sábado, 29 de junho de 2013

Strip-tease (3)


21.

o caminho é este
tem pedra, tem sol
tem bandido, mocinho
tem você amando
tem você sozinho
é só escolher
ou vai, ou fica.

fui.


22.

amanhã vou estar mais suave
e quarta vai ser o meu dia
o fim-de-semana promete
domingo vai ter que dar sol
segunda vou acontecer
não posso perder o teu show
pro mês vou te visitar
é agora que eu saio de vez
que bom que eu vou te encontrar
amanhã vou estar mais feliz


23.

eu não Sou nada disso
Que você está pensando
por isso venha com calma
que eu conheço este tipo
quem quer acertar na mosca
acaba errando de sopa


24.

hoje eu sonhei tão alto
que as aves na minha janela pousaram
e pediram que eu sonhasse mais baixo
porque elas lá em cima voavam


25.

não devia te contar
se você guardar segredo
eu revelo este meu medo
de não saber amar

não devia te amar
mas se você guardar meu medo
eu revelo este segredo
que não sei contar


26.

a emoção que veio vermelha
virou saudade branca
e ficou a lembrança cor-de-rosa
do teu olhar azul
do meu sorriso amarelo
e daquele nosso desejo
tão cor-da-pele


27.

rock
me faz sentir
de preto
gostosa
me faz dançar o pêlo
me pela
me faz sentar de cócoras


28.

vou andando devagar
olhando para um lado
para o outro
rindo ali, pensando aqui
de repente
vejo você na minha frente
e até pararia de andar
se você não fosse
estacionamento proibido


29.

porto alegre surpreende
vez em quando um lindo menino
vez por outra um fog londrino


30.

este sol não me engana
tá se pondo pra me pôr na cama


Martha Medeiros, Strip-tease
Imagens: Fabrizio R.

Blowin’ in the wind

andriete le secq 


tenho
tantos
silêncios
amordaçados
em
mim
à
espera
de
que
o
vento
um
dia
me
traga
ao
menos
uma
mísera
resposta


© Ademir Antonio Bacca
do livro “Grito por dentro das palavras”


Olhos azuis cabelos pretos

 Alex Bagnato


Quando se aproxima a hora de sua chegada, decide que ela deve partir, mas por si mesma, que deve compreender por si mesma que ele nada pode ordenar, nunca. Gostaria de falar com alguém. Mas não há ninguém, ela não está ali para falar. O sofrimento é claro, disseminado pelo quarto, pela cabeça, pelas mãos, o sofrimento priva de forças, aplaca a solidão, deixa-o ali, a pensar que talvez vá morrer.
Encostados na parede, os lençóis que ela dobrou. Ela os colocou cuidadosamente no chão, como uma convidada. Ele dirige-se aos lençóis dobrados, desdobra-os e cobre-se: de repente, o frio.
A noite ela bate na porta que ficou aberta. Quanto aos heróis da história, diria um ator, não se saberia
quem são nem por quê. Às vezes, para se poder olhá-los, deixavam-nos entregues a eles mesmos, no silêncio, por um longo momento: em volta deles os atores parados, sem voz, e eles, na luz, surpreendidos pelo silêncio.
Freqüentemente ela dorme. E ele a olha. Às vezes, nos movimentos do sono, as mãos se tocam para
em seguida fugirem. Eles estariam ofuscados pela luz, estariam nus, sexos nus, criaturas sem olhar, expostas.
Nas noites que se seguem, nada acontece além do sono. Caminha-se rumo a um certo esquecimento dos
acontecimentos do verão. Às vezes, na distração, os corpos se aproximam e se tocam e produz-se um breve despertar logo encoberto pelo sono.
Uma vez tocados, os corpos não mais se movem. Até que um deles se vire e se afaste. Mas nada de manifesto acontece. Sempre, nem um olhar. Nem uma palavra. Às vezes falam. O que dizem não se relaciona com o que está acontecendo no quarto, exceto pelo fato de não dizerem nada sobre ele.
Às vezes ela se vira, defende-se de uma ameaça exterior, do grito de um animal, do vento na porta, da boca maquiada dele, da doçura de seu olhar. Ela sempre volta a dormir. Às vezes, perto da madrugada, atingiria camadas mais profundas de ausência. Apenas a respiração permanece, às vezes. Às vezes pode-se pensar em um animal adormecido perto de si. De manhã, ele a ouve partir. Mas imperceptivelmente. Não se move. Poder-se-ia pensar que está na mesma ausência esmagadora da manhã. E ela, ela age como se fosse verdade ele estar dormindo.
Às vezes pode-se dizer que nada mais acontece além dessa mentira. Quando a noite chega ela está ali na hora marcada, o corpo acomodado sobre os lençóis brancos, nua, à luz do lustre. Faz-se de morta, o rosto abolido sob a seda preta. É o que ele pensa nos maus dias. Sem dúvida ainda é noite. Nenhuma claridade chega do lado de fora. Em torno dos lençóis brancos, o homem que caminha, que se volta.
O mar chegou em frente ao quarto. A manhã não deve estar longe. E o mar insone que está ali, bem próximo às paredes. É mesmo o seu rumor, vagaroso, exterior, aquele que leva a morrer.

Ela abriu os olhos. Eles não se olham. Há várias noites que isso acontece. Nenhuma definição exterior se apresenta para explicar o que estão vivendo. Nenhuma solução para evitar o sofrimento.
Ela dorme. Ele chora. Chora por uma imagem distante da noite de verão. Precisa dela, da sua presença no quarto para chorar o jovem estrangeiro de olhos azuis cabelos pretos. Sem ela no quarto a imagem permaneceria estéril, dissecaria seu coração, seu desejo. O corpo, ele não o vira. Apenas que usava roupas brancas, uma camisa branca. Pálido, era pálido, vinha do norte, do país secreto. Alto. A voz, ele não sabe.
Parou de se mexer. Refaz o trajeto do parque do hotel à janela do vestíbulo.
Ouve, olhos fechados. Ouve o grito. Continua não percebendo nenhuma palavra, nenhum sentido. Quando
abre os olhos já é muito tarde, o corpo de olhos azuis caminha em silêncio para a janela aberta. A ela não fala dele. Não lhe passa pela cabeça. Não fala de sua vida. Nunca pensou que se pudesse fazê-lo. As palavras não estão ali, nem a frase onde colocar as palavras. Para eles dizerem o que lhes acontece há o silêncio ou então o riso ou, às vezes, por exemplo, com elas, chorar. Ela o olha. E assim que o vê em sua ausência, tal como está ali. Repleto de imagens mudas, embriagado de sofrimentos diversos, do desejo de recuperar um objeto perdido assim como de comprar um que ainda não possui e de repente se
transforma em sua razão de ser, essa roupa, esse relógio, esse amante, esse carro. Onde quer que esteja, o que quer que faça, sempre um desastre particular.
Ela pode olhá-lo por muito tempo, noites. Ele percebe que seus olhos estão abertos. Sorri para ela como se tivesse sido de alguma forma desmascarado, contrito, sempre na interminável desculpa por viver, por ter de fazê-lo.
Ela fala para agradá-lo. Diz que mora na cidade durante o verão. Que vive perto dali, em uma cidade universitária, aquela onde nasceu. Que é uma moça do interior. Ela gosta muito do mar, principalmente desta praia. Aqui, ela não tem casa. Mora em um hotel. Prefere. No verão, é melhor. Para a arrumação, os cafés da manhã, os amantes.
Ele começa a ouvir. E um homem que ouve tudo que se conta com idêntica paixão. Impossível entender por que a esse ponto. Ele pergunta se ela tem amigos. Ela tem, sim, aqui e também na cidade onde mora no inverno. São velhos amigos? Alguns são, mas é claro que são principalmente pessoas que conheceu na universidade. Ela está na universidade? Sim. Estuda ciências. Também é professora-assistente de ciências, sim. Ela conta. Ele diz ter percebido que ela fizera estudos superiores. Ela ri. Ele ri, confuso por ter percebido a que ponto era grande sua conivência. Depois, bruscamente, percebe que ela não está mais rindo, que o deixou, que o olha como se ele fosse adorável, ou estivesse morto. E depois, que ela volte. Em seu olhar permanece um clarão do devaneio que acaba de atravessar em sua presença.
Eles não falam desse medo. Ela sabe menos do que ele que alguma coisa aconteceu. Mantêm-se distantes um do outro por muito tempo, tentando perceber o que aconteceu quando se olharam, esse pavor que ainda desconhecem.


Marguerite Duras, Olhos azuis cabelos pretos

sexta-feira, 28 de junho de 2013

alexandre serra


Quando abro o corpo à loucura, à correnteza,
reconheço o mar em teu alto búzio
vindo a galope, enquanto cavalgas lento
meu corredor de águas.

A boca perdendo a vida sem tua seiva,
os dedos perdendo tempo enquanto
para o amado a amada se abre em flor e fruto
(não vês que esta mulher te faz mais belo?).

A vida no corpo alegre de existir,
fiquei à espreita dos grandes cataclismos:
daí beber na festa do teu corpo
que me galga esse castelo de águas


Olga Savary

Um Instante

alexandre serra


Aqui me tenho
Como não me conheço
  nem me quis

sem começo
nem fim

  aqui me tenho
  sem mim

nada lembro
nem sei

à luz presente
sou apenas um bicho
  transparente


Ferreira Gullar

Amores proibidos



Onde está quem amamos quando amamos
outro corpo de fogo em movimento?
Pra que abismo corremos, pra que enganos,
quando as promessas são poeira ao vento?

De que matéria alheia mal tentamos
fugir quando a verdade mora dentro
de alguém a cujo céu nos entregamos
numa noite de sonho e de tormento?

Ainda somos humanos se traimos
por instinto um amor de tantos anos
e só àquele instante obedecemos?

Ainda somos humanos? Ou seremos
a febre que há no sangue quando vimos
de súbito morrer num corpo e vamos
em busca do inferno que merecemos?

Talvez por um momento então sejamos
sonâmbulos fantasmas do que fomos
refletidos num espelho que não vemos

Ou talvez nesse corpo descubramos
a memória da alma que perdemos
pra sempre no momento em que transpomos
a fronteira dos gestos quotidianos
e ao sabor de um desejo destruimos
todas as intenções, todos os planos,
em nome dos prazeres mais supremos
na noite em que deixamos de ser donos
do nosso próprio corpo e abandonamos
angústias e remorsos e partimos
em busca da manhã que não sabemos

Onde está quem amamos quando somos
mais do que humanos? Mais? Ou muito menos?


Fernando Pinto do Amaral

Auto-retrato

ninho marchini


Alguém diz que sou bondosa: 
está tão enganado que dá pena. 
Alguém diz que sou severa, 
e acho graça. 
Não sou áspera nem amena: 
estou na vida como o jardineiro 
se entrega em cada rosa.


Lya Luft
In Para Não Dizer Adeus

Final

geisa cruvinel


Quando uma mulher tira o rímel, o batom, a roupa
tira o sapato, senta na cama e chora
e nem mesmo é bonita nessa hora
você tinha de ver
que de repente ela fica tão sozinha
é um bicho assim tão desamparado
tão longe da paixão e do pecado
nem graça tem
se desmanchou o encanto. Ela virou
de repente uma coisa tão pequena
que a gente olha e só fica com pena
não adianta fazer nada.


Bruna Lombardi, Gaia

Trecho

 Xue YANQUN


Quem foi, perguntou o Celo 
Que me desobedeceu? 
Quem foi que entrou no meu reino 
E em meu ouro remexeu? 
Quem foi que pulou meu muro 
E minhas rosas colheu? 
Quem foi, perguntou o Celo 
E a Flauta falou: Fui eu. 

Mas quem foi, a Flauta disse 
Que no meu quarto surgiu? 
Quem foi que me deu um beijo 
E em minha cama dormiu? 
Quem foi que me fez perdida 
E que me desiludiu? 
Quem foi, perguntou a Flauta 
E o velho Celo sorriu.


Vinicius de Moraes

Entre Muitos

Angelo Asti



Sou quem sou.
Um acaso inconcebível
como todos os acasos.

Fossem outros antepassados
poderiam afinal, ser os meus,
e então de outro ninho
eu sairia voando,
e debaixo de outro tronco
rastejaria, coberta de escamas.

No guarda-roupa da Natureza
há trajes de sobra:
o traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um cai como uma luva
e é usado sem reclamar
até se gastar por completo.

Eu tampouco tive alternativa,
mas não me queixo.
Poderia ser alguém
muito menos individual.
Alguém do cardume, do formigueiro, zunindo no enxame,
uma partícula da paisagem agitada pelo vento.

Alguém muito menos feliz,
criado para uso da pele,
para a mesa da festa,
ou algo que nadasse sob a lente.

Uma árvore presa à terra,
da qual se aproxima o fogo.

Um mero cisco esmagado
pela marcha de inconcebíveis eventos.

Um indivíduo nascido sob uma sina ruim
que para outros se ilumina.

E o que seria se eu despertasse nas pessoas medo?
Ou só aversão?
Ou só piedade?

Se não tivesse nascido
na tribo certa
e a minha frente se fechassem os caminhos?

Até agora, a sorte
mostrou-se me favorável.

Poderia não ter-me sido dada
a lembrança dos bons momentos.

Poderia ter-me sido negada
a tendência para comparar.

Poderia até ser eu própria
mas sem o dom da admiração
quer dizer - alguém completamente diferente.


Wislawa Szymborska

Cálice

fabrizio r.


A vida não tem roteiros,
só velas que nos acenam
do mar.

Escuta, amiga,
o desfiar das horas:
elas te dirão é tua
é tua a vida.

Toma-a (como se toma
um cálice de rosas)
         na mão.


Antonio Brasileiro

Os amantes do Eixo Rodoviário



O homem atravessou as seis pistas do Eixão, correndo em ziguezague no
meio do trânsito enfurecido, mas a mulher empacou, paralisada pelo
medo. A separação já dura cinco dias: ele do lado de cá, ela do lado
de lá, e os automóveis voando-zunindo entre um e outro. E se ninguém
avisou que existe passagem subterrânea pra pedestre nem foi por
maldade: é que dá gosto ver aqueles dois, ela desenhando corações no
ar, ele mandando carta em aviõezinhos de papel. Acho que nunca se
amaram tanto.


José Rezende Jr.
Texto transcrito do livro “50 anos em Seis: Brasília, prosa e poesia”

Créditos: Brasília Poética




Não consegui. Do grande esforço através dos doze meses, doze signos, doze faces, só guardo essa certeza. Que tonta travessia. Tudo bem, descansa. Faz parte, não conseguir. Como Sísifo, se queres mitologias. Queres ainda? Por favor, estou farto. Brilhos baratos, as joias eram todas falsas. Está certo, mas não quiseram te fazer mal. O mal não existe reverso do bem. Tanto faz, só peço que me deixem. Vou ficar encostado na árvore até amanhecer. Olhos abertos, feito uma vela acesa. Se ela insistir, direi que não tenho piedade alguma. Que não compreendo, não aceito nem perdoo mais a loucura. Se ele vier, pedirei que fique. Serei bom para ele. Mentira, não pedirei nem direi nada a ninguém. É indivisível, aprendi. Talvez consiga dormir. Talvez consiga acordar amanhã finalmente livre de tudo isso. Terei apenas um corpo, poucos pensamentos, todos pequenos. Sei que foi inútil quando os vejo obstinados recomeçar e recomeçar sempre. Uma serpente que morde a própria cauda, um círculo infinito de enganos, Maya. Talvez não, perdeste a fé? Não te castiga assim, está tudo em paz. Nunca houve cães. É como uma cantiga de ninar nas cinzas do fim do mundo. Um barbitúrico, se preferires. Entorpece, melancólico, te leva para longe. Já se perdeu, não há futuro. Repousa, meu amigo. Deixa-me passar a mão nos teus cabelos. Está amanhecendo. Em voz baixa, eu canto para te enganar.

Caio Fernando Abreu

terça-feira, 25 de junho de 2013

Parada Cardíaca

Antoine de Villiers


Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.


Paulo Leminski

Poema de Amor

an he


Ser a atmosfera 
que respiras, 
conter-te em mim 
como numa redoma, 
entrar-te pelo olfato, 
assim como as aspiras 
invisíveis, do aroma... 

Ser teu ambiente, 
ser teu espaço circundante, 
sentindo em mim roçar, 
constantemente, 
teu gesto palpitante... 

Ser o silêncio 
em que te enfurnas, 
guardar teus 
lentos pensamentos, 
pelas horas noturnas... 

Ser o teu sono, 
sentir-te assim 
como ninguém te sente 
- abandonado 
completamente 
completamente esquecido 
em mim... 

Oh! meu prazer! 
- sentir-te 
e penetrar-te; 
- em toda hora, 
em toda parte, 
gozar teu ser! 
Sem que 
o pudesses perceber; 
- ser por ti absorvida; 
- encher com minha vida 
a tua vida


Gilka Machado

Da arte de sofrer



O sofrimento dos poetas é muito relativo. Pois se um poeta consegue um dia expressar as suas dores com toda a felicidade como é que poderá ser infeliz? Camões, o velho Camões que o diga com suas imortais penas de amor. Suas felizes penas de amor!


Mário Quintana - Da preguiça como método de trabalho


eu engoli brasília 
em paz com a cidade 
meu fusca vai 
por esses eixos, 
balões e quadras, 
burocraticamente, 
carimbando o asfalto 
e enviando ofícios 
de estima e 
consideração 
ao sr. diretor


Nicolas Behr

Lo perdido

© Mecuro B Cotto


¿Dónde estará mi vida, la que pudo
haber sido y no fue, la venturosa
o la de triste horror, esa otra cosa
que pudo ser la espada o el escudo
y que no fue? ¿Dónde estará el perdido
antepasado persa o el noruego,
dónde el azar de no quedarme ciego,
dónde el ancla y el mar, dónde el olvido
de ser quien soy? ¿Dónde estará la pura
noche que al rudo labrador confía
el iletrado y laborioso día,
según lo quiere la literatura?
Pienso también en esa compañera
que me esperaba, y que tal vez me espera.


Jorge Luis Borges


Querida mãe, querido pai,

Não sei mais conviver com as pessoas. Tenho medo de uma casa cheia de pais e mães e irmãos e sobrinhos e cunhados e cunhadas. Tenho vivido tão só durante tantos – quase 40 – anos. Devo estar acostumado.

Dormir 24 horas foi a maneira mais delicada que encontrei de não perturbar o equilíbrio de vocês – que é muito delicado. E também de não perturbar o meu próprio equilíbrio – que é tão ou mais delicado.
Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E que só sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas aparentemente simples como "eu gosto de você". Gosto de mim. Acho que é o destino dos escritores. E tenho pensado que, mais do que qualquer outra coisa, sou um escritor. Uma pessoa que escreve sobre a vida – como quem olha de uma janela – mas não consegue vivê-la.

Amo vocês como quem escreve para uma ficção: sem conseguir dizer nem mostrar isso. O que sobra é o áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco – todas as pessoas são loucas, inclusive nós; amor encabulado – nós, da fronteira com a Argentina, somos especialmente encabulados. Mas amor de verdade. Perdoem o silêncio, o sono, a rispidez, a solidão. Está ficando tarde, e eu tenho medo de ter desaprendido o jeito. É muito difícil ficar adulto.

Amo vocês, seu filho,
Caio


Caio Fernando Abreu

São horas de voltar

Alena Adamenko - Evening Blues


São horas de voltar. Tu já não vens, e a espera 
gastou a luz de mais um dia. Agora, quem passar 
trará um corpo incerto dentro do nevoeiro, 
mas terá outro nome e outro perfume. Eu volto 

à casa onde contigo se demorou o verão e arrumo 
os livros, escondo as cartas, viro os retratos 
para a mesa. Sei que o tempo se magoou de nós, 
sei que não voltas, e ouço dizer que as aves 
partem sempre assim, subitamente. Outras virão 

em março, apago as luzes do quarto, nunca as mesmas.


Maria do Rosário Pedreira 

O sim e outros achaques

Corey Ford


A vida inteira anulada
por falta de outros desígnios,

eis que voltamos ao parque
onde os homens se congregam:

ninguém jamais sabe ao certo
onde o sim das grandes aves,

singramos por mares mansos
que julgáramos esquecidos —

mas eis que a vida se perde
por falta de outros desígnios.

Ou não se perde: é só isto.


Antonio Brasileiro

Avesso

Marcus ohlsson


Pode parecer promessa 
eu sinto que você é a pessoa 
mais parecida comigo 
que eu conheço 
só que do lado do avesso.  

Pode ser que seja engano 
bobagem ou ilusão 
de ter você na minha 
mas acho que com você eu me esqueço 
e em seguida eu aconteço.  

Por isso deixo aqui meu endereço 
se você me procurar 
eu apareço 
se você me encontrar 
te reconheço.


Alice Ruiz

sábado, 22 de junho de 2013

Gaia

Mariska Karto


Você sabe como eu sou despreocupada
que me encerro neste quarto e me permito
todas as divagações, as fantasias
obsessões, perseguições, todos os dias
você sabe que eu me viro de inventos
que eu me reparto e dou crias
que eu mal me resolvo e me aguento
carrego pedras no bolso
e enfrento ventanias.

Você sabe como eu sou desorientada
raciocínio pelo instinto e cometo
fugas de túnel de ladra de galeria
uso malhas e madras manhas e lenhas
e percorro superfícies
em que você escorregaria

Mas você sabe como eu sou de subsolos
de subterfúgios, de subversos subliminares
como eu sou de submundos
subterrãneos, de sub-reptícias folias
meio de circo, meio de farsa
ervas, panfletos, fluídos, presságios
quebrantos, jeitos, gírias, reviras
de sensações e cismas, filosofias

de como eu sou de estradas, andanças, pressentimentos
atmosférica e vadia
gato da noite, de crises, guitarras
ouros e danças e circunstâncias
de vinho azedo e companhia.

Que eu sou de todas as misturas
todas as formas e sintonias
e enfrento esse aperto, essas normas
forças, pressões, imposições, o poderio
os intervalos, o silêncio da maioria.

Você sabe de toda minha luta
mesmo quando a intenção silencia
que eu não cedo, não desisto
a todo custo,, a toda faca, a todo risco
eu sobrevivo de paixão e de anarquia.

Você sabe bem de minha fraude
Você conhece as minhas alquimias.


Bruna Lombardi,  in Gaia

Certas coisas

Michael Cheval


Certas coisas
não se podem deixar para depois.

Muitos poemas perdi
pensando: "depois escrevo",
"agora estou almoçando"
ou "consertando a porta".
Assim, adiei-perdi
o melhor? de mim.

Certas coisas
não se podem deixar para depois,
e nisto incluo: frutos no galho,
mudanças sociais,
certas coxas e bocas
e esta manhã que se esvai.

Certas coisas
não se podem deixar para depois.

O amor não se adia
como se adiam o imposto, a viagem, a utopia.
O desejo sabe o que quer,
detesta burocracia.

Feito depois, o amor
é murcha lembrança
do que, não sendo, seria.

Certas coisas
não se podem deixar para depois.

Como o amor e as pessoas,
não se pode recuperar
- a poesia.


 Affonso Romano de Sant'Anna

Poesia

Michael Garmash

poesia é portal, refúgio 
poesia é quarto escuro 
poesia é o esconderijo 
secreto da alma 
poesia é libélula 
garça distraída 
nuvem arisca 
pedra no caminho 
andarilho sem destino 
poesia é consolo 
abraço bem dado 
beijo de amigo 

poesia é pra você parar 
pegar um papel 
escrever qualquer coisa 
se sentir melhor 
e seguir em frente 

poesia despressuriza


Nicolas Behr

Teu corpo seja brasa

Serge Marshennikov


Teu corpo seja brasa 
e o meu a casa 
que se consome no fogo 
um incêndio basta 
pra consumar esse jogo 
uma fogueira chega 
pra eu brincar de novo.


Alice Ruiz

Que me Pedes


Tu pedes-me um canto na lira de amores, 
Um canto singelo de meigo trovar?! 
Um canto fagueiro já — triste — não pode 
Na lira do triste fazer-se escutar. 

Outrora, coberto meu leito de flores, 
Um canto singelo já soube trovar; 
Mas hoje na lira, que o pranto umedece, 
As notas d'outrora não posso encontrar! 

Outrora os ardores que eu tinha no peito 
Em cantos singelos podia trovar; 
Mas hoje, sofrendo, como hei de sorrir-me, 
Mas hoje, traído, como hei de cantar? 

Não peças ao bardo, que aflito suspira, 
Uns cantos alegres de meigo trovar; 
À lira quebrada só restam gemidos, 
Ao bardo traído só resta chorar. 


Gonçalves Dias

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Meu Glorioso Pecado II

Lauri Blank



Quantas horas felizes, quantos dias 
nos contemplamos sem jamais trocar 
uma frase! - Eu temia... Tu temias... 
Mas como era expressivo nosso olhar!... 

Nem uma frase! E tantas melodias 
no meu, no teu silêncio, no do mar, 
no do céu, no das árvores sombrias, 
como tudo se amava sem falar! 

Trocamos o vocábulo e (oh! tristeza!) 
Quantas injúrias, que contradição 
nessas palestras de alma 
em ciúme acesa! 

Ah! se mudos ficáramos então, 
não profanara o orgulho 
e a singeleza 
das palavras sem voz 
do coração!


Gilka Machado

Poema da necessidade

Manuel Barca


É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens,
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO.


Carlos Drummond de Andrade
In: ANDRADE,Carlos Drummond de.Sentimento do mundo- p.15. -1ªed.São Paulo: Companhia das Letras,2012.

Soneto do amor profano



Não me consinta o amor tanta alegria,
pois, por não merecê-la, me constrange
o peito (já uma dor, não longe, me
sussurra que este amor sem agonias
não há de consentir em tanta graça),
eis que, perdidamente, já pressinto
— e quanto, e quanto — que em amor, perdidos
todos os lances, não há como obtê-lo
de outro modo que não por sacrifícios /
e eis que este, pois, gratuita dádiva,
me chega às mãos de um modo tão profano,
que quase certo estou de que, se o tenho,
já não o tenho por justo e dadivoso
mas por amor que é fruto só de engano.

E não me engana um amor quando enganoso.


Antonio Brasileiro

Lembra

Nydia Lozano 


Lembra o tempo 
em que você sentia  

e sentir 
era a forma 
mais sábia de saber  

E você nem sabia?


Alice Ruiz

Por que Ateus se importam com a sua religião...


Se um dia a juventude voltasse

Suchitra Bhosle 


se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida

sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projetos nem ambições
guardo a fera que segrega a insônia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição

Al Berto

O amor




O amor!... Um sonho, um nome, uma quimera, 
Uma sombra, um perfume, uma cintila, 
Que pendura universos na pupila, 
E eterniza numa alma a primavera; 

Que faz o ninho e dá meiguice à fera, 
E humaniza o rochedo, e o bronze, e a argila, 
Sem o afago do qual Deus se aniquila 
Dentro da própria luminosa esfera. 

A música dos sóis, o ardor do verme, 
O beijo louco da semente inerme, 
Vulcão, que o vento arrasta em tênue pós: 

Curvas suaves, deslumbrantes seios 
De vida e formas variegadas cheios. 
É o amor em nós, e o amor fora de nós.


Luís Delfino

domingo, 16 de junho de 2013

Canção do amor que chegou

Angelica Privalihin 



Eu não sei, não sei dizer
Mas de repente essa alegria em mim
Alegria de viver
Que alegria de viver
E de ver tanta luz, tanto azul!
Quem jamais poderia supor
Que de um mundo que era tão triste e sem cor 
Brotaria essa flor inocente
Chegaria esse amor de repente
E o que era somente um vazio sem fim
Se encheria de cores assim

Coração, põe-te a cantar
Canta o poema da primavera em flor
É o amor, o amor chegou 
Chegou enfim


Vinícius de Moraes

Ex/plicação


christiane-vleugels


não há um
sentido único
num poema

quando alguém
começa a ex-
plicá-lo e 
chega ao fim
en-
tão só fica o
ex
do ponto de
partida

beco
(tente outra
vez)

sem saída.


 Haroldo de Campos

Nuança

Kemal Kamil AKCA 


Meus caminhos, meus mapas,
meus caminhos.

Tudo está em ordem
em minha vida.

Como se faltasse
alguma coisa.


Antonio Brasileiro

No Centro do Furacão

InTheAir Photography


Vórtice, voragem, vertigem: qualquer abismo nas estrelas de papel brilhante no teto.

Queria tanto poder usar a palavra voragem. Poder não, não quero poder nenhum, queria saber. Saber não, não quero saber nada, queria conseguir. Conseguir também não - sem esforço, é como eu queria. Queria sentir, tão dentro, tão fundo que quando ela, a palavra, viesse à tona, desviaria da razão evitaria o intelecto para corromper o ar com seu som perverso. A-racional, abismal. Não me basta escrevê-la - que estou escrevendo agora e sou capaz de encher pilhas de papel repetindo voragem voragem voragem voragem voragem voragem voragem sete vezes ao infinito até perder o sentido e nada mais significar - não é dessa forma que eu a desejo. Ah essa palavra de desgrenhados cabelos, enormes olhos e trêmulas mãos. Melodramática palavra, de voz rouca igual à daquelas mulheres que, como dizia John Fante, só a adquirem depois de muitos conhaques e muitos cigarros. Eu quero sê-la, voragem.
Espio no dicionário seu significado oficial, tentativa inútil de exorcizar o encantamento maligno. O que leio, inquieta ainda mais: "Aquilo que sorve ou devora". E vejo um redemoinho lamacento de areias movediças à superfície do qual uma única mão se crispa. Vórtice, penso, numa vertigem. Repito, hipnotizado: vertigem, vórtice, voragem. "Qualquer abismo" - continuo a ler. Os abismos de rosas, os abismos de urzes, e aqueles abismos à beira do qual duas crianças correm perigo, protegidas pelas asas do Anjo da Guarda. Os abismos de estrelas falsas no falso céu do teto do meu quarto, os abismos de beijos e desejos, o abismo onde se detém o rei daquela história zen para abrir o anel que lhe deu o monge, onde está guardado o condão capaz de salvá-lo - e o condão é a frase: "isto também passará". Sim, leio então: "Tudo que subverte ou consome" - paixões, ideologias, ódios, feitiçarias, vocações, ilusões, morte e vida. Essas outras palavras de maiúsculas implícitas - vorazes, voragem -, abismais.

Eu estava lá, no centro do furacão. E repito as palavras que são e não são minhas enquanto o porteiro do edifício em frente toca violão e canta, e a chuva desaba outra vez, e peço: por favor, me socorre, me socorre que hoje estou sentido e português, lusitano e melancólico. Me ajuda que hoje eu tenho certeza absoluta que já fui Pessoa ou Virgínia Woolf em outras vidas, e filosófo em tupi-guarani, enganado pelos búzios, pelas cartas, pelos astros, pelas fadas. Me puxa para fora deste túnel, me mostra o caminho para baixo da quaresmeira em flor que eu quero encostar em seu tronco o lótus de mil pétalas do topo da minha cabeça tonta para sair de mim e respirar aliviado de por um instante não ser mais eu, que hoje não me suporto nem me perdoo de ser como sou e não ter solução. Me ajuda, peço, quando Excalibur afunda sem volta no lago.
Ela se debruça sobre mim, me beija com sua grande boca vermelha movediça. Tenho medo mas abro minha boca para me perder.
Ela repete baixinho em meus ouvidos nomes cheios de sangue - Galizia, Ana Cristina, Júlio Barroso - enquanto contemplo o céu no teto do meu quarto, girando intergaláctico em direção a ER-8, a estrela de 10 bilhões de anos, o cadáver insepulto para sempre da estrela perdida nos confins do Universo. Choro sozinho no escuro, você não enxuga as minhas lágrimas. Você não quer ver a minha infância. Solto nesse abismo onde só brilham as estrelas de papel no teto, desguardado do anjo com suas mornas asas abertas. Você não me ouve nem me vê, e se ouvisse e visse não compreenderia quando eu abrir os braços para Ela e saudar, amável e desesperado como quem dá boas-vindas ao terror consentido: voragem, voragem.
Voragem, vórtice, vertigem: ego. Farpas e trapos. Quero um solo de guitarra rasgando a madrugada. Te espero aqui onde estou, abismo, no centro do furacão. Em movimento, águas.

Caio Fernando Abreu in "Pequenas Epifanias"

Oração por um corpo

Lena Sotskova


Não há lugar para o texto, só o corpo.
Mas o corpo cadente é espada no meio
das mãos. Agora é tarde a palavra,
desapareceu a posse das coisas amadas.
O vento que vergara os teus cabelos
construiu a nostalgia de regressar à casa.
Nós somos só pó. Nada mais é texto,
o corpo existe desamparado
campo de tributos. Sem nome cato
o esquecimento. Corpo é texto
cada um joga o corpo para o lado
que quer. De repente o corpo é
conduzido ao mundo mal o vento
rompe o sol e as asas dos pássaros
encaram o dia com o mesmo espanto
possível da infância, o corpo é
sempre só. Trago dentro do texto
o cansaço. Sinto a noite corrompida
dizer teu nome, devagar...
Nenhuma estrela lembra o sexo grunhindo
feito morte escrava. Não há lugar
para o corpo. Se alguém vier, há de
tarjar o texto como sempre.


Oscar Bertholdo

sábado, 15 de junho de 2013

Neste Outono

Yarek Godfrey


Neste outono, as pedras agasalham-se no cobertor 
do musgo; e o barro bebe a água; e o vento viaja rente 
aos muros. Mas eu, sem ti, deito-me gelada sobre a cama 
e digo palavras que queimam a boca por dentro ― amor, 

saudade, o teu nome e os nomes das coisas que tocaste 
(e sobre as quais deixo crescer o pó, para que os dias 
não se decalquem sempre de outros dias). Fecho os olhos 

depois sobre a almofada e vejo o rosto branco da casa 
desenhar-se à medida da tua ausência: as janelas abrem-se 
para a solidão dos becos e há um farrapo de luz sobre a porta 
a que ninguém virá bater. Pergunto-me onde anda a tua 
sombra quando aqui não estás. E tenho medo. São estes 

os solavancos de uma ida pequena ― bordar uma toalha 
para logo a manchar de vinho, sentir a ferida na distância 
do punhal, viver à espera de uma dor que há de chegar.


Maria do Rosário Pedreira

O leitor e a poesia

Carole Spandau


Poesia
não é o que o autor nomeia,
é o que o leitor incendeia.

Não é o que o autor pavoneia,
é o que o leitor colhe á colmeia.

Não é ouro na veia,
é o que vem na bateia.

Poesia
não é o que o autor dá na ceia,
mas o que o leitor banqueteia.


 Affonso Romano de Sant'Anna

quinta-feira, 13 de junho de 2013

O dia dos namorados



O dia dos Namorados
para mim é todo dia.
Não tenho dias marcados
para te amar noite e dia.

O dia 12 de junho,
como qualquer outro, diz
(e disso dou testemunho)
que contigo sou feliz.


Carlos Drummond de Andrade