesa ao entardecer.

Não ler o que escrevo como se fosse um leitor. A menos que esse leitor trabalhasse, ele também, nos solilóquios do escuro irracional.

Se este livro vier jamais a sair, que dele se afastem os profanos. Pois escrever é coisa sagrada onde os infiéis não têm entrada. Estar fazendo de propósito um livro bem ruim para afastar os profanos que querem "gostar". Mas um pequeno grupo verá que esse "gostar" é superficial e entrarão adentro do que verdadeiramente escrevo, e que não é "ruim" nem é "bom".

A inspiração é como um misterioso cheiro de âmbar. Tenho um pedacinho de âmbar comigo. O cheiro me faz ser irmã das santas orgias do Rei Salomão e a Rainha de Sabá. Benditos sejam os teus amores. Será que estou com medo de dar o passo de morrer agora mesmo? Cuidar para não morrer. No entanto eu já estou no futuro. Esse meu futuro que será para vós o passado de um morto. Quando acabardes este livro chorai por mim um aleluia. Quando fechardes as últimas páginas deste malogrado e afoito e brincalhão livro de vida então esquecei-me. Que Deus vos abençoe então e este livro acaba bem. Para enfim eu ter repouso. Que a paz esteja entre nós, entre vós e entre mim. Estou caindo no discurso? que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar.


Clarice Lispector, Um sopro de vida (Pulsações)

 

William Oxer


São horas de voltar. Tu já não vens, e a espera

gastou a luz de mais um dia. Agora, quem passar

trará um corpo incerto dentro do nevoeiro,

mas terá outro nome e outro perfume. Eu volto


à casa onde contigo se demorou o verão e arrumo

os livros, escondo as cartas, viro os retratos

para a mesa. Sei que o tempo se magoou de nós,

sei que não voltas, e ouço dizer que as aves

partem sempre assim, subitamente. Outras virão


em março, apago as luzes do quarto, nunca as mesmas.


Maria do Rosário Pedreira

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

O livro do desassossego [39]


 De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.

Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele.

Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.

Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.

Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.

É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo — desde a nascença e a consciência —, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.

Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os actos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demónio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si e pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da monada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós.

Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que foi. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir.


Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. 21-2-1930

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

 



Em geral, todo homem amará ou odiará a solidão, isto é, sua própria companhia, na medida em que tenha algum valor em si mesmo. 

A alegria e a vivacidade de nossa juventude devem-se parcialmente ao fato de que estamos subindo a colina da vida e não vemos a morte situada ao pé da outra vertente. Porém, quando chegamos ao cume, vemos com nossos olhos a morte, que até então só conhecíamos por ouvir falar; e como, nesse momento, as forças vitais começam a diminuir, nosso ânimo se abate ao mesmo tempo. Uma seriedade sombria sucede a alegre exuberância juvenil e se imprime em nosso semblante. Enquanto somos jovens, digam o que disserem, acreditamos que a vida não tem fim, e usamos o tempo com prodigalidade. À medida que envelhecemos, nos tornamos mais econômicos; porque, em idade avançada, cada dia da vida que transcorre provoca em nós o sentimento que experimenta o condenado a cada passo que lhe aproxima do cadafalso.

Considerada do ponto de vista da juventude, a vida é um futuro infinitamente longo; do ponto de vista da velhice, é um passado muito curto. De tal maneira que, a princípio, a vida se nos apresenta como uma imagem na qual os objetos aparecem a uma grande distância, como se os víssemos através de um telescópio invertido; enquanto que, ao fim, como por uma lente de aumento. Temos de haver envelhecido, isto é, haver vivido muito, para reconhecer quão curta é a vida. O próprio tempo, durante a juventude, tem um passo muito mais lento; de modo que a primeira quarta parte de nossa vida não só é a mais feliz, senão também a mais ampla, deixando assim muito mais recordações. Cada homem poderia, em qualquer ocasião, contar dessa primeira quarta parte mais acontecimentos que das seguintes. Na primavera da vida, como na primavera do ano, os próprios dias terminam por se tornar cansativos por sua duração; no outono ambos são curtos, porém mais serenos e constantes.


Arthur Schopenhauer

Aforismo para a sabedoria de vida

A morte e a dor

the last leaf - Pavlos Xanthidis

 

A Folha Seca Interroga o Destino. 

Se dirigíssemos o pensamento para um longínquo futuro e procurássemos representar-nos às futuras gerações com os milhões de homens distintos e diferentes de nós pelos usos e costumes, perguntaríamos a nós mesmos: “De onde vieram? Onde estão agora? Onde se achará o profundo seio do nada, produtor do mundo, que os oculta?” Mas a esta pergunta, devíamos sorrir, por onde se poderá achar senão onde toda a realidade é, e será, no presente em tudo o que este representa e contém, em ti, insensato que interrogas, pois ignorando a tua própria essência, assemelhas-te a uma folha seca que oscila no ramo de uma árvore, e, no Outono, pensando na sua próxima queda, lamenta sua sorte, sem querer consolar-se com a ideia dos tenros brotos que na Primavera virão adornar a árvore. E a folha seca se queixa: “Já não sou eu, serão outras folhas”. Oh! folha insensata onde queres tu ir? De onde poderiam vir as outras folhas? Onde está esse nada em que temes sucumbir? Reconhece, pois, o teu próprio ser oculto na força íntima, sempre ativa da árvore, nessa energia que não acarreta a morte nem o nascimento de todas as suas gerações de folhas. Não sucede com as gerações de homens o mesmo que com as folhas de uma árvore?

Arthur Schopenhauer

 


Acabou nosso carnaval

Ninguém ouve cantar canções

Ninguém passa mais brincando feliz

E nos corações

Saudades e cinzas foi o que restou


Pelas ruas o que se vê

E uma gente que nem se vê

Que nem se sorri

Se beija e se abraça

E sai caminhando

Dançando e cantando cantigas de amor


E no entanto é preciso cantar

Mais que nunca é preciso cantar

É preciso cantar e alegrar a cidade


A tristeza que a gente tem

Qualquer dia vai se acabar

Todos vão sorrir

Voltou a esperança

E o povo que dança

Contente da vida feliz a cantar

Porque são tantas coisas azuis

E há tão grandes promessas de luz

Tanto amor para amar de que a gente nem sabe


Quem me dera viver pra ver

E brincar outros carnavais

Com a beleza dos velhos carnavais

Que marchas tão lindas

E o povo cantando seu canto de paz

Seu canto de paz


Toquinho e Vinícius

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Théo van Rysselberghe (1862-1926)

 

Há quantos anos me sento

a ver o mar? Amor

sem falhas.


Casimiro de Brito

slava.fokk-beautiful.tulip-2018

 

Canto como quem usa os versos

Em legítima defesa


Miguel Torga

Sayar Maung

 

As horas passam

A poesia fica


Emílio Moura



 Uma fotografia é um texto poético em pose.

José Gabriel Duarte 

RICHARD JOHANSON

 

Distração é atração por um outro mundo

Rubem Alves