terça-feira, 26 de março de 2024

 


"Cada dia é uma pequena vida: cada acordar e levantar um pequeno nascimento, cada manhã fresca uma pequena juventude, cada descanso e sonho uma pequena morte. "

Arthur Shopenhauer


 Quero morar numa cidade onde se sonha com chuva. Num mundo onde chover é a maior felicidade. E onde todos chovemos.


Mia Couto, in "Antes de nascer o mundo"


 Abre-te, Primavera!

Tenho um poema à espera

Do teu sorriso.

Um poema indeciso

Entre a coragem e a covardia.

Um poema de lírica alegria

Refreada,

A temer ser tardia

E ser antecipada.

Dantes, nascias

Quando eu te anunciava.

Cantava,

E no meu canto acontecias

Como o tempo depois te confirmava.

Cada verso era a flor que prometias

No futuro sonhado…

Agora, a lei é outra: principias,

E só então eu canto confiado


Miguel Torga

 


"Deixem-nos sós, sem livros, e imediatamente ficaremos confusos, perdidos — não saberemos a quem nos unir, o que devemos apoiar; o que amar e o que odiar; o que respeitar e o que desprezar. Até mesmo nos é difícil ser gente — gente com seu próprio e verdadeiro corpo e sangue; sentimos vergonha disso, achamos que é um demérito e nos esforçamos para ser uma espécie inexistente de homens em geral. Somos natimortos, e há muito tempo nascemos não de pais vivos, e isso nos agrada cada vez mais. Estamos tomando gosto. Em breve vamos querer nascer da ideia, de algum modo. Mas basta, não quero mais escrever “do subsolo”… Entretanto, aqui não terminam as “notas” desse paradoxista. O autor não resistiu e prosseguiu com elas. Mas nós também pensamos que é possível terminar por aqui"

Notas do Subsolo - Fiódor Dostoiévski 

 


[78]

Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar, que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se não tivéssemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem.

Olha-se, mas não se vê. A longa rua movimentada de bichos humanos é uma espécie de tabuleta deitada onde as letras fossem móveis e não formassem sentidos. As casas são somente casas. Perde-se a possibilidade de dar um sentido ao que se vê, mas vê-se bem o que é, sim.

As pancadas de martelo à porta do caixoteiro soam com uma estranheza próxima. Soam grandemente separadas, cada uma com eco e sem proveito. Os ruídos das carroças parecem de dia em que vem trovoada. As vozes saem do ar, e não de gargantas. Ao fundo, o rio está cansado.

Não é tédio o que se sente. Não é mágoa o que se sente. É uma vontade de dormir com outra personalidade, de esquecer com melhoria de vencimento. Não se sente nada, a não ser um automatismo cá em baixo, a fazer umas pernas que nos pertencem levar a bater no chão, na marcha involuntária, uns pés que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto se sente talvez. À roda dos olhos e como dedos nos ouvidos há um aperto de dentro da cabeça.

Parece uma constipação na alma. E com a imagem literária de se estar doente nasce um desejo de que a vida fosse uma convalescença, sem andar; e a ideia de convalescença evoca as quintas dos arredores, mas lá para dentro, onde são lares, longe da rua e das rodas. Sim, não se sente nada. Passa-se conscientemente, a dormir só com a impossibilidade de dar ao corpo outra direção, a porta onde se deve entrar. Passa-se tudo.

Que é do pandeiro, ó urso parado?


Bernardo Soares. Fernando Pessoa

Livro do Desassossego

sábado, 23 de março de 2024

 


"Tão estranho que depois de tanto tempo e tanta mágoa pudesse pensar no amor. Amanhecera vazia, sem ninguém dentro de si mesma, e foi como se encheu com a ideia de afinal ser impossível esquecer o amor. Porque o amor era espera e ela, sem mais nada, apenas esperava. A Isaura sabia que amava alguém por vir, amava uma abstração de alguém no futuro. Ela esperava o futuro, e esperar já era um modo de amar. Esperar era amar. Certamente, amava de um modo impossível o futuro. Disse: eu pensava que o amor era bom. E chorou sem qualquer convulsão porque aceitou chorar. Aceitou chorar."

Valter Hugo Mãe

diálogos sinceros sobre o amor



- nós vamos estragar tudo

- si, mas antes faremos momentos eternos


zack magezi


 [79]

Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou de sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morno. Senti a vida no estômago, e o olfato tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, pousavam em nada nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A atmosfera era de uma ameaça de céu covarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar somente.

Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava intermitentemente.

Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro.

Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para dizer que me dói a vida no olfato e na consciência, para não saber dizer, como na frase simples e ampla do Livro de Job, “Minha alma está cansada de minha vida!”


Bernardo Soares, (Fernando Pessoa)

O Livro do Desassossego


 Quando partires 

se partires

terei saudades

e quando ficares 

se ficares

terei saudades

Terei 

sempre saudades

e gosto assim.


Adília Lopes

domingo, 10 de março de 2024

Triste passeio


Vou pela estrada, sozinha.

Não me acompanha ninguém.

Num atalho, em voz mansinha:

"Como está ele? Está bem?"


É a toutinegra curiosa;

Há em mim um doce enleio...

Nisto pergunta uma rosa:

"Então ele? Inda não veio?"


Sinto-me triste, doente...

E nem me deixam esquecê-lo!...

Nisto o sol impertinente:

"Sou um fio do seu cabelo..."


Ainda bem. É noitinha.

Enfim já posso pensar!

Ai, já me deixam sozinha!

De repente, oiço o luar:


"Que imensa mágoa me invade,

Que dor o meu peito sente!

Tenho uma enorme saudade

De ver o teu doce ausente!"


Volto a casa. Que tristeza!

Inda é maior minha dor...

Vem depresa. A natureza

Só fala de ti, amor! 


Florbela Espanca


 Talvez a minha solidão seja excessiva, mas eu detestei sempre as coisas mundanas.

Estar com as pessoas apenas para gastar as horas é-me insuportável.


Eugénio de Andrade


É apenas o começo. Só depois dói,

e se lhe dá nome.

Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode

acontecer da maneira mais simples:

umas gotas de chuva no cabelo.

Aproximas a mão, os dedos

desatam a arder inesperadamente,

recuas de medo. Aqueles cabelos,

as suas gotas de água são o começo,

apenas o começo.

Antes do fim terás de pegar no fogo

e fazeres do inverno

a mais ardente das estações.


Eugénio de Andrade



 "...estou tonta e um bocadinho triste. As coisas da terra são esquisitas. São diferentes das coisas do mar. No mar há monstros e perigos, mas as coisas bonitas são alegres. Na terra há tristeza dentro das coisas bonitas."

Sophia de Mello Breyner Andresen 


Amor desta tarde que arrefeceu

as mãos e os olhos que te dei;

amor exato, vivo, desenhado

a fogo, onde eu próprio me queimei;


amor que me destrói e destruiu

a fria arquitetura desta tarde

- só a ti canto, que nem eu já sei

outra forma de ser e de encontrar-me.


Só a ti canto que não há razão

para que o frio que me queima os olhos

me trespasse e me suba ao coração;


só a ti canto, que não há desastre

donde não possa ainda erguer-me

para encontrar de novo a tua face.


Eugénio de Andrade




 Amei-te com as palavras

com o verde ramo das palavras

e a pomba assustada do coração.


Amei-te com os olhos

o espelho doido dos olhos

e a sede inextinguível da boca.


Amei-te com a pele

as pernas e os pés

e todos os gritos que trago

por debaixo da roupa.


Amei-te com as mãos

As mesmas com que te digo adeus.


Rosa Lobato de Faria


 'I do not wish women to have power over men; but over themselves.' 

― Mary Wollstonecraft, A Vindication of the Rights of Woman

sábado, 9 de março de 2024

 


“I want to write a novel about Silence," he said; “the things people don’t say.”

― Virginia Woolf

 


«E aqueles que foram vistos dançando foram considerados loucos por aqueles que não podiam ouvir a música».

Friedrich Nietzsche

 


“Please don’t expect me to always be good and kind and loving. There are times when I will be cold and thoughtless and hard to understand.”

—  Sylvia Plath

 


“Reading is the sole means by which we slip, involuntarily, often helplessly, into another skin, another voice, another soul”

Joyce Carol Oates


 I know some people just won't understand, but some days, I prefer the silence. The lack of conversations. Moments where I can allow the thoughts drown me so I can sleep at 2 AMs. The sound of the rain.

Sometimes, I wonder how the world could be so busy yet quiet at the same time. I sit somewhere random and just let the world spin without me moving, not an inch, as if I'm stuck like it always seems.

You see, some days I just want to stay still. To feel. To assure myself that everything falling apart hasn't numbed me down yet.

— Jun Mark Patilan 

 



Quando te lembras de mim, significa que carregaste contigo algo de quem sou, que deixei alguma marca de quem sou em quem és. Significa que podes convocar-me de volta à tua mente mesmo que inúmeros anos e milhas possam ficar entre nós. Significa que se nos encontrarmos novamente, você vai me conhecer. Significa que mesmo depois de eu morrer, ainda podes ver o meu rosto e ouvir a minha voz e falar comigo no teu coração.

Desde que te lembres de mim, nunca estou completamente perdido. Quando me sinto mais como fantasmas, é o facto de te lembrares de mim que me ajuda a lembrar que eu realmente existo. Quando estou me sentindo triste é meu consolo Quando estou me sentindo feliz, faz parte do porquê de me sentir assim.

Se me esqueceres, uma das maneiras de me lembrar de quem sou vai embora. Se você esquecer, parte de quem eu sou terá desaparecido.


Frederick Buechner, Assobiando no Escuro

 


Tenha paciência com tudo aquilo que permanece por resolver no seu coração. Tente amar as próprias perguntas, como quartos trancados e livros escritos numa língua estrangeira. Não procure agora as respostas. Eles não podem agora ser dados a você porque você não poderia vivê-los. É uma questão de viver tudo. No momento você precisa viver a questão. Talvez, gradualmente, sem sequer reparar, se encontre experimentando a resposta, num dia distante. 

Rainer Maria Rilke, Cartas para um Jovem Poeta 

Aforismos para a sabedoria de vida

Afeição por alguém. 

Assim, devemos escolher entre conquistar o afeto ou o respeito das pessoas. Sua afeição é sempre egoísta, ainda que por motivos diversos; ademais, as condições em que se adquire essa afeição nem sempre são motivo para nos orgulharmos. Antes de tudo, um homem será estimado na medida em que limite suas pretensões à boa vontade e à inteligência dos demais, e isso sinceramente, sem dissimulação — não apenas em virtude de uma indulgência que, no fundo, é uma espécie de desprezo. (...) Por outro lado, sucede o contrário quando se trata da estima dos indivíduos; não os fazemos confessá-la senão contra sua vontade, e por esse motivo é frequentemente ocultada. Por isso, comparada com a afeição, a estima nos proporciona uma satisfação interior muito maior; está em relação com nosso valor pessoal, e o mesmo não vale diretamente para a afeição, que é subjetiva em sua natureza, enquanto que a estima é objetiva. Porém, naturalmente, a afeição nos é mais útil. A maioria dos homens é tão pessoal que, no fundo, nada tem interesse aos seus olhos senão eles próprios exclusivamente. Daí resulta que, de qualquer coisa que se fale, pensam imediatamente em si mesmos, e que tudo aquilo que, ainda que seja por acaso e remotamente, se refira a algo que lhes afeta, atrai e cativa toda a sua atenção. Por tal motivo, não têm liberdade para penetrar na parte objetiva da conversa e, igualmente, não há razões válidas para eles desde o momento em que contrariem seu interesse ou sua vaidade. Assim, pois, se distraem com tanta facilidade, se ofendem ou se afligem tão prontamente que, ainda quando se fala com eles de um ponto de vista objetivo sobre qualquer matéria, não devemos poupar precauções em evitar no discurso tudo que possa ter uma relação possível, talvez incômoda, com o precioso e delicado eu que temos diante de nós. Nada lhes interessa mais que esse eu; e ainda que não possam sentir ou compreender o que há de verdadeiro e de notável ou de belo, de delicado e de genial nas palavras do outro, possuem a mais melindrosa sensibilidade para tudo aquilo que possa, mesmo remota e indiretamente, afetar sua mesquinha vaidade ou referir-se desvantajosamente, de qualquer maneira que seja, ao seu amável eu. Por sua suscetibilidade, se parecem a esses cachorrinhos em cuja pata é tão fácil pisar por descuido e cujos grunhidos temos de suportar depois; ou bem a um enfermo coberto de chagas e de bolhas que devemos evitar tocar com todo o cuidado. Há os que levam isso tão longe que quando se lhes revela inteligência ou entendimento, ou quando esses não são suficientemente ocultados durante uma conversa, os sentem como um verdadeiro insulto; ainda que o dissimulem num primeiro momento. Porém, depois, aquele que carece de experiência de vida reflete e rumina em vão sobre a questão, perguntando-se como pôde ter atraído seu rancor e seu ódio. Porém, em virtude da mesma subjetividade, é também muito fácil adulá-los e conquistá-los. Por conseguinte, seu julgamento é quase sempre corrompido, e não passa de um decreto a favor de seu partido ou de sua classe, e não de algo objetivo e imparcial. Isso provém de que neles a vontade excede em muito a inteligência e de que seu débil entendimento está completamente sujeito ao serviço da vontade, da qual não pode libertar-se por um momento sequer.

Arthur Schopenhauer


Como são bonitas as mulheres que foram bonitas e nas quais a beleza reaparece, de súbito, num gesto, num olhar, num movimento da boca, em qualquer coisa difícil de definir que me atrai e enternece e onde a morte, de tão presente, dá ideia de se tornar a combustão de vida de um foguete de lágrimas. Mora a dois prédios, sobe a rua com dificuldade conquistando cada metro, de pernas difíceis, de vez em quando encosta-se à parede, recupera os pulmões, continua. O baton sobeja-lhe da boca, a pintura dos olhos desmorona-se mas mantém o orgulho de navio à vela e o perfume permanece a flutuar tempos depois da sua partida.

Perguntei:

— Dá-me licença que lhe diga que é bonita?

e respondeu com um sorriso de lamparina de azeite a tremer no baton, esses sorrisos dos pavios dos santos que ameaçam extinguir-se quando o guarda-vento da igreja se abre e ficam a tremer, coitados, antes de se desfazerem num fuminho.

Antonio Lobo Antunes

sexta-feira, 8 de março de 2024



 Sou talvez a visão que alguém sonhou

Alguém que veio ao mundo para me ver
E que nunca na vida me encontrou

Florbela Espanca


 Sê quem és, 

sabendo


Píndaro

 

Me deram um nome e me alienaram de mim

[desistência]

“E é inútil procurar encurtar caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência o nosso prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto do poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha condição.

A desistência é uma revelação.

Desisto, e terei sido a pessoa humana – é só no pior da minha condição que esta é assumida como o meu destino. Existir exige de mim o grande sacrifício de não ter força, desisto, e eis que na mão fraca o mundo cabe. Desisto, e para a minha pobreza humana abre-se a única alegria que me é dado ter, a alegria humana. Sei disso, e estremeço – viver me deixa tão impressionada, viver me tira o sono.

[estado de graça]

Chego à altura de poder cair, escolho, estremeço e desisto, e, finalmente me votando à minha queda, despessoal , sem voz própria, finalmente em mim – eis que tudo o que não tenho é que é meu. Desisto e quanto menos sou mais vivo, quanto mais perco o meu nome mais me chamam, minha única missão secreta é a minha condição, desisto e quanto mais ignoro a senha mais cumpro o segredo, quanto menos sei mais a doçura do abismo é o meu destino. E então eu adoro.

Clarice Lispector


 ..não ser outra pessoa a não ser você mesmo, num mundo em que, dia e noite, faz todo o possível para que você seja outro,  significa travar ininterruptamente a mais árdua batalha que um ser humano pode travar. 

e.e. cummings.


 o amor não é uma saída

o amor é um mergulho


Francisco Carvalho


Deixe que tudo aconteça: beleza e  assombro

Apenas siga. Nenhum sentimento é  mais longínquo.

Rainer Maria Rilke

 


"Admirava a liberdade que tinham para a expressão da sensibilidade, achava que era como uma permissão para ter a alma à solta, autorizada a manifestar-se pela beleza ou pelo espanto de cada coisa. Estava autorizada à sensibilidade que fazia da vida uma travessia mais intensa. As mulheres, pensava ele, eram mais intensas”

– Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens


 Os homens eram todos iguais. Só as mulheres podiam aceder à diferença”

– Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens

sexta-feira, 1 de março de 2024

 


"Ninguém, salvo o sábio perfeito ou o homem aviltado ao rol dos animais, pode ficar indiferente ao apelo do reconhecimento público.

O fundamento de qualquer julgamento reside na referência ao outro - os valores, e, consequentemente, a ética bem como a estética, podem nascer apenas na sociedade. Não podemos emitir um julgamento sobre nós mesmos sem sairmos de nós e sem nos olharmos através dos olhos dos outros. Se pudéssemos educar um ser humano no isolamento, este seria incapaz de julgar até a si mesmo - faltar-lhe-ia um espelho para se ver."

​​​​​​​Tzvetan Todorov

 

A respeito de muitos indivíduos, o mais prudente é dizer: empregarei em meu favor aquilo que não posso mudar. 

É surpreendente ver até que ponto se manifesta na conversa a homogeneidade ou a heterogeneidade de espírito e de caráter entre os homens; se faz perceptível na ocasião mais corriqueira. Mesmo se a conversa for sobre as coisas mais insignificantes, uma das duas naturezas essencialmente diferentes será mais ou menos incomodada por quase todas as frases proferidas pela outra; em certos casos, uma palavra chega a fazê-la encolerizar-se. 

Indivíduos de temperamentos similares, pelo contrário, sentem prontamente uma certa conformidade em tudo; e, no caso de uma grande semelhança, tal conformidade torna-se uma perfeita harmonia ou mesmo um uníssono. Assim se explica primeiramente por que os indivíduos muito vulgares são tão sociáveis e encontram tão facilmente excelente sociedade — o que denomina “pessoas boas e amáveis”.

 O contrário ocorre com os homens que não são vulgares; e serão tanto menos sociáveis quanto mais distintos forem; de tal modo que, às vezes, em seu isolamento, podem sentir uma verdadeira alegria em haver descoberto em outro indivíduo uma fibra qualquer, por insignificante que seja, da mesma natureza que a sua. Porque cada qual não pode ser para outro senão o que este outro é para ele. Como as águias, os espíritos realmente superiores fazem seus ninhos nas alturas, solitários. Isso explica, em segundo lugar, como os homens de disposição similar se reúnem tão prontamente como fossem atraídos magneticamente; as almas irmãs se saúdam desde longe. Isso pode ser observado com mais frequência entre as pessoas de sentimentos baixos ou de inteligência débil, porém apenas porque esses se chamam legião; enquanto que os bons e os nobres são e se chamam as naturezas raras. 

Assim, por exemplo, em alguma vasta associação, fundada com finalidades práticas, dois caras-de-pau se reconhecem mutuamente tão prontamente como se usassem um crachá, e se unem de imediato para tramar algum abuso ou alguma traição. Igualmente, suponhamos, per impossibile, uma sociedade numerosa, composta apenas de homens inteligentes e geniais, exceto por dois imbecis que também façam parte dela; esses dois se sentirão simpaticamente atraídos um pelo outro, e cada um deles se alegrará por ter encontrado ao menos um homem sensível e racional. É realmente notável testemunhar como dois homens, especialmente se foram moralmente e intelectualmente inferiores, se reconhecem à primeira vista, como anseiam profundamente unirem-se, com que amor e alegria se apressam em saudar um ao outro, como se fossem velhos amigos. Isso é tão surpreendente que nos sentimos tentados a admitir, segundo a doutrina budista da metempsicose, que já haviam sido amigos em uma vida anterior.

Não obstante, ainda no caso de grande concordância e harmonia, aquilo que mantém os homens separados e produz entre eles um desacordo temporário é a diversidade de sua disposição no momento. Em todos isso é quase invariavelmente distinto, segundo sua circunstância presente, ocupação, ambiente, estado físico, corrente atual de suas ideias etc. Isso é o que produz dissonâncias entre as personalidades mais harmoniosas. Trabalhar constantemente na correção necessária para a remoção dessa moléstia e estabelecer uma temperatura ambiente uniforme seria a conquista da cultura mais elevada. Aquilo que a uniformidade de disposição pode realizar pela comunhão social pode ser visto no fato de que os membros de uma reunião, ainda que numerosa, são levados a uma viva comunicação e a um sincero interesse com um sentimento geral de prazer assim que algo objetivo os influencia todos simultaneamente e da mesma forma, seja isso um perigo, uma esperança, uma notícia, um raro espetáculo, uma peça, uma música ou outra coisa qualquer. Porque, ao  sobrepujar todos os interesses particulares, isso faz nascer a uniformidade geral de disposição. Na falta de tal influência objetiva, em regra recorre-se a qualquer meio subjetivo; desse modo, garrafas de vinhos normalmente são o meio de introduzir numa reunião uma disposição comum. Até o chá e o café sevem ao mesmo propósito.

Porém, esse mesmo desacordo, introduzido tão facilmente em qualquer reunião pela diversidade de humor momentânea, também explica parcialmente por que todos aparecem idealizados e às vezes até transfigurados na memória quando não se está sob o domínio dessa influência perturbadora temporária. A memória age como a lente convexa de uma câmera obscura; reduz todas as dimensões e, assim, produz uma imagem muito mais bela que a original. Cada ausência nos proporciona, em certo grau, a vantagem de sermos vistos sob esse aspecto. Pois, ainda que a idealização da memória exija um tempo considerável para realizar seu trabalho, sua ação começa imediatamente. Por isso, é até prudente nos apresentarmos aos nossos amigos e conhecidos apenas após um longo intervalo de tempo; pois então, ao vê-los novamente, notaremos que a memória já fez seu trabalho. Ninguém pode ver acima de si mesmo; quero dizer com isso que todos veem nos demais apenas aquilo se é em si mesmo; porque cada qual não pode apreender e compreender o outro senão na medida de sua própria inteligência. Se essa é da espécie mais ínfima, nenhum dote intelectual, nem mesmo o mais elevado, lhe impressionará de modo algum; e não observará naquele que o possui nada além dos elementos mais vis em sua natureza individual, isto é, apenas suas fraquezas e todos os seus defeitos de temperamento e de caráter. 

E disso estará composto o grande homem aos olhos do homem vulgar; suas faculdades intelectuais mais eminentes não existem para o outro, como não existem as cores para o cego. Isso porque o maior talento é invisível para aquele que não possui nenhum; e qualquer valor concedido a uma obra é o produto do valor da obra em si e do alcance do conhecimento daquele que profere sua opinião. Daí resulta que somos reduzidos ao nível de todos aqueles com quem falamos, visto que todas as vantagens que possuímos desaparecem, e mesmo a abnegação de si mesmo necessária para tal permanece completamente ignorada. Se refletirmos sobre quão profundamente vulgares e inferiores, sobre quão completamente medíocres são as pessoas em sua maioria, veremos que é impossível falar com elas sem nos tornamos igualmente medíocres durante esse intervalo (por analogia com a transmissão da eletricidade). Se compreenderá então o significado próprio e a verdade desta expressão alemã: sich gemein machen [parear-se com o companheiro]; e de bom grado evitaremos a companhia daqueles com os quais não podemos nos comunicar senão mediante a partie honteuse [a parte vergonhosa] de nossa natureza. Se compreenderá igualmente que, na presença de tolos e de insensatos, não há mais que uma maneira de demonstrar inteligência: não lhes dirigir a palavra. Porém, é verdade que muitos na sociedade poderão se sentir como um dançarino que foi a um baile onde não há senão aleijados; com quem dançará? Concedo toda a minha consideração — como a um eleito entre cem — àquele que, estando desocupado, porque espera algo, não se põe imediatamente a golpear ou a batucar com a primeira coisa que lhe vem às mãos, seja com sua bengala, com seu garfo e faca ou com qualquer outro objeto. É provável que esse homem esteja pensando em algo. Por outro lado, é evidente que em muitas pessoas o observar substitui completamente o pensar. Tratam de assegurar sua existência fazendo barulho, a não ser que tenham um cigarro em mãos, que lhes serve ao mesmo propósito. Pela mesma razão, são todos olhos, todos ouvidos para tudo o que passa ao seu redor. 


Arthur Schopenhauer, Aforismos para a sabedoria de vida 

[77]


 Muitas vezes para me entreter — porque nada entretém como as ciências, ou as coisas com jeito de ciências, usadas futilmente — ponho-me escrupulosamente a estudar o meu psiquismo através da forma como o encaram os outros. Raras vezes é triste o prazer, por vezes doloroso, que esta tática fútil me causa.

Geralmente, procuro estudar a impressão geral que causo nos outros, tirando conclusões. Em geral sou uma criatura com quem os outros simpatizam, com quem simpatizam, mesmo, com um vago e curioso respeito. Mas nenhuma simpatia violenta desperto. Ninguém será nunca comovidamente meu amigo. Por isso tantos me podem respeitar.


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

O livro do desassossego