terça-feira, 30 de junho de 2009

Para atravessar contigo o deserto do mundo

(Ilustração: Adrian Gottlieb - the vantage point) 

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Sophia de mello Breyner Andresen
(Livro Sexto)
John William Waterhouse 

Eu devo ser uma sereia. Eu não tenho medo de profundidades e tenho um grande medo de vida superficial.

Anaïs Nin

Coração Couraça


Aldo Luongo

Porque te tenho e não
porque te penso
porque a noite está de olhos abertos
porque a noite passa e digo amor
porque vieste recolher a tua imagem
e és melhor do que qualquer imagem tua
porque és linda do corpo até à alma
porque és boa da alma até mim
porque te escondes doce no orgulho
pequena e doce
coração couraça

porque és minha
porque não és minha
porque te vejo e morro
e pior que morro
se não te vejo amor
se não te vejo

porque tu existes sempre onde quer
mas existes melhor onde te quero
porque tua boca é sangue
e tens frio
tenho que amar-te amor
tenho que amar-te
ainda que esta ferida doa por duas
ainda que te busque e não te encontre
e ainda que
a noite passe e eu te tenha
e não.


Mário Benedetti

segunda-feira, 29 de junho de 2009


Na terra do coração passei o dia pensando - coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:

Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.

Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.

Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.

Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.

Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.

Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.

Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se pôs. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.

Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.

Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.

Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: "Im too pure for you or anyone". Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.

Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.

Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.

Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.

Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam destruindo tudo.

Meu coração é uma planta carnívora morta de fome. Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de mim! ai, ai de mim!

Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto quem me ama, me levam junto também.Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso.

Acesa, aceso - vasto, vivo: meu coração é teu.

Caio Fernando Abreu
O Estado de São Paulo,10 de fevereiro de 1988

sábado, 27 de junho de 2009

Reflexo

Francesca Strino


Olha: vem sobre os olhos
Tua imagem contemplar,
Como as madonas do céu
Vão refletir-se no mar
Pelas noites de verão
Ao transparente luar!

Olha e crê que a mesma imagem
Com mais ardente expressão
Como as madonas no mar
Pelas noites de verão,
Vão refletir-se bem fundo,
Bem fundo — no coração!


Machado de Assis

quinta-feira, 25 de junho de 2009

A preparação do currículo



Que é preciso?
É preciso fazer um requerimento
e ao requerimento anexar o currículo.

Independentemente da duração da vida,
o currículo deve ser curto.

É obrigatória a concisão e boa seleção dos fatos,
transformar as paisagens em endereços,
e vagas recordações em datas fixas.

De todos os amores o conjugal é quanto basta,
e quanto aos filhos só os que nasceram.

Mais importante que quem conheces é de quem és conhecido.
Viagens só se ao estrangeiro.
A que aderiste mas sem dizeres porquê.
Distinções sem motivo.

Escreve como se nunca tivesses falado contigo próprio
e te evitasses ao passares por ti.

Omite o silêncio dos cães, dos gatos e das aves,
cacaréus de lembrança, sonhos e amigos.

Valoriza mais o preço que o valor
e o título que o texto.
Antes o número que calça que aonde vai
esse atrás de quem tu andas.

A fotografia de orelhas descobertas.
Importa o seu formato e não o que elas ouvem.
Que ouvem elas?
O estrépito das máquinas triturando papel.

Wislawa Szymborska

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Cães Professores

À Elvira


Quando, contigo a sós, as mãos unidas,
Tu, pensativa e muda, e eu, namorado,
Às volúpias do amor a alma entregando,
Deixo correr as horas fugidias;
Ou quando às solidões de umbrosa selva
Comigo te arrebato; ou quando escuto
— Tão só eu, — teus terníssimos suspiros;
E de meus lábios solto
Eternas juras de constância eterna;
Ou quando, enfim, tua adorada fronte
Nos meus joelhos trêmulos descansa,
E eu suspendo meus olhos em teus olhos,
Como às folhas da rosa ávida abelha;
Ai, quanta vez então dentro em meu peito
Vago terror penetra, como um raio!
Empalideço, tremo;
E no seio da glória em que me exalto,
Lágrimas verto que a minha alma assombram!
Tu, carinhosa e trêmula,
Nos teus braços me cinges, — e assustada,
Interrogando em vão, comigo choras!
“Que dor secreta o coração te oprime?”
Dizes tu. “Vem, confia os teus pesares…
“Fala! eu abrandarei as penas tuas!
“Fala! eu consolarei tua alma aflita!”
Vida do meu viver, não me interrogues!
Quando enlaçado nos teus níveos braços
A confissão de amor te ouço, e levanto
Lânguidos olhos para ver teu rosto,
Mais ditoso mortal o céu não cobre!
Se eu tremo, é porque nessas esquecidas
Afortunadas horas,
Não sei que voz do enleio me desperta,
E me persegue e lembra
Que a ventura com o tempo se esvaece,
E o nosso amor é facho que se extingue!
De um lance, espavorida,
Minha alma voa às sombras do futuro,
E eu penso então: “Ventura que se acaba
Um sonho vale apenas.”


Machado de Assis

terça-feira, 23 de junho de 2009

Chico Buarque, Leite Derramado


Foi a última noite que dormi aqui, e que sonhando com ela melei estes lençóis. Como toda manhã, arrancarei a roupa de cama e farei uma trouxa, que atirarei pela janela dos fundos para a lavadeira apanhar. Mas vai restar visível uma mancha úmida no colchão, que tratarei de virar como faço toda manhã, deixando para cima o lado das manchas secas. Terei a sensação de que o colchão pesa mais um pouco a cada dia, e imaginarei que na palha dentro dele, se impregna a pasta dos meus sonhos e atos solitários.
*
Para o jardineiro do casarão, mamãe era mesmo como a flor, que ao mudar de vaso às vezes fenece.
*
Vai ver que andei delirando, e de bom grado voltarei a falar somente de coisas que você já sabe. Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço da alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar. Não sei se já lhe contei como conheci Matilde na missa de sétimo dia do meu pai, quando ela falou Eulálio de tal jeito, que nem mesmo atrizes sensuais conseguiriam reproduzir na minha cama. Também acho que lhe contei como fui vigiá-la um dia depois, toda serelepe à saída da escola, era a mais moreninha da classe. Passei a buscá-la todo dia, só de de Matilde no saguão da escola juntei recordações em série para o resto da vida.
*
O médico sempre me corta a palavra para narrar suas atividades numas paragens que só ele conhece, nesses matos onde estrangeiros gostam de se enfiar. E toca a falar de paludismo, esquistossomose, mal de Chagas, hanseníase, e entre uma e outra endemia me pego a contemplar o forte de Copacabana, esperando que desponte um transatlântico por trás da pedra. Ao meio-dia Matilde leva a Eulalinha para casa, onde lhe dá de mamar e a embala com a cantiga do boitatá-pega-neném. Volta para sentar comigo, me faz deitar a cabeça no seu colo e diz, abre a boca e fecha os olhos. Enche minha boca de areia e sai em disparada a fim de que eu a persiga mar a fundo, depois me chama para catar tatuís ou jogar peteca.
*
É estranho ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram, acabo de lembrar que Matilde vai sumir para sempre.
*
Se o leite estanca assim de supetão, dizia à ama, é porque a mãe perdeu um ente querido, ou padeceu grande decepção amorosa. Olhava para o alto quando se referia ao ente querido, e decepção amorosa ela falava olhando para mim, como se eu fosse um mau marido. Logo eu, que sentia falta de Matilde tanto quanto a minha filha, e nem ao menos tinha outros peitos para me consolar.


Chico Buarque, Leite Derramado

“Amai particularmente as crianças, pois elas, como os anjos não têm pecados. Existem para comover-nos os corações, purificá-los, são para nós como uma indicação. Maldito o que ofende um desses pequeninos; amá-los, sem dizer nada. Frente a maldade, jamais empregueis a força, mas o amor humilde, podereis assim submeter o mundo inteiro. A humildade cheia de amor é uma força tremenda, sem nenhuma outra igual. A cada dia, a cada instante, vigiai-vos, mantendo uma atitude digna.
O amor é mestre, mas é preciso saber adquiri-lo porque necessita um esforço prolongado; é preciso amar não por um instante, mas até o fim.
Sede alegres como uma criança, como as aves do céus, pois a maldade, a impiedade são poderosos.
Amai incansavelmente, insaciavelmente, a tudo e a todos, procurai esse êxtase e exaltação.”


Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov

Pai e filho estão sentados em um banco...

De repente aparece um pardal...


domingo, 21 de junho de 2009


Quero-te poesia
O rumor audível
de um fio de água
deslizando breve.
A leve carícia
aflorando o rosto
com pudor de ternura.
A melancolia do adeus
inevitável e definitivo.
O bramido da cólera
dos ofendidos e humilhados
com vigor do vento
nos altos montes
ou tão só o choro silencioso.

Fernando Couto


Uma vida abandonada e desertada pelos amigos não pode ter um aspecto muito risonho. 

Sêneca (Cícero, em “A Amizade”)

Paixão Secreta


Acordei com os primeiros pássaros,
já minha lâmpada morria.
Fui até à janela aberta e sentei-me,
com uma grinalda fresca
nos cabelos desatados...
Ele vinha pelo caminho
na névoa cor de rosa da manhã.
Trazia ao pescoço
uma cadeia de pérolas
e o sol batia-lhe na fronte.
Parou à minha porta
e disse-me ansioso:
— Onde está ela?
Tive vergonha de lhe dizer:
— Sou eu, belo caminhante,
sou eu.

Anoitecia
e ainda não tinham acendido as luzes.
Eu atava o cabelo, desconsolada.
Ele chegava no seu carro
todo vermelho, aceso pelo sol poente.
Trazia o fato cheio de poeira.
Fervia a espuma
na boca anelante dos seus cavalos...
Desceu à minha porta
e disse-me com voz cansada:
— Onde está ela?
Tive vergonha de lhe dizer:
— Sou eu, fatigado caminhante,
sou eu.

Noite de Abril.
A lâmpada arde neste meu quarto
que a brisa do Sul
enche suavemente.
O papagaio palrador
dorme na sua gaiola.
O meu vestido é azul
como o pescoço dum pavão,
e o manto verde como a erva nova.
Sentada no chão, perto da janela,
olho a rua deserta ...
Passa a noite escura

e não me canso de cantar:
— Sou eu, caminhante sem esperança,
sou eu.


Rabindranath Tagore, in "O Coração da Primavera"
Tradução de Manuel Simões

Cartas de Van Gogh

quinta-feira, 18 de junho de 2009



Ah, que mulher dê sempre a impressão
de que se se fechar os olhos
ao abrí-los ela não mais estará presente
com seu sorriso e suas tramas.
Que ela surja, não venha; parta, não vá.
E que possua uma certa capacidade
de emudecer subitamente
e nos fazer beber o fel da dúvida.
Oh, sobretudo que ela não perca nunca,
não importa em que mundo,
Não importa em que circunstâncias
a sua infinita volubilidade de pássaro;
e que acariciada no fundo de si mesma
transforme-se em fera
sem perder sua graça de ave;
e que exale sempre o impossível perfume;
e destile sempre o embriagante mel;
e cante sempre o inaudível canto
da sua combustão;
e não deixe nunca de ser a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita
de toda a criação inumerável.

Vinicius de Moraes
Óleo sobre tela: By the Window, de John Silver 

A manhã estava em mim
E eu andava pelo parque
À procura da manhã.
Só um menino correndo
Atrás da bolsa, corria
Atrás da sua manhã.

A manhã estava em mim;
Ai de mim que a não sentia
Andando pela manhã.
Havia sol. E eu tão fria!…
Só um cego que pedia
Sentiu no rosto a manhã…

A manhã estava em mim;
Ai, mas eu já desistia
De me encontrar na manhã.
Veio a tarde, foi-se o dia,
Anoiteceu e eu dormia
Sem ter sentido a manhã.

Ai que mim que não sabia
Que estava em mim a manhã!

Natália Correa


Árvore da noite
Com ramos azuis
Até o horizonte.

Estendi meus braços,
E apenas achei
Nevoeiros esparsos.

O resto era sonhos
No profundo fim
Da vida e da noite.

A memória em pranto
Os ramos azuis
Fica procurando

E de olhos fechados
Vejo longe, sós,
Meus alados braços.

Ó noite, azul, árvore ...
Suspiro a subir
Muro de saudade!

Cecília Meireles

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Afrodite


Afrodite

Formosa.
Esses peitos pequenos, cheios.
Esse ventre, o seu redondo espraiado!
O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido
das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado,
as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo,
o coto de um braço, o tronco robusto, a linha
cariciosa do ombro...
Afrodite, não chorei quando te descobri?
Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia e de Roma!
Tantas figuras graves, de gestos nobres e de
frontes tranquilas, abstractas...
Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necrópole.
Era uma assembléia de amáveis espíritos, divagadores,
ente si trocando serenas, eternas e nunca
desprezadas razões formais.

Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo...
O descanso desse teu gesto!
A perna que encobre a outra, que aperta o corpo.
A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre.
E um fumo, uma impressão tão subtil e tão pro-
vocante de pudor, de volúpia, de reserva, de
abandono...
Já passaram sobre ti dois mil anos?

Estranha obra de um homem!
Que doçura espalhas e que grandeza...
És o equilíbrio e a harmonia e não és senão corpo.
Não és mística, não exacerbas, não angustias.
Geras o sonho do amor.

Praxíteles.
Como pudeste criar Afrodite?
E não a macerar, delapidar, arruinar, na ânsia de
a vencer, gozar!
Tinha de assim ser.
Eternizaste-a!
A beleza, o desejo, a promessa, a doce carne...


Irene Lisboa

Ilustração de Rob Gonsalves
Gelo liso
É paraíso
Para quem sabe dançar.

Friedrich Nietzsche, in A Gaia Ciência

João Cabral de Melo Neto

Iovka Mechkarova


Trechos do poema
A PALO SECO
(Quaderna - 1960)

Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;

se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.

O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;

é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.

A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.

Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:

não de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.

***

Trechos do poema
O CÃO SEM PLUMAS - "Discurso do Capibaribe"
(O cão sem plumas - 1949 - 1950)

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de [secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia,
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).

terça-feira, 16 de junho de 2009

Quase

Aram Nersisyan

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Mário de Sá-Carneiro

[8] - O livro do desassossego


O patrão Vasques. Tenho, muitas vezes, inexplicavelmente, a hipnose do patrão Vasques. Que me é esse homem, salvo o obstáculo ocasional de ser dono das minhas horas, num tempo diurno da minha vida? Trata-me bem, fala-me com amabilidade, salvo nos momentos bruscos de preocupação desconhecida em que não fala bem a alguém. Sim, mas por que me preocupa? É um símbolo? É uma razão? O que é?

O patrão Vasques. Lembro-me já dele no futuro com a saudade que sei que hei de ter então. Estarei sossegado numa casa pequena nos arredores de qualquer coisa, fruindo um sossego onde não farei a obra que não faço agora, e buscarei, para a continuar a não ter feito, desculpas diversas daquelas em que hoje me esquivo a mim. Ou estarei internado num asilo de mendicidade, feliz da derrota inteira, misturado com a ralé dos que se julgaram gênios e não foram mais que mendigos com sonhos, junto com a massa anônima dos que não tiveram poder para vencer nem renúncia larga para vencer do avesso. Seja onde estiver, recordarei com saudade o patrão Vasques, o escritório da Rua dos Douradores, e a monotonia da vida quotidiana será para mim como a recordação dos amores que me não foram advindos, ou dos triunfos que não haveriam de ser meus.

O patrão Vasques. Vejo de lá hoje, como o vejo hoje de aqui mesmo — estatura média, atarracado, grosseiro com limites e afeições, franco e astuto, brusco e afável — chefe, à parte o seu dinheiro, nas mãos cabeludas e lentas, com as veias marcadas como pequenos músculos coloridos, o pescoço cheio mas não gordo, as faces coradas e ao mesmo tempo tensas, sob a barba escura sempre feita a horas. Vejo-o, vejo os seus gestos de vagar enérgico, os seus olhos a pensar para dentro coisas de fora, recebo a perturbação da sua ocasião em que lhe não agrado, e a minha alma alegra-se com o seu sorriso, um sorriso amplo e humano, como o aplauso de uma multidão.

Será, talvez, porque não tenho próximo de mim figura de mais destaque do que o patrão Vasques, que, muitas vezes, essa figura comum e até ordinária se me emaranha na inteligência e me distrai de mim. Creio que há símbolo. Creio ou quase creio que algures, em uma vida remota, este homem foi qualquer coisa na minha vida mais importante do que é hoje.

Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
O livro do desassossego

segunda-feira, 15 de junho de 2009


Para ver a beleza última de uma obra não bastam todo o saber e toda a disposição; os mais raros e felizes acasos são necessários, para que o véu de nuvens se afaste uma vez desses cumes e nós os vejamos refulgir ao Sol. Não apenas devemos estar no lugar certo para presenciar isso: nossa alma teve de arrancar ela própria o véu de suas alturas e necessitar de uma expressão e símbolo exterior, como que para ter um ponto de apoio e continuar senhora de si. Mas é tão raro que tudo isto suceda ao mesmo tempo, que me inclino a crer que as maiores alturas de tudo o que é bom, um ato, a humanidade, a natureza, permaneceram algo oculto e velado para a maioria e mesmo para os melhores dos seres humanos até hoje: — o que se revela para nós, no entanto, revela-se apenas uma vez! — Os gregos bem que rezavam: “Duas e três vezes tudo o que é belo!”. Ah, eles tinham aí uma boa razão pra evocar os deuses, pois a profana realidade não nos dá o belo, ou o dá somente uma vez! Quero dizer que o mundo é pleno de coisas belas, e contudo pobre, muito pobre de belos instantes e revelações de tais coisas. Mas talvez esteja nisso o mais forte encanto da vida: há sobre ela, entretecido de ouro, um véu de belas possibilidades, cheio de promessa, resistência, pudor, desdém, compaixão, sedução. Sim, a vida é uma mulher!

 Friedrich Nietzsche, in A Gaia Ciência.

My Own Boy


A Lord Alfred

My Own Boy,
Your sonnet is quite lovely, and it is a marvel that those red-roseleaf lips of yours should be made no less for the madness of music and song than for the madness of kissing. Your slim gilt soul walks between passion and poetry. I know Hyacinthus, whom Apollo loved so madly, was you in greek days. Why are you alone in London, and when do you go to Salisbury? Do go there to cool your hands in the grey twilight of Gothic things, and come here whenever you like. It is a lovely place and lacks only you; but go to Salisbury first.
Always, with undying love,
Yours, Oscar

#

Seu soneto é adorável, e maravilha-me o fato de seus lábios, vermelhos como pétalas de rosa, serem feitos, não menos para a loucura da música e do canto que para a ebriez do beijo. Sua alma de ouro fino vagueia entre a paixão e a poesia. nenhum Jacintho no tempo dos gregos seguiu o amor tão doidamente como você. Por que está só em Londres? E quando vai a Salisbury? Vá até lá, refresca as mãos no crepúsculo cinza das coisas góticas. Venha aqui quando quiser. É um sítio aprazível onde só falta você.
Mas Vá a Salisbury primeiro.
Sempre com imperecível amor,
Seu Oscar



Oscar Wilde

Fecundação


Juliano Boscaini


Teus olhos me olham
longamente,
imperiosamente
de dentro deles teu amor me espia.

Teus olhos me olham numa tortura
de alma que quer ser corpo,
de criação que anseia ser criatura

Tua mão contém a minha
de momento a momento
é uma ave aflita
meu pensamento
na tua mão.

Nada me dizes,
porém entra-me a carne a persuasão
de que teus dedos criam raízes
na minha mão.

Teu olhar abre os braços,
de longe,
à forma inquieta de meu ser,
abre os braços e enlaça-me toda a alma.

Tem teu mórbido olhar
penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão
de que se vai abrir
todo meu corpo
em poemas.



Gilka Machado

Porto Alegre, 10 de agosto de 1985



"... isso que chamamos de amor, esse lugar confuso entre o sexo e a organização familiar..."

Sérgio, não sabia como começar - então comecei copiando essa frase aí de cima, é Caetano Veloso numa entrevista ao JB, vim lendo pelo caminho, não consegui me livrar dela.

Agora estou aqui, escrevendo para você no meu quarto antigo, que minha mãe conserva tal-e-qual, como se eu um dia fosse voltar para casa. E lá se vão - quantos mesmo? - sei lá, quinze vinte anos, qualquer coisa assim.

Chove. Faz frio. É bom estar aqui. Tão bom. Me sinto protegido. Ficamos vendo velhas fotografias, bebendo vinho e rindo muito. Meu irmão Felipe vestiu um modelinho de couro negro e saiu "para dar uma prensa numa caixa de supermercado". Márcia está tão bonita. E Rodrigo, meu sobrinho, que tem dois anos e não parece quase me desconhecer. Deixei-os vendo um filme antigo dos Beatles, Lennon repetindo "don´t let me down" - e agora percebo que meu inglês anda tão precário que não lembro se é d´ont ou don´t.

Cansado, cansado. Quase não dormi. E não consigo tirar você da cabeça. Estou te escrevendo porque não consigo tirar você da cabeça. Hesito em dizer qualquer coisa tipo me-perdoe ou qualquer coisa assim. Mas quero te contar umas coisas. Mesmo que a gente não se veja mais. Penso em você, penso em você com força e carinho. Axé.

Foi mau, ontem. Fui mau, também. Menos com você, mais comigo mesmo. Depois não consegui dormir. Me bati pela casa até quase oito da manhã. Teria telefonado para você, não fosse tão inconveniente. Acabei ligando para Grace, pedi paciência, chorei, contei, ouvi.

Não era nada com você. Ou quase nada. Estou tão desintegrado. Atravessei o resto da noite encarando minha desintegração. Joguei sobre você tantos medos, tanta coisa travada, tanto medo de rejeição, tanta dor. Difícil explicar. Muitas coisas duras por dentro. Farpas. Uma pressa, uma urgência. E uma compulsão horrível de quebrar imediatamente qualquer relação bonita que mal comece a acontecer. Destruir antes que cresça. Com requintes, com sofreguidão, com textos que me vêm prontos e faces que se sobrepõem às outras. Para que não me firam, minto. E tomo a providência cuidadosa de eu mesmo me ferir, sem prestar atenção se estou ferindo o outro também. Não queria fazer mal a você. Não queria que você chorasse. Não queria cobrar absolutamente nada. Por que o Zen de repente escapa e se transforma em Sem? Sem que se consiga controlar.

Te escrevo com um cigarro aceso e uma xícara de chá de boldo. A escrivaninha é muito antiga, daquelas que têm uma tampa, parece piano. Tem um poster com Garcia Lorca na minha frente. Um retrato enorme de Virginia Woolf. E posso ver na estante assim, de repente, todo o Proust, e muito Rimbaud, e Verlaine, Faulkner, Ítalo Svevo, William Blake. Umas reproduções de Picasso. Outras de Da Vinci. Um biscuit com um pierrô tão patético. Uma pedra esotérica ainda de Stonehenge, Inglaterra, uma caixinha indiana. Todos os meus pedaços aqui. E você não me conhece, eu não conheço você.

Te escrevo por absoluta necessidade. Não conseguiria dormir outra vez se não te escrevesse. Zelda, há também o único romance escrito por Zelda Fitzgerald, a mulher de Scott Fitzgerald, que morreu louca, um incêndio, um hospício. Chama-se "Save me the waltz". "Reserve-me a valsa", não é lindo? Lembra o Brahma, se se dançasse no Brahma.

Please, save me the waltz.

Fiz fantasias. No meu demente exercício para pisar no real, finjo que não fantasio. E fantasio, fantasio. Até o último momento esperei que você me chamasse pelo telefone. Que você fosse ao aeroporto. Casablanca, última cena. Todas as cartas de amor são ridículas. Esse lugar confuso de que fala Caetano. E eu estava só começando a entrar num estado de amor por você. Mas não me permiti, não te permiti, não nos permitimos. Pedro Paulo me dizendo no ouvido "nunca vi essas luz nos seus olhos".

Eu não queria saber. Tão artificial, tão estudado. Detesto ouvir minha voz no gravador ou ver minha imagem em vídeo. Sôo falso para mim mesmo. A calma, o equilíbrio, as palavras ditas lentamente, como se escolhesse. Raramente um gesto, um tom mais espontâneo. Tão bom ator que ninguém percebe minha péssima atuação.

Você compreende tudo isso?

Pausa. Campainha. O jornal de domingo. Desço, outro chá de boldo. Um comentário de Rubens Ewald sobre Aqueles dois, diz que é excelente, fala da "dignidade e tratamento delicado dado ao tema". Lembro da crítica de Sérgio Augusto, de como fez mal por dentro. Já passou.

Quando pergunto você-compreende-tudo-isso não estou subestimando você. Ah, deus, perdoe. Não sinto agressividade nenhuma em relação a você. E gosto das tuas histórias. E gosto da tua pessoa. Dá um certo trabalho decodificar todas as emoções contraditórias, confusas, somá-las, diminui-las e tirar essa síntese numa palavra só, esta: gosto.

Dormi umas três horas e acordei ouvindo Quereres, de Caetano. Repeti, várias vezes, cada vez mais alto. Ah, bruta flor do querer. Discutia tanto com Ana Cristina César, antes que ela acolhesse a morte (acertadamente? Me pergunto até hoje, nunca sei responder): nossa necessidade fresca e neurótica de elaborar sofrimentos e rejeições e amarguras e pequenos melodramas cotidianos para depois sentar Atormentado & Solitário para escrever Belos Textos Literários.

O escritor é uma das criaturas mais neuróticas que existem: ele não sabe viver ao vivo, ele vive através de reflexos, espelhos, imagens, palavras. O não-real, o não-palpável. Você me dizia "que diferença entre você e um livro seu". Eu não sou o que escrevo ou sim, mas de muitos jeitos. Alguns estranhos.

Não há nenhum subtexto nisto que te escrevo. Não acho bonito que a gente se disperse assim, só isso. Encontre, desencontre e nada mais, nunca mais, é urbano demais - e eu nasci praticamente no campo, até os 15 anos quase no campo, céu e campo. Não sei se a gente pode continuar amigo. Não sei se em algum momento cheguei a ver você completamente como outra pessoa, ou, o tempo todo, como Uma Possibilidade de Resolver Minha Carência. Estou tentando ser honesto e limpo. Uma possibilidade que eu precisava devorar ou destruir. Porque até hoje não consegui conquistar essa disciplina, essa macrobiótica dos sentimentos, essa frugalidade das emoções.

Fico tomado de paixão. Há tempos não ficava.

E toda essa peste, meu amigo. O que tem me mantido vivo hoje é a ilusão ou a esperança dessa coisa, "esse lugar confuso", o Amor um dia. E de repente te proíbem isso. Eu tenho me sentido muito mal vendo minha capacidade de amar sendo destroçada, proibida, impedida, aos 36 anos, tão pouco. Nem vivi nada ainda. E não sou sequer promíscuo. Dum romantismo não pós, mas pré todas as coisas - um romantismo que exige sexualidade e amor juntos. Nunca consegui. Uns vislumbres, visões do esplendor. Me pergunto se até a morte - será? Será amor essa carência e essa procura de amor, nunca encontrar a coisa?

Das minhas heterossexualidades, dois filhos mortos, não ficou nada. Das minhas homossexualidades, esse pânico lento e uma solidão medonha. A hora é tão grave.

Vim pegar energia. Sim. Preciso ver a terra, preciso do horizonte do pampa. Já começa a agir, meus ombros se soltaram. Olhei no espelho e aquela ruga entre as sombrancelhas se desfez.

Não quero me tornar uma pessoa pesada, frustrada, amarga. Não vou me tornar assim. Então vacilo, escorrego e a mania de perfeição virginiana e a estética libriana no dia seguinte me dizem "que vergonha, que vergonha, que vergonha".

Eu podia dizer que tinha/tínhamos bebido demais. Eu podia dizer que estava com tanto medo de vir para Porto Alegre. Eu podia contar a você dos meus últimos meses, oito, dez, doze horas por dia sobre a máquina de escrever, falando com quase ninguém. Sozinho, às vezes. Cantando também. Tudo isso, se eu te dissesse, talvez tivesse ajudado a doer menos em você.

De repente me passa pela cabeça que você pode estar detestando tudo isso e achando longo e choroso e confuso. Mas eu não quero ter vergonha de nada que eu seja capaz de sentir. Tento não ficar assustado com a idéia que este tempo aqui é curto, que eu vou voltar a São Paulo e que talvez não veja mais você. Sei que não fico assustado demais, e enfrento, e reconstituo os pedaços, a gente enfeita o cotidiano - tudo se ajeita. Menos a morte.

Mas de tudo isso, me ficaram coisas tão boas... Uma lembrança boa de você, uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser melhor para mim e para os outros. De não morrer, de não sufocar, de continuar sentindo encantamento por alguma outra pessoa que o futuro trará, porque sempre traz, e então não repetir nenhum comportamento. Ser novo.

Quando te falo da idade, quando te falo do tempo, e não tivemos tempo - queria te falar de Cronos, Saturno, da volta pelo Zodíaco quando se completa 30 anos. A tua estrela é muito clara, tem sinais bons na tua testa. Compreendo teu Plutão e a Lua encarcerados na casa XII - as emoções e paixões aprisionadas -, e também Urano, todo o impulso bloqueado. Na mesma casa, a do Karma, a dos espíritos que mais sofrem, tenho também o Sol, Mercúrio e Netuno. Somos muito parecidos, de jeitos inteiramente diferentes: somos espantosamente parecidos. E eu acho que é por isso que te escrevo, para cuidar de ti, para cuidar de mim - para não querer, violentamente não querer de maneira alguma ficar na sua memória, seu coração, sua cabeça, como uma sombra escura. Perdoe a minha precariedade e as minhas tentativas inábeis, desajeitadas, de segurar a maçã no escuro. Me queira bem.

Estou te querendo muito bem neste minuto. Tinha vontade que você estivesse aqui e eu pudesse te mostrar muitas coisas, grandes, pequenas, e sem nenhuma importância, algumas. Fique feliz, fique bem feliz, fique bem claro, queira ser feliz. Você é muito lindo e eu tento te enviar a minha melhor vibração de axé. Mesmo que a gente se perca, não importa. Que tenha se transformado em passado antes de virar futuro. Mas que seja bom o que vier, para você, para mim.

Com cuidado, com carinho grande, te abraço forte e te beijo,

Caio F.

p.s.: Te escrevo, enfim, me ocorre agora, porque nem você nem eu somos descartáveis. E amanhã tem sol

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Processo



Acho que a vida é um processo...
É como subir uma montanha.
Mesmo que no fim não se esteja tão forte fisicamente,
a paisagem visualizada é melhor.


(Lya Luft)

Carpe Diem


Kari-Lise Alexander 

?Confías en el incierto mañana? ¿Entregas
a las sombras del azar la respuesta inaplazable?
¿Aceptas que la diurna inquietud del alma
substituya la risa clara de un cuerpo
que te exige el placer? Te huyen, por entre las dedos,
los instantes; y en los labios de esa que amaste
muere un final de frase, dejando la duda
definitiva. Un nombre inútil persigue tu memoria,
para que lo robes al sueño de los sentidos. Sin embargo,
ningún rostro le da la forma que desearías;
y abrazas la propia figura del vacío. ¿Entonces,
por qué esperas para salir al encuentro de la vida,
del aliento caliente de la primavera, de las orillas
visibles de lo humano? «No», dices, «nada me obligará
a la renuncia de mí mismo - ¡ni ese mirar
que me ofrece el lecho profundo de su imagen!»
loco, ignora que el destino, por momentos,
se confunde con la brevedad del verso.

*

Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? "Não", dizes, "nada me obrigará
à renúncia de mim próprio --- nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!"
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.



Nuno Júdice

Paulo Coelho pra quem não quer ler Paulo Coelho


Por Juliana Dacoregio

Você é daqueles que não gosta de Paulo Coelho, mesmo sem nunca ter lido nenhum livro dele? E sempre encontra algum amigo muito ponderado que lhe diz para não julgar sem antes conhecer? Você até concorda, mas sempre que tenta iniciar a leitura de um O alquimista da vida, não tem paciência para seguir em frente?

Pois bem, seus problemas acabaram: você pode continuar não gostando de Paulo Coelho, sem nunca tê-lo lido, e ainda desfiar argumentos que farão com que os fãs do mago-escritor acreditem que você leu a obra completa. Basta, para isso, ler Os 10 pecados de Paulo Coelho, de Eloésio Paulo, doutor em letras pela Unicamp e autor de Cogumelos do mais ou menos e Inferno de bolso.

Os 10 pecados é uma crítica irônica à obra de Paulo Coelho, dividindo as falhas do autor em dez capítulos. Os (até então) onze romances de Coelho são analisados por Eloésio, que não hesita em deixar claro que basta ler seu livro para ter certeza de que o místico não merece ser lido.

As falhas do imortal (Coelho é membro da ABL) são destrinchadas por Eloésio, mas em alguns aspectos há certo exagero, como quando ele fala da falta de sentido em algumas das histórias criadas por Coelho. Eloésio reclama do fato do escritor usar elementos religiosos mesclados a sexualidade e paganismo sem respeitar os verdadeiros aspectos da religião. Porém, Paulo Coelho escreve romances, que não tem obrigação alguma de seguir a realidade.

Discordei de Eloésio apenas nesse ponto. Creio que Paulo Coelho (ou qualquer outro autor) pode distorcer fundamentos religiosos e misturá-los à sexualidade ou a qualquer outro elemento. Porém, uma acusação da qual não discordo, que é a encheção de lingüiça de Paulo Coelho, parece ter acometido também o autor destes 10 pecados. A obra é um pouco repetitiva. Tanto que as dez falhas listadas poderiam ser resumidas em 4 ou 5, já que uma está contida dentro da outra. Além da gratuidade (a tal da encheção de lingüiça), os pecados que valem a pena serem listados são a ignorância, o desleixo, a superficialidade e a inconsistência.

*

Ignorância: Os erros gramaticais cometidos por Paulo Coelho não são a prova maior da ignorância do autor, embora a abundância deles indique a falta de uma formação cultural mais sólida. Seu primeiro pecado é fazer apologia da ignorância, sempre reforçando que instrução intelectual não é algo tão necessário. Eloésio cita as várias expressões de desapreço à cultura contidas em O alquimista, como quando o narrador se desfaz de um livro por considerá-lo “um peso inútil”. A ignorância de Paulo Coelho manifesta-se também no descaso com as informações factuais, cometendo erros prosaicos, como em Veronika decide morrer, quando um médico afirma que a personagem tem uma “necrose no ventríloquo” e não no ventrículo.


Desleixo: Mesmo quando saem das mãos de revisores, as obras de Paulo Coelho apresentam mais erros do que seria aceitável, tamanha a quantidade de erros com que saem das mãos do autor. Pior do que deixar passar os erros é a justificativa tosca de que não os corrige porque “Deus pode estar escondido naquele cê-cedilha mal colocado”, como disse em entrevista à revista Veja. O desleixo apontado por Eloésio reside sobretudo no fato das obras “Paulo-coelhanas” serem mal acabadas: descuido com a linguagem, tropeços lógicos, imperícias narrativas. Enfim, uma escrita apressada, em que travessões são esquecidos e erros de grafia permanecem após sucessivas edições.


Superficialidade: A “religiosidade de almanaque” de Paulo Coelho é desmascarada. O mago-autor passeia sempre pelas mesmas idéias, apenas requentando pensamentos e filosofias de botequim. Tudo é generalizado e ele usa palavras e expressões que explicam pouca coisa, mas que dão ao leitor médio a impressão de estar aprendendo verdades profundas. Paulo Coelho faz questão de passar uma visão otimista e ingênua do mundo, o que explica, em parte, seu sucesso, de acordo com Eloésio.


Inconsistência: Aqui, novamente, o alvo é a salada mística de Coelho. Para exemplificar, Eloésio fala da constituição de uma personagem de O alquimista que é claramente inspirada na Bíblia, porém misturando elementos de Gênesis e Levítico que, segundo a narrativa bíblica, nada têm em comum. O autor de Os 10 pecados também cita que Paulo Coelho, em O diário de um mago faz uma interpretação equivocada das causas da paixão de Cristo. Como eu já afirmei, não vejo problema algum nisso, já que Paulo Coelho não é um divulgador de qualquer religião. Não advogo aqui a qualidade da obra de Paulo Coelho, mas seu direito de misturar paganismo com cristianismo ou misticismo com sexualidade.

O fato de Paulo Coelho misturar elementos pagãos com cristianismo não é o que empobrece suas obras. Afinal, ele está escrevendo ficção. Se propôs a misturar bruxos e santos e atribuir poderes curativos ao sexo: isso é um direito de qualquer escritor (seja ele bom ou ruim). Não é o fato de se afirmar católico que o obrigaria a apenas escrever observações corretas do ponto de vista do catolicismo. Nesse ponto, Eloésio exagera na crítica. Paulo Coelho faz uma salada sim, mas não é a mistura de elementos que faz a salada ruim e sim a qualidade dos elementos, dos temperos e da apresentação.

terça-feira, 9 de junho de 2009

A Sensualidade na Arte Contemporânea


Hoje em dia os artistas freqüentemente se enganam, quando se esforçam por obter um efeito sensual com suas obras; porque seus espectadores ou ouvintes já não têm os sentidos plenos, e a obra, totalmente contra a intenção do artista, leva-os a uma “santidade” da percepção que é parenta próxima do tédio. — Sua sensualidade talvez comece onde a do artista acaba; elas se encontrariam num ponto, quando muito.

Friedrich  Nietzsche, in Humano demasiado humano

[26] Dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma.

josé royo

Dobraram a curva do caminho e eram muitas raparigas. Vinham cantando pela estrada, e o som das suas vozes era felizes [sic]. Elas não sei o que seriam. Escutei-as um tempo de longe, sem sentimento próprio. Uma amargura por elas sentiu-me no coração.
Pelo futuro delas? Pela inconsciência delas? Não diretamente por elas — ou, quem sabe? talvez apenas por mim.


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Livro do desassossego

O Nascimento do Prazer


Kari-Lise Alexander

Prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer.
A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida - e se parece com o início de uma perdição irrecuperável.
Esse fundir-se total é insuportavelmente bom - como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte.
Deve-se deixar inundar pela alegria aos poucos - pois é a vida nascendo.
E quem não tiver força, que antes cubra cada nervo com uma película protetora, com uma película de morte para poder tolerar a vida.
Essa película pode consistir em qualquer ato formal protetor, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem sentido.
Pois o prazer não é de se brincar com ele. Ele é nós.


Clarice Lispector

Petição / Petición


Michael Van Zeyl 


Dê-me a humildade da asa e da leveza,
do que passa suave
e solta a âncora,
a despedida ingrávida,
e o abandono do voo,
a cicatriz que avança
como asa em seu deserto

Dê-me a humildade da alma
sem corpo e já sem coisas.
Ser a poesia e sua luz,

apenas a poesia
e a região mais do ar,
inacessível ao desastre.

Dê-me a luz sem limites
espiando lá dentro
e a noite que sou também e o barro,
com a estrela distante
que a sede não sacia.

Dê-me a humildade que solte as correntes,
a verdade que desnuda
o pó, e o osso que me forjam.

Apenas no que sou caio,
me derrubo.

Deixe-me andar sem equipagem,
leve,
aberta ao horizonte.


*****



Dame la humildad del ala y de lo leve,
de lo que pasa suave
y suelta el ancla,
la despedida ingrávida,
y el abandono al vuelo,
la cicatriz que avanza
como ala en su desierto

Dame la humildad del alma
sin cuerpo y ya sin cosas.
Ser la poesía y su luz,
tan sólo la poesía
y la región más de aire,
inaccesible al desastre.

Dame la luz sin límites
acechando adentro
y la noche que soy también y el barro,
con la estrella distante
que la sed no sacia.

Dame la humildad que suelte las cadenas,
la verdad que desnuda
el polvo, el hueso que me fraguan.
Sólo en lo que soy caigo,
me derrumbo.

Déjame andar sin equipaje,
leve,
abierta al horizonte.


Verônica Volkov

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Ouve...

Neil Rodger 


Ouve:
Como tudo é tranquilo e dorme liso;
Claras as paredes, o chão brilha,
E pintados no vidro da janela
O céu, um campo verde, duas árvores.
Fecha os olhos e dorme no mais fundo
De tudo quanto nunca floresceu.

Não toques nada, não olhes, não te lembres.
Qualquer passo
Faz estalar as mobílias aquecidas
Por tantos dias de sol inúteis e compridos.

Não te lembres, nem esperes.
Não estás no interior de um fruto:
Aqui o tempo e o sol nada amadurecem.


Sophia de Mello B.Andresen

O Navio Negreiro (Tragédia no Mar)





I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

II

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...

V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...

VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!


De Castro Alves, Poema do livro "Os Escravos"