quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012



Nado em alto-mar, maremoto. Flutuar sobre naufrágios, resíduos. Submersa no que não era – afogamento. Mergulho, viagem marítima. Escapismo, estrelas-do-mar. Sentimentos líquidos.

Ebulição. Dissolução de formas. Novas, transitórias, fluidas. Tensão, polaridade.

Repetição, aprendizado: trajeto contra a correnteza até a margem.

Memória da água. Desenhos na areia, espuma.


Virna Teixeira

Receita para dividir o vento




Tornar a mim e recuperar a inquietação
Reter no peito as mechas bruxuleantes da aurora
Depois correr apanhando o futuro
                        acariciando o bojo da manhã:
                        fosse ontem.
Desalinhar os ninhos de bem-querenças
Abraçando as horas alçando mãos ao amigo
Enganar o arco-íris
Roçar as coxas em tropel e vasculhar sussurros
Dedilhar carinhos
Destapar a moradia das nuvens.
Tecer insetos, remoer assombros urdindo peitos
Escorar sorrisos em cercas ilesas
Ordenhar giralua feito brumas de cantigas
                      escorridas em devaneios
                      e cansar em beijos.
Resgatar a brisa, contendo-a em sacos de fé
                      e chegar-se ao rosto da terra
                      e soltá-la, disparando ao regaço dos homens.
Crescer sem correria do amanhã
Desenterrado de ausências e nada invejar
Silenciar o fel dos punhos
Inaugurar cismas.
Ultrapassar o vento:
                      escapasse.


Whisner Fraga

Poema



Estuvo aquí hace poco. Como una diosa en fuga
llevaba débilmente sus temblores divinos.
Por un instante el cielo detuvo a la hilandera
y la muchacha hermosa se detuvo un momento.

Ahora ha partido. Carne que sabe la sentencia,
comprendo que mis ojos la han perdido por siempre.
Roja sombra, has de ser la ceniza de un sueño.
Dulce, fugaz sonrisa... ¿No estarás en mi cielo?

Nada nos pertenece. Todo sigue um oscuro
rumbo. Son sueño el árbol, el castillo, la esfinge.
El mar abre sus líquidos brazos de cruel sirena
hacia donde incesantes naves se precipitan.

Adiós, sagrada imagen. En la tarde solemne
despido astros y Dioses que otorgan oro y sangre.
Muero un poco con todas las flores abatidas
y se apaga el crepúsculo, pero la noche es grande.

William Ospina

*****

Esteve aqui recente. Como uma deusa em fuga
portava debilmente seus tremores divinos.
Por um instante o céu estancou a fiandeira
e a moça formosa deteve-se um instante.

Agora se foi. Carne que sabe a sentença,
entendo que meus olhos a perderam para sempre.
Rubra sombra, hás de ser a cinza de um sonho.
Doce, fugaz sorriso... Não a verei em meu céu?

Nada nos pertence. Tudo continua em escuro
rumo. Um sonho a árvore, o castelo, a esfinge.
O mar abre seus líquidos braços de sereia cruel
até onde incessantes naves se precipitam.

Adeus, sagrada imagem. Na tarde solene
despeço astros e deuses que outorgam ouro e sangue.
Morro um pouco com todas as flores abatidas
e se apaga o crepúsculo, mas a noite é enorme.

Quantas vezes te esperei neste lugar...


                                                      Quantas vezes te esperei neste lugar
quantas vezes pensei que não
chegavas
quantas vezes senti a rebentar
o coração se ao longe te avistava.

Quantas vezes depois de teres chegado
nos colámos no beijo que tardava
quantas vezes trementes e calados
nos entregámos logo sem palavras.
Quantas vezes te quis e te inventei
quantas vezes morri e já não sei.


Torquato da Luz

Thomas Mann, A morte em Veneza

Estátua e espelho! Seus olhos envolveram a nobre figura à beira do azul e, em êxtase entusiasta, ele acreditou, com esse olhar, compreender o belo em si, a forma como pensamento divino, a única e pura perfeição que vive no espírito e da qual uma imagem e alegoria humana aqui estava erguida, leve e graciosa, para adoração. Isto era a embriaguez; e, sem hesitação, avaro mesmo, o artista envelhecido recebeu-a calorosamente. Seu cérebro girava, sua cultura entrou em efervescência, sua mente levantou pensamentos transmitidos desde sua juventude e que até então não tinham sido avivados pelo próprio fogo. Não estava escrito que o sol desviava nossa atenção do intelectual para coisas sensuais? Dizem que ele atordoa e encanta o intelecto e a memória de tal maneira, que a alma, de alegria, esquece completamente sua verdadeira condição e, com espantada admiração, fica presa no mais belo dos objetos banhados pelo sol: e só com o auxílio de um corpo ela consegue elevar-se para uma contemplação ainda mais alta. Cupido, deveras, imitou os matemáticos, os quais apresentam às crianças incapazes figuras concretas de formas puras. Assim também o deus, para nos fazer visível o espiritual, gostava de servir-se do corpo e das cores da juventude humana, que, como instrumento de lembrança, enfeitava com todo o reflexo da beleza, e, na contemplação dela, nós certamente nos incendiávamos em dor e esperança.
Assim pensava o entusiasmado; assim era capaz de sentir. E, do êxtase do mar e do brilho do sol, formou-se no seu íntimo um lindo quadro. Era o velho plátano perto dos muros de Atenas - era aquele sagrado sombreado lugar, cheio do perfume das flores do agnocasto, enfeitado por ex-votos e dádivas piedosas em homenagem às ninfas e ao Aquelôo. Completamente límpido, o rio caía aos pés da árvore de hastes largas, sobre calhaus lisos; as cigarras cantavam. Mas, sobre o gramado, que tinha uma inclinação ligeira de modo a poder a cabeça ficar mais alta ao deitar, estavam estendidas duas pessoas, abrigadas do calor do dia: uma idosa e uma jovem, uma feia e uma bela, o sábio ao lado do gentil. E, com cortesia e angariantes gracejos espirituais, Sócrates esclarecia Fédon sobre o anseio e a virtude. Falava-lhe sobre o susto ardente que o sensível sofre quando seus olhos vêem uma alegoria da beleza eterna; falava dos desejos do ignóbil e mau que não pode pensar na beleza quando vê sua imagem, e não é capaz de veneração; falava do medo sagrado que domina o nobre, quando lhe aparece um rosto divino, um corpo perfeito, como então treme e fica fora de si e quase não se atreve a olhar e adora aquele que tem a beleza. Ofertar-lhe-ia mesmo sacrifícios, como a uma estátua, se não temesse parecer louco aos homens. Pois a beleza, Meu Fédon, só ela é gentil e visível ao mesmo tempo: ela é, preste bem atenção! a única forma do espiritual que podemos receber sensualmente, suportar sensualmente. Ou o que seria de nós se o divino, a razão, a virtude a verdade se quisessem apresentar-se-nos sensualmente! Não pereceríamos e queimaríamos de amor como Semele perante Zeus? Assim, a beleza é o caminho do homem sensível ao espírito - só um caminho, um meio somente, pequeno Fédon... E depois expressou o mais sutil, o astuto cortejador: pois o amante é mais divino que o amado, porque naquele está o deus, e no outro não - pensamento tão carinhoso e irônico que talvez jamais tenha sido pensado e do qual nasce toda a travessura e a mais secreta voluptuosidade do anseio.

A felicidade do literato é o pensamento que é todo sentimento; é o sentimento que consegue tornar-se todo pensamento. Um pensamento palpitante como este, um sentimento tão exato, pertencia e obedecia ao solitário, naquela ocasião: isto é, que a natureza estremece de prazer quando o espírito se curva em adoração perante a beleza. Repentinamente desejou escrever. Na verdade, Eros ama a ociosidade, assim dizem, e só é criado pra isto. Mas neste ponto da crise a exaltação do atordoado era dirigida à produção. Quase indiferente o motivo. Uma pergunta, uma incitação sobre um certo grande e ardente problema da cultura e do gosto, deixando-se sentir como definição, tinha sido projetada ao mundo espiritual e chegara até o viajante. O assunto lhe era familiar, lhe era experiência; seu desejo de deixá-lo acender-se na luz de sua palavra tornou-se irresistível. E, na verdade, seu anseio era trabalhar na presença de Tadzio, e, escrevendo, adotar a figura do menino como modelo, deixar seu estilo seguir as linhas deste corpo que lhe parecia divino, levar sua beleza para o espiritual, como outrora a águia carregara o pastor troiano para o éter. Nunca sentira mais doce o prazer da palavra, nunca soubera que Eros estava assim na palavra, como nas horas perigosas e deliciosas, durante as quais, sentado em frente à rude mesa sob o toldo, na presença de seus ídolos e a música de sua voz nos ouvidos, formava sua pequena dissertação, de acordo com a beleza de Tadzio - aquela página e meia de escolhida prosa, cuja integridade, nobreza e ondulante tensão de sentimento dentro em pouco exaltaria a admiração de muitos. Por certo é bom que o mundo só conheça as belas obras sem conhecer suas origens e condições de formação, pois o conhecimento das fontes que serviram de inspiração ao artista muitas vezes o desconcertaria, desalentaria e assim anularia os efeitos do que é excelente. Estranhas horas! Estranha fadiga enervante! Estranha comunicação criadora do espírito com um corpo! Quando Aschenbach guardou seu trabalho e deixou a praia, sentiu-se esgotado, desconcertado mesmo, como se a sua consciência lhe fizesse queixas depois de uma digressão.
Foi na manhã seguinte que ele, no intuito de deixar o hotel, viu da escadaria que Tadzio já se encaminhava para o mar - sozinho - aproximando-se justamente do cercado. O desejo, o simples pensamento de aproveitar a oportunidade para travar relações leves e alegres com aquele que, sem o saber, lhe proporcionava tanta elevação e emoção; de dirigir-lhe a palavra, de alegrar-se com sua resposta, era forte e se impunha. O belo ia devagar, era alcançável, e Aschenbach apressou-se. Aproxima-se dele no caminho de madeira atrás das cabinas, quer colocar-lhe a mão sobre os ombros, e uma palavra qualquer, uma frase em frances, pairava nos seus lábios: então sente que seu coração, talvez por causa do andar acelerado, bate como um martelo, que, tão sem fôlego, só conseguiria falar comprimido e tremido; ele hesita, tenta dominar-se, ele teme, repentinamente, já ter andado por tempo demais atrás do belo, teme o despertar de sua atenção, seu olhar indagador; toma mais um impulso, falha, renuncia e passa de cabeça abaixada.
"Tarde demais!", pensou neste momento. "Tarde demais!" Era, porém, tarde demais? Esse passo que não dera podia ser para o bem; o fácil e o alegre podia levar à sanável desilusão. A verdade era que o idoso não deseja a desilusão, porque a embriaguez lhe era cara demais. Quem decifra o caráter e o cunho do artista! quem entende a profunda fusão instintiva de disciplina e devassidão na qual se baseia! Pois não conseguir desejar a sanável desilusão é devassidão. Aschenbach não estava mais disposto para a autocrítica; o gosto, a condição espiritual de seus anos, a dignidade própria, a maturidade e a tardia simplicidade não o inclinavam a analisar os motivos e a decidir se fora por consciência, ou por desleixo e fraqueza, que não realizara suas intenções. Estava desconcertado, temia que alguém, mesmo que fosse só o guarda da praia, tivesse observado sua corrida, sua derrota; temia a ridicularidade. De resto, gracejava consigo mesmo sobre seu medo cômico-sagrado. "Consternado", pensou, "consternado como um galo temeroso que deixa pender as asas durante a luta. Isto na verdade é o deus que, na contemplação do amável, nos quebra a coragem desta maneira e comprime o nosso orgulho tão completamente contra o chão..." Brincou e entusiasmou-se; era altivo demais para temer um sentimento.
Já não vigiava a expiração das férias que se concedera; a ideia de regressar para a pátria nem sequer o tocava. Tinha providenciado abundante reserva em dinheiro. Sua única preocupação era a possível partida da família polonesa; porém, por intermédio de terceiros, por informações colhidas por acaso no barbeiro do hotel, soubera que havia chegado pouco antes dele. O sol queimava-lhe o rosto e as mãos, o ar salino fortalecia-lhe o sentimento; e, assim como antes aplicava de imediato numa obra todo o descanso que lhe proporcionava o sono, a alimentação ou a natureza, assim deixou agora tudo o que o sol, a ociosidade e o ar marinho lhe davam em cotidiano fortalecimento consumir-se magnânimo e desgovernado, em êxtase e sentimento.
Seu sono era prófugo; os deliciosos dias uniformes eram interrompidos por noites curtas, cheias de feliz desassossego. Na verdade, recolhia-se cedo,  às 9 horas, quando Tadzio desaparecia da cena, o dia lhe parecia findo. Mas, ao primeiro clarão do dia, era acordado por um delicado e penetrante susto: seu coração lembrava-se de sua aventura, não suportava ficar deitado por mais tempo, levantava-se, envolvido num agasalho leve, sentava-se em frente à janela aberta para espera o nascimento do sol. O maravilhoso acontecimento enchia de veneração sua alma enlevada pelo sono. Ainda o céu, a terra e o mar estavam envolvidos na fantástica, vítrea palidez da madrugada; ainda pairava uma estrela apagada no espaço. Mas vinha um sopro, uma notícia alada de residências inatingíveis, de que Eros se erguia do lado de seu esposo, e então aparecia aquele primeiro doce enrubescer da faixa mais distante do céu e do mar, anunciando o sensualizar da criação. A deusa se aproximava, a raptora de adolescentes, que arrebatara Ceix e Céfalo e, a despeito da inveja de todos os olímpicos, gozava o amor do Belo Órion. Um espalhar de rosas começou à beira do mundo, um indizivelmente belo brilhar e florir, nuvens infantis, transfiguradas, translúcidas, oscilavam como servis gênios no perfume róseo, azulado. Purpura caiu sobre o mar, que parecia flutuá-la em ondas para a frente; lanças douradas apontavam de baixo para as alturas do céu; o brilho tornou-se brasa; silenciosamente, com supremo poder divino, brasa, ardor e labaredas chamejantes rolavam para cima e com cascos arrebatadores os cavalos sacros do irmão subiam pelo universo. Iluminado pelo esplendor do deus, o solitário acordado fecha os olhos e deixava que suas pálpebras fossem beijadas pela glória. Velhos sentimentos, antigos deliciosos impulsos do coração que, no severo trabalho de sua vida, haviam morrido - reconheceu-os com um sorriso desconcertado e admirado. Pensava, sonhava; vagarosamente seus lábios formaram um nome, e, ainda sorrindo, com o rosto erguido, as mãos entrelaçadas no colo, adormeceu de novo, sentado na cadeira.
Mas o dia que começara tão ardente e festivo foi em seu todo estranhamente elevado e misticamente transformado. De onde vinha e nascia esse hálito que, de repente, tão suave e significativo, como sob insinuações superiores, lhe envolvia as têmporas e as orelhas? Cirros brancos em bandos estavam espalhados no céu como rebanhos no pasto dos deuses. Um vento mais forte ergueu-se e os cavalos de Poseidon corriam, corcoveando; talvez também touros, pertencentes do deus de cachos azulados, os quais vinham correndo com bramidos, abaixando os chifres. Entre o amontoado dos rochedos da praia mais distante, porém, as ondas pulavam para cima, como cabras saltando. Um mundo de sagrado desfiguramento, cheio de vida assustadora, envolveu o fascinado e seu coração sonhou delicadas fábulas. Várias vezes, quando o sol descia atrás de Veneza, sentava num banco no parque para observar Tadzio, que, vestido de branco com um cinto colorido, se divertia na praça de saibro alisado com o jogo de bola e era a Hiacinto que julgava ver, o qual morrera porque dois deuses o amavam. Sentia mesmo a inveja dolorida de Zéfiro pelo rival, que se esqueceu do oráculo, do arco e da cítara, para sempre brincar com o belo; viu o disco, dirigido pelo bárbaro ciúme, atingir a encantadora cabeça; recebeu, também ele empalidecendo, o corpo desfalecido; e a flor nascida do sangue doce trazia a inscrição de sua infinita queixa...
Nada é mais estranho, mais melindroso que a relação de pessoas que só se conhecem de vista - que diariamente, em cada hora mesmo, se encontram, se observam; são obrigadas a manter a aparência de indiferente estranheza, sem cumprimento, sem palavra, pela ética ou capricho pessoal. Entre eles há inquietação e curiosidade sobreexcitada, a histeria de uma insatisfeita e artificialmente oprimida necessidade de conhecimento e intercâmbio, e principalmente também uma espécie de respeitoso interesse. Pois o homem ama e respeita o homem enquanto não consegue julgá-lo; e o anseio é o produto de um conhecimento falho.
Uma relação e um conhecimento qualquer tinham que, necessariamente, formar-se entre Aschenbach e o jovem Tadzio, e, com penetrante alegria, o mais idoso pode verificar que interesse e atenção não ficaram completamente sem ser correspondidos. Por exemplo, que fazia o belo nunca mais vir pelo caminho de madeira atrás das cabinas, quando aparecia de manhã na praia, mas somente pelo caminho da frente, pela areia, passando o local de Aschenbach desnecessariamente perto, quase tocando em sua mesa, sua cadeira, dirigindo-se em passos lentos para a cabina dos seus? Afetava assim a atração, a fascinação de um sentimento superior o seu delicado e distraído objeto? Aschenbach esperava diariamente a chegada de Tadzio, e, de quando em quando, fingia estar ocupado quando isto se dava, deixando o belo passar, aparentemente despercebido. As vezes levantava os olhos e os seus se encontravam com os dele. Ambos ficavam profundamente sérios quando isto acontecia. Na culta e grave expressão do idoso nada traía uma emoção íntima, mas nos olhos de Tadzio havia um investigar, um perguntar pensativo, seu andar ficava hesitante, olhava para o chão, erguia deliciosamente de novo os olhos, e, quando passava, algo no seu porte parecia expressar que só a educação o impedia de se voltar.
Uma vez, porém numa noite, foi diferente. Os irmãos poloneses e a governanta faltaram durante a refeição principal na sala grande - Aschenbach notara-o com preocupação. Depois do jantar, muito inquieto sobre o paradeiro deles, andava em traje de noite e o chapéu de palha, em frente do hotel, aos pés do terraço, quando, repentinamente, viu as irmãs com aparência de freiras, a preceptora e, quatro passos atrás delas, Tadzio aparecerem sob a luz da lâmpada de arco. Aparentemente vinham da ponte de barcas, depois de terem jantado na cidade, por uma razão qualquer. Sobre a água devia estar fresco; Tadzio usava um casaco à marinheira azul-escuro com botões dourados e na cabeça um boné combinando. Sol e ar marinho não o queimavam, sua pele continuava de um amarelo marmóreo, como no princípio; porém, hoje parecia mais pálido que de costume, fosse por causa da noite fresca ou do empalidecente luar das lâmpadas. Suas sobrancelhas simétricas destacavam-se mais fortes, seus olhos pareciam mais escuros. Estava indizivelmente belo e Aschenbach sentiu, com pena, como já por muitas vezes, que a palavra só consegue louvar a beleza sensual, porém não reproduzi-la.
Não notou a querida imagem; aparecera inesperadamente, não tivera tempo de se acalmar e trazer dignidade para sua expressão. Alegria, surpresa, admiração deviam transparecer abertamente, quando seu olhar encontrou o do desaparecido - e neste segundo aconteceu que Tadzio sorriu: sorriu para ele, falando, íntimo, gracioso e sem rodeios, com lábios que no sorriso se abriam lentamente. Era o sorriso de Narciso que se debruça sobre o espelho de água, aquele sorriso profundo, encantador, prolongado, com o qual estende os braços para o reflexo da própria beleza - um sorriso ligeiramente desfigurado, desfigurado pela inutilidade de seu desejo, de beijar os lindos lábios de sua sombra, galante, curioso e ligeiramente atormentado, seduzido e sedutor.
Aquele que recebera este sorriso fugiu com ele como um presente fatídico. Estava tão abalado que se viu obrigado a evitar a luz do terraço e do jardim da frente e procurou, apressado, a escuridão do parque nos fundos. Admoestações estranhamente revoltadas e carinhosas desprendiam-se dele: "Não deve sorrir assim! Ouça, não se deve sorrir assim pra ninguém!" Atirou-se sobre um banco, respirou indignado o perfume noturno das plantas. E, inclinado para trás, de braços pendentes, dominado e sentindo-se percorrido por arrepios, murmurou a eterna fórmula do anseio - aqui impossível, absurdo, abjeto, ridículo e, no entanto, sagrado, digno mesmo, ainda aqui: "Eu te amo!"


Thomas Mann, A morte em Veneza

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Cantares do sem nome e sem partida



Ó tirânico Amor, ó caso vário
Que obrigas um querer que sempre seja
De si contínuo e áspero adversário...

Luiz Vaz de Camões


Cubram-lhe o rosto, meus olhos ofuscam-se;ela morreu jovem.
John Webster



I

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.



II

E só me veja

No não merecimento das conquistas.
De pé. Nas plataformas, nas escadas
Ou através de umas janelas baças:
Uma mulher no trem: perfil desabitado de carícias.
E só me veja no não merecimento e interdita:
Papéis, valises, tomos, sobretudos

Eu-alguém travestida de luto. (E um olhar 
de púrpura e desgosto, vendo através de mim 
navios e dorsos).

Dorsos de luz de águas mais profundas. Peixes.
Mas sobre mim, intensas, ilhargas juvenis
Machucadas de gozo.

E que jamais perceba o rocio da chama:
Este molhado fulgor sobre o meu rosto.



III

Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo) 
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente. 

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.



IV

E por que, também não doloso e penitente?
Dolo pode ser punhal. E astúcia, logro.
E isso sem nome, o despedir-se sempre
Tem muito de sedução, armadilhas, minúcias
Isso sem nome fere e faz feridas.
Penitente e algoz:
Como se só na morte abraçasses a vida.

É pomposo e pungente. Com ares de santidade
Odores de cortesã, pode ser carmelita
Ou Catarina, ser menina ou malsã.

Penitente e doloso
Pode ser o sumo de um instante.
Pode ser tu-outro pretendido, teu adeus, tua sorte.
Fêmea-rapaz, ISSO sem nome pode ser um todo
Que só se ajusta ao Nunca. Ao Nunca Mais.



V

O Nunca Mais não é verdade.
Há ilusões e assomos, há repentes
De perpetuar a Duração.
O Nunca Mais é só meia-verdade:
Como se visses a ave entre a folhagem
E ao mesmo tampo não
(E antevisses
Contentamento e morte na paisagem).

O Nunca Mais é de planícies e fendas.
É de abismos e arroios.
É de perpetuidade no que pensas efêmero
E breve e pequenino 
No que sentes eterno. 

Nem é corvo ou poema o Nunca Mais.



VI

Tem nome veemente. O Nunca Mais tem fome.
De formosura, desgosto, ri
E chora. Um tigre passeia o Nunca Mais
Sobre as paredes do gozo. Um tigre te persegue.
E perseguido és novo, devastado e outro
Pensas comicidade no que é breve: paixão?
Há de se diluir. Molhaduras, lençóis
E de fartar-se,
O nojo. Mas não. Atado à tua própria envoltura
Manchado de quimeras, passeias teu costado.

O Nunca Mais é a fera.



VII

Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus.
Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitos
Porque me fiz tanto de ressentimentos
Que o melhor é partir. E te mandar escritos.
Rios de rumor no peito: que te viram subir 
A colina de alfafas, sem éguas e sem cabras
Mas com a mulher, aquela,
Que sempre diante dela me soube tão pequena.
Sabenças? Esqueci-as. Livros? Perdi-os.
Perdi-me tanto em ti
Que quando estou contigo não sou vista
E quando estás comigo vêem aquela.



VIII

Aquela que não te pertence por mais queira
(Porque ser pertencente
É entregar a alma a uma Cara, a de áspide
Escura e clara, negra e transparente), Ai!
Saber-se pertencente é ter mais nada.
É ter tudo também.
É como ter o rio, aquele que deságua 
Nas infinitas águas de um sem-fim de ninguéns.
Aquela que não te pertence não tem corpo.
Porque corpo é um conceito suposto de matéria
E finito. E aquela é luz. E etérea.

Pertencente é não ter rosto. É ser amante
De um Outro que nem nome tem. Não é Deus nem Satã. 
Não tem ilharga ou osso. Fende sem ofender.
É vida e ferida ao mesmo tempo, “ESSE”
Que bem me sabe inteira pertencida.



IX

Ilharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem.
Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso.
E pensas maravilha quando pensas anca
Quando pensas virilha pensas gozo.
Mas tudo mais falece quando pensas tardança
E te despedes.
E quando pensas breve
Teu balbucio trêmulo, teu texto-desengano
Que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha.
E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomas
Luta, ascese, e as mós do tempo vão triturando
Tua esmaltada garganta... Mas assim mesmo
Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas...
Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade
A esperança.



X

Como se fosse verdade encantações, poemas
Como se Aquele ouvisse arrebatado
Teus cantares de louca, as cantigas da pena.
Como se a cada noite de ti se despedisses
Com colibris na boca.
E candeias e frutos, como se fosses amante
E estivesses de luto, e Ele, o Pai
Te fizesse porisso adormecer...
(Como se se apiedasse porque humana
És apenas poeira,
E Ele o grande Tecelão da tua morte: a teia).
Como se fosse vão te amar e por isso perfeito.
Amar o perecível, o nada, o pó, é sempre despedir-se.
E não é Ele, o Fazedor, o Artífice, o Cego
O Seguidor disso sem nome? ISSO...

O amor e sua fome.



Hilda Hilst
imagens: MaXu




Será que é o trem que passou
ou passou quem fica na estação?

Oswaldo Montenegro

O nosso


Angelos Panayiotou 


Amamos o que não conhecemos, o já perdido.
O bairro que já foi arredores
Os antigos que não nos decepcionaram mais
porque são mito e esplendor.
Os seis volumes de Schopenhauer que jamais terminamos de ler.
A saudade, não a leitura, da segunda parte do Quixote.
O oriente que, na verdade, não existe para o afegão, o persa ou o tártaro.
Os mais velhos com quem não conseguiríamos
conversar durante um quarto de hora.
As mutantes formas da memória, que está feita do esquecido.
Os idiomas que mal deciframos.
Um ou outro verso latino ou saxão que não é mais do que um hábito.
Os amigos que não podem faltar porque já morreram.
O ilimitado nome de Shakespeare.
A mulher que está a nosso lado e que é tão diversa.
O xadrez e a álgebra, que não sei.


Jorge Luis Borges

A Rosa Desfolhada




Tento compor o nosso amor
Dentro da tua ausência.
Toda a loucura, todo o martírio
De uma paixão imensa.

Teu toca-discos, nosso retrato,
Um tempo descuidado...
Tudo pisado, tudo partido,
Tudo no chão, jogado.

E em cada canto
Teu desencanto, tua melancolia.
Teu triste vulto desesperado
Ante o que eu te dizia.

E logo o espanto e logo o insulto,
O amor dilacerado.
E logo o pranto ante a agonia
Do fato consumado.

Silenciosa ficou a rosa
No chão despetalada.
Que eu com meus dedos, tentei a medo
Reconstituir do nada.

O teu perfume, teus doces pêlos,
A tua pele amada.
Tudo desfeito, tudo perdido,
A rosa desfolhada.


Vinícius de Moraes

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Palavras de amor

Anna Ewa Miarczynska 



Nesta noite estrelada beijei as tuas mãos...

Pensa, eu que te vi perdida e recobrada;
pensa, eu que me afasto de ti quando me esperas;
pensa, esta dolorosa paz do campo adormecido
perfumado das flores e das frutas primeiras...

Tu sabes bem tudo, tudo. Tu escutaste tudo
com os imensos olhos perdidos na distância;
quando eu me calo, tu me olhas e cai da minha boca,
como uma flor cortada para a tua boca, o meu beijo.
(Esta é a despedida quando apenas chegava,
isto é tocar apenas os portos e partir...
Que teus braços me amarrem, que não me deixem ir
para tocar apenas outro amor e partir!)

Ouves as minhas palavras e recolhes os meus beijos,
e prolongamos juntos o silêncio do campo
riscado pelos duros ladridos dos cães
e pela numerosa canção dos nossos passos.

... Nesta noite estrelada beijei as tuas mãos ...

De despedida, cruzo o teu amor e tu me deténs.
Vou dizer-te adeus e teus olhos me queimam;
vou dar-te a angústia que me golpeia as têmporas
e galopa em minhas veias como um centauro louco,

mas minha voz tornou-se cantante e fervente
e meus dedos te revolvem a cabeleira escura;
e nesta noite estrelada minhas palavras se perdem
e caminhamos ébrios da mesma doçura.
... Ah! sabes tudo, tudo. Tu escutaste apenas,
no entanto sabes tudo.


Pablo Neruda

Hero

 


Hero

Sacerdotisa de Afrodite, morava as margens do Helesponto. Teve um romance com Leandro que morava do outro lado do imenso rio, o jovem todos os dias atravessava a nado o rio para ver sua amada Hero. Um dia o rapaz afogou-se tentando atravessar o longínquo rio e Hero ao ver o corpo do amado boiando suicida-se.

Leva-me



                                                     Leva-me a um lugar onde a paisagem

Se pareça àquela das visões da mente.

Que seja verde o rio, claro o poente

Que seja longe e leve a minha viagem.

.

Leva-me sem ódio e sem amor

Despojada de tudo que não seja

Eu mesma. Morna estrutura sem cor

A minha vida. E sem velada beleza.

.

Leva-me e deixa-me só.

Na singeleza

De apenas existir, sem vida externa.

E que nos escuros claustros do poema

Eu encontre afinal minha certeza.

.

Hilda Hilst

Sonhei-te

nathalie picoulet


Sonhei-te lentamente,
em plena consciência do disfarce.
Sabia-te irreal,
mas o sonho restava devagar.
Com pormenores tão lentos

que o tempo me sobrava de pensar.
Sentei-me ao pé de ti,
junto ao meu sonho, e pude ler indícios,
os símbolos que queria
estavam lá. Sonhei-te porque sim:

a confusão existe no real.


Ana Luísa Amaral

Tigresa

 


Amemos! quero de amor

Viver no teu coração!

Sofrer e amar essa dor

Que desmaia de paixão!

Na tu’alma, em teus encantos

E na tua palidez

E nos teus ardentes prantos

Suspirar de languidez!


Quero em teus lábios beber

Os teus amores do céu!

Quero em teu seio morrer

No enlevo do seio teu!

Quero viver d’esperança!

Quero tremer e sentir!

Na tua cheirosa trança

Quero sonhar e dormir!


trecho do poema "Amor", de Álvares de Azevedo, no livro "Lira dos Vinte Anos

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A falta que ama




Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.

Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.

A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patinando muros.

Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.

Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?

O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.

No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?


Carlos Drummond de Andrade

De Quem é o Olhar

imagem: Carsten Witte

De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo ?

Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Por mim próprio mesmo
Em alma mal existo,

Toma um outro sentido
Em mim o Universo —
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha idéia das coisas.

Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora —
Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua —
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora!

Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo
E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

XXXIV - O guardador de rebanhos

jean paul bourdier

Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa…
Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me cousas…
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente…
Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha…
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas cousas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos…
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.


Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)



O presente está só.
A memória ergue o tempo.
Sucessão e engano
é a rotina do relógio.
O ano não é menos vão
que a vã história.


Entre o amanhecer e a noite existe um abismo
de agonias, luzes, cuidados;
o rosto que se mira nos gastos
espelhos da noite não é o mesmo.









O hoje fugaz é tênue e é eterno;
outro céu não espere, nem outro inferno.



Jorge Luis Borges
arts by  arantza sestayo

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Prosa Patética

AWilliam A. Schneider



Nunca fui de ter inveja, mas de uns tempos pra cá tenho tido.
As mãos dadas dos amantes tem me tirado o sono.
Ontem, desejei com toda força ser a moça do supermercado.
Aquela que fala do namorado com tanta ternura.
Mesmo das brigas ando tendo inveja.
Meu vizinho gritando com a mulher, na casa cheia de crianças,
sempre querendo, querendo.
Me disseram que solidão é sina e é pra sempre.
Confesso que gosto do espaço que é ser sozinho.
Essa extensão, largura, páramo, planura, planície, região.
No entanto, a soma das horas acorda sempre a lembrança
do hálito quente do outro. A voz, o viço.
Hoje andei como louca, quis gritar com a solidão,
expulsar de mim essa Nossa senhora ciumenta.
Madona sedenta de versos. Mas tive medo.
Medo de que ao sair levasse a imensidão onde me deito.
Ausência de espelhos que dissolve a falta, a fraqueza, a preguiça.
E me faz vento, pedra, desembocadura, abotoadura e silêncio.
Tive medo de perder o estado de verso e vácuo,
onde tudo é grave e único. E me mantive quieta e muda.
E mais do que nunca tive inveja.
Invejei quem tem vida reta, quem não é poeta
nem pensa essas coisas. Quem simplesmente ama e é amado.
E lê jornal domingo. Come pudim de leite e doce de abóbora.

A mulher que engravida porque gosta de criança.
Pra mim tudo encerra a gravidade prolixa das palavras: madrugada, mãe, ônibus, olhos, desabrocham em camadas de sentido,
e ressoam como gongos ou sinos de igreja em meus ouvidos.
Escorro entre palavras, como quem navega um barco sem remo.
Um fluxo de líquidos. Um côncavo silêncio.
Clarice diz, que sua função é cuidar do mundo.
E eu, que não sou Clarice nem nada, fui mal forjada,
não tenho bons modos nem berço.
Que escrevo num tempo onde tudo já foi falado, cantado, escrito.
O que o silêncio pode me dizer que já não tenha sido dito?
Eu, cuja única função é lavar palavra suja,
nesse fim de século sem certeza?
Eu quero que a solidão me esqueça.


Viviane Mosé

Mulher (em definição)

B. Kinlog



Mulher-Poesia
que deixa no meu corpo bocados de
poema

Mulher-Criança
que desce à minha infância
e me traz adulta

Mulher-Inteira
repartida no meu ser

Mulher-Absoluta
Fonte da minha origem


Manuela Amaral

O berço e o terremoto

Bao Zhen



Os versos, em geral, são versos de embalar, como eu às vezes os tenho feito, não sei se por simples complacência... ou pura piedade.

Contudo, os verdadeiros versos não são para embalar - mas para abalar.

Mesmo a mais simples canção, quando a canta um Camela Lorca, desperta-te a alma para um mundo de espanto.


Mário Quintana

La del río, qué blanda


Kari-Lise Alexander


La del rio, qué blanda!
Pero qué dura és esta...
La que cae de los párpados
es un água que piensa.

***

A do rio, que branda!
Mas que dura é esta...
A que cai das pálpebras
é uma água que pensa.


Manuel Del Cabral 

Virgem

 William-Adolfe Bouguereau



Ela era virgem
E o vento alisava seus pêlos pr'ela suspirar
E era um namoro selvagem de sexo de ventania
E quando o vento não vinha
Ela mesmo corria pra ventar
Ela era virgem
E o mar só lambia suas coxas
pr'ela se molhar
E ela era só maresia em dia de tempestade.
Ela deixava a cidade e abria
suas pernas para o mar.
E roçava os cães com a pele cálida
Pássaros com a mão cobras no ar.
E amava tigres e leões gatos nos porões
E à noite dormia encharcada.


Oswaldo Montenegro

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A Felicidade



Amei a tua inquietação; e disseste-me que
te amei sem saber por que, que as marés anunciavam
o luar que não chegou, que não foi preciso
olhar o fundo transparente das palavras
para que a sua verdade nos tocasse, que a tua mão
colheu o fruto da primeira árvore sem que nada
o impedisse.

Amei-te sem ter a certeza da manhã, sem ouvir
o vento que fez bater as janelas num eco do passado,
sem correr as cortinas do mundo para que
ninguém nos visse, sem apagar do teu rosto
o brilho da vida, enquanto as aves dormiam,
e o licor do sonho se derramava sobre os corpos
que cortavam a noite.

Mas ao seguir o seu rumo, o azul
floresceu das cinzas, a música despontou
dos silêncios da madrugada, e os teus olhos
amanheceram quando me disseste que
te amei, sem saber por quê.


Nuno Júdice

Tiempo vestido de mujer

Kemal Kamil 




Yo no tuve otro viático
que mi ansiedad de cielos
mi furia por vivir

y ver la espalda esquiva de los sueños
mi ciego anhelo de perder
mi cuerpo
en otro
cuerpo ciego

Yo no tuve jamás sino esa sed
yesca oculta de todos los incendios
en ansia
de alcanzar mis raíces descolgándose adentro
desde este corazón que ya consume
en tizón el cansancio del recuerdo
y en que germina oculto
el musgo del silencio.


Josefina Pla
(La llama y la arena, 1987)

****

Já não tive outro viático
que minha ansiedade de céus
minha fúria por viver

e ver as costas esquivas dos sonhos
meu cego anseio de perder
meu corpo
em outro
corpo cego

Nada mais tive que esta sede
isca oculta de todos os incêndios
na ânsia
de alcançar minhas raízes desprende-se dentro
desde este coração que já consome
em tição o cansaço da lembrança
e em que germina oculto
o musgo do silêncio.


A Vida é um jogo, belíssimo, onde só se pode ganhar aquilo que se arrisca.




A Vida é um jogo, belíssimo, onde só se pode ganhar aquilo que se arrisca.
Mas você parece que não anda perdendo muito, nem ganhando muito.
Nenhuma derrota acachapante, nenhuma vitória inesquecível.
Nenhum ato grandioso, nenhum espetáculo.
Nenhuma desgraça, nenhuma paixão.
Nenhuma queda profunda, nenhum salto mortal.
Nem pra cima, nem pra baixo.
Nada!
Nem escuridão, nem brilho, nem glória, nem tragédia.
Assim — a tua vida.
Segura, pacata, certinha, e normal.
Tudo em ordem, tudo estável e bem comportado.
Tudo em brancas nuvens.
Tudo meio morno, meio tépido, meio frouxo, meio mole.
Meio apagado.
Meio cinzento e meio sem graça.
Assim — a tua morte.


Edson Marques

Destruição

Lucia Sandroni 



Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se veem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.


Carlos Drummond de Andrade

Prelúdios intensos para os desmemoriados do amor


László GULYÁS



Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORAANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande tela. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jugo novo.
Te ordenas. E eu delinqüescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.

Hilda Hilst

***

PRELUDES INTENSES POUR CEUX QUI ONT PERDU LA MEMOIRE D’ AMOUR

Prends-moi. Ta bouche du lin sur ma bouche
Austère. Prends-moi MAINTENANT, AVANT
Avant que la carnation se défasse en sang, avant
La mort, mort amour, ma mort, prends-moi
Enfonce ta main, respire mon souffle, avale
En cadence ma sombre agonie.

Temps du corps, ce temps-là, de la faim
Du dedans. Corps se connaissant, lentement.
Um soleil de diamant mourrissant le ventre,
Le fait de la chair, la mienne.
Fuyante.
Et sur nous ce temps futur tissant
Tissant la grande toile. Au-dessus de nous la vie
La vie se répandant. Cyclique. S’ écoulant.

Tu te reconnais vivant sous un joug nouveau
Tu te mets en ordre. Et moi, déliquescente: amour, amour,
Avant le mur, avant la terre, je dois
Je dois crier ma parole, un charmant
Flanc
Dans l’ ardente tessiture d’ un rocher. Je dois crier
Je le dis à moi même. Mais à côté de toi, je me couche
Immense. En pourpure. En argent. En douceur.


Tradução francês: Lucilo Varejão e Maria Nilda Miranda

Ímpeto


LAURI BLANK 


no corpo inteiro
transitam palavras
não ditas

minh’alma explode
e nasce um poema


 lau siqueira, poema vermelho