terça-feira, 31 de março de 2009



"Pode ser que um dia, na hora de minha morte, eu me lembre dessa luz incindindo nesse cinzeiro. São os caminhos da luz, talvez, que você tem que percorrer dentro ou fora de si mesmo. Há momentos em que você viveu a perfeição, a beleza, e existe uma nostalgia da beleza dentro de cada um de nós, que seria Deus, o inominado. Penso que o homem tem a nostalgia da santidade, da perfeição, da luz."

Hilda Hilst

Uma chave em East Lansing



Sou uma chave de limado aço.
E meu formato não é arbitrário.
Durmo o meu vago sono em um armário
Que não enxergo, presa a meu chaveiro.
Há uma fechadura que me espera,
Uma somente. A porta é de forjado
Ferro e firme cristal. Do outro lado
Está a casa, oculta e verdadeira.
Altos e na penumbra os desertos
Espelhos vêem as noites e os dias
E as fotografias dos defuntos
E o tênue ontem das fotografias.
Em dado momento empurrarei a dura
Porta e farei girar a fechadura.


Jorge Luís Borges

Poema de Aniversário



Porque fizeste anos, Bem-Amada, e a asa do tempo roçou teus cabelos negros, e teus grandes olhos calmos miraram por um momento o inescrutável Norte…

Eu quisera dar-te, ademais dos beijos e das rosas, tudo o que nunca foi dado por um homem à sua Amada, eu que tão pouco te posso ofertar. Quisera dar-te, por exemplo, o instante em que nasci, marcado pela fatalidade de tua vinda. Verias, então, em mim, na transparência do meu peito, a sombra de tua forma anterior a ti mesma.

Quisera dar-te também o mar onde nadei menino, o tranqüilo mar de ilha em que me perdia e em que mergulhava, e de onde trazia a forma elementar de tudo o que existe no espaço acima — estrelas mortas, meteoritos submersos, o plancto das galáxias, a placenta do Infinito.

E mais, quisera dar-te as minhas loucas carreiras à toa, por certo em premonitória busca de teus braços, e a vontade de grimpar tudo de alto, e transpor tudo de proibido, e os elásticos saltos dançarinos para alcançar folhas, aves, estrelas — e a ti mesma, luminosa, a derramar claridade em mim menino.

Ah, pudesse eu dar-te o meu primeiro medo e a minha primeira coragem; o meu primeiro medo à treva e a minha primeira coragem de enfrentá-la, e o primeiro arrepio sentido ao ser tocado de leve pela mão invisível da Morte.

E o que não daria eu para ofertar-te o instante em que, jazente e sozinho no mundo, enquanto soava em prece o cantochão da noite, vi tua forma emergir do meu flanco, e se esforçar, imensa ondina arquejante para se desprender de mim; e eu te pari gritando, em meio a temporais desencadeados, roto e imundo do pó da terra.

Gostaria de dar-te, Namorada, aquela madrugada em que, pela primeira vez, as brancas moléculas do papel diante de mim dilataram-se ante o mistério da poesia subitamente incorporada; e dá-la com tudo o que nela havia de silencioso e inefável — o pasmo das estrelas, o mudo assombro das casas, o murmúrio místico das árvores a se tocarem sob a Lua.

E também o instante anterior à tua vinda, quando, esperando-te chegar, relembrei-te ainda adolescente naquela mesma cidade em que te reencontrava anos depois; e a certeza que tive, ao te olhar, da fatalidade insigne do nosso encontro, e de que eu estava, de um só golpe, perdido e salvo.

Quisera dar-te, sobretudo, Amada minha, o instante da minha morte; e que ele fosse também o instante da tua morte, de modo que nós, por tanto tempo em vida separados, vivêssemos em nosso descenso uma só eternidade; e que nossos corpos fossem embalsamados c sepultados juntos e acima da terra; e que todos aqueles que ainda se vão amar pudessem ir mirar-nos em nosso último leito; e que sobre nossa lápide comum jazesse a estátua de um homem parindo uma mulher do seu flanco; e que nela houvesse apenas, como epitáfio, estes versos finais de uma canção que te dediquei:

… dorme, que assim
dormirás um dia
na minha poesia
de um sono sem fim…



Vinícius de Moraes



O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.


Pedro Tamen

Primavera



O meu amor sozinho
É assim como um jardim sem flor
Só queria poder ir dizer a ela
Como é triste se sentir saudade

É que eu gosto tanto dela
Que é capaz dela gostar de mim
E acontece que eu estou mais longe dela
Que da estrela a reluzir na tarde

Estrela, eu lhe diria
Desce à terra, o amor existe
E a poesia só espera ver
Nascer a primavera

Para não morrer
Não há amor sozinho
É juntinho que ele fica bom
Eu queria dar-lhe todo o meu carinho

Eu queria ter felicidade
É que o meu amor é tanto
Um encanto que não tem mais fim
E no entanto ele nem sabe que isso existe

É tão triste se sentir saudade
Amor, eu lhe direi
Amor que eu tanto procurei

Ah, quem me dera eu pudesse ser
A tua primavera
E depois morrer


Vinicius de Moraes

domingo, 29 de março de 2009


Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas - a pretensão, que têm certos homens, de que, por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem - lá entre eles, exclusos todos nós outros - os grandes segredos que são os caboucos do mundo.

Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demónios de ser mais fácil que o comércio com a gramática?

Que há no dogma e ritual da Alta Magia que impeça alguém de escrever, já não digo com clareza, pois pode ser que a obscuridade seja da lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez…

Aceito que um grande matemático some dois e dois para dar cinco: é um acto de distracção, e a todos nós pode suceder. O que não aceito é que não saiba o que é somar, ou como se soma. E é este o caso dos mestres do oculto, na sua formidável maioria.

O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação.

Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.



Fernando Pessoa

sábado, 28 de março de 2009



E ele espera, contente quase e bebedor tranqüilo, 
E apenas desejando 
Num desejo mal tido 
Que a abominável onda 
O não molhe tão cedo.

Ricardo Reis

Aldous Huxley - Inspirações


"Havia uma coisa chamada céu, entretanto, eles bebiam quantidades enormes de álcool.
Havia uma coisa chamada alma e uma coisa chamada imortalidade, mas eles tomaram morfina e cocaína"

"Nem mesmo o melhor dos chineses poderia ter dito mais em compasso tão estreito. A noite, o desejo, a angústia de esperar e, com ela, a dor mais persistente, mais profunda, mais desesperançosamente incurável de saber que toda luz há que se pôr, que a vida e o amor declinam, declinam inexoravelmente rumo ao ocaso e à escuridão: todas essas coisas são implicadas – quão completamente! – nas linhas de Safo. As palavras continuam como que a ecoar e re-ecoar ao longo de corredores cada vez mais remotos da memória, com um som que jamais pode completamente morrer (tal é o estranho poder da voz do poeta) até a morte da própria memória"

"Crepúsculo e morte. Morte e beijos. Beijos dos quais resultam nascimentos. Consequentemente, morte para outra geração de observadores de crepúsculos."

O Despertar




Entra a luz e ascendo inertemente
Dos sonhos para o sonho repartido
E as coisas recuperam o seu devido
E aguardado lugar e no presente
Concentra se, opressivo e vasto, o vago
Ontem: as seculares migrações
Das aves e dos homens, as legiões
Que o ferro destruiu, Roma e Cartago.
Também regressa a quotidiana história:
Meu rosto, minha voz, receio e sorte.
Ah, se aquele outro despertar, a morte
Me apresentasse um tempo sem memória
Do meu nome e de tudo o fui sendo!
Se nesse dia houvesse esquecimento!


Jorge Luís Borges

Pode Invadir


Pode invadir ou chegar com delicadeza, mas não tão devagar que me faça dormir. Não grite comigo, tenho o péssimo hábito de revidar. Acordo pela manhã com ótimo humor mas ... permita que eu escove os dentes primeiro. Toque muito em mim, principalmente nos cabelos e minta sobre minha nocauteante beleza. Tenho vida própria, me faça sentir saudades, conte algumas coisas que me façam rir, mas não conte piadas e nem seja preconceituoso, não perca tempo, cultivando este tipo de herança de seus pais. Viaje antes de me conhecer, sofra antes de mim para reconhecer-me um porto, um albergue da juventude. Eu saio em conta, você não gastará muito comigo. Acredite nas verdades que digo e também nas mentiras, elas serão raras e sempre por uma boa causa. Respeite meu choro, me deixe sózinha, só volte quando eu chamar e, não me obedeça sempre que eu também gosto de ser contrariada. ( Então fique comigo quando eu chorar, combinado?). Seja mais forte que eu e menos altruísta! Não se vista tão bem... gosto de camisa para fora da calça, gosto de braços, gosto de pernas e muito de pescoço. Reverenciarei tudo em você que estiver a meu gosto: boca, cabelos, os pelos do peito e um joelho esfolado, você tem que se esfolar as vezes, mesmo na sua idade. Leia, escolha seus próprios livros, releia-os. Odeie a vida doméstica e os agitos noturnos. Seja um pouco caseiro e um pouco da vida, não de boate que isto é coisa de gente triste. Não seja escravo da televisão, nem xiita contra. Nem escravo meu, nem filho meu, nem meu pai. Escolha um papel para você que ainda não tenha sido preenchido e o invente muitas vezes.

Me enlouqueça uma vez por mês mas, me faça uma louca boa, uma louca que ache graça em tudo que rime com louca: loba, boba, rouca, boca ... Goste de música e de sexo. Goste de um esporte não muito banal. Não invente de querer muitos filhos, me carregar pra a missa, apresentar sua familia... isso a gente vê depois ... se calhar ... Deixa eu dirigir o seu carro, que você adora. Quero ver você nervoso, inquieto, olhe para outras mulheres, tenha amigos e digam muitas bobagens juntos. Não me conte seus segredos ... me faça massagem nas costas. Não fume, beba, chore, eleja algumas contravenções. Me rapte! Se nada disso funcionar ... experimente me amar!

Martha Medeiros

quinta-feira, 26 de março de 2009


Of all flowers
Methinks a rose is best.


William Shakespeare

Canção na plenitude

Reflection, de Wendy Delgado 

Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)

O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.

Lya Luft

Vocação para a Felicidade



Não escreverei versos chorosos
cantando tristezas infinitas,
amores impossíveis,
saudades dolorosas,
paixões trágicas
e não correspondidas.

Tenho a vocação para a felicidade.
Ser feliz não me traz sentimento de culpa.
Não preciso da tristeza
para justificar a inutilidade da vida.

Não preciso morrer e
ir ao céu
para encontrar a felicidade.
Quero-a e tenho-a
neste espaço terreno
do aqui e do agora.

A felicidade,
tal e qual, o amor
está dentro de mim
e transborda
em ternuras,
em melodias,
em carinhos,
em alegrias,
em cantos e encantos.

Sou feliz e não preciso me justificar.
Sorrio sem ver passarinho verde.
Não tenho medo de ser feliz .

Faço minha estrela brilhar
sem receio dos encontros, desencontros, encantos e
desencantos que o amor me diz.

Contrariedades? Eu as tenho!
E quem não as tem na vida secular?
Escassez de dinheiro?
Nem é bom falar.

Amores não correspondidos?
Separações?
Rejeições?
Saudades incuráveis?

Carinhos reprimidos,
ternuras guardadas, sem a contra
parte do outro?
Eu tenho aos montões.
Sou a rainha das perdas,
necessárias ao meu crescimento.

Contudo quem não soube
a sombra
não sabe a luz.

E num livro de matemática existencial
juntei todos esses problemas insolúveis,
com as respostas nas últimas páginas.

Mas pra que me debruçar
sobre eles, procurando a solução
se a própria vida me conduz
a resposta final?

Sem medo de ser feliz
vou por aqui e por ali...
Por onde os caminhos,
as trilhas,
os atalhos me levarem ,
traçando meu rumo.

Às vezes com alguma tristeza
mas quem disse que felicidade
é o contrário de tristeza?
Tristeza é só uma momentânea
falta de alegria!

É, amigo, amanhã é sempre um novo dia
e quando a infelicidade
passar por aqui,
minhas malas estarão prontas
para eu ir por ali.


Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 25 de março de 2009

Corrado Giaquinto

Esse Deus do Antigo e Novo Testamento é, antes de tudo, uma figura extraordinária, mas não o que realmente deveria ser. Representa o bom, o nobre, o paternal, o belo e também o elevado e o sentimental… está bem! Mas o mundo se compõe também de outras coisas. E tudo o que sobra é atribuído ao Diabo; toda essa parte do mundo, toda essa outra metade é encobertada e silenciada. Glorifica-se a Deus como Pai de toda a vida, ao mesmo tempo que se oculta e se silencia a vida sexual, fonte e substrato da própria vida, declarando-a pecado e obra do Demônio. Não faço a menor objeção a que se adore esse Deus Jeová. Mas creio que devemos adorar e santificar o mundo inteiro em sua plenitude total e não apenas essa metade oficial, artificialmente dissociada. Portanto, ao lado do culto de Deus devíamos celebrar o culto ao Demônio. Isto seria o certo. Ou mesmo criar um deus que interagisse em si também o demônio e diante do qual não tivéssemos que cerrar os olhos para não ver as coisas mais naturais do mundo.

Hermann Hesse, in Demian.

O Mar

xie-chuyu


Antes que o sonho (ou o terror) tecera
mitologias e cosmogonias,
antes que o tempo se cunhasse em dias,
o mar, sempre o mar, já estava e era.
Quem é o mar? Quem é o violento
e antigo ser que destrói os pilares
da terra, e é só um e muitos mares,
e abismo e resplendor e azar e vento?
Quem o olha vê-o pela vez primeira,
sempre. Com o assombro tal que as coisas
elementares deixam, as formosas
tardes, a lua, o fogo da fogueira.
Quem é o mar, quem sou? Sei-o no dia
que virá logo após minha agonia.


Jorge Luís Borges
Obra de Santiago Rusinol.
(…) Ocorreu-lhe que em momentos de crise o embate da pessoa nunca era com um inimigo externo, mas sempre com seu próprio corpo. Naquele momento, e apesar do gim, a dorzinha chata que sentia no estômago o impedia de encadear os pensamentos. E o mesmo acontece, observou ele, em todas as situações aparentemente heroicas ou trágicas. No campo de batalha, na câmara de tortura, num navio prestes a ir a pique, os motivos pelos quais a pessoa luta são sempre esquecidos, porque o corpo se dilata até ocupar o universo inteiro, e mesmo quando a pessoa não está paralisada pelo medo nem grita de dor, a vida é uma luta incessante contra ou o frio ou a insônia, contra um estômago embrulhado ou uma dor de dente.

George Orwell, in “1984”

segunda-feira, 23 de março de 2009

Arthur Braginsky

Quando cansado da vigília insana
declino a fronte num dormir profundo,
por que teu nome vem ferir-me o ouvido,
lembrar-me o tempo que passei no mundo?

Por que teu vulto se levanta airoso,
tremente em ânsias de volúpia infinda?
E as formas nuas, e ofegante o seio,
no meu retiro vens tentar-me ainda?

Por que me falas de venturas longas,
por que me apontas um porvir de amores?
E o lume pedes à fogueira extinta,
doces perfumes a polutas flores?

Não basta ainda essa existência escura,
página treda que a teus pés compus?
Nem essas fundas, perenais angústias,
dias sem crenças e serões sem luz?

Não basta o quadro de meus verdes anos
manchado e roto, abandonado ao pó?
Nem este exílio, do rumor no centro,
onde pranteio desprezado e só?

Ah! não me lembres do passado as cenas,
nem essa jura desprendida a esmo!
Guardaste a tua? a quantos outros, dize,
a quantos outros não fizeste o mesmo?

A quantos outros, inda os lábios quentes
de ardentes beijos que eu te dera então,
não apertaste no vazio seio
entre promessas de eternal paixão?

Oh! fui um doido que segui teus passos,
que dei-te em versos de beleza a palma;
mas tudo foi-se, e esse passado negro
por que sem pena me despertas n'alma?
Deixa-me agora repousar tranqüilo,

deixa-me agora dormitar em paz,
e com teus risos de infernal encanto
em meu retiro não me tentes mais!


Fagundes Varela

Receitas de Rita Lee


“Arnaldinho, my darling, fico longe de shopping centers, não acredito em cremes de beleza, fujo de médicos, nunca votei no Maluf, não como cadáveres de animais e desconfio de quem fala muito em Jesus.” - Rita Lee, cantora, respondendo a Arnaldo Antunes, também cantor, sobre sua fonte da juventude.

Simplicidade



Abre-se a grade no jardim
com a docilidade da página
que uma devoção freqüente interroga
e lá dentro o olhar
não precisa se fixar nos objetos,
que já estão firmemente na memória.
Conheço os costumes e conheço as almas
e esse dialeto de alusões
que todo grupo humano vai urdindo.
Não preciso falar
nem fingir privilégios;
os que me rodeiam me conhecem bem,
a as minhas mágoas e fragilidades.
Isto, sim, é chegar ao ponto mais alto,
o que talvez traga o Céu:
não as admirações ou as vitórias,
mas simplesmente sermos recebidos
como parte de uma Realidade inegável
como as pedras e as árvores.


Jorge Luis Borges

Com lento amor




Com lento amor olhava os dispersos
Tons da tarde. A ela comprazia
Perder-se na complexa melodia
Ou na curiosa vida dos versos.

Não o rubro elemental mas os cinzentos
Fiaram seu destino delicado,
Feito a discriminar e exercitado
Na vacilação e nos matizes.

Sem se atrever a andar neste perplexo
Labirinto, olhava lá de fora
As formas, o tumulto e a carreira,

Como aquela outra dama do espelho.
Deuses que habitam para lá do rogo
Abandonaram-na a esse tigre, o Fogo.


Jorge Luís Borges

domingo, 22 de março de 2009

arte: victor gabriel gilbert 
“Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação. Sendo assim, fica evidente que cada leitor é co-autor. Porque cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo em que habita.”

Leonardo Boff

Não Te Gosto em Silêncio


Não te gosto em silêncio porque te sinto distante.
Entre tua boca e a palavra mora talvez minha angústia
como entre o dia e a noite
vacila a longa dúvida do crepúsculo.

Não te gosto em silêncio, quando há em teus olhos, pousados,
dois estranhos pássaros noturnos,
e teus lábios emudecem como a fonte nos ásperos
e intermináveis invernos.

Não te gosto em silêncio quando te envolves com as coisas
que te cercam, como se fosses uma delas,
quando estás como as águas paradas, cuja beleza
é apenas o reflexo das estrelas.

Por isto te provoco e te atiro perguntas
como pedras quebrando a impassibilidade do lago,
como pancadas no gongo que estremece e vibra
e te traz à tona para mim.

Não te gosto em silêncio, porque parece que atrás de tua voz
ainda se esconde alguém que tu própria não conheces,
alguém embuçado a ameaçar nosso sonho
e que só tuas palavras poderão expulsar.

Não te gosto em silêncio, porque preciso ainda de tua palavra
para te descobrir,
lanterna adiante de meu passo, alvorada desenterrando
na noite emaranhada meu indeciso caminho.

Porque preciso ainda que tua palavra chegue como um vento forte
arrastando nuvens, limpando céus e horizontes,
levando folhas doentes, te descobrindo ao sol…

Um dia te gostarei em silêncio. E então me recolherei em teu silêncio,
e procurarei a sombra, como o pássaro na hora da tarde,
e porque o sol estará em nós e nada turvará meu pensamento,
entre tua boca e a palavra haverá apenas o meu beijo.


J.G. de Araújo Jorge

Egoísmo

Dai Ho

Não compreendo que tragas um passado,
tu devias esperar-me
devias adivinhar que eu chegaria em tua vida...

Não devias trazer na beleza tristonha
dos teus olhos castanhos
vultos estranhos;
nem nas tuas mãos, inquietas como folhagens
invisíveis tatuagens
como rastros de carícias que passaram;
nem devias trazer nos teus lábios vermelhos
essa umidade das flores
que já desabrocharam...

Queria que as tuas mãos fôssem folhas em branco
à espera da minha inspiração;
que os teus olhos fôssem ingênuos como os das crianças
ingênuos como a expressão da tua face;
e a tua boca, - uma fruta de vez
que o pássaro do desejo respeitasse...

Eu queria que a tua alma, numa perpétua festa,
fosse irmã daquela fonte muito clara, muito límpida,
que mora na floresta...

Não compreendo que tragas um passado
que te lembres de coisas que não sei
nem que tragas vestígios de outro amor
em teu olhar,
- não te perdôo nunca o não teres adivinhado
que nasceste afinal só para seres minha
e que eu havia de te encontrar...

E eu que sou teu presente e serei teu futuro
sinto-me pradoxalmente amargurado,
com este egoísmo pueril... e este ciúme doentio
do teu passado...


J.G de Araújo Jorge

quinta-feira, 19 de março de 2009

XXVII - O guardador de rebanhos


Gena Genadyj

Só a Natureza é divina, e ela não é divina…
Se falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens
Que dá personalidade às cousas,
E impõe nome às cousas.
Mas as cousas não têm nome nem personalidade:
Existem, e o céu é grande a terra larga,
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado…
Bendito seja eu por tudo quanto sei.
Gozo tudo isso como quem sabe que há o sol.


Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

Brasil, um país do futuro

Antes de deixar a vida por vontade própria e livre, com minha mente lúcida, imponho-me última obrigação; dar um carinhoso agradecimento a este maravilhoso país que é o Brasil, que me propiciou, a mim e a meu trabalho, tão gentil e hospitaleira guarida. A cada dia aprendi a amar este país mais e mais e em parte alguma poderia eu reconstruir minha vida, agora que o mundo de minha língua está perdido e o meu lar espiritual, a Europa, autodestruído. Depois de 60 anos são necessárias forças incomuns para começar tudo de novo. Aquelas que possuo foram exauridas nestes longos anos de desamparadas peregrinações. Assim, em boa hora e conduta ereta, achei melhor concluir uma vida na qual o labor intelectual foi a mais pura alegria e a liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a Terra. Saúdo todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite.
Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes.


Quando os sacerdotes tentam desabituá-los do canibalismo, esbarram mais com admiração, da parte deles, do que com verdadeira resistência, pois esses selvagens ainda vivem fora de toda noção de civilização ou de moral, e devorar prisioneiros para eles não significa senão um prazer tão inocente como beber, dançar ou dormir com mulheres. Esse ínfimo grau do modo de viver parece a princípio um obstáculo invencível para a obra dos jesuítas, mas, na realidade, facilita-lhes a tarefa. Como essas criaturas nuas não possuem idéias religiosas ou morais, é muito mais fácil incuti-las nelas do que em povos em que já domina um culto próprio e em que magos, sacerdotes e xamanes com indignação se opõem ao missionário. A população aborígene do Brasil, ao contrário, é, como diz Nóbrega, um “papel em branco” que macio e dócil aceita a nova prescrição e acolhe todo ensino. Por toda parte os aborígenes recebem sem nenhuma desconfiança os “brancos”, os sacerdotes: “Onde quer que vamos, somos recebidos. com grande boa vontade”. Sem hesitação deixam que eles os batizem e de boa vontade e gratos seguem — e por que não? — os sacerdotes, os “brancos bons”, que os protegem contra os outros, os “brancos maus”. Naturalmente os jesuítas, como realistas experimentados e sempre atentos, sabem que esse assentimento indolente e irrefletido, que o ajoelhar-se e o persignar-se de canibais, absolutamente ainda não é verdadeiro cristianismo; mesmo no mais célebre defensor de sua missão em São Paulo, em Tibiriçá, observam-se às vezes reincidências no canibalismo. Os jesuítas não esperdiçam o tempo com estatísticas ostentadoras relativas às almas já conquistadas; sabem que sua verdadeira tarefa está no futuro. Em primeiro lugar é preciso apenas fazer com que essas massas nômades se fixem em sítios, para que se possa tomar conta de seus filhos e dar-lhes instrução. A atual geração, canibalesca, esta já não é possível civilizar de fato. Mas será fácil educar, de acordo com a civilização, as crianças, portanto as gerações vindouras. Por isso, para os jesuítas, o mais importante é criar escolas em que, muito previdentemente, começam com aquela ideia de mescla sistemática que fez do Brasil uma unidade e que sozinha o manteve como unidade. Conscientemente reúnem crianças das choças dos selvagens com os mestiços, já numerosos, e insistentemente solicitam que enviem crianças brancas de Lisboa, ainda que sejam apenas as crianças abandonadas, desamparadas, que são apanhadas nas ruas de Lisboa. Todo elemento novo que favoreça a mescla, é bem recebido por eles, mesmo o constituído pelos — “moços perdidos, ladrões e maus que aqui chamam de patifes”. Eles têm interesse em criar os mestres do povo por meio do próprio sangue do povo, pois os aborígenes no ensino religioso confiam mais nos irmãos da mesma cor ou de cor mesclada, do que nos estrangeiros, nos brancos. Ao contrário dos outros, os jesuítas pensam exclusivamente nas gerações vindouras; realistas e calculistas exatos e clarividentes, são os únicos que têm uma visão verdadeira do Brasil futuro, e, ainda antes que qualquer geógrafo tenha ideia da vastidão desta terra, eles pautam seu trabalho por um padrão exato. O que eles fazem é um plano de campanha para o futuro, e o objetivo desse plano, que permanece fixo através dos séculos, é a constituição desta nova terra no sentido duma única religião, dum único idioma, duma única ideia.

* * *

A verdadeira resistência com que em seu grandioso plano de colonização, esbarram os jesuítas, não provém, como a princípio poderia esperar-se, dos aborígenes, dos selvagens, dos canibais, e sim dos europeus, dos cristãos, dos colonos. Até então, para aqueles soldados evadidos, marinheiros desertados, para os degredados, o Brasil era um paraíso exótico, uma terra sem lei, sem restrições e deveres, uma terra em que podia cada um fazer e deixar de fazer o que bem lhe aprouvesse. Sem serem seriamente importunados pela justiça ou pela autoridade, podiam eles permitir-se livre curso aos instintos desregrados; o que na pátria era punido com grilhões e ferrete, no Brasil era considerado prazer permitido, de acordo com a doutrina dos conquistadoras:- “Ultra equinoxialem non peccatur”. Eles se apossavam de terras, onde quisessem e na quantidade que quisessem; capturavam aborígenes onde quer que os encontrassem e, a chicote, os obrigavam a trabalhar. Apossavam-se de toda mulher que encontravam, e o enorme número de mestiços patenteou, em breve, a difusão dessa poligamia desenfreada. Não havia ninguém para lhes impor autoridade, e, por isso, cada um desses indivíduos que, em sua maioria, ainda traziam nas espáduas as marcas do ferrete da casa de correção, vivia, como um paxá, sem se importar com direito e religião e, sobretudo, sem jamais mover as mãos para realmente trabalhar. Ao invés de civilizarem a terra, aqueles primeiros colonos mesmos estavam asselvajados.

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Outrora os escritores, antes de darem um livro à publicidade, costumavam escrever um pequeno prefácio, no qual declaravam por que motivos, de que pontos de vista e com que intenção haviam escrito a obra. Era bom hábito, pois criava desde logo, pela franqueza e pelas palavras dirigidas aos leitores, conveniente entendimento entre um e outros. Desejo, pois, dizer, com a maior sinceridade possível, o que me levou a ocupar-me com um tema, na aparência, muito afastado do meu habitual círculo de atividade.
Quando, no ano de 1936, devia partir para Buenos Aires a fim de tomar parte no congresso do P.E.N.C., recebi convite para, aproveitando essa viagem, visitar o Brasil. Minhas expectativas não eram lá muito grandes. Eu tinha, sobre o Brasil, a ideia pretensiosa que, sobre ele, tem o europeu e o norte-americano, e tenho agora dificuldade de recordá-la. Imaginava que o Brasil fosse uma república qualquer das da América do Sul, que não distinguimos bem umas das outras, com clima quente, insalubre, com condições políticas de intranquilidade e finanças arruinadas, mal administrada e só parcialmente civilizada nas cidades marítimas, mas com bela paisagem e com muitas possibilidades não aproveitadas — país, portanto, para emigrados ou colonos e, de modo nenhum, país do qual se pudesse esperar estímulo para o espírito. Uma visita de dez dias a tal país parecia-me suficiente para quem não é geógrafo, colecionador de borboletas, caçador, sportsman ou negociante. Demorarei lá oito ou dez dias e depois regressarei depressa, assim pensei, e não me envergonho de confessar esse meu modo insensato de pensar. Acho mesmo importante fazê-lo, porque ele é mais ou menos o mesmo que ainda é corrente nos círculos europeus e norte-americanos. O Brasil, no sentido cultural, ainda hoje é uma terra incógnita como, no sentido geográfico, o foi para os primeiros navegadores. Muitas vezes fiquei surpreso de ver que ideias confusas e deficientes, mesmo pessoas cultas e interessadas por coisas políticas, possuem sobre esse país que, indubitavelmente, está destinado a ser um dos mais importantes fatores do desenvolvimento futuro do mundo. Quando, por exemplo, a bordo, um negociante de Boston, de modo bastante depreciativo falou sobre pequenos países sul-americanos e eu tentei lembrar-lhe que só o Brasil compreende um território maior do que os Estados Unidos, julgou ele que eu estava gracejando e só se convenceu da minha afirmativa diante dum mapa. Encontrei num romance — de autor inglês muito conhecido — o engraçado pormenor de fazer o seu protagonista ir para o Rio de Janeiro a fim de nesta cidade aprender o espanhol. Mas esse autor é apenas um dos inúmeros indivíduos que não sabem que no Brasil se fala português. Todavia não compete a mim, está claro, fazer censuras pretensiosas a outros por seus poucos conhecimentos; eu próprio, quando parti pela primeira vez da Europa, nada, ou, ao menos, nada de seguro sabia sobre o Brasil.
Deu-se então a minha chegada ao Rio, que me causou uma das mais fortes impressões de minha vida. Fiquei fascinado e, ao mesmo tempo, comovido, pois se me deparou não só uma das mais magníficas paisagens do mundo, nesta combinação sem igual de mar e montanha, cidade e natureza tropical, mas lambem uma espécie inteiramente nova de civilização. Aqui havia, inteiramente contra a minha expectativa, um aspecto absolutamente próprio, com ordem e perfeição na arquitetura, e no traçado da cidade, aqui havia arrojo e grandiosidade em todas as coisas novas e, ao mesmo tempo, uma civilização antiga ainda conservada de modo muito feliz, graças à distância. Aqui havia colorido e movimento; os olhos não se cansavam de olhar e, para onde quer que os dirigisse, sentia-me feliz. Apoderou-se de mim uma ebriedade de beleza e de gozo que excitava os sentidos, estimulava os nervos, dilatava o coração e, por mais que eu visse, ainda queria ver mais. Nos últimos dias da minha permanência no Brasil viajei para o interior ou melhor para lugares que julguei situados no interior. Viajei doze, quatorze horas para São Paulo, para Campinas, pensando com isso aproximar-me do coração deste país. Mas, quando de volta examinei o mapa, verifiquei que com essas, doze ou quatorze horas de viagem de trem apenas havia penetrado até um pouco abaixo da pele; pela primeira vez comecei a fazer ideia do incrível tamanho deste país, que propriamente já quase não deveria ser qualificado de um país, mas sim antes de um continente, um mundo com espaço para trezentos, quatrocentos, quinhentos milhões de habitantes e uma riqueza imensa sob este solo opulento e intacto, da qual apenas a milésima parte foi aproveitada. Um país em desenvolvimento rápido, mas apenas incipiente e, apesar de toda a atividade operante, construtiva, criadora, organizadora, um país cuja importância para as gerações vindouras não podemos calcular, mesmo fazendo as mais ousadas combinações. E com surpreendente velocidade desvaneceu-se a presunção européia que muito superfluamente trouxera como bagagem. Percebi que havia lançado um olhar para o futuro do mundo.

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É impossível conhecer inteiramente o Brasil, esse mundo tão vasto. Passei cerca de meio ano neste país e precisamente só agora sei que, apesar de toda a diligência em aprender e de todo o viajar, ainda não posso dizer que conheço o Brasil e sei também que uma vida inteira não bastaria para conhecê-lo. (...)Apesar de todo o meu viajar, olhar, aprender, ler e procurar, não penetrei muito além da orla da civilização do Brasil. Tenho que me consolar com a ideia de haver encontrado apenas dois ou três brasileiros que puderam afirmar conhecer o âmago quase impenetrável de seu país, e com a de que estrada de ferro, vapor ou auto, meios esses também impotentes contra a vastidão fantástica desta terra, não me teriam levado muito além dos lugares até onde fui. Não me é possível expender conclusões definitivas, predições e profecias sobre o futuro econômico, financeiro e político do Brasil. Os problemas do Brasil relativos à economia, à sociologia e à civilização são tão novos, tão especiais e, sobretudo, dispostos de modo tão indistinto, em conseqüência da vastidão do país, que cada um deles exigiria um grupo de especialistas para esclarecê-lo inteiramente. É impossível ter uma noção completa dum país que ainda não tem uma vista de conjunto completa de si próprio e se acha em crescimento tão rápido que toda estatística e todo relatório já estão atrasados quando impressos. Do grande número de aspectos quero salientar principalmente um que me parece o de maior atualidade e coloca hoje o Brasil numa posição especial entre todas as nações do mundo no que respeita ao espírito e à moral. Esse problema central que se impõe a toda geração e, portanto, também à nossa, é a resposta à mais simples e, apesar disso, a mais necessária pergunta: como poderá conseguir-se no mundo viverem os entes humano pacificamente uns ao lado dos outros, não obstante todas a diferenças de raças, classes, pigmentos, crenças e opiniões? É o problema que imperativamente sempre se apresenta a toda comunidade, a toda nação. A nenhum país esse problema, por uma constelação particularmente complicada, se apresenta mais perigoso do que ao Brasil, e nenhum o resolveu duma maneira mais feliz e mais exemplar do que a pela qual este o fez; é para gratamente testemunhar isso que escrevi este livro. O Brasil resolveu-o duma maneira que, na minha opinião, requer não só a atenção, mas, também a admiração do mundo. (...)Aqui vivem os descendentes dos portugueses que conquistaram e colonizaram o Brasil, aqui vive a descendência aborígene dos que habitam o interior do país desde épocas imemoráveis, aqui vivem milhões provindos dos negros que nos tempos da escravatura foram trazidos da África, e milhões de estrangeiros, portugueses, italianos, alemães e até japoneses. Segundo o modo de pensar europeu, seria de esperar que cada um desses grupos assumisse atitude hostil contra os outros, os que haviam chegado primeiro contra os que chegaram mais tarde, os brancos contra os negros, os brasileiros contra os europeus, os de cor branca, parda ou vermelha, contra os da raça amarela, e que as maiorias e as minorias em luta constante pelos seus direitos e prerrogativas se hostilizassem. Com a maior admiração verifica-se que todas essas raças, que já pela cor evidentemente se distinguem umas das outras, vivem em perfeito acordo entre si e, apesar de sua origem diferente, porfiam apenas no empenho de anular as diversidades de outrora, a fim de o mais depressa e o mais completamente se tornarem brasileiras, constituindo nação nova e homogênea. Da maneira mais simples o Brasil tornou absurdo — e a importância desse experimento parece-me modelar — o problema racial que perturba o mundo europeu, ignorando simplesmente o presumido valor de tal problema. Ao passo que na Europa agora mais do que nunca domina a quimera de quererem criar seres humanos “puros”, quanto à raça, como cavalos de corrida ou cães de exposição, a nação brasileira há séculos assenta no princípio da mescla livre e sem estorvo, da completa equiparação de preto, branco, vermelho e amarelo. O que em outros países está teoricamente estabelecido apenas no papel e no pergaminho, a absoluta igualdade dos cidadãos na vida pública, bem como na vida privada, aqui existe de fato, na escola, nos empregos, nas igrejas, nas profissões e na vida militar, nas universidades, nas cátedras.

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A primeira impressão que dá este país é a duma opulência perturbadora. Tudo é intenso, o sol, a luz, as cores. O azul do céu é aqui mais vivo, o verde é mais carregado, a terra é compacta e vermelha; nenhum pintor poderá encontrar em sua paleta tons de cor mais deslumbrantes, mais irisados do que os que aqui têm as aves em sua plumagem, as borboletas em suas asas. A natureza alcança sempre o seu superlativo: nas trovoadas, que com estrondosos relâmpagos rasgam o firmamento; nas chuvas, que se precipitam como catadupas, e na vegetação, que em alguns meses pulula, formando intenso matagal verde. Mas também o solo intacto desde séculos e milênios responde aqui a todo apelo com uma energia quase incrível. Se nos lembramos do trabalho, do esforço, da habilidade, da tenacidade a que na Europa temos de recorrer para conseguir, dum jardim, ou dum agro, flores ou frutos, ficamos surpresos de encontrar aqui uma vegetação que, ao contrário, temos que conter para que se não desenvolva demasiado impetuosa, demasiado violentamente. Aqui não temos que favorecer o crescimento e sim lutar contra ele, a fim de que em sua bárbara impetuosidade não sufoque o que é plantado pela mão do homem. Espontaneamente e sem trato crescem aqui os vegetais que dão à maior parte da população o alimento, a banana, a manga, a mandioca, o abacaxi. E toda nova planta frutífera, todo novo vegetal, trazido doutro continente para aqui, imediatamente se adapta a este húmus virgem. A impetuosidade com que esta terra responde a todas experiências que nela se tentam, de maneira paradoxal, várias vezes em sua história econômica, até se transformou em perigo. Aqui se originaram com seqüência quase regular crises de superprodução, unicamente porque tudo corria demasiado rápido e fácil; o Brasil, logo que começava a produzir alguma coisa, tinha sempre de conter-se para não produzir demais. O lançamento do café ao mar ou ao fogo no século vinte é o último exemplo disso. Por isso a história econômica do Brasil está cheia de mudanças surpreendentes, e talvez até mais dramáticas do que as de sua história política. Via de regra, o caráter econômico dum país é, desde o começo, inequivocamente determinado; cada país como que toca um único instrumento e a euritmia não se altera essencialmente no correr dos séculos. Este é um país de jardins, aquele tira sua riqueza de madeiras ou de minérios, aqueloutro a obtém da criação de gado. A linha da produção pode oscilar em diferentes ascensões e descidas, mas de um modo geral a direção permanece a mesma. O Brasil, ao contrário, é o país das constantes transformações e das súbitas mudanças. Verdadeiramente cada século teve aqui característica econômica diversa e, no desenvolver-se do drama, cada ato tem o nome de um produto: açúcar, ouro, café, borracha, algodão ou madeira. Em cada século, propriamente em cada meio século, o Brasil apresentou sempre outra nova surpresa de sua opulência.

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Desde 1808 é permitido a navios estrangeiros aportarem aqui e permutarem-se os artigos, sem que os tributos tenham que ser remetidos para a Tesouraria de Lisboa. É permitido no Brasil falar, escrever e pensar, e assim pode afinal ter início neste país, com o desenvolvimento econômico, o desenvolvimento cultural, que por tanto tempo foi violentamente impedido. Pela primeira vez desde o rápido episódio da ocupação holandesa se mandam vir sábios, artistas, técnicos de nomeada, a fim de aqui promoverem o desenvolvimento de uma civilização própria. Criam-se coisas inteiramente desconhecidas aqui, como sejam bibliotecas, museus, universidades, academias de arte, escolas técnicas, e dá-se ao país inteira liberdade de revelar sua personalidade na civilização do mundo.

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Mas é uma particularidade do desenvolvimento do Brasil o fato de este país de possibilidades sem limites sempre vencer cada uma de suas crises por meio duma repentina transformação: logo que o seu principal artigo de exportação o deixa em dificuldades, encontra ele outro, e este mais rendoso. Do mesmo modo que o século dezessete operou tal milagre, da inesperada ascensão, pelo açúcar e o século dezoito pelo ouro e pelos diamantes, o século dezenove realiza-o pelo café. Após o ciclo do açúcar, do “ouro branco”, e o ciclo do ouro “áureo”, começa com o café o ciclo do “ouro pardo”, que depois por curto tempo é substituído pelo ciclo do “ouro vermelho”, da borracha. É uma marcha triunfal sem par, pois com o café o Brasil obtém durante o século dezenove e parte do século vinte um monopólio mundial absoluto: de novo são os velhos e tão característicos fatores, a fertilidade, do solo, a facilidade do plantio, a primitividade do processo de produção, que fazem com que esse novo produto seja muito apropriado precisamente para o Brasil. O café não pode ser plantado, nem colhido com máquina. No seu plantio e na sua colheita o escravo ainda vale muito. E é como o açúcar, o cacau, o fumo, um produto cobiçado pelos nervos gustativos requintados; é propriamente o produto complementar do açúcar e do fumo, pois após uma boa refeição constituem os três uma tríade ideal.

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Embora não sejam escravos, esses seringueiros praticamente são mantidos em escravidão, por contratos de trabalho e pelo fato de os empresários, ainda não satisfeitos com o lucro obtido na borracha, venderem a esses infelizes trabalhadores presos no “cárcere verde” da floresta virgem os artigos e os víveres de que eles precisam, por preços quatro a cinco vezes superiores ao seu valor. Quem quiser conhecer todos os pormenores do horror desse período, leia o admirável romance de Ferreira de Castro, que com grandioso realismo descreve essa vergonhosa época. O trabalho do seringueiro é terrível; morando em miserável rancho na floresta, isolado de toda a humanidade civilizada, tem ele que primeiro abrir com facão e foice caminho para chegar às seringueiras e depois marcá-las e sangrá-las, tem que várias vezes por dia ir e voltar, sob o calor escaldante, tem que ferver o látex obtido, e, enfraquecido pela febre, com suas forças consumidas, após meses de trabalho, graças a cálculos criminosos, continua devendo ao empresário, que dele exige o que com ele gastou para levá-lo para ali, e o explora no fornecimento de víveres. Se o desgraçado tenta fugir do seu cativeiro, que é eufemicamente denominado “contrato de trabalho”, é caçado, exatamente como outrora o escravo, por guardas armados, e dai em diante tem que trabalhar acorrentado.(...)
Todos especulam, todos negociam com borracha, e, enquanto as árvores sangram e no cárcere verde da floresta os seringueiros perecem às centenas e aos milhares, uma geração inteira enriquece no Amazonas com o ouro liquido, como outrora seus antepassados enriqueceram nos vales auríferos de Minas Gerais.

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Essa imigração de quatro a cinco milhões de brancos nos últimos cinqüenta anos importa num enorme acréscimo de energia para o Brasil e ao mesmo tempo lhe proporciona uma imensa vantagem no ponto de vista da civilização e da etnologia. A raça brasileira, que, por uma importação de negros durante três séculos, está ameaçada de se tornar cada vez mais escura, cada vez mais africana, clareia visivelmente, e o elemento europeu, em oposição ao elemento, primitivamente crescente, de escravos analfabetos, eleva o nível geral de civilização. O italiano, o alemão, o eslavo, o japonês trazem de suas pátrias, por um lado, uma energia e uma disposição para o trabalho ainda de todo íntegra e, por outro, a pretensão a um padrão de vida mais elevado. Sabem ler e escrever, têm conhecimento técnico, trabalham com ritmo mais rápido do que a geração mal acostumada pelo serviço dos escravos e não raro debilitada em sua capacidade de trabalho pelo clima.

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Tudo aqui se mistura, se confunde, pobre e rico, novo e velho, paisagem e civilização, choças e arranha-céus, negros e brancos, carroças antiquadas e automóveis, praia e rochedo, vegetação e asfalto. E tudo isso brilha com as mesmas cores deslumbrantes, tudo é bonito, tudo é mesclado e sempre fascinante.

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No Rio a vida pode ser boa para todos. A ideia de aqui ser rico, de viver em uma dessas casas maravilhosas cercadas de parques e situadas nos outeiros da Tijuca é muito sedutora. É mais fácil ser pobre aqui do que noutra grande cidade. O mar é livre para o banho, e a beleza para todos os olhos; as pequenas necessidades da vida custam pouco dinheiro, as pessoas são afáveis e é infinda a multiplicidade das pequenas surpresas
diárias que fazem feliz uma pessoa, sem que ela saiba o porque disso. Há, na atmosfera, algo de brando e repousante que faz com que o indivíduo se torne menos combativo,talvez também menos enérgico. Esta paisagem, como tudo o que é belo e sem par na terra, dá ao indivíduo um misterioso consolo. De noite, com seus milhões de estrelas e de luzes, de dia com suas cores claras e vivíssimas, ardentes e explosivas, no crepúsculo com sua leve neblina e jogos de nuvens, em seu calor fragrante e em seus aguaceiros tropicais, esta cidade sempre é encantadora. Quanto mais tempo a conhecemos, tanto mais gostamos dela. Mas quanto mais tempo a conhecemos, tanto menos podemos descrevê-la.

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 Só meia dúzia de velhos lamentam o desaparecimento do “Rio antigo”, mas como isso, em verdade, não fazem mais do que inconscientemente lamentarem a própria velhice.

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Algumas das coisas singulares, que tornam o Rio tão colorido e pitoresco, já se acham ameaçadas de desaparecer. Sobretudo as “favelas”, as zonas pobres. em plena cidade, será que ainda as veremos daqui a alguns anos? Os brasileiros não gostam de falar dessas “favelas”; no ponto de vista social e no ponto de vista higiênico, constituem elas um atraso, numa cidade muito limpa e que, por um serviço modelar de higiene, em alguns anos se libertou inteiramente da febre amarela, que outrora nela era endêmica. Mas as “favelas” apresentam um colorido especial no meio dessa figura caleidoscópica, e ao menos umas dessas estrelinhas do mosaico deveria ser conservada no quadro da cidade, porque elas representam um fragmento da natureza humana primitiva no meio da civilização..
 Essas “favelas” têm a sua história. A gente humilde que, em parte, vive com salários muito pequenos, não podia morar em casas de aluguel situadas. dentro da cidade; vir diariamente dos arredores da cidade ao local do serviço, e, depois, voltar para casa seriam duas viagens por dia, que acarretariam despesas de passagens. Por isso, procuraram eles, nos morros e nos rochedos situados dentro da cidade, para os quais não há ruas, um local e construíram uma casa, ou melhor, uma choça, sem perguntarem de quem era o terreno. Para a construção de um desses mocambos. não há necessidade de arquiteto. Pegam-se alguns bambus e fincam-se no solo. Enchem-se os vãos entre os bambus com barro amassado. Soca-se o chão. Cobre-se o casebre com palha. E está ele pronto. Não precisa de janelas de vidro, algumas folhas de zinco apanhadas em qualquer lugar servem de janelas. Uma cortina feita de um saco velho cobre a entrada, que, quando muito, ainda é embelezada por pedaços de madeira, de caixões. E a choça é igual à que há centenas de anos seus avós construíram na aldeia brasileira ou africana. O mobiliário não é lá muito rico — uma mesa feita pelo próprio dono da casa, uma cama, alguns bancos — e, nas paredes se acham pregadas algumas figuras coloridas, tiradas de velhas revistas. Esses moradores também não têm algumas comodidades modernas. Assim é que a água tem que ser carregada da fonte que fica em baixo, na planície, por um caminho de degraus feitos no barro ou no rochedo; ininterruptamente se veem mulheres e crianças carregando para cima do morro o precioso líquido em vasilhas sobre a cabeça, não em potes — esses custariam muito dinheiro — mas em latas de querosene. A iluminação elétrica não chega a esses casebres, à noite neles tremeluzem apenas pequenas lamparinas de querosene. E sempre o caminho íngreme subindo degraus, pedras e escadas, muitas vezes resvaladiço e raramente limpo, pois entre os casebres andam os bichos mais diversos, cabras e gatos famintos, cães sarnosos e galinhas magras, e as águas servidas correm, sem cessar, pelas vielas. A cinco minutos de uma praia de luxo, de uma avenida, parece-nos estarmos numa aldeia da Polinésia ou da África. Vemos o máximo de primitividade, a maneira mais simples de habitar e de viver, uma maneira que na Europa ou nos Estados Unidos da América do Norte já quase não se acredita existir. Mas, coisa curiosa, o espetáculo nada tem de aflitivo, de repulsivo, de vergonhoso, pois esses moradores se sentem ali mil vezes mais felizes do que o nosso proletariado em suas casas de cômodos. Moram em casas próprias, podem ali fazer e deixar de fazer o que quiserem; à noite ouve-se que cantam e riem — ali eles são senhores de si. Se aparece o proprietário do terreno ou uma comissão que os obriga a se retirarem; para se abrir no local uma rua ou um bairro residencial moderno, eles calmamente se mudam para outro morro. Nada os impede de carregarem consigo os seus casebres. E, como esses casebres estão situados no alto dos morros, nos mais inacessíveis recantos, têm a mais bela vista que se pode imaginar, a mesma vista que têm as mais caras vilas de luxo, e é a mesma natureza luxuriante que ali orna seus lotezinhos com palmeiras, e generosamente lhes dá bananeiras essa maravilhosa natureza do Rio, que não deixa a alma ser melancólica e infeliz, porque, incessantemente, afaga, com sua mão macia e tranquilizadora. Quantas vezes subi aqueles degraus escorregadios, de barro, para visitar essas zonas de gente humilde. Nunca vi por ali uma pessoa pouco afável ou uma pessoa triste. Como essas “favelas” desaparecerá uma parte interessante, um pedaço incomparável do Rio, e quase não posso imaginar os morros da Gávea e outros sem esses pobres casebres, colados na rocha, que com sua primitividade lembrem quanto de supérfluo temos e exigimos.

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Também outra originalidade do Rio em breve será vítima da ambição civilizadora e talvez também da moral — como em muitas cidades da Europa, Hamburgo ou Marselha — as ruas de que não se fala, a zona do Mangue, a grande feira do amor, a yoshivara do Rio. Oxalá ainda a última hora aparecesse um pintor, a fim de retratar essas ruas, quando elas à noite brilham com luzes verdes, vermelhas, amarelas e brancas e sombras fugitivas, constituindo um espetáculo oriental, misterioso pelos destinos acorrentados uns aos outros e semelhante ao qual não vi outro em toda minha vida. Nas janelas, ou melhor, nas portas se acham como animais exóticos por trás das grades, mil ou talvez mil e quinhentas mulheres, de todas as raças e todas as cores, de todas as idades e naturalidades, negras senegalescas ao lado de francesas, que já quase não podem encobrir com arrebiques as rugas produzidas pelos anos, caboclas franzinas e croatas obesas, e esperam os fregueses, que em incessante préstito espiam pelas janelas, a examinar a mercadoria. Por trás de cada uma dessas mulheres se veem lâmpadas elétricas de cor, que iluminam com reflexos mágicos o aposento posterior, no qual se destaca da penumbra o leito, que é mais claro, um clair-obscur de Rembrandt, que torna quase mística essa atividade quotidiana e, além disso, assombrosamente barata. Mas o que é mais surpreendente, o que, ao mesmo tempo, é brasileiro, nessa feira, é a calma, o sossego, a disciplina; ao passo que em ruas como essas, em Marselha, em Toulon, reina grande barulho, se ouvem risadas, gritos, chamados em voz alta e gramofones, ao passo que lá os fregueses bêbados, europeus, berram nas ruas, aqui, nas do Rio reina calma e moderação. Sem se sentirem envergonhados, os homens passam diante daquelas portas para às vezes desaparecerem ali, como um rápido raio de luz. E por cima de toda essa atividade calma e oculta está o firmamento com suas estrelas; mesmo esse recanto, que em outras cidades, de qualquer modo, consciente e envergonhado de seu comércio, se concentra nos bairros mais feios e mais decaídos, no Rio ainda tem beleza e se torna um triunfo de cor e de luzes variadas.

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Aos jogos importados da Europa, à vispora, ao bacará e à roleta, juntava-se um inventado no Brasil, o jogo do bicho, o jogo nacional, que, apesar de rigorosamente proibido pelo Governo, era realizado com o máximo interesse. Esse jogo do bicho tem uma singular história de origem, a qual por si já mostra de modo claro quão profundamente essa paixão pelo azar corresponde ao caráter sonhador deste povo. O diretor do Jardim Zoológico queixava-se de que este era pouco visitado. Por isso, como bom conhecedor de seus patrícios, teve a esplêndida ideia de fazer sortear cada dia um dos bichos do seu Jardim, um dia o urso, outro dia o burro, outro dia o elefante. Todo indivíduo cujo bilhete de entrada correspondia ao bicho sorteado, recebia um prêmio no valor de vinte ou vinte e cinco vezes a importância da entrada. Deu-se logo o resultado desejado: o Jardim Zoológico durante semanas foi visitadíssimo, mas os visitantes verdadeiramente ali iam menos para verem os bichos do que para ganharem prêmios. Afinal começaram a achar que o Jardim era muito distante e que era muito penoso irem ali todos os dias. Por isso passaram a jogar particularmente, entre si, de acordo com o jogo do Jardim Zoológico. Surgiram pequenas bancas atrás dos balcões das tavernas e nas esquinas, bancas essas que recebiam o jogo e pagavam os prêmios. Quando a Policia proibiu o jogo, foi ele secretamente relacionado com o resultado da loteria. Para evitar que a Polícia apreendesse qualquer prova, jogava-se em confiança. O banqueiro não fornecia recibo a seus clientes, mas não se conhece caso algum em que não houvesse ele cumprido a sua obrigação. Esse jogo, talvez precisamente por ser proibido, invadiu todos os círculos sociais; toda criança no Rio, mal havia aprendido na escola a contar, já sabia que número correspondia a cada bicho e sabia dizer toda a série de bichos melhor do que o alfabeto.


Brasil, um País do futuro
Stefan Zweig
Tradução: Odilon Gallotti


Testes em animais - diga NÃO!




quarta-feira, 18 de março de 2009

Obra de James Archer

Podemos representar-nos um animal zangado, temoroso, triste, amistoso, assustado. Mas podemos representá-lo esperançoso? E por que não?
O cão acredita que seu dono está à porta. Mas também acreditará que seu dono chegará depois de amanhã? — E o “que” ele não pode? — E eu, como faço? Que resposta devo dar?
Apenas quem fala é que pode ter esperança? Apenas aquele que domina o emprego da linguagem. Isto é, os fenômenos da esperança são modificados dessa complicada forma de vida. (Se um conceito visa a um caráter de escrita humana, não tem aplicação com a relação a seres que não escrevem).


 Ludwig Wittgenstein, in Investigações Filosóficas

O Desejo de Sofrer


Quando penso no desejo de fazer alguma coisa que agite e estimule incessantemente, milhões de jovens europeus, os quais não podem suportar o tédio nem a si próprios, dou-me conta de que deve haver neles um desejo de sofrer, seja como for, a fim de extrair deste sofrimento uma razão provável para agir, para fazer grandes coisas. É preciso sofrimento! Daí o clamor dos homens políticos, daí a razão das inúmeras "crises" falsas, fabricadas, exageradas, de todas as categorias possíveis, e o cego ardor que se põe em creditar nelas. Essa juventude exige que seja de fora que lhe venha ou lhe apareça: não a felicidade, mas a infelicidade; e a sua imaginação ocupa-se já em lhe dar antecipadamente as proporções de um monstro, a fim de poder lutar em seguida com um monstro. Se estes sedentos de sofrimentos sentissem em si força bastante de interiormente fazer bem a si mesmos, para fazerem alguma coisa a si próprios, saberiam também criar interiormente uma miséria altamente pessoal. Suas invenções poderiam então ser mais refinadas, e suas sensações trazer consigo o som da boa música; ao passo que agora, enchem o mundo com o seu grito de agonia; e muitas vezes, por consequência, do sentimento de agonia! Não sabem fazer nada de si próprios... é em função disto que rabiscam na parede a infelicidade dos outros! E de mais outros até o infinito!... Peço-vos perdão, meus amigos: tive a audácia de rabiscar a minha felicidade na parede.



"Depois de sentir-me cansado em procurar
Aprendi a encontrar.
Depois de um vento ter-me feito resistência
Navego com todos os ventos"


Friedrich Nietzsche

terça-feira, 17 de março de 2009

[17] - O livro do desassossego



São horas talvez de eu fazer o único esforço de eu olhar para a minha vida. Vejo-me no meio de um deserto imenso. Digo do que ontem literariamente fui, procuro explicar a mim próprio como cheguei aqui.

Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
O livro do desassossego
O Louco


Perguntais-me como me tornei louco. Aconteceu assim:
Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas – e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente gritando: “Ladrões, ladrões, malditos ladrões!”
Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim.
E quando cheguei à praça do mercado, um garoto trepado no telhado de uma casa gritou: “É um louco!” Olhei para cima, para vê-lo. O sol beijou pela primeira vez minha face nua.
Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei mais minhas máscaras. E, como num transe, gritei: “Benditos, benditos os ladrões que roubaram minhas máscaras!”
Assim me tornei louco.
E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.


Meu Amigo

Meu Amigo, não sou o que pareço. O que pareço é apenas uma vestimenta cuidadosamente tecida, que me protege de tuas perguntas e te protege da minha negligência.
Meu Amigo, o Eu em mim mora na casa do silêncio, e lá dentro permanecerá para sempre, despercebido, inalcançável.
Não queria que acreditasses no que digo nem confiasses no que faço – pois minhas palavras são teus próprios pensamentos em articulação e meus feitos, tuas próprias esperanças em ação.
Quando dizes: “O vento sopra do leste”, eu digo: “Sim, sopra mesmo do leste”, pois não queria que soubesses que minha mente não mora no vento, mas no mar.
Não podes compreender meus pensamentos, filhos do mar, nem eu gostaria que compreendesses. Gostaria de estar sozinho no mar.
Quando é dia contigo, meu Amigo, é noite comigo. Contudo, mesmo assim falo do meio-dia que dança sobre os montes e da sombra de púrpura que se insinua através do vale: porque não podes ouvir as canções de minhas trevas nem ver minhas asas batendo contra as estrelas – e eu prefiro que não ouças nem vejas. Gostaria de ficar a sós com a noite.
Quando ascendes a teu Céu, eu desço ao meu Inferno – mesmo então chamas-me através do abismo intransponível, “Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada”, e eu te respondo: “Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada” – porque não gostaria que visses meu Inferno. A chama queimaria teus olhos, e a fumaça encheria tuas narinas. E amo demais meu Inferno para querer que o visites. Prefiro ficar sozinho no Inferno.
Amas a Verdade, e a Beleza, e a Retidão. E eu, por tua causa, digo que é bom e decente amar essas coisas. Mas, no meu coração rio-me de teu amor. Mas não gostaria que visses meu riso. Gostaria de rir sozinho.
Meu Amigo, tu és bom e cauteloso e sábio. Tu és perfeito – e eu também, falo contigo sábia e cautelosamente. E, entretanto, sou louco. Porém mascaro minha loucura. Prefiro ser louco sozinho:
Meu Amigo, tu não és meu Amigo, mas como te farei compreender? Meu caminho não é o teu caminho. Contudo juntos marchamos, de mãos dadas.

(Excertos de “O Louco”)



Dos Filhos


E uma mulher que carregava o filho nos braços disse: “Fala-nos dos filhos.”
E ele disse:
Vossos filhos não são vossos filhos.
São filhos e filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E, embora vivam convosco, a vós não pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos,
Pois eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois suas almas moram na mansão do amanhã, que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis faze-los como vós,
Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.
Vós sois o arco dos quais vossos filhos, quais setas vivas, são arremessados.
O Arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com Sua força para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do Arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como Ele ama a flecha que voa, ama também o arco, que permanece estável.



O Poeta

Sou um estrangeiro neste mundo.
Sou um estrangeiro, e há na vida do estrangeiro uma solidão pesada e um isolamento doloroso. Sou assim levado a pensar sempre numa pátria encantada que não conheço, e a sonhar com os sortilégios de uma terra longínqua que nunca visitei.
Sou um estrangeiro para minha alma. Quando minha língua fala, meu ouvido estranha-lhe a voz. Quando meu Eu interior ri ou chora, ou se entusiasma, ou treme, meu outro Eu estranha o que ouve e vê, e minha alma interroga minha alma. Mas permaneço desconhecido e oculto, velado pelo nevoeiro, envolto no silêncio.
Sou um estrangeiro para o meu corpo. Todas as vezes que me olho num espelho, vejo no meu rosto algo que minha alma não sente, e percebo nos meus olhos algo que minhas profundezas não reconhecem.
Quando caminho nas ruas da cidade, os meninos me seguem gritando: “Eis o cego, demos-lhe um cajado que o ajude.” Fujo deles. Mas encontro outro grupo de moças que me seguram pelas abas da roupa, dizendo: “É surdo como a pedra. Enchamos seus ouvidos com canções de amor e desejo.” Deixo-as correndo. Depois, encontro um grupo de homens que me cercam, dizendo: “É mudo como um túmulo, vamos endireitar-lhe a língua.” Fujo deles com medo. E encontro um grupo de anciãos que apontam para mim com dedos trêmulos, dizendo: “É um louco que perdeu a razão ao freqüentar as fadas e os feiticeiros.”
Sou um estrangeiro neste mundo.
Sou um estrangeiro e já percorri o mundo do Oriente ao Ocidente sem encontrar minha terra natal, nem quem me conheça ou se lembre de mim.
Acordo pela manhã, e acho-me prisioneiro num antro escuro, freqüentado por cobras e insetos. Se sair à luz, a sombra de meu corpo me segue, e as sombras de minha alma me precedem, levando-me aonde não sei, oferecendo-me coisas de que não preciso, procurando algo que não entendo. E quando chega a noite, volto para a casa e deito-me numa cama feita de plumas de avestruz e de espinhos dos campos.
Idéias estranhas atormentam minha mente, e inclinações diversas, perturbadoras, alegres, dolorosas, agradáveis. À meia-noite, assaltam-me fantasmas de tempos idos. E almas de nações esquecidas me fitam. Interrogo-as, recebendo por toda resposta um sorriso. Quando procuro segura-las, fogem de mim e desvanecem-se como fumaça.
Sou um estrangeiro neste mundo.
Sou um estrangeiro e não há no mundo quem conheça uma única palavra do idioma de minha alma...
Caminho na selva inabitada e vejo os rios correrem e subirem do fundo dos vales ao cume das montanhas. E vejo as árvores desnudas se cobrirem de folhas num só minuto. Depois, suas ramas caem no chão e se transformam em cobras pintalgadas.
E as aves do céu voam, pousam, cantam, gorgeiam e depois param, abrem as asas e viram mulheres nuas, de cabelos soltos e pescoços esticados. E olham para mim com paixão e sorriem com sensualidade. E estendem suas mãos brancas e perfumadas. Mas, de repente, estremecem e somem como nuvens, deixando o eco de risos irônicos.
Sou um estrangeiro neste mundo.
Sou um poeta que põe em prosa o que a vida põe em versos, e em versos o que a vida põe em prosa. Por isto, permanecerei um estrangeiro até que a morte me rapte e me leve para minha pátria.

(Extraído de “Temporais”)



A Dádiva


Então um homem opulento disse: “Fala-nos da dádiva.”E ele respondeu:“Vós pouco dais quando dais de vossas posses.É quando dais de vós próprios que realmente dais.Pois, o que são vossas posses senão coisas que guardais por medo de precisardes delas amanhã? E amanhã, que trará o amanhã ao cão ultraprudente que enterra ossos na areia movediça enquanto segue os peregrinos para a cidade santa?E o que é o medo da necessidade senão a própria necessidade? Não é vosso medo da sede, quando vosso poço está cheio, a sede insaciável? Há os que dão pouco do muito que possuem, e fazem-no para serem elogiados, e seu desejo secreto desvaloriza suas dádivas.E há os que têm pouco e dão-no integralmente.Esses confiam na vida e na generosidade da vida, e seus cofres nunca se esvaziam.E há os que dão com alegria, e essa alegria é já a sua recompensa.E há os que dão com pena, e essa pena é o seu batismo.E há os que dão sem sentir pena nem buscar alegria nem pensar na virtude:Dão como, no vale, o mirto espalha sua fragrância no espaço.Pelas mãos de tais pessoas, Deus fala; e através de seus olhos Ele sorri para o mundo.É belo dar quando solicitado; é mais belo, porém, dar sem ser solicitado, por haver apenas compreendido;E para os generosos, procurar quem recebe é uma alegria maior ainda que a de dar.E existe alguma coisa que possais guardar?Tudo o que possuís será um dia dado.Dai agora, portanto, para que a época da dádiva seja vossa e não de vossos herdeiros.Dizeis muitas vezes: “Eu daria, mas somente a quem merece”.As árvores de vossos pomares não falam assim, nem os rebanhos de vossos pastos. Dão para continuar a viver, pois reter é perecer.Certamente, quem é digno de receber seus dias e suas noites é digno de receber de vós tudo o mais.E quem mereceu beber do oceano da vida, merece encher sua taça em vosso pequeno córrego.E que mérito maior haverá do que aquele que reside na coragem e na confiança, mais ainda, na caridade de receber?E quem sois vós para que os homens devam expor o seu íntimo e desnudar seu orgulho a fim de que possais ver seu mérito despido e seu amor-próprio rebaixado?Procurai ver, primeiro, se mereceis ser doadores e instrumentos do dom. Pois, na verdade, é a vida que dá à vida, enquanto vós, que vos julgais doadores, são meras testemunhas.E vós que recebeis – e vós todos recebeis – não assumais encargo de gratidão a fim de não pordes um jugo sobre vós e vossos benfeitores.Antes, erguei-vos, junto com eles, sobre asas feitas de suas dádivas; Pois se ficardes demasiadamente preocupados com vossas dívidas, estareis duvidando da generosidade daquele que tem a terra liberal por mãe e Deus por pai.”



Entre as colinas,


Quando vos sentardes à sombra fresca
dos álamos brancos,
partilhando da paz e da serenidade dos campos
e dos prados distantes,
então que vosso coração diga em silêncio:
"Deus repousa na Razão".
E quando bramir a tempestade,
e o vento poderoso sacudir a floresta,
e o trovão e o relâmpago proclamarem
a majestade do céu,
então que vosso coração diga
com temor e respeito:
"Deus age na Paixão".
E já que sois um sopro na esfera de Deus
e uma folha na floresta de Deus,
também devereis
descansar na razão e agir na paixão.


O amor

E alguém disse:
Fala-nos do Amor:
- Quando o amor vos fizer sinal, segui-o;
ainda que os seus caminhos sejam duros e difíceis.
E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos;
ainda que a espada escondida na sua plumagem
vos possa ferir.
E quando vos falar, acreditai nele;
apesar de a sua voz
poder quebrar os vossos sonhos
como o vento norte ao sacudir os jardins.
Porque assim como o vosso amor
vos engrandece, também deve crucificar-vos
E assim como se eleva à vossa altura
e acaricia os ramos mais frágeis
que tremem ao sol,
também penetrará até às raízes
sacudindo o seu apego à terra.
Como braçadas de trigo vos leva.
Malha-vos até ficardes nus.
Passa-vos pelo crivo
para vos livrar do joio.
Mói-vos até à brancura.
Amassa-vos até ficardes maleáveis.
Então entrega-vos ao seu fogo,
para poderdes ser
o pão sagrado no festim de Deus.
Tudo isto vos fará o amor,
para poderdes conhecer os segredos
do vosso coração,
e por este conhecimento vos tornardes
o coração da Vida.
Mas, se no vosso medo,
buscais apenas a paz do amor,
o prazer do amor,
então mais vale cobrir a nudez
e sair do campo do amor,
a caminho do mundo sem estações,
onde podereis rir,
mas nunca todos os vossos risos,
e chorar,
mas nunca todas as vossas lágrimas.
O amor só dá de si mesmo,
e só recebe de si mesmo.
O amor não possui
nem quer ser possuido.

Porque o amor basta ao amor.
E não penseis
que podeis guiar o curso do amor;
porque o amor, se vos escolher,
marcará ele o vosso curso.
O amor não tem outro desejo
senão consumar-se.
Mas se amarem e tiverem desejos,
deverão se estes:
Fundir-se e ser um regato corrente
a cantar a sua melodia à noite.
Conhecer a dor da excessiva ternura.
Ser ferido pela própria inteligência do amor,
e sangrar de bom grado e alegremente.
Acordar de manhã com o coração cheio
e agradecer outro dia de amor.
Descansar ao meio dia
e meditar no êxtase do amor.
Voltar a casa ao crepúsculo
e adormecer tendo no coração
uma prece pelo bem amado,
e na boca, um canto de louvor.



Do Primeiro Olhar

É aquele momento em que a Vida passa da sonolência para a alvorada. É a primeira chama que ilumina o íntimo mais profundo do coração. É a primeira nota mágica arrancada das cordas de prata do sentimento. É aquele momento instantâneo em que se abrem diante da alma as crônicas do Tempo, e se revelam aos olhos as proezas da noite, e as vozes da consciência. Ele é que abre os segredos da Eternidade para o futuro. É a semente lançada por Ishtar, deusa do Amor, e espargida pelos olhos do ser amado na paisagem do Amor, depois regada e cuidada pela afeição, e finalmente colhida pela alma.
O primeiro olhar vindo dos olhos do ser amado é como o espírito que se movia sobre a face das águas e deu origem ao céu e à terra, quando o Senhor sentenciou: "E agora, vivei!"


Do Primeiro Beijo


É o primeiro gole de néctar da Vida, numa taça ofertada pela divindade. É a linha divisória entre a dúvida que engana o espírito e entristece o coração, e a certeza que inunda de alegria nosso íntimo. É o começo da canção da Vida e o primeiro ato do drama do Homem Ideal. É o vínculo que une a obscuridade do passado com a luminosidade do futuro; é a ponte entre o silêncio dos sentimentos e a sua própria melodia. É uma palavra pronunciada por quatro lábios, proclamando o coração um trono, o Amor um rei e a fidelidade uma coroa. É o toque leviano dos dedos delicados da brisa nos lábios da rosa — pronunciando um longo suspiro de alívio e um suave gemido.
É o começo daquela vibração mágica que transporta os amantes do mundo das coisas e dos seres para o mundo dos sonhos e das revelações.
É a união de duas flores perfumadas; e a mistura de suas fragrâncias, para a criação de uma terceira alma.
Assim como o primeiro olhar é uma semente lançada pela divindade no campo do coração humano, assim o primeiro beijo é a primeira flor nascida na ponta dos ramos da Árvore da Vida.



Do Casamento


Aqui o Amor começa a traduzir a prosa da Vida em hinos e cânticos de louvor, com música que é preparada à noite para ser cantada durante o dia. Aqui a força do amor despe-se dos seus véus, e ilumina todos os recessos do coração, criando uma felicidade que só é excedida pela da Alma quando se encontra com Deus.
O casamento é a união de duas divindades para dar nascimento a uma terceira na terra. É a união de duas almas num amor tão forte que possa abolir qualquer separação. É aquela superior unidade que junta as metades antes separadas, de dois espíritos. É o elo de ouro de uma cadeia cujo começo é um olhar, e cujo fim é a eternidade. É a chuva pura que cai de um céu perfeito para frutificar e abençoar os campos da divina Natureza.
Assim como o primeiro olhar entre os que se amarão é como uma semente lançada no coração humano, e o primeiro beijo de seus lábios uma flor nos ramos da árvore da vida, também a união de dois amantes pelo casamento é como o primeiro fruto da primeira flor daquela semeadura.


Da Música


Sentei-me ao pé daquela que meu coração ama, e ouvi suas palavras. Minha alma começou a vaguear pelos espaços infinitos onde o universo aparecia como um sonho, e o corpo como uma prisão acanhada.
A voz encantadora de minha Amada penetrou em meu coração.
Isto é música, amigos, pois eu a ouvi através dos suspiros daquela que amo, e pelas palavras balbuciadas por seus lábios.
Com os olhos de meus ouvidos, vi o coração de minha Amada.
Meus amigos: a Música é a linguagem dos espíritos. Sua melodia é como uma brisa saltitante que faz nossas cordas estremecerem de amor. Quando os dedos suaves da música tocam à porta de nossos sentimentos, acordam lembranças que há muito jaziam escondidas nas profundezas do Passado. Os acordes tristes da Música trazem-nos dolorosas recordações; e seus acordes suaves nos trazem alegres lembranças. A sonoridade de suas cordas faz-nos chorar à partida de um ente querido ou nos faz sorrir diante da paz que Deus nos concedeu.
A alma da Música nasce do espírito e sua mensagem brota do Coração.
Quando Deus criou o Homem, deu-lhe a Música como uma linguagem diferente de todas as outras. Mesmo em seu primarismo, o homem primitivo curvou-se à glória da música; ela envolveu os corações dos reis e os elevou além de seus tronos.
Nossas almas são como flores tenras à mercê dos ventos do Destino. Elas tremulam à brisa da manhã e curvam as cabeças sob o orvalho cadente do céu.
A canção dos pássaros desperta o Homem de sua insensibilidade, e o convida a participar dos salmos de glória à Sabedoria Eterna, que criou a melodia de suas notas.
Tal música nos faz perguntar a nós mesmos o significado dos mistérios contidos nos velhos livros.
Quando os pássaros cantam, estarão chamando as flores nos campos, ou estão falando às árvores, ou apenas fazem eco ao murmúrio dos riachos? Pois o Homem, mesmo com seus conhecimentos, não consegue saber o que canta o pássaro, nem o que murmura o riacho, nem o que sussurram as ondas quando tocam as praias vagarosa e suavemente.
Mesmo com sua percepção, o homem não pode entender o que diz a chuva quando cai sobre as folhas das árvores, ou quando bate lentamente nos vidros das janelas. Ele não pode saber o que a brisa segreda às flores nos campos.
Mas o coração do homem pode pressentir e entender o significado dessas melodias que tocam seus sentidos. A Sabedoria Eterna sempre lhe fala numa linguagem misteriosa; a Alma e a Natureza conversam entre si, enquanto o Homem permanece mudo e confuso.
Mas o Homem já não chorou com esses sons ? E suas lágrimas não são, porventura, uma eloqüente demonstração?

Divina Música!
Filha da Alma e do Amor.
Cálice da amargura
e do Amor.
Sonho do coração humano,
fruto da tristeza.
Flor da alegria, fragrância
e desabrochar dos sentimentos.
Linguagem dos amantes,
confidenciadora de segredos.
Mãe das lágrimas do amor oculto.
Inspiradora de poetas, de compositores
e dos grandes realizadores.
Unidade de pensamento dentro dos fragmentos
das palavras.
Criadora do amor que se origina da beleza.
Vinho do coração
que exulta num mundo de sonhos.
Encorajadora dos guerreiros,
fortalecedora das almas.
Oceano de perdão e mar de ternura.
Ó música.
Em tuas profundezas
depositamos nossos corações e almas.
Tu nos ensinaste a ver com os ouvidos
e a ouvir com os corações.



Sobre a amizade

E um adolescente disse: "Fala-nos da Amizade." E ele respondeu, dizendo: "Vosso amigo, é a satisfação de vossas necessidades. Ele é o campo que semeias com carinho e ceifais com agradecimento. É vossa mesa e vossa lareira. Pois ides à ele com vossa fome e o procurais em busca da paz. Quando vosso amigo manifesta seu pensamento, não temeis o "não" de vossa própria opinião, nem prendeis o sim. E quando ele se cala, vosso coração continua a ouvir o seu coração. Porque na amizade, todos os desejos, ideais, esperanças, nascem e são partilhados sem palavras, numa alegria silenciosa. Quando vos separeis de vosso amigo, não vos aflijais. Pois o que vós ameis nele pode tornar-se mais claro na sua ausência, como para o alpinista a montanha aparece mais clara, vista da planície. E que não haja outra finalidade na amizade a não ser o amadurecimento do espírito. Pois o amor que procura outra coisa a não ser a revelação de seu próprio mistério não é o amor, mas uma rede armada, e somente o inaproveitável é nela apanhado. E que o melhor de vós próprio seja para o vosso amigo. Se ele deve conhecer o fluxo de vossa maré, que conheça também o seu fluxo. Pois, que achais seja vosso amigo para que o procureis somente a fim de matar o tempo? Procurai-o sempre com horas para viver. Pois o papel do amigo é o de encher vossa necessidade, e não vosso vazio. E na doçura da amizade, que haja risos e o partilhar dos prazeres. Pois no orvalho de pequenas coisas, o coração encontra sua manhã e se sente refrescado."

Khalil Gibran