sábado, 31 de agosto de 2013

Cálice



A vida não tem roteiros,
só velas que nos acenam
do mar.

Escuta, amiga,
o desfiar das horas:
elas te dirão é tua
é tua a vida.

Toma-a (como se toma
um cálice de rosas)
na mão.


Antonio Brasileiro

A união livre

Howard Rogers

Minha mulher com a cabeleira de fogo de lenha
Com pensamentos de relâmpagos de calor
Com a cintura de ampulheta
Minha mulher com a cintura de lontra entre os dentes de tigre
Minha mulher com a boca de emblema e de buquê de estrelas de primeira grandeza
Com dentes de rastros de rato branco sobre a terra branca
Com a língua de âmbar e vidro friccionado
Minha mulher com a língua de hóstia apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com a língua de pedra inacreditável
Minha mulher com cílios de lápis de cor para crianças
Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa
E de vapor nos vidros
Minha mulher com ombros de champanhe
E de fonte com cabeças de golfinhos sob o gelo
Minha mulher com pulsos de palitos de fósforo
Minha mulher com dedos de acaso e ás de copas
Com dedos de feno ceifado
Minha mulher com as axilas de marta e faia
De noite de São João
De ligustro e de ninho de carás
Com braços de espuma de mar e de eclusa
E mistura do trigo e do moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com movimentos de relojoaria e desespero
Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de molhos de chaves com pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada perolada
Minha mulher com a garganta do Vale do Ouro
De encontro no próprio leito da correnteza
Com os seios de noite
Minha mulher com os seios de toupeira marinha
Minha mulher com os seios de crisol de rubis
Com os seios de espectro da rosa sob o orvalho
Minha mulher com o ventre a desdobrar-se no leque dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com o dorso de pássaro que voa vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra rolada e giz molhado
E queda de um copo do qual se acaba de beber
Minha mulher com os quadris de escaler
Com os quadris de lustre e penas de flecha
E de caule de plumas de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher com nádegas de arenito e amianto
Minha mulher com nádegas de dorso de cisne
Minha mulher com nádegas de primavera
Com sexo de lírio roxo
Minha mulher com o sexo de jazida de ouro e de ornitorrinco
Minha mulher com o sexo de algas e bombons antigos
Minha mulher com o sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e agulha imantada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de lenha sempre sob o machado
Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.


André Breton
trad. Claudio Willer

SCD Professional Argentine Tango

Dez chamamentos ao amigo



I

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.



II

Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida altivez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora
Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.



III

Se refazer o tempo, a mim, me fosse dado
Faria do meu rosto de parábola
Rede de mel, ofício de magia
E naquela encantada livraria
Onde os raros amigos me sorriam
Onde a meus olhos eras torre e trigo
Meu todo corajoso de Poesia
Te tomava. Aventurança, amigo,
Tão extremada e larga
E amavio contente o amor teria sido.



IV

Minha medida? Amor.
E tua boca na minha
Imerecida.
Minha vergonha? O verso
Ardente. E o meu rosto
Reverso de quem sonha.
Meu chamamento? Sagitário
Ao meu lado
Enlaçado ao Touro.
Minha riqueza? Procura
Obstinada, tua presença
Em tudo: julho, agosto
Zodíaco antevisto, página
Ilustrada de revista
Editorial, jornal
Teia cindida.
Em cada canto da Casa
Evidência veemente
Do teu rosto.



V

Nós dois passamos. E os amigos
E toda minha seiva, meu suplício
De jamais te ver, teu desamor também
Há de passar. Sou apenas poeta
E tu, lúcido, fazedor da palavra,
Inconsentido, nítido
Nós dois passamos porque assim é sempre.
E singular e raro este tempo inventivo
Circundando a palavra. Trevo escuro
Desmemoriado, coincidido e ardente
No meu tempo de vida tão maduro.



VI

Foi Julho sim. E nunca mais esqueço.
O ouro em mim, a palavra
Irisada na minha boca
A urgência de me dizer em amor
Tatuada de memória e confidência.
Setembro em enorme silêncio
Distancia meu rosto. Te pergunto:
De Julho em mim ainda te lembras?
Disseram-me os amigos que Saturno
Se refaz este ano. E é tigre
E é verdugo. E que os amantes
Pensativos, glaciais
Ficarão surdos ao canto comovido.
E em sendo assim, amor,
De que me adianta a mim, te dizer mais?



VII

Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas te pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
Na minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?
Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?
Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste?



VIII

De luas, desatino e aguaceiro
Todas as noites que não foram tuas.
Amigos e meninos de ternura
Intocado meu rosto-pensamento
Intocado meu corpo e tão mais triste
Sempre à procura do teu corpo exato.
Livra-me de ti. Que eu reconstrua
Meus pequenos amores. A ciência
De me deixar amar
Sem amargura. E que me dêem
Enorme incoerência
De desamar, amando. E te lembrando
- Fazedor de desgosto -
Que eu te esqueça.



IX

Esse poeta em mim sempre morrendo
Se tenta repetir salmodiado:
Como te conhecer, arquiteto do tempo
Como saber de mim, sem te saber?
Algidez do teu gesto, minha cegueira
E o casto incendiado momento
Se ao teu lado me vejo. As tardes
Fiandeiras, as tardes que eu amava,
Matéria de solidão, íntimas, claras
Sofrem a sonolência de umas águas
Como se um barco recusasse sempre
A liquidez. Minhas tardes dilatadas
Sobreexistindo apenas
Porque à noite retomo minha verdade:
teu contorno, teu rosto álgido sim
E por isso, quem sabe, tão amado.



X

Não é apenas um vago, modulado sentimento
O que me faz cantar enormemente
A memória de nós. É mais. É como um sopro
De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso
É como se a despedida se fizesse o gozo
De saber
Que há no teu todo e no meu, um espaço
Oloroso, onde não vive o adeus.
Não é apenas vaidade de querer
Que aos cinqüenta
Tua alma e teu corpo se enterneçam
Da graça, da justeza do poema. É mais.
E por isso perdoa todo esse amor de mim
E me perdoa de ti a indiferença. 


Hilda Hilst
Imagens: Anatoly Piatkevich



Olhos azuis cabelos pretos


Ela diz:  -  Eu não conheço você. Ninguém pode conhecê-lo, pôr-se em seu lugarvocê não tem lugarnão sabe onde encontrar um lugar. E é por isso que o amo e que você está perdido.

Ela fecha os olhos. Diz: - Nesta casa à beira-mar você está perdido como um povo sem descendência. No café, vi que você desejaria ter essa fama, essa posição, fiquei com você em um momento da minha vida — no coração de minha juventude — em que eu era como se aquele povo sem rumo fosse também o meu.

Detém-se, olha-o, depois diz que nas primeiras horas do encontro de ambos soubera que se pusera a amá-lo como se sabe que se começou a morrer. Ele pergunta se ela está acostumada com a morte. Ela diz que pensa que sim, que é a coisa com que se habitua melhor. Diz: - Depois, no fim da noite, já era tarde demais para recusar. Sempre foi tarde demais para não mais amá-lo. O dinheiro, você pensava, devia confirmar a morte, e me pagou para isso, para não o amar. E eu, através de todos esses estratagemas, vi apenas que você ainda era muito jovem e suas histórias de dinheiro não serviram para nada.

Ele quer saber sobre o homem da cidade. Ela diz: Eles se vêem durante a tarde em um quarto do hotel
que ele alugou por mês para que se encontrem durante o dia. Ficam juntos no quarto até a hora do contrato. Às vezes ele não vem e ela dorme, é esse o motivo dos atrasos, geralmente é ele que a acorda, se ele não está, ela não acorda. Às vezes também, ao sair do quarto, ela vai diretamente para o hotel e fica ali até a noite do dia seguinte.

Diz que pediu demissão do cargo de professora. Ele protesta. Idiota, louca, diz. Não vou mantê-la, não conte com isso. Ela ri muito e ele acaba rindo com ela. Ele está deitado à seu lado. Ela está sob a seda preta, de olhos fechados. Ela acaricia os olhos, as órbitas, a boca, as angulosidades do rosto, a testa. Procura às cegas um outro rosto, através da pele, dos ossos. Fala. Diz que este amor é tão terrível de viver como a imensidão indiana. E grita. Tira as mãos do rosto do homem do quarto como se ele a
houvesse queimado, vira as costas para ele, vai se atirar contra a parede do mar. E grita. Soluça. Está diante da perda recém-descoberta de toda razão de viver.

A coisa chega com a brusquidão da morte. Ela chama por alguém em voz muito baixa, abafada, chama
como se estivesse em sua presença, como o faria a um morto, para além dos mares, dos continentes, com o nome de todos chama um único homem com a sonoridade central da vogal soluçante do Oriente, aquela saída das profundezas do Hotel das Rochas no fim daquele dia de verão.

Chora longe dele, deste homem, de fora de suas circunstâncias, aquém de toda história, ela chora a história que não existiu. O homem voltou a ser o homem do quarto. Está só. De início, quando ela gritou, não a olhou, levantou-se para ir embora, para fugir. Depois ouviu o nome. Então lentamente aproximou-se dela. Disse: -  É curioso, tento lembrar-me em seu lugar, como se fosse possível, parece que posso fazê-lo, reencontrar as circunstâncias, o lugar, as intenções. . . e ao mesmo tempo sei que é impossível porque... uma coisa dessas, tão terrível, seria extraordinário se eu tivesse esquecido.

E como se não tivesse falado. Ela permanece de costas, o rosto para a parede, diz-lhe para ir embora. Manda-o entrar na casa, deixá-la sozinha. Fica no quarto um dia inteiro. Quando ele volta, ela está no umbral da porta aberta, vestida de branco.

Ela sorri, diz: -  É um assombro.

Ele pergunta o que é um assombro. Ela diz: - Nossa história particular.

Ele pergunta o que houve com ela. Ela responde que estava acariciando seu rosto, mas que, sem dúvida, sem se dar conta, sem que o soubesse, havia procurado outro rosto além do seu. Que repentinamente aquele outro rosto havia estado em suas mãos.

Os motivos que ela dá, ele não retém. Ela diz:  - Não compreendo, foi uma espécie de aparição, foi por
isso que tive tanto medo. Ele diz que estão como se tivessem sido aprisionados juntos em um livro e que com o fim do livro serão devolvidos à diluição da cidade, novamente separados.


Marguerite Duras, Olhos azuis cabelos pretos

O Guardador de Rebanhos - XLIX

InertiaK

Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.


Alberto Caeiro, O guardador de rebanhos

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Dos livros

Anatoly Piatkevich


Não percas nunca, pelo vão saber,
A fonte viva da sabedoria.
Por mais que estudes, que te adiantaria,
Se a teu amigo tu não sabes ler?


Mário Quintana - O Aprendiz de feiticeiro

O símbolo perdido


Embora muitas pessoas interpretassem equivocadamente apocalipse como o cataclísmico fim do mundo, a palavra na verdade significa “revelação”... O “desvelamento”, como os antigos prediziam, de um grande saber. A futura era da iluminação. Ainda assim, Langdon não conseguia imaginar uma mudança tão grande sendo iniciada por... uma palavra.”

*
Toda cultura no mundo tinha seu livro sagrado, seu próprio Verbo. Um diferente do outro, mas, no fundo, todos iguais. Para os cristãos, a Palavra era a Bíblia; para os muçulmanos, o Alcorão; para os judeus, a Torá; para os hindus, os Vedas, e assim por diante.
A palavra iluminará o caminho.

*
Sei que você é cético, Robert, mas pense no seguinte: Se a Bíblia não contém um significado oculto, por que tantas das melhores mentes de todos os tempos, incluindo cientistas brilhantes da real Sociedade de Londres, ficaram tão obcecadas com o seu estudo? Sir Isaac Newton escreveu mais de um milhão de palavras na tentativa de decifrar o verdadeiro significado das Escrituras, incluindo um manuscrito de 1704, alegando que ele havia extraído informações científicas ocultas da Bíblia!
Langdon sabia que isso era verdade.
- E Sir Francis Bacon – prosseguiu Peter -, o erudito contratado pelo rei Jaime para literalmente criar a versão oficial da Bíblia King James, ficou tão convencido de que as Escrituras continham um significado cifrado que escreveu seus próprios códigos, ainda estudados até hoje. Como você sabe, é claro, Bacon era rosa-cruz e escreveu  A sabedoria dos antigos. – Peter sorriu. – Até mesmo o poeta iconoclasta William Blake sugeriu que deveríamos ler nas entrelinhas.
Langdon conhecia o verso:

Nós dois lemos a bíblia dia e  noite
Mas tu lês negro onde eu leio branco.

- E não foram só os eruditos europeus – continuou Peter, começando a descer os degraus mais depressa. – Foi aqui, Robert, bem no coração desta jovem nação norte-americana, que os mais brilhantes de nossos pais fundadores, John Adams, Ben Franklin, Thomas Paine, alertaram sobre os graves perigos de se interpretar a Bíblia de forma literal. Na verdade, Thomas Jefferson estava tão convencido de que a verdadeira mensagem das Escrituras estava escondida que recortou as páginas e reeditou o livro, tentando, em suas próprias palavras, “eliminar a estrutura artificial e restaurar as doutrinas genuínas”.

*
Por que os profetas, os maiores professores da história, iriam cifrar sua linguagem? Se queriam mudar o mundo, por que falariam em código? Por que não se expressariam com clareza para que todos pudessem entender?

*
- Buda disse: “Você mesmo é Deus.” Jesus ensinou que “O reino de Deus está entre vós” e chegou até a nos prometer que “Quem crê em mim fará as obras que faço e fará até maior do que elas”. Até mesmo o primeiro antipapa, Hipólito de Roma, citou a mesma mensagem, dita pela primeira vez pelo erudito gnóstico Monoimus: “Abandone a busca por Deus... em vez disso, procure por ele tomando a si mesmo como ponto de partida.”
Langdon se lembrou da Casa do Templo, onde a cadeira do Cobridor da loja trazia, em seu espaldar, a inscrição: CONHECE-TE A TI MESMO.
- Um homem sábio me disse certa vez: a única diferença entre você e Deus é que você se esqueceu de que é divino – contou Peter com um fiapo de voz.
- Peter, entendo o que você está falando... de verdade. E adoraria acreditar que somos divinos, mas não vejo deuses andando sobre a Terra. Não vejo pessoas com poderes sobre-humanos. Você pode citar os supostos milagres da Bíblia, ou qualquer outro texto religioso, mas tudo isso não passa de velhas histórias fabricadas pelo homem que o tempo se encarregou de exagerar.

*
Quando começar a entender as parábolas crípticas, Robert, você vai perceber que a Bíblia é um estudo da mente humana.
Langdon encolheu os ombros.
- Acho que vou ter que ler tudo de novo
- Deixe-me fazer uma pergunta – disse ela, obviamente sem apreciar seu ceticismo – quando a Bíblia nos diz que devemos “construir nosso templo” e fazer isso “sem ferramentas e sem ruído”, de que templo você acha que ela está falando?
- Bem, o texto diz que o nosso corpo é um templo.
- Sim, em Coríntios 3:16 Vós sois o templo de Deus. – ela sorriu. (...)
Você já viu um cérebro humano de verdade? Ele é constituído por duas partes: uma externa, chamada dura-máter, e outra interna, chamada pia-máter. Essas duas partes são separadas pela membrana aracnoide, um véu de tecido que parece uma teia de aranha.
Langdon inclinou a cabeça, surpreso.
Com delicadeza, ela ergueu a mão e tocou a têmpora de Langdon.
- Existe um motivo para temple, em inglês, significar tanto “têmpora” quando “templo”, Robert.
Enquanto Langdon tentava processar o que Katherine acabara de dizer, lembrou-se inesperadamente do Evangelho gnóstico segundo Maria: Onde a mente está, lá está o tesouro.
- Talvez  você tenha ouvido falar – disse Katherine, baixando o tom de voz – nos exames de ressonância magnética feitos em iogues meditando. Quando em estado avançado de concentração, o cérebro humano produz, por meio da glândula pineal, uma substância parecida com cera. Essa secreção cerebral não se parece com nenhuma outra substância do corpo. Ela tem um efeito incrivelmente curativo, é capaz de regenerar células e talvez seja um dos motivos por trás da longevidade dos iogues. Isso é ciência, Robert. Essa substância tem propriedades inconcebíveis e só pode ser criada por uma mente em estado de profunda concentração.

*
- Segundo Mateus 6:22 – disse ela com animação -, “Quando o teu olho for bom, todo o teu corpo terá luz”. Esse conceito também é representado pelo chacra ajna e pelo pontinho na testa dos hindus que...
Katherine se deteve abruptamente, parecendo encabulada.
- Desculpe... sei que estou falando sem parar. Mas é que acho tudo isso tão emocionante! Passei anos estudando as afirmações dos antigos sobre o incrível poder mental do homem, e agora a ciência está nos mostrando que o acesso a esse poder se dá, na verdade, por meio de um processo físico. Se usado corretamente, nosso cérebro pode invocar poderes literalmente sobre-humanos. A bíblia, como muitos textos antigos, é uma exposição detalhada da máquina mais sofisticada de todos os tempos... a mente humana. – ela deu um suspiro. – Por incrível que pareça, a ciência ainda não alcançou todo o potencial da mente.
- Parece que seu trabalho como a noética vai representar um salto à frente nessa área.
- Talvez seja um salto trás – disse ela. – Os antigos já conheciam muitas das verdades científicas que estamos redescobrindo atualmente. Em questão de anos, o homem moderno será forçado a aceitar algo hoje impensável: nossas mentes podem gerar energia capaz de transformar a matéria física. – Ela fez uma pausa. – As partículas reagem aos pensamentos... o que significa que nossos pensamentos tem o poder de mudar o mundo.
Langdon abriu um leve sorriso.
- Minha pesquisa me fez acreditar nisto: Deus é muito real... uma energia mental que permeia tudo – disse Katherine. – e nós, seres humanos, fomos criados a essa imagem...
- Como assim? – interrompeu Langdon. – Criados à imagem de... uma energia mental?
- Exatamente. Nossos corpos físicos evoluíram com o tempo, mas nossas mentes é que foram criadas à semelhança de Deus. Nós estamos levando a Bíblia muito ao pé de letra. Aprendemos que Deus nos criou à sua imagem, mas não são nossos corpos físicos que se assemelham a Deus, são nossas mentes. (...) – Nós somos criadores, mas ainda assim ficamos ingenuamente fazendo o papel de criaturas. Vemos a nós mesmos como ovelhas indefesas, manipuladas pelo Deus que nos criou. Nos ajoelhamos como crianças assustadas, implorando ajuda, perdão, boa sorte. Mas, quando percebermos que somos realmente feitos à imagem do Criador, vamos começar a entender que nós também devemos ser criadores. Assim que entendermos esse fato, as portas do potencial humano irão se escancarar.
Langdon se lembrou de um trecho da obra do filósofo Manly P. Hall: Se o infinito não quisesse que o homem fosse sábio, não teria lhe dado a faculdade de saber. Langdon tornou a erguer os olhos para a Apoteose de Washington – a ascensão simbólica do homem à divindade. A criatura... se transformando em Criador.
- O mais incrível de tudo – disse Katherine – é que, assim que nós, humanos, começarmos a dominar nosso verdadeiro poder, teremos enorme controle sobre o mundo. Seremos capazes de projetar a realidade em vez de simplesmente reagir a ela.
Langdon baixou os olhos.
- Parece... perigoso.
Katherine ficou surpresa... e impressionada.
- Isso, exatamente! Se os pensamentos afetam o mundo, então precisamos tomar muito cuidado com a maneira como pensamos. Pensamentos destrutivos também têm influência, e todos sabemos que é muito mais fácil destruir do que criar.(...) A grande ironia é que, durante séculos, todas as religiões do mundo incentivaram seus seguidores a abraçar os conceitos de fé e crença. Agora a ciência, que passou muitos séculos desprezando a religião ao considerá-la mera superstição, está sendo obrigada a admitir que sua próxima grande fronteira é literalmente a ciência da fé e da crença... o poder da convicção e da intenção. A mesma ciência que erodiu nossa fé nos milagres está agora construindo um aponte para atravessar o abismo que criou.

Dan Brown, O símbolo perdido

Sangrando

 brita seifert


Conceda-me a noite
Uma dança
Ao som da madrugada
Bêbada 
Fogosa
Atirando-se sobre os cacos
De estrelas que salpicam
Sobre a janela farta de calores
Odores vorazes
E portas escancaradas
Um suspiro
Nas frestas
Um olhar que lambuza
Uma garra que corta
Feito navalha entre os dentes
Só pra arrepiar tua pele
Sobre a minha pele
Num só corpo
Num só gozo
Num só suspiro
Sangrando, migrando
Na fronteira dos lábios
Língua a dentro.


Adeilton Lima

O teu sorriso

Elzbieta Wilk


Na maneira mais hábil
de sorrires
há o capricho hábil
duma faca
o sentido da lâmina
ou a marca
que deixas no rosto
sem sentires


Maria Teresa Horta


Uma música que seja

Cler Raichuk 

... como os mais belos harmônicos da natureza. Uma música que seja como o som do vento na cordoalha dos navios, aumentando gradativamente de tom até atingir aquele em que se cria uma reta ascendente para o infinito. Uma música que comece sem começo e termine sem fim. Uma música que seja como o som do vento numa enorme harpa plantada no deserto. Uma música que seja como a nota lancinante deixada no ar por um pássaro que morre. Uma música que seja como o som dos altos ramos das grandes árvores vergastadas pelos temporais. Uma música que seja como o ponto de reunião de muitas vozes em busca de uma harmonia nova. Uma música que seja como o voo de uma gaivota numa aurora de novos sons...

Vinícius de Moraes

Biruta

Christian Schloe


o vento chegou
invisível e apressado

correu pela planície

espalhou os pastos
fez voar as folhas

movimentou
as pétalas

carregou cigarras
e abelhas

tremulou o rio

transformou tudo
em calmaria

e nunca mais
voltou


Lau Siqueira 

Eu, Mwanito, o afinador de silêncios



Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou deus.
[...]

Sophia de Mello Breyner Andresen



A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas. Eu vivia num ermo habitado apenas por cinco homens. Meu pai dera um nome ao lugarejo. Simplesmente chamado assim: "Jesusalém". Aquela era a terra onde Jesus haveria de se descrucificar. E pronto, final.
Meu velho, Silvestre Vitalício, nos explicara que o mundo terminara e nós éramos os últimos sobreviventes. Depois do horizonte, figuravam apenas territórios sem vida que ele vagamente designava por "Lado-de-Lá". Em poucas palavras, o inteiro planeta se resumia assim: despido de gente, sem estradas e sem pegada de bicho. Nessas longínquas paragens, até as almas penadas já se haviam extinto.
Em contrapartida, em Jesusalém, não havia senão vivos. Desconhecedores do que fosse saudade ou esperança, mas gente vivente. Ali existíamos tão sós que nem doença sofríamos e eu acreditava que éramos imortais. À nossa volta, apenas os bichos e as plantas morriam. E, nas estiagens, desfalecia de mentira o nosso rio sem nome, um riacho que corria nas traseiras do acampamento.
A humanidade era eu, meu pai, meu irmão Ntunzi e Zacaria Kalash, nosso serviçal que, conforme verão, nem presença tinha. E mais nenhum ninguém. Ou quase nenhum. Para dizer a verdade, esqueci-me de dois semi-habitantes: a jumenta Jezibela, tão humana que afogava os devaneios sexuais de meu velho pai. E também não referi o meu Tio Aproximado. Esse parente vale uma menção: porque ele não vivia connosco no acampamento. Morava junto ao portão de entrada da coutada, para além da permissível distância, e apenas nos visitava de quando em quando. Entre nós e a sua cabana ficava a lonjura de horas e feras.
Para nós, os miúdos, a chegada de Aproximado era razão de festa maior, uma sacudidela na nossa árida monotonia. O Tio trazia mantimentos, roupas, bens de necessidade. Meu pai, nervoso, saía ao encontro do camião onde se amontoavam as encomendas. Interceptava o visitante antes que o veículo invadisse a vedação que circundava o casario. Nessa cerca, Aproximado era forçado a lavar-se para não trazer contaminações da cidade. Lavava-se com terra e com água, fizesse frio ou fizesse noite. Depois do banho, Silvestre desbagageava o camião, apressando as entregas, abreviando as despedidas. Num volátil instante,mais breve que um bater de asas, ante o nosso olhar angustiado, Aproximado voltava a extinguir-se para além do horizonte.
- Ele não é um irmão direto - justificava Silvestre. - Não quero muita conversa, esse homem não conhece os nossos costumes.
Essa humanidadezita, unida como os cinco dedos, estava afinal dividida: meu pai, o Tio e Zacaria tinham pele escura; eu e Ntunzi éramos igualmente negros, mas de pele mais clara.
- Somos de outra raça? - perguntei um dia. Meu pai respondeu:
- Ninguém é de uma raça. As raças- disse ele - são fardas que vestimos.
Talvez Silvestre tivesse razão. Mas eu aprendi, tarde demais, que essa farda se cola, às vezes, à alma dos homens.
- Vem de sua mãe, Dordalma, essa claridade da pele. Alminha era um bocadinho mulata - esclareceu o Tio.

A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.
- Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar calado.
Ao fim do dia, o velho se recostava na cadeira da varanda. E era assim todas as noites: me sentava a seus pés, olhando as estrelas no alto do escuro. Meu pai fechava os olhos, a cabeça meneando para cá e para lá, como se um compasso guiasse aquele sossego. Depois, ele inspirava fundo e dizia:
- Este é o silêncio mais bonito que escutei até hoje. Lhe agradeço, Mwanito.
Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em mim, era um dom natural, herança de algum antepassado.Talvez fosse legado de minha mãe, Dona Dordalma,quem podia ter a certeza? De tão calada,ela deixara de existir e nem se notara que já não vivia entre nós, os vigentes viventes.
- Você sabe, filho: há a calmaria dos cemitérios. Mas o sossego desta varanda é diferente.
Meu pai. A voz dele era tão discreta que parecia apenas uma outra variedade de silêncio.Tossicava e a tosse rouca dele, essa, era uma oculta fala, sem palavras nem gramática.
Ao longe, se entrevia, na janela da casa anexa, uma bruxuleante lamparina. Por certo, meu irmão nos espreitava. Uma culpa me raspava o peito: eu era o escolhido, o único a partilhar proximidades com o nosso eterno progenitor.
- Não chamamos o Ntunzi?
- Deixe o seu irmão. É consigo que mais gosto de ficar sozinho.
- Mas estou quase a ter sono, pai.
- Fique só mais um pouco. É que são raivas, tantas raivas acumuladas. Eu preciso afogar essas raivas e não tenho peito para tanto.
- Que raivas são essas,meu pai?
- Durante muitos anos alimentei feras pensando que eram animais de estimação.
Queixava-me eu do sono, mas era ele quem adormecia. Deixava-o cabeceando na cadeira e regressava para o quarto onde Ntunzi, desperto, me esperava. O meu irmão me olhava com mistura de inveja e comiseração:
- Outra vez essa treta do silêncio?
- Não diga isso, Ntunzi.
- Esse velho enlouqueceu. E o pior é que o gajo não gosta de mim.
- Gosta.
- Por que nunca me chama a mim?
- Ele diz que sou um afinador de silêncios.
- E você acredita? Não vê que é uma grande mentira?
- Não sei, mano, que hei-de fazer se ele gosta que eu fique ali, todo caladito?
- Você não percebe que isso é tudo conversa? A verdade é que você lhe traz lembranças da nossa falecida mãe.
Mil vezes Ntunzi me fez recordar o motivo por que meu pai me elegera como predileto. A razão desse favoritismo sucedera num único instante: no funeral da nossa mãe, Silvestre não sabia estrear a viuvez e se afastou para um recanto para se derramar em pranto. Foi então que me acerquei de meu pai e ele se ajoelhou para enfrentar a pequenez dos meus três anos. Ergui os braços e, em vez de lhe limpar o rosto, coloquei as minhas pequenas mãos sobre os seus ouvidos. Como se quisesse convertê-lo em ilha e o alonjasse de tudo que tivesse voz. Silvestre fechou os olhos nesse recinto sem eco: e viu que Dordalma não tinha morrido. O braço, cego, estendeu-se na penumbra:
- Alminha!
E nunca mais ele proferiu o nome dela. Nem evocou lembrança do tempo em que tinha sido marido. Queria tudo isso calado, sepultado em esquecimento.
- E você me ajude, meu filho.
Para Silvestre Vitalício, a minha vocação estava definida: tomar conta dessa insanável ausência, pastorear demônios que lhe abocanhavam o sono. Certa vez, enquanto partilhávamos sossegos, arrisquei:
- Ntunzi diz que lhe faço lembrar a mãe. É verdade, pai?
- É o contrário, você me afasta das lembranças. Esse Ntunzi é que me traz espinhos do antigamente.
- Sabe, pai? Ontem sonhei com a mãe.
- Como pode sonhar com alguém que nunca conheceu?
- Eu conheci, só não me lembro.
- É a mesma coisa.
- Mas recordo a voz dela.
- Qual voz dela? Dordalma quase nunca falava.
- Recordo um sossego que parece, sei lá, parece água. Às vezes penso que me lembro da casa, o grande sossego da casa...
- E Ntunzi?
- Ntunzi o quê, pai?
- Ele insiste que se recorda da mãe?
- Não há dia em que ele não se recorde dela.
Meu pai nada respondeu. Ruminou um novelo de resmungos e, depois, com voz rouca de quem foi ao fundo da alma, afirmou:
- Vou dizer uma coisa, nunca mais vou repetir: vocês não podem lembrar nem sonhar nada, meus filhos.
- Mas eu sonho, pai. E Ntunzi se lembra de tanta coisa.
- É tudo mentira. O que vocês sonham fui eu que criei nas vossas cabeças. Entendem?
- Entendo, pai.
- E o que vocês lembram sou eu que acendo nas vossas cabeças.
O sonho é uma conversa com os mortos, uma viagem ao país das almas.Mas já não havia nem falecidos nem território das almas.O mundo tinha terminado e o seu final era um desfecho absoluto: a morte sem mortos.O país dos defuntos estava anulado, o reino dos deuses cancelado. Foi assim que, de uma assentada, meu pai falou. Até hoje essa explanação de Silvestre Vitalício me parece lúgubre e confusa. Porém, naquele momento, ele foi peremptório:
- É por isso que vocês não podem nem sonhar nem lembrar. Porque eu próprio não sonho, nem lembro.
- Mas, pai, o senhor não tem memória da nossa mãe?
- Nem dela, nem da casa, nem de nada. Já não me lembro de nada.
E ele se ergueu, rangente, para esquentar o café.Os passos eram de embondeiro que vai arrancando as próprias raízes. Olhou o fogo, fez de conta que se mirava num espelho, fechou os olhos e aspirou os perfumosos vapores da cafeteira. Ainda de olhos fechados, sussurrou:
- Vou dizer um pecado: deixei de rezar quando você nasceu.
- Não diga isso, meu pai.
- Estou-lhe a dizer.
Uns têm filhos para ficarem mais perto de Deus. Ele se convertera em Deus desde que era meu pai. Assim falou Silvestre Vitalício. E prosseguiu: os falsos tristes, os maus solitários acreditam que os lamentos sobem às alturas.
- Mas Deus está surdo - disse.
Fez uma pausa para erguer a chávena e saborear o café e, depois, rematou:
- Mesmo que não estivesse surdo: que palavra há para falar a Deus?
Em Jesusalém, não havia igreja de pedra ou cruz. Era no meu silêncio que meu pai fazia catedral. Era ali que ele aguardava o regresso de Deus.


Mia Couto, in "Antes de nascer o mundo"

Sinistro

Anatoly Piatkevich

Inclua no seu amor um pouco de desespero
derrame seu potencial de drama nos tapetes
ponha sal nas frutas ácidas
tente um pouco de champagne no sapato

esparrame de preguiça pelos linhos
no espalhafatoso desleixo dos lençóis
use olhos cristalizados, cintilantes
com faíscas no meio das plumagens

Aprenda a cantar e a cabriolar um pouco
a dança elástica de uma enguia
se esfregue nas nervuras, descubra trunfos
muito escorregadia

Saiba o zodíaco chinês e as manchas do demônio
conhecedora de alquimias
deguste seus horrores em rituais estranhos
Seja uma ameaça.

Dê telefonemas interurbanos em meio à noite
a Angkor, Himalaia, Terra do Fogo
Estilhace as regras desse jogo
que um pouco de maldade é necessária.

Libidinosa sempre entre parênteses
esguiche todo esse seu som de dentro
ensopada de paixão e de água fria
leviana até a última mordida

Esquiva como uma taturana
penetrando no gargalo da garrafa
estenda suas estrias até o limite da suspeita
pois não há nada como um crime atrás do outro.


Bruna Lombardi

Agora que regresso

Anatoly Piatkevich

Agora, que regresso, são novos os retratos
sobre o tampo da mesa; e outros também
os livros e os enredos e as histórias
concebidas sobre a cama onde antes se
demorava o meu perfume se eu partia.

É como se voltasse apenas de perfil; e
do romance outrora longamente entalado
entre os dedos já só sobrasse uma lombada
estreita, acanhada na estante. Havia um
sonho exausto sobre as minhas pálpebras
antes de ter chegado; e agora,

que regresso, não tenho voz que o diga -
sou de lugar nenhum, ninguém me tem.
Chama-me, se quiseres. Talvez a porta se abra
se disseres o meu nome devagar. Di-lo
mais uma vez dentro da minha boca, a trocar
o corpo com o meu. Assim, antes que eu parta
outra vez, de vez, para um lugar qualquer
onde não mais se espere o que não volta.


Maria do Rosário Pedreira, in "A casa e o cheiro dos livros

sábado, 24 de agosto de 2013

Noturno

Christian Schloe


Não sei por que, sorri de repente
E um gosto de estrela me veio na boca...
Eu penso em ti, em Deus, nas voltas inumeráveis que fazem os
caminhos...
Em Deus, em ti, de novo...
Tua ternura tão simples...

Eu queria, não sei por que, sair correndo descalço pela noite imensa
E o vento da madrugada me encontraria morto junto de um arroio,
Com os cabelos e a fronte mergulhados na água Límpida...
Mergulhados na água límpida, cantante e fresca de um arroio!


Mário Quintana - O Aprendiz de Feiticeiro


Amo-te

Jon PAUL  

Talvez não seja próprio vir aqui, para as páginas deste livro, dizer que te amo. Não creio que os leitores deste livro procurem informações como esta. No mundo, há mais uma pessoa que ama. Qual a relevância dessa notícia? À sombra do guarda-sol ou de um pinheiro de piqueniques, os leitores não deverão impressionar-se demasiado com isso. Depois de lerem estas palavras, os seus pensamentos instantâneos poderão diluir-se com um olhar em volta. Para eles, este texto será como iniciais escritas por adolescentes na areia, a onda que chega para cobri-las e apagá-las. E possível que, perante esta longa afirmação, alguns desses leitores se indignem e que escrevam cartas de protesto, que reclamem junto da editora. Dou-lhes, desde já, toda a razão.

Eu sei. Talvez não seja próprio vir aqui dizer aquilo que, de modo mais ecológico, te posso afirmar ao vivo, por email, por comentário do facebook ou mensagem de telemóvel, mas é tão bom acreditar, transporta tanta paz. Tu sabes. Extasio-me perante este agora e deixo que a sua imensidão me transcenda, não a tento contrariar ou reduzir a qualquer coisa explicável, que tenha cabimento nas palavras, nestas pobres palavras. Em vez disso, desfruto-a, sorrio-lhe. Não estou aqui com a expectativa de ser entendido. Eu próprio procuro ainda essa compreensão. Estou aqui apenas com o meu rosto, o meu olhar parado, a minha figura. Tudo aquilo que tenho para dizer está por detrás dessa imagem. Hoje, esse é o alfabeto com que realmente escrevo, o significado. Escrevo também com uma grande quantidade de elementos invisíveis, que chegam à pele e a atravessam. É dessa forma que sinto aquilo que tenho para dizer, pele e para lá da pele.

Os teus pais vão ler estas palavras, que embaraçoso. A minha mãe, as minhas irmãs e as minhas sobrinhas vão ler estas palavras e vão pensar: passou-se. Consigo imaginar todas essas reações, mas não consigo evitar que este texto continue a dizer que te amo. Sei que os outros apenas nos poderão ver com os seus próprios olhos. Para eles, seremos qualquer memória, qualquer impressão, um reflexo daquilo que eles próprios sabem, personagens de uma espécie de telenovela. A grande diferença é que nós somos nós e temos este agora imenso, este verbo no presente. Talvez fosse mais confortável, se dispusesse de um verbo mais sofisticado, menos gasto: liquefazer, maturar, discernir. Um tempo verbal mais complexo: se eu te tivesse liquefeito, se eu te tivesse maturado, se eu te tivesse discernido. Talvez. Nunca saberei porque aquilo que tenho para dizer é este verbo, este presente do indicativo de escola primária.

Na sua simplicidade, encandeia e, no entanto, diz tão pouco. Mesmo tentando, transmito-lhes pouco ao informá-los que te amo. Não ficam a saber mais do que se lhes dissesse que me alimento, respiro, existo. E não podem sequer ter a certeza de que eu dependa dessas necessidades vitais. Talvez seja melhor assim, continuem debaixo do guarda-sol, do pinheiro de piqueniques, olhem em volta, virem a página. Talvez seja preferível que a imensidão deste momento não os perturbe, que se mantenha onde está, invisível e tão concreta nas cores da paisagem, nomeada por estas palavras que não a dizem e que, no entanto, existem, impressas, pouco ecológicas e, ainda assim, feitas de uma natureza única, a natureza, que nasce da terra, que se estende no céu, sol, lua, oceano, montanhas, que determina o dia e a noite, a passagem das estações, a idade, e que está contida numa só palavra, num só verbo, que abrigo no meu rosto, que é transparente no meu olhar e que agora, aqui, nas páginas deste livro, preciso de dizer. Talvez não seja próprio dizê-lo aqui, mas talvez seja ainda menos próprio escrevê-lo em todas as paredes da cidade, esculpir precipícios com essa verdade ou rasgar o peito com uma faca e, com a ponta dessa mesma faca, gravá-lo dentro de mim, em sulcos profundos, com o tamanho deste agora.

José Luís Peixoto, in 'Abraço'

A essência da poesia



Não aprendi nos livros qualquer receita para a composição de um poema; e não deixarei impresso, por meu turno, nem sequer um conselho, modo ou estilo para que os novos poetas recebam de mim alguma gota de suposta sabedoria. Se narrei neste discurso alguns sucessos do passado, se revivi um nunca esquecido relato nesta ocasião e neste lugar tão diferentes do sucedido, é porque durante a minha vida encontrei sempre em alguma parte a asseveração necessária, a fórmula que me aguardava, não para se endurecer nas minhas palavras, mas para me explicar a mim próprio.

Encontrei, naquela longa jornada, as doses necessárias para a formação do poema. Ali me foram dadas as contribuições da terra e da alma. E penso que a poesia é uma ação passageira ou solene em que entram em doses medidas a solidão e solidariedade, o sentimento e a ação, a intimidade da própria pessoa, a intimidade do homem e a revelação secreta da Natureza. E penso com não menor fé que tudo se apoia - o homem e a sua sombra, o homem e a sua atitude, o homem e a sua poesia - numa comunidade cada vez mais extensa, num exercício que integrará para sempre em nós a realidade e os sonhos, pois assim os une e confunde.

E digo igualmente que não sei, depois de tantos anos, se aquelas lições que recebi ao cruzar um rio vertiginoso, ao dançar em torno do crânio de uma vaca, ao banhar os pés na água purificadora das mais elevadas regiões, digo que não sei se aquilo saía de mim mesmo para se comunicar depois a muitos outros seres ou era a mensagem que os outros homens me enviavam como exigência ou desafio. Não sei se aquilo o vivi ou escrevi, não sei se foram verdade ou poesia, transição ou eternidade, os versos que experimentei naquele momento, as experiências que cantei mais tarde.

De tudo aquilo, amigos, surge um ensinamento que o poeta deve aprender dos outros homens. Não há solidão inexpugnável. Todos os caminhos conduzem ao mesmo ponto: à comunicação do que somos. E é necessário atravessar a solidão e aspereza, a incomunicação e o silêncio para chegar ao recinto mágico em que podemos dançar com hesitação ou cantar com melancolia, mas nessa dança ou nessa canção acham-se consumados os mais antigos ritos da consciência; da consciência de serem homens e de acreditarem num destino comum.

(...)

Há exatamente cem anos, um pobre e esplêndido poeta, o mais atroz dos desesperados, escreveu esta profecia: “Ao amanhecer, armados de uma ardente paciência, entraremos nas esplêndidas cidades.”

Acredito nesta profecia de Rimbaud, o vidente. Venho de uma obscura província, de um país separado de todos os outros pela sua talhante geografia. Fui o mais abandonado dos poetas e a minha poesia foi regional, dolorosa e chuvosa. Mas sempre ti­ve confiança no homem. Jamais perdi a esperança. Por isso talvez tenha chegado até aqui com a minha poesia, e também com a minha bandeira.

Em conclusão, devo dizer aos homens de boa vontade, aos trabalhadores, aos poetas, que todo o futuro foi expressado nes­sa frase de Rimbaud: só com uma ardente paciência conquista­remos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens.

Assim a poesia não terá cantado em vão.


Pablo Neruda , In "Nasci para Nascer"

Quando o homem quer


Sim, o homem é o seu próprio fim. E é o seu único fim. Se quer ser qualquer coisa, tem de ser nesta vida. Agora sei, aliás, que embora conquistadores falem algumas vezes de vencer e de exceder, o que eles querem sempre dizer é «excederem-se». Suponho que sabem o que isto quer dizer. Em certos momentos, todos os homens se sentem iguais a um deus. É assim, pelo menos, que se diz. Mas isto vem do fato de eles terem sentido, num instante, a espantosa grandeza do espírito humano. Os conquistadores são somente aqueles homens que sentem a sua força, o bastante para terem a certeza de viver constantemente nessas alturas e na plena consciência dessa grandeza. É uma questão de aritmética, de mais ou de menos. Os conquistadores são os que podem mais. Mas não podem mais do que o próprio homem quando ele o quer. É por isso que eles nunca deixam o crisol humano, mergulhando no mais ardente da alma das revoluções.

Albert Camus, in "O Mito de Sísifo"

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente

Johnny Palacios Hidalgo

Escrevi até o princípio da manhã aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pelo dos gatos. O sol a chegar à escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silêncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercício, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhã apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.

José Luís Peixoto, in 'Uma Casa na Escuridão'

O apaixonado jamais adia encontro

Irina Karkabi 


 Quem está apaixonado não desmarca encontro.

... Cancela trabalho, família, viagem, mas não suspende compromisso.

Assume prejuízo, enfrenta chefia, suporta calado todos os dissabores, mas não abre mão. Não nega o que foi firmado.

Mesmo que tenha trocado o mês ou se confundido com a data, assume o erro como acerto e segue em frente. Troca de turno com colega, compra amigos, arruma atestado médico.

Quem está apaixonado jamais desmarca encontro. Nem altera horário. Não tem coragem de pedir para que seja mais cedo ou mais tarde. Não é capaz de reivindicar 10 minutos a mais ou a menos. Não mexe no assunto. Não adapta planos. Não negocia prazos.

Aceita a data como um desígnio. Uma audiência de Justiça. Uma convocação da Receita Federal. Se não for, tem a sensação de que será preso, condenado por esnobar o amor.

Não brinca com a autoridade do encontro. Receia que não aconteça de novo, não arrisca zombar do destino. Não oferece chance ao azar. Teme um imprevisto, penteia o calendário, apressa o relógio e o coração.

Vive o transe de ser feliz, a hipnose de não pensar em um segundo plano.

Quem está apaixonado não arranja desculpa, inventa saídas.

Quem está apaixonado não se presta a solicitar fiado, paga à vista.

Só aquele que realmente não sente saudade é que adia encontro. Se o café é sempre postergado é que falta vontade.

Adiar compromisso é sinal de desamor. Não precisa de mais nenhuma prova. Não há aquele interesse máximo, aquela tara, aquela dependência.

O sujeito pode ter uma justificativa nobre: imposição do emprego, doença, tragédia. Nenhum pretexto servirá para remendar a esperança.

Não se mexe em encontro entre apaixonados. Deixa para adoecer depois, deixa para morrer depois.

Se alguém liga para reagendar sacrificou a paixão. É aviso fúnebre, é velório da voz. Significa que não está realmente a fim. Demonstra que tem um interesse passageiro, efêmero, pouco sério.

O apaixonado enlouquece com a simples hipótese de não ver mais o outro. Não vai estragar a importância do enlace, diminuir a expectativa, mostrar desapego.

(...)

A paixão é um sequestro. O amor é quando pagamos o resgate.


Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 14/07/2013 Edição N° 17491




Quando eu estava escrevendo aquela resenha, descobri que, se fosse resenhar livros, ia ter de combater um certo fantasma. E o fantasma era uma mulher, e quando a conheci melhor, dei a ela o nome da heroína de um famoso poema, “O Anjo do Lar”. Era ela que costumava aparecer entre mim e o papel enquanto eu fazia as resenhas. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo e me atormentava tanto que no fim matei essa mulher. Vocês, que são de uma geração mais jovem e mais feliz, talvez não tenham ouvido falar dela – talvez não saibam o que quero dizer com o Anjo do Lar. Vou tentar resumir. Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado, era ali que ia se sentar – em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo – nem preciso dizer – ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza – enrubescer era seu grande encanto.
Naqueles dias – os últimos da rainha Vitória – toda casa tinha seu Anjo. E, quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras. Suas asas fizeram sombra na página; ouvi o farfalhar de suas saias no quarto. Quer dizer, na hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim e sussurrou: “Querida, você é uma moça. Está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas de nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria. E principalmente seja pura”.
 E ela fez que ia guiar minha caneta.
 E agora eu conto a única ação minha em que vejo algum mérito próprio, embora na verdade o mérito seja de alguns excelentes antepassados que me deixaram um bom dinheiro – digamos, umas quinhentas libras anuais? –, e assim eu não precisava só do charme para viver.
 Fui para cima dela e agarrei-a pela garganta. Fiz de tudo para esganá-la. Minha desculpa, se tivesse de comparecer a um tribunal, seria legítima defesa.
 Se eu não a matasse, ela é que me mataria.
Arrancaria o coração de minha escrita. Pois, na hora em que pus a caneta no papel, percebi que não dá para fazer nem mesmo uma resenha sem ter opinião própria, sem dizer o que a gente pensa ser verdade nas relações humanas, na moral, no sexo.
E, segundo o Anjo do Lar, as mulheres não podem tratar de nenhuma dessas questões com liberdade e franqueza; se querem se dar bem, elas precisam agradar, precisam conciliar, precisam – falando sem rodeios – mentir.
Assim, toda vez que eu percebia a sombra de sua asa ou o brilho de sua auréola em cima da página, eu pegava o tinteiro e atirava nela.
Demorou para morrer. Sua natureza fictícia lhe foi de grande ajuda.
É muito mais difícil matar um fantasma do que uma realidade.
Quando eu achava que já tinha acabado com ela, sempre reaparecia sorrateira.
No fim consegui, e me orgulho, mas a luta foi dura; levou muito tempo, que mais valia ter usado para aprender grego ou sair pelo mundo em busca de aventuras. Mas foi uma experiência real; foi uma experiência inevitável para todas as escritoras daquela época. Matar o Anjo do Lar fazia parte da atividade de uma escritora.
 Mas continuando minha história: o Anjo morreu, e o que ficou?
 Vocês podem dizer que o que ficou foi algo simples e comum – uma jovem num quarto com um tinteiro. Em outras palavras, agora que tinha se livrado da falsidade, a moça só tinha de ser ela mesma. Ah, mas o que é “ela mesma”? Quer dizer, o que é uma mulher? Juro que não sei. E duvido que vocês saibam. Duvido que alguém possa saber, enquanto ela não se expressar em todas as artes e profissões abertas às capacidades humanas. E de fato esta é uma das razões pelas quais estou aqui, em respeito a vocês, que estão nos mostrando com suas experiências o que é uma mulher, que estão nos dando, com seus fracassos e sucessos, essa informação da maior importância.


Virgínia Woolf, Profissões para mulheres e outros artigos feministas

Tentativa de sitiar uma esquisitice



Ando esquisito. Não exatamente mal, mas preguiçoso, dispersivo, desatento. Ou atento a coisas tão remotas que é como se não estivesse completamente aqui. Nem lá, na coisa remota. Na caixa do supermercado, de repente revejo nítida aquela esquina do restaurante japonês em Pernety, Paris. Ao atravessar uma rua aqui do Menino Deus, onde moro, a luz do crepúsculo me transporta para a beira do fiorde de Skjeberg, no sul da Noruega. E também não são só flashes assim chiques, estrangeiros, não. Outro dia na sacada aqui de casa, voltou de repente cedo entardecer na fronteira com a Argentina: 360 graus de pampa, o sol se pondo atrás do Uruguai e a Lua Cheia subindo exatamente a 180 graus opostos. E não só lugares. Caras também, e vozes, e pessoas ausentes ou distantes de repente se introduzem no presente e no próximo. Não são apenas lembranças, que isso é comum de ter, é mais inquietante que isso: são invasões no real do imaginário e da memória.

Vou ao cinema. Prêt-à-Porter, de Robert Altman, me faz rever por dentro um filme francês sofisticadíssimo do fim dos anos 60: Qui êtes-vous, Polly Magoo? Não só o filme, mas também o cinema onde o vi, e que já não existe mais, e a própria tarde de novembro em que foi visto, depois de uma prova na faculdade. Amateur, de Hal Hartley, e seus personagens zumbis desmemoriados me levam de volta a uma noite gelada de inverno em Kentish Town, Londres, saindo de um restaurante paquistanês. Uma moça chorava desesperadamente sentada no degrau. Perguntei se precisava de ajuda, ela contou: acabara de encontrar o namorado com outra na cama. Mas não queria ajuda nem nada, só queria ficar ali chorando sozinha no degrau gelado. Fui embora.

Será grave isso que tenho, ao ver outras coisas dentro da coisa presente? Não no sentido clínico ou físico, suponho, que não exige internação nem tratamento. Mas num outro sentido um tanto abstrato, talvez seja gravíssimo. É normal ver o que não é mais no que está sendo? “Normal” não é a palavra, eu sei, “normal” estabelece um critério tão inabalável de sanidade que chega a ser fascista. Tento de outro jeito, então: será que é bom, isso?

Percebem como é vago? Tenho que dizer isso porque não sei como se chama. O que agrava as coisas, pois sempre é muito mais fácil lidar com algo batizado, classificado e supostamente compreendido. Será o inverno chegando? Aqui no Sul temos inverno brabo e este final de maio deixa no ar uma espécie de calafrio de antecipação: quer-se de repente estar no Caribe ou na Bahia para não ter que atravessar as geadas e os gelos de junho e julho para chegar despedaçado em agosto e, a partir de setembro, tentar reunir os cacos outra vez. Talvez porque há quatro anos viajando sem parar, vivendo dois invernos seguidos, e nenhum verão, ou o contrário, meu organismo tenha perdido o ritmo natural?

Será o Zaire? Será a greve dos petroleiros? Será o excesso de remédios? Será porque terminei livro, e isso sempre deixa a gente assim, esvaziado, espantado? Durmo e não sonho, faz tempo. Cartas e telefonemas, que quase não atendo, deixo para responder depois. Então esqueço. Começo a ouvir Mozart, me dá vontade de ouvir Satie. Vou ao Satie, mas acho que quero mesmo é Chopin. Abro Jorge de Lima pensando em Drummond, quero João Cabral, mas no segundo verso estou pensando em T.S. Elliot. De madrugada, acordo súbito e suado, julgando ouvir as sirenes da polícia daquele inverno infernal em Brixton. Há qualquer coisa ausente? Há outra coisa que ronda querendo tornar-se presente? O terror interno foge de todas as maneiras do real e do agora para não encarar-se, será? Não sei, ando esquisito. Ando mesmo muito esquisito e, bem sei, ninguém pode ajudar.


Caio Fernando Abreu  
 OESP – Caderno 2 – Domingo, 28 de maio de 1995

Sair

Illustration of Elena Dudina


Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.


Antonio Cícero, A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.77.

Valsa à mulher do povo

Bill Brauer


OFERENDA
Oh minha amiga da face múltipla 
Do corpo periódico e geral! 
Lúdica, efêmera, inconsútil 
Musa central-ferroviária! 
Possa esta valsa lenta e súbita 
Levemente copacabanal 
Fazer brotar do povo a flux 
A tua imagem abruptamente 
Ó antideusa!

VALSA
Te encontrarei na barca Cubango, nas amplas salas da Cubango 
Vestida de tangolomango 
Te encontrarei! 
Te encontrarei nas brancas praias, pelas pudendas brancas praias 
Itinerante de gandaias 
Te encontrarei. Te encontrarei nas feiras-livres 
Entre moringas e vassouras, emolduradas de cenouras 
Te encontrarei. Te encontrarei tarde na rua 
De rosto triste como a lua, passando longe como a lua 
Te encontrarei. Te encontrarei, te encontrarei 
Nos longos footings suburbanos, tecendo os sonhos mais humanos 
Capaz de todos os enganos 
Te encontrarei. Te encontrarei nos cais noturnos 
Junto a marítimos soturnos, sombras de becos taciturnos 
Te encontrarei. Te encontrarei, oh mariposa 
Oh taxi-girl, oh virginete pregada aos homens a alfinete 
De corpo saxe e clarinete 
Te encontrarei. Oh pulcra, oh pálida, oh pudica 
Oh grã-cupincha, oh nova-rica 
Que nunca sais da minha dica: sim, eu irei 
Ao teu encontro onde estiveres 
Pois que assim querem os malmequeres 
Porque és tu santa entre as mulheres 
Te encontrarei!


Vinicius de Moraes

Mistério




Gosto de ti, ó chuva, nos beirados, 
Dizendo coisas que ninguém entende! 
Da tua cantilena se desprende 
Um sonho de magia e de pecados. 

Dos teus pálidos dedos delicados 
Uma alada canção palpita e ascende, 
Frases que a nossa boca não aprende 
Murmúrios por caminhos desolados. 

Pelo meu rosto branco, sempre frio, 
Fazes passar o lúgubre arrepio 
Das sensações estranhas, dolorosas... 

Talvez um dia entenda o teu mistério... 
Quando, inerte, na paz do cemitério, 
O meu corpo matar a fome às rosas! 


Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Quase

lena sotskova 


Por uma estranha alquimia
(você e outros elementos) 
quase fui feliz um dia.
Não tinha nem fundamento.
Havia só a magia
dos seus aparecimentos
e a música que eu ouvia
e um perfume no vento.
Quase fui feliz um dia.
Lembrar é quase promessa,
é quase quase alegria.
Quase fui feliz à beça
mas você só me dizia:
“Meu amor, vem cá, sai dessa”.


Antonio Cícero
Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996, p.69