terça-feira, 30 de novembro de 2010

Anaïs Nin, Henry & June - (4)


Nós nos encontramos, June e eu, no American Express. Sabia que ela se atrasaria e não me importei. Cheguei lá antes da hora, quase doente de tensão. Eu a veria, em pleno dia, sair da multidão. Seria possível? Tinha medo de ficar ali exatamente como ficara em outros lugares, observando uma multidão e sabendo que June alguma apareceria porque June era um produto de minha imaginação. Eu mal podia acreditar que ela chegasse por aquelas ruas, atravessasse tal avenida, emergisse de um grupo de pessoas escuras, anônimas, e caminhasse até aquele lugar. Que alegria observar a multidão correndo e então vê-la caminhando com passos largos, resplandecente, incrível, em minha direção. Eu seguro sua mão quente. Ela está indo em busca de correspondência. O homem no American Express não vê a maravilha que ela é? Ninguém como ela jamais pediu correspondência. Alguma mulher jamais usou sapatos gastos, um vestido preto velho, uma capa azul-escura velha e um velho chapéu cor de violeta como ela usa?
Eu não consigo comer em sua presença. Mas por fora estou calma, com aquela plácida atitude oriental que é tão enganadora. Ela bebe e fuma. É bem louca, num certo sentido, sujeita a medos e manias. Sua conversa, em grande parte inconsciente, seria reveladora para um analista, mas eu não posso analisá-la. É quase tudo mentira. Os conteúdos de sua imaginação são realidades para ela. Mas o que está construindo tão cuidadosamente? Um engrandecimento de sua personalidade, uma fortificação e uma glorificação dela. No calor óbvio e envolvente de minha admiração, ela se expande. Parece ao mesmo tempo destrutiva e impotente. Eu quero protegê-la. Que piada! Eu, proteger aquela cujo poder é infinito. Seu poder é tão forte que realmente acredito quando ela diz que sua destrutibilidade não é intencional. Ela tentou me destruir? Não, entrou em minha casa e eu estava disposta a suportar qualquer dor em suas mãos. Se existe alguma premeditação nela, esta vem apenas depois, quando ela se torna consciente de seu poder e se pergunta como deveria usá-lo. Não acho que sua maldade potencial seja dirigida. Até ela fica aturdida.
Eu a tenho em mim agora como alguém a proteger. Ela está envolvida em perversidades e tragédias com que não consegue lidar. Finalmente captei sua fraqueza. Sua vida está cheia de fantasias. Quero forçá-la a voltar à realidade. Quero lhe fazer uma violência. Eu, que estou afundada em sonhos, em atos semivividos.


Anaïs Nin, Henry & June

Dedicatória



Este meu livro é todo teu, repara
que ele traduz em sua humilde glória
verso por verso, a estranha trajetória
desta nossa afeição ciumenta e rara!

Beijos! Saudades! Sonhos! Nem notara
tanta cousa afinal na nossa história...
E este verso - é a feliz dedicatória...
onde a minha alma inteira se declara...

Abre este livro... E encontrarás então
teu coração, de amor, rindo e cantando,
cantando e rindo com o meu coração...

E se o leres mais alto, quando a sós,
é como se estivesses me escutando
falar de amor com a tua própria voz!


J. G. de Araújo Jorge

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Morangos Mofados


Para José Márcio Penido

Let me take you down
‘cause I’m going to strawberryfields
nothíng is real, and nothing to get hung about
strawberryfieldsforever
Lennon & McCartney: “Strawberry fields forever

Prelúdio
No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali e era assim que se via. Era dentro disso que precisava mover-se sob o risco de. Não sobreviver, por exemplo - e queria? Enumerava frases como é-assim-que-as-coisas-são ou que-se-há-de-fazer-que-se-há-de-fazer ou apenas éofinal-que-importa. E a cada dia ampliava-se na boca aquele gosto de morangos mofando, verde doentio guardado no fundo escuro de alguma gaveta.

Allegro Agitato
Pois o senhor está em excelente forma, a voz elegante do médico, têmporas grisalhas como um coadjuvante de filme americano, vestido de bege, tom sur tom dos sapatos polidos à gravata frouxa, na medida justa entre o desalinho e a descontração. Não há nada errado com o seu coração nem com o seu corpo, muito menos com o seu cérebro. Caro senhor. Acendeu outro cigarro, desses que você fuma o dobro para evitar a metade do veneno, mas não é no cérebro que acho que tenho o câncer, doutor, é na alma, e isso não aparece em check-up algum.
Mal do nosso tempo, sei, pensou, sei, agora vai desandar a tecer considerações sócio-político-psicanalíticas sobre O Espantoso Aumento da Hipocondria Motivada Pela Paranóia dos Grande Centros Urbanos, cara bem barbeada, boca de próteses perfeitas, uma puta certa vez disse que os médicos são os maiores tarados (talvez pela intimidade constante com a carne humana, considerou), e este? Rápido, analisou: no máximo chupar uma boceta, praticar-sexo-oral, como diria depois, escovando meticuloso suas próteses perfeitas, naturalmente que se o senhor pudesse diminuir o cigarro sempre é bom, muito leite, fervido, é claro, para evitar os coliformes, ar puro, um pouco de exercício, cooper, quem sabe, mais pensando no futuro do que em termos imediatos, claro. Mas se o futuro, doutor, é um inevitável finalmente alguém apertou o botão e o cogumelo metálico arrancando nossas peles vivas, bateu com cuidado o cigarro no cinzeiro, um cinzeiro de metal, odiava objetos de metal, e tudo no consultório era metal cromado, fórmica, acrílico, anti-séptico, im-po-lu-to, assim o próprio médico, não ousando além do bege. Na parede a natureza-morta com secas uvas brancas, pêras pálidas, macilentas maçãs verdes. Nenhuma melancia escancarada, nenhuma pitanga madura, nenhuma manga molhada, nenhum morango sangrento. Um morango mofado - e este gosto, senhor, sempre presente em minha boca?
Azia, má digestão, sorriso complacente de dentes no mínimo trinta por cento autênticos (e o que fazer, afinal? dançar um tango argentino, ou seria cantar? cantarolou calado assim “quiero emborrachar mi corazón para olvidar um toco amor que más que amor fue una traición’ tinha versos à espreita, adequados a qualquer situação, essa uma vantagem secreta sobre os outros, mas tão secreta que era também uma desvantagem, entende? nem eu, versos emboscados da nossa mais fina lira, tangos argentinos e rocks dilacerantes, com ênfase nos solos de guitarra). Um tranqüilizante levinho levinho aí umas cinco miligramas, que o senhor tome três por dia, ao acordar, após o almoço, ao deitar-se, olhos vidrados, mente quieta, coração tranqüilo, sístole, pausa, diástole, pausa, sístole, pausa, diástole, sem vãs taquicardias, freio químico nas emoções. Assim passaria a movimentar-se lépido entre malinhas 007, paletós cardin, etiquetas fiorucci, suavemente drogado, demônios suficientemente adormecidos para não incomodar os outros. Proibido sentimentos, passear sentimentos, passear sentimentos desesperados de cabeça para baixo, proibido emoções cálidas, angústias fúteis, fantasias mórbidas e memórias inúteis, um nirvana da bayer e se é bayer. Suspirou, suspirava muito ultimamente, apanhou a receita, assinou um cheque com fundos, naturalmente, e saiu antes de ouvir um delicado porque, afinal, o senhor ainda é tão jovem.

Adagio sostenuto
Quando acordou, o sol já não batia no terraço, o que trocado em miúdos significava algo assim como mais-de-duas-da-tarde. Tinha tomado três comprimidos, um pela manhã, outro pelo almoço, outro antes de dormir, só que juntos - e o gosto persistia na boca. Strawberry, pensou, e quis então como antigamente ouvir outra vez os Beatles, mas ainda na cama teve preguiça de dar dois passos até o toca-discos, e onde andariam agora, perdidos entre tantas simones e donnas summers, tanto mas tanto tempo, nem gostava mais de maconha. Acariciou o pau murcho, com vontade longe, querendo mandar parar aquele silêncio horrível de apartamento de homem solteiro, a empregada não viria, ele não tinha colocado gasolina no carro, nem descontado cheque, nem batalhado uma trepadinha de fim de semana, nem tomado nenhuma dessas pré-lúdicas providências-de-sexta-feira-após-o-almoço, e precisava. Precisava inventar um dia inteiro ou dois, porque amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o quê.
Acendeu um cigarro, assim em jejum lembrando úlceras, enfisemas, cirroses, camadas fibrosas recobrindo o fígado, mas o fígado continuaria existindo sob as tais fibras ou seria substituído por? Ninguém saberia explicar, cuecas sintéticas dessas que dão pruridos & impotência jogadas sobre o tapete, uma grana, imitação perfeita de persa. O telefone então tocou, como costuma às vezes tocar nessas horas, salvando a página em branco após a vírgula, ele estendeu a mão, tinha dedos até bonitos ele, juntas nodosas revelando angústia & sensibilidade, como diria Alice, mas Alice foi embora faz tempo, a cadela que eu até comia direitinho, estimulando o clitóris comme ilfaut, não é assim que se diz que se faz que se. O telefone tocou uma vez mais, e como se diz nesses casos, mais uma e mais outra e outra mais, enquanto com uma das mãos ele ligava o rádio libertando uma onda desgrenhada de violinos, Wagner, supôs, que tinha sua cultura, sua leitura, valquírias, nazismos, dachaus, judeus, e com a outra acariciava o pau começando a vibrar estimulado talvez pelos violinos, judeus, davis.
O telefone parou, o telefone não fazia nenhum som especial ao parar, mas deveria arfar, gemer quando entrasse fundo, duro e quente, judeuzinho de merda, deve estar metido naquele kibutz no meio da areia plantando trigo, não, trigo acho que não, é muito seco, azeitonas quem sabe, milho talvez, a cabeça quente do pau vibrava na palma da mão, foi no que deu ficar trocando livrinho de Camus por Anna Seghers, pervitin por pambenil, tesão se resolve é na cama, não emprestando livro nem apresentando droga, anote, aprenda, mas agora é troppo tarde, tudo já passou e minha vida não passa de um ontem não resolvido, bom isso. E idiota. E inútil.
Levantou de repente. Foi então que veio a náusea, só o tempo de caminhar até o banheiro e vomitar aos roncos e arquejos, onde estão todos vocês, caralho, onde as comunidades rurais, os nirvanas sem pedágio, o ácido em todas as caixas-d’água de todas as cidades, o azul dos azulejos começando a brilhar, maya, samsara, que às vezes voltava. De súbito lisérgico no meio de uma frase tonta, de um gesto pouco, de um ato porco como esse de vomitar agora as quinze miligramas leves leves. Alice abria as coxas onde a penugem se adensava em pêlos ruivos, depois gemia gostoso, calor molhado lá dentro. Neurônios arrebentados, tem um certo número sobrando, depois vão morrendo, não se recompõem nunca mais, quantos me restarão, meu deus e a mão de pêlos escuros de Davi acariciando as minhas veias até incharem, quase obscenas, latejando azul-claro sob a pele. Sabe, cara, quando te aplico assim com a agulha lá no fundo, às vezes chego a pensar que. Noites sem dormir e a luz do dia esverdeando as caras pálidas e as peles secas desidratadas e as vozes roucas de tanto falar e fumar e falar e fumar. Vomitou mais. Nojo, saudade. Sou um publicitário bem-sucedido, macio, rodando nas nuvens, o Carvalho me disse que rodando-nas-nuvens é do caralho, que achado, cara, você é um poeta, enquanto olho pra ele e não digo nada como eu mesmo já rodei nas nuvens um dia, agora tou aqui, atolado nesta bosta colorida, fodida & bem paga. Strawberryfields: no meio do vômito podia distinguir aqui e ali alguns pedaços de morangos boiando, esverdeados pelo mofo.

Andante ostinato
Nem ontem nem amanhã, só existe agora, repetia Jack Nicholson antes de ser morto a pauladas, enquanto ele espiava Davi jogado no fundo do poço tão profundo que precisaria de uma escada para descer até lá, evitando os escombros da cidadezinha que era ao mesmo tempo Kõln após a guerra e o Passo da Guanxuma, com aquele lago no centro de onde sem parar partiam ou chegavam barcos, nunca saberia, e não importa, Alice corria entre os ciprestes do cemitério sem túmulos enquanto ele gritava Alice, Alice, minha filha, quando é que você vai se convencer que não está mais do outro lado do espelho, até encontrar Billie Holiday em pé na escada entre paredes demolidas, aqueles degraus subindo para o nada, com Billie no topo decepada, solta no espaço de escombros repetindo e repetindo “you’ve changed, baby oh baby, you’ve changed so much’ estendeu a mão para socorrer John Lennon mas quando abriu a boca sangrenta, feito um vento preso numa caixa fugiu aquele horrível cheiro de morangos guardados há muito tempo, como um vento vindo do mar, um mar anterior, um mar quase infinito onde nenhuma gota é passado, nenhuma gota é futuro, tudo presente imóvel e em ação contínua, o cheiro de maresia era o mesmo do hálito da pantera biônica de cabelos dourados. Ah tantos anos de análise freudiana kleiniana junguiana reichiana rankiana rogeriana gestáltica. E mofo de morangos.
Gritaria. Mas acordou com o plim-plim eletrônico antes sequer de abrir a boca. O vento fresco da madrugada embalava as cortinas brancas feito velas de um barco encalhado, uma nau com todas as velas pandas, não adianta chorar, Alice, já falei que é loucura, pára de bater essas malditas carreiras, teu nariz vai acabar furando, melhor ser monja budista em Vitória do Espírito Santo ou carmelita descalça em Calcutá ou a mais puta das putas na putaqueapariu, não me olhe assim do fundo do poço, não me encham o saco com esse plim-plim hipnótico, eu fico aqui, meu bem, entre escombros.
Desligou a televisão, saiu para o terraço de plantas empoeiradas, devia cuidar melhor delas, não fosse essa presença viva dentro de mim corroendo carcomendo a célula pirada na alma fermentando o gosto nojento na língua. O cheiro daquele único jasmim espalhado sobre os sete viadutos da avenida mais central. Bastava um leve impulso, debruçou-se no parapeito, entrevado, morto da cintura para baixo, da cintura para cima, da cintura para fora, da cintura para dentro - que diferença faz? Oficializar o já acontecido: perdi um pedaço, tem tempo. E nem morri.

Minueto e rondó
Amanhecia. Não havia ninguém na rua.
Não, foi assim: debruçado no terraço, ele olhou primeiro para cima - e viu que o azul do céu quase preto aqui e ali se fazia cinza cada vez mais claro em direção ao horizonte, se houvesse horizonte, em todo caso atrás dos últimos edifícios que eram, digamos, um sucedâneo de horizontes. E amanhecia, concluiu então. Debruçado no terraço, ele olhou segundo para baixo - e viu que na longa rua não havia rumores nem carros nem pessoas, só os sete viadutos também desertos. Não havia ninguém na rua, concluiu ainda.
Debruçado no terraço, amanhecia.
Ao mesmo tempo, em seguida, um de-dentro pensou: e se alguém realmente e finalmente apertou o botão? e se aquele cinza-claro no sucedâneo de horizonte for o clarão metálico? e se eu estava dormindo quando tudo aconteceu? e se fiquei sozinho na cidade, no país, no continente, no planeta? Sabia que não. E um outro de-dentro pensava também, se sobrepujando mais claro, quase organizado, não totalmente porque para dizer a verdade não era um pensamento nem uma emoção, mas algo assim como o cinza-claro brotando natural por sobre o horizonte, se houvesse horizonte, ou como o vento fresco batendo nas cortinas, ou ainda como se uma onda nascesse daquele imóvel mar ativo, ali onde começa a luz, onde começa o vento, onde começa a onda, desse lugar qualquer que eu não sei, nem você, nem ele sabia agora: brotou qualquer coisa como - não quero ser piegas, mas talvez não tenha outro jeito - uma luz, um vento, uma onda. Exatamente. Uma onda calma ou arquejante, um vento minuano ou siroco, uma luz mortiça ou luminosa, repito que brotou, repetiu incrédulo.
Ele teve certeza. Ou claras suspeitas. Que talvez não houvesse lesões, no sentido de perder, mas acúmulos no sentido de somar? Sim sim. Transmutações e não perdas irreparáveis, alices-davis que o tempo levara, mas substituições oportunas, como se fossem mágicas, tão a seu tempo viriam, alices-davis que um tempo novo traria? Não era uma sensação química. Ele não tinha a boca seca nem as pupilas dilatadas. Estava exatamente como era, sem aditivos.
Vou-me embora, pensou: a estrada é longa.
Tocou então o próprio corpo. Uma glória interior, foi assim que batizou solene, infinitamente delicado, quando ela brotou. Arpejo, foi o que lhe ocorreu, ridículo complacente, cor-nu-có-pia soletrou, quero um instante assim barroco, desejou. Mas vestido de amarelo como estava, visto de costas contra o céu, supondo que uma câmera cinematográfica colocada aqui na porta desta sala o enquadrasse agora pareceria quase bizantino, ouro sobre azul, magreza mística, que tinha sua cultura, sua leitura. E culpa alguma. Gótico, gemeu torcido, unindo as duas mãos no sexo, no ventre, no peito, no rosto e elevando-as acima da cabeça.
O sol estava nascendo.
Poderia talvez ser internado no próximo minuto, mas era realmente um pouco assim como se ouvisse as notas iniciais de A sagração da primavera. O gosto mofado de morangos tinha desaparecido. Como uma dor de cabeça, de repente. Tinha cinco anos mais que trinta. Estava na metade, supondo que setenta fosse sua conta. Mas era um homem recém-nascido quando voltou-se devagar, num giro de cento e oitenta graus sobre os próprios pés, para deslizar as costas pela sacada até ficar de joelhos sobre os ladrilhos escuros, as mãos postas sobre o sexo.
Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos.
Achava que sim.
Que sim.
Sim.

Caio Fernando Abreu
fonte: sem amorsoaloucura.blogspot.com

arte: sir william orpen 


Se eu fosse casa escolhia ser janela.
Porque a janela é da casa o que não é, o vazio onde ela sonha ser mundo.

Mia Couto

Le Serpent qui danse


Que j'aime voir, chère indolente,
De ton corps si beau,
Comme une étoffe vacillante,
Miroiter la peau!

Sur ta chevelure profonde
Aux âcres parfums,
Mer odorante et vagabonde
Aux flots bleus et bruns,

Comme un navire qui s'éveille
Au vent du matin,
Mon âme rêveuse appareille
Pour un ciel lointain.

Tes yeux, où rien ne se révèle
De doux ni d'amer,
Sont deux bijoux froids où se mêle
L'or avec le fer.

A te voir marcher en cadence,
Belle d'abandon,
On dirait un serpent qui danse
Au bout d'un bâton.

Sous le fardeau de ta paresse
Ta tête d'enfant
Se balance avec la mollesse
D'un jeune éléphant,

Et ton corps se penche et s'allonge
Comme un fin vaisseau
Qui roule bord sur bord et plonge
Ses vergues dans l'eau.

Comme un flot grossi par la fonte
Des glaciers grondants,
Quand l'eau de ta bouche remonte
Au bord de tes dents,

Je crois boire un vin de Bohême,
Amer et vainqueur,
Un ciel liquide qui parsème
D'étoiles mon cœur!


Charles Baudelaire

Sendo sincero, não te amo com meus olhos
que em ti notam mil erros no cotejo;
mas ama o coração esses escolhos,
a adorar-te apesar do que ora vejo.
Nem de ouvi-lo teu tom de voz me prende,
Nem terno instinto pede baixo abrigo,
nem gosto ou cheiro o meu desejo acende
de festa sensual a sós contigo.
Mas cinco humores, cinco sentidos tomem,
que ao coração não hão-de desviá-lo
de te servir, descontrolando um homem,
escravo de teu peito e teu vassalo.
Só o meu mal posso contar por ganho;
de quem me faz pecar, o mal apanho.


William Shakespeare

domingo, 28 de novembro de 2010

Daniel Johns, vocalista do Silverchair, vegano.



“A razão pela qual eu me tornei vegano é que quando eu tinha 16 ou 17 anos, eu comecei a entender que nós não precisamos contribuir com  a morte e exploração de animais para nos alimentar corretamente.”


Daniel Johns, vocalista do Silverchair, vegano.

Entrevista completa  (em inglês): http://animal-lib.org.au/get-active/personalities/72-daniel-johns.html


fonte:http://vista-se.com.br/redesocial/

Af. 79 - O Encanto da imperfeição


Vejo aqui um escritor que, como tantas pessoas, seduz mais pelas suas imperfeições do que por tudo que sai elaborado e perfeito de suas mãos; pode mesmo dizer-se que a sua glória e a sua superioridade derivam da sua impotência em finalizar, mais do que do seu abundante vigor. Sua obra nunca exprime a fundo aquilo que gostaria de dizer exatamente, aquilo que desejaria ter visto perfeitamente: parece ter havido nele o antegosto de uma visão e nunca essa própria visão... mas dela lhe ficou, no fundo da alma, prodigioso desejo, e é nela que vai mergulhar a sua tão prodigiosa eloquência: do desejo e da fome. É graças a ela que eleva aqueles que o ouvem acima da sua obra e de todas as "obras", e lhes dá asas para subir mais alto do que normalmente os ouvidos alcançariam. Desta forma, transformados assim eles próprios em poetas e em videntes, prestam ao artífice da sua felicidade a mesma homenagem de admiração que lhe prestariam se ele os tivesse levado à imediata contemplação do seu santuário mais íntimo e mais sagrado, a mesma homenagem se ele tivesse atingido o seu objetivo, se ele tivesse verdadeiramente visto e mostrado a sua visão. Sua glória beneficia-se pelo fato de não ter exatamente atingido o seu objetivo.


Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência

You'd sing too! / Também tu cantarias!



You'd sing too
if you found yourself
in a place like this
You wouldn't worry about
whether you were as good
as Ray Charles or Edith Piaf
You'd sing
You'd sing
not for yourself
but to make a self
out of the old food
rotting in the astral bowel
and the loveless thud
of your own breathing
You'd become a singer
faster than it takes
to hate a rival's charm
and you'd sing, darling
you'd sing too


Também tu cantarias
se desses por ti
num lugar como este
Não te preocuparias
se serias tão bom como
o Ray Charles ou a Edith Piaf
Cantarias
cantarias
não para ti
mas para criar um eu
a partir do velho alimento
que apodrece na entranha astral
e na pancada surda, sem amor,
da tua própria respiração
Tornar-te-ias uma cantora
mais depressa do que o tempo necessário
até odiarmos o encanto de um rival
e cantarias, querida
também tu cantarias.



Leonard Cohen
tradução de Vasco Gato

Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray (7)



- Está falando sério?
- Absolutamente sério, Basil. Eu me lastimaria, se soubesse que fui alguma vez mais sério do que estou sendo neste momento.
- Mas aprova isso, Harry? – perguntou o pintor, andando de um lado para outro na saleta e mordendo o lábio.
- Não, não pode aprovar. Isso não passa de uma enfatuação absurda!
- Eu agora nunca aprovo nem reprovo nada. Aprovar e reprovar são atitudes absurdas para com a vida. Não viemos ao mundo para dar largas aos nossos preconceitos morais. Jamais presto atenção ao que diz o vulgo, nunca interfiro no que fazem as pessoas simpáticas. Quando uma personalidade me fascina, seja qual for o modo de expressão escolhido por essa personalidade, considero-o absolutamente satisfatório. Dorian Gray apaixonou-se por uma linda pequena que personifica Julieta, e pretende casar com ela. Por que não? Se casasse com Messalina, nem por isso seria menos interessante. Você sabe que eu não sou um paladino do casamento. O verdadeiro inconveniente do casamento é que ele extingue em nós o egoísmo. E os seres sem egoísmo são incolores. Carecem de personalidade. Ainda assim. Há temperamentos que o estado conjugal torna mais complexos. Esses conservam o seu egotismo e acrescentam muitos outros “egos”. Obrigados por isso a viver uma vida múltipla, tornam-se superiormente organizados. E ser superiormente organizado é, a meu ver, a finalidade da existência do homem. Ademais, toda experiência tem valor, e, diga-se o que disser, o casamento é sem dúvida uma experiência. Espero que Dorian Gray case com essa menina, que a adore apaixonadamente seis meses, e depois, da noite para o dia, apaixone-se por outra. Seria um objeto de estudo maravilhoso.
- Você não pensa uma palavra do que diz, Harry. Sabe que não. Se Dorian Gray se desgraçasse, ninguém o sentiria mais do que você. É muito melhor do que blasona ser.

Lorde Henry soltou uma risada.
- O motivo do nosso empenho em julgar bem o próximo é que temos medo de nós mesmos: a base do otimismo é puro receio. Consideramo-nos generosos, porque atribuímos aos nossos semelhantes as virtudes que nos podem ser úteis. Elogiamos o banqueiro que está em condições de nos proporcionar crédito; enxergamos boas qualidades num salteador, com a esperança de que ele nos poupe os bolsos. Eu penso tudo o que disse. E desprezo profundamente o otimismo. Quanto a estragar a vida, não há vida estragada, salvo a que deixa de se desenvolver. Se quiser desgraçar uma índole basta reformá-la. O casamento seria absurdo, concordo. Mas há outros laços, e mais interessantes, entre os homens e as mulheres. Eu os favorecerei. Têm o encanto de serem elegantes. E... Aí vem Dorian. Ele lhe dirá mais do que eu posso dizer.


Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray

sábado, 27 de novembro de 2010

O Palácio do Exílio


Durante sete anos habitei no livre Palácio do Exílio
Jogando estranhos jogos com as moças da ilha
Agora estou de volta à terra dos justos
E dos fortes e dos sábios

Irmãos e irmãs da pálida floresta
Crianças da noite
Quem de entre vós fugirá com a caça?

Agora a noite chega com a sua legião púrpura
Metam-se nas vossas tendas e nos vossos sonhos
Amanhã entramos na cidade do meu nascimento
Quero estar preparado


Jim Morrison

Primeira Lição



Os gêneros de poesia são: lírico, satírico, didático, épico, ligeiro.
O gênero lírico compreende o lirismo.
Lirismo é a tradução de um sentimento subjetivo, sincero e pessoal.
É a linguagem do coração, do amor.
O Lirismo é assim denominado porque em outros tempos os versos sentimentais eram declamados ao som da lira.
O lirismo pode ser:
a) Elegíaco, quando trata de assuntos tristes, quase sempre a morte.
b) Bucólico, quando versa sobre assuntos campestres.
c) Erótico, quando versa sobre o amor.
O lirismo elegíaco compreende a elegia, a nênia, a endecha, o epitáfio e o epicédio.
Elegia é uma poesia que trata de assuntos tristes.
Nênia é uma poesia em homenagem a uma pessoa morta.
Era declamada junto à fogueira onde o cadáver era incinerado.
Endecha é uma poesia que revela as dores do coração.
Epitáfio é um pequeno verso gravado em pedras tumulares.
Epicédio é uma poesia onde o poeta relata a vida de uma pessoa morta.


Ana Cristina César

Este Amor (This Love)


Se alguém pudesse ser um siboney
Boiando à flor do sol
Se alguém, seu arquipélago, seu rei
Seu golfo e seu farol
Captasse a cor das cores da razão do sal da vida
Talvez chegasse a ler o que este amor tem como lei
Se alguém, judeu, iorubá, nissei, bundo,
Rei na diáspora
Abrisse as suas asas sobre o mundo
Sem ter nem precisar
E o mundo abrisse já, por sua vez,
Asas e pétalas
Não é bem, talvez, em flor
Que se desvela o que este amor
(Tua boca brilhando, boca de mulher,
Nem mel, nem mentira,
O que ela me fez sofrer, o que ela me deu de prazer,
O que de mim ninguém tira
Carne da palavra, carne do silêncio,
Minha paz e minha ira
Boca, tua boca, boca, tua boca, cala minha boca)
Se alguém, cantasse mais do que ninguém
Do que o silêncio e o grito
Mais íntimo e remoto, perto além
Mais feio e mais bonito
Se alguém pudesse erguer o seu Gilgal em Bethânia...
Que anjo exterminador tem como guia o deste amor?
Se alguém, nalgum bolero, nalgum som
Perdesse a máscara
E achasse verdadeiro e muito bom
O que não passará
Dindinha lua brilharia mais no céu da ilha
E a luz da maravilha
E a luz do amor
Sobre este amor


Caetano Veloso

Relações de Fé

Ans Markus 

Um menino de oito anos observa uma janela e comenta: olha ali aquele vidro, mamãe, tem uma mancha esquisita, parece com uma santa, não parece? A mãe acha que parece o bico de uma mamadeira, mas o guri diz que a mãe não está vendo direito e chama o pai, que acha a figura igualzinha a Nossa Senhora, é esperto esse pirralho.
Aí a mãe chama o vizinho pra tirar a dúvida, e o vizinho cai de joelhos, e então a novidade ganha a rua, e o pessoal todo do bairro vem espiar, e alguém liga para uma estação de rádio que bota no ar a notícia, que se espalha e chega aos ouvidos dos repórteres do Jornal Nacional. Especialistas examinam e dizem que tudo não passa de um efeito gerado pelo aquecimento do vidro, mas ninguém quer saber de ter sua crença abalada. A peregrinação é espantosa, já tem até vendedor de cachorro-quente na porta da casa, e pipocam fonógrafos e pagadores de promessa. Saiam pra lá, seus céticos. É Nossa Senhora, sim, que veio nos mandar um aviso: “É na desesperança que o povo reencontra sua fé”. Ou qualquer coisa assim, ninguém ouviu direito.
Debocho sim. Não dá para levar a sério esse carnaval cada vez que alguém diz que viu uma estátua chorar ou Jesus piscar os olhos para alguém durante a missa do domingo. Sei que essas ilusões de ótica fazem parte da nossa cultura popular e pitoresca, mas então que se assuma a brincadeira, que se transforme isso em quermesse, e não em catolicismo cetgo.
Eu, pelo visto, levo a religião mais a sério do que essa gente que abandona o feijão queimando no fogo pra ficar plantada diante de uma janela com o terço na mão. Não acredito em milagre, mas acredito na fé, acho importante cultivar a esperança e valorizar o pensamento positivo, os valores fundamentados, a força de vontade, a paixão, a solidariedade. O que atrasa o mundo é gente transformando Fé em fanatismo. Fanáticos são os que doam seu suado dinheirinho para salvadores da pátria, são os que ficam inativos esperando soluções caídas do céu, são os que esfolam os joelhos subindo escadarias para agradecer uma graça alcançada. Graças são alcançadas pela medicina, pela sorte, pelo trabalho e pela inteligência: nunca pela ignorância.


Martha Medeiros

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

L´ homme et la mer


Homme libre, toujours tu chériras la mer!
La mer est ton miroir; tu contemples ton âme.
Dans le déroulement infini de sa lame,
Et ton esprit n´est pas un gouffre moins amer.

Tu te plais à plonger au sein de ton image;
Tu l´embrasses des yeux et des bras, et ton coeur
Se distrait quelquefois de sa propre rumeur
Au bruit de cette plainte indomptable et sauvage.

Vous êtes tous les deux ténébreux et discrets:
Homme, nul n´a sondé le fond de tes abimes;
O mer, nul ne connait tes richesses intimes,
Tant vous êtes jaloux de garder vos secrets!

Et cependant voilà des siècles innombrables
Que vous vous combatez sans pitié ni remord,
Tellement vous aimez le carnage et la mort,
O lutteurs éternels, ô frères implacables!


Charles Baudelaire

Aqui diante de mim

Arthur Berzinsh


Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!


Miguel Torga

Improviso à janela

 John Singer Sargent - circa 1909

Este é o começo do dia,
como o começo e o fim do mundo:
as nuvens aprendem a voar,
os campos vão sonhando nuvens,
o vento vai sonhando o pó
onde tristemente o amor palpitará.

Este é o começo do dia.
Vemos tudo o que já foi visto,
alguma coisa não mais se verá.

Nem sempre olhamos o dia
tão face a face e tão docemente.
Nem sempre sentimos esta saudade,
ainda ausente, ainda futura,
do que há e do que não há.

Este é o começo do dia:
- do céu, da luz, da terra, dos homens,
que acontecerá?


Cecília Meireles

Inventário do Ir-remediável


Foi de repente que o cigarro queimou os cabelos dele. Levantamos os olhos, nos encaramos tensos, quase em ódio, quase em amor, naquela repressão à beira de alguma coisa que poderia conduzit a qualquer gesto, mesmo ao homicídio. Mas sorrimos, e foi depois que tudo quebrou. Jamais voltamos à entrega mesma de antes e à ausência de solicitações e à aceitação sem barreiras. Foi de um de nós que partiu a morte, ou ela já nascia involuntária como a madrugada por trás dos vidros?

Olha em torno, o vazio do olhar fundindo-se com o vazio da sala. As pessoas, máscaras penduradas em corpos, o colorido das roupas gritando alto como se pudesse emprestar alguma individualidade ao que não era sequer sombra. O ar pesado de fumaça dos cigarros. Aperta nas mãos a caixa de fósforos vazia. Deixara o telefone do bar, o endereço, a hora que estaria ali. Um detalhado roteiro, feito dissesse dissimulado estou esperando, você pode me encontrar. Ah como doía manter-se assim disponível, completamente em branco para a procura. Não consegue fixar-se em nada. As faces inexpressivas, as paredes brancas onde não há sequer quadros, a toalha vermelha da mesa - tudo em ordem atrás da aparente desordem. Uma ordem interna, imutável, solidificada. Quase odeia os risos que brotam súbitos dos cantos. Por que lhe é negada essa possibilidade de entrega ao que está sendo? Por que a espera, se a espera não o cabe mais? Só o ar denso, azulado de cigarros fumados. E o vazio da caixa de fósforos. Examina o relógio, mas não vê as horas, não vê nada. Seu pensamento lateja preso numa imagem determinada. Quase não pode projetá-la para fora de si, concretizá-la em visão. E o vê abrindo lento a porta,investigando em tomo, de repente erguendo as sobrancelhas num gesto de quem reconhece. Então se encaminharia devagarinho até a mesa, vestido de azul - não sabe por que, nunca o viu de azul, não sabe mesmo se existe aquele casaco jogado sobre os ombros. Só vê uma mancha azul e o rosto destacado em indagação. Os olhos. Como se dissessem: fala. Falaria? O quê? A porta se abre, cortando o pensamento. Dobra-se em ânsia, quase vira os copos: uma mulher de verde, nariz grande, ar de psicóloga em busca de material. Vira para a outra mesa, pede um fósforo.

Eu não procurei, não insisti. Contive tudo dentro de mim até que houvesse um movimento qualquer de aceitação. Quando houve, cedi. A sua cabeça pesava no meu braço. Ele estava bêbado? Estava cansado? Eu era apenas um braço onde ele debruçava a sua exaustão? Ele se indagava se eu o recebia como receberia qualquer cansaço humano ou sabia que eu estava tenso, na espreita, dilacerado? Os outros dois dançavam no meio da sala. Não viam ou não queria ver ou não havia nada para ver? O corpo de Lídia era 19udo como uma flecha. Aquele contato era premeditado ou ocasional?

As indagações pesavam sem resposta, e numa lucidez desesperada eu num repente assimilava todos os detalhes, dissecava o que acontecia em tomo como se tivesse mil olhos, envelhecia como a noite lá fora, virando madrugada, a luz fraca - eu tudo compreendia, tudo sabia. Menos aquela cabeça pesando no meu braço. Que espécie de busca o levara àquele gesto? Me quebrava por dentro, a cabeça afundando cada vez mais no meu corpo, eu negava, fugia, tenso, o cigarro morto nas mãos, a cinza caindo sobre o tapete.

Eles dançavam há muito tempo, muito tempo. E eu morria. A cabeça dele se movimentava, sua boca esmagava meu braço. Fechei os olhos e afundei os dedos nos seus cabelos.

Ergue-se de um salto ouvindo o toque do telefone. Espreita a secretária levando o fone ao ouvido. Lentamente, acompanha os olhos da secretária vagando em tomo, inexpressivos. Depois ela chama por outro nome. Não o seu. O tampo verde da mesa recebe os seus braços e o peso da cabeça. Abre uma gaveta à toa, papéis misturados, envelopes, cartas que não dizem nada, não trazem nada.

Espalma as mãos sobre o teclado da máquina. Bate, leve. Podia escrever um poema. Não. Recusa mesmo essa espécie de alívio. Não quer a cor. Prefere o dilaceramento cada vez mais intenso, mais insolucionado. Precisa sofrer e morrer muitas vezes por dia para sentir-se vivo. Chegara à constatação de que era só, único, e que devia bastar-se a si mesmo, e justamente por isso precisava de uma outra pessoa. Os grãos de areia nunca se tocam. Mesmo quando juntos há entre eles uma espécie de carapaça que não os deixa tocarem se. Jamais um núcleo toca outro núcleo. A terra é azul, os olhos eram azuis, ele vestiria azul - dentro de muitos azuis concêntricos, ele voltaria a se perder. Um certo prazer em saber-se assim solto, assim perdido entre as coisas, assim contendo um mal-estar que ninguém saberia de quê. O tic-tac das máquinas de escrever. O sol coado pelas persianas. Uma brecha de luz em cima da mesa. A sombra de seu perfil na parede. Amassa várias folhas de papel, joga-as no chão, gesto brusco. Você sabe que vai ser sempre assim. Que essa queda não é a última. Que muitas vezes você vai cair e hesitar no levantar-se, até uma próxima queda. Prefere jogar-se numa atitude que seria teatral, não fosse verdadeira, sentir os espinhos rasgando carne, as pedras entrando no corpo, o rosto espatifado contra o fim desconhecido. Precisa ir até o fundo.

Guardou vários dias o perfume dos cabelos dele nos pêlos do próprio braço. Como um adolescente. Agora só vê um braço deserto, a pulseira preta do relógio sublinhando a zona do pulso. A parede em frente cheia de fotografias. Arranca todas, vai picando em pedaços cada vez e cada vez menores. Solta devagar no cesto de lixo. Guarda um entre os dedos. Espia. Num fundo indeciso, resta um olho a observá-lo. Azul.

Foi na segunda vez que sentei no chão. Carlos dormia. Lídia desenhava. O copo estava quase vazio. Foi então que ele sentou perto de mim. As mãos sustentavam a cabeça. A posição devia ser incômoda -o corpo apoiado em meio sobre o assoalho, a cabeça no ar, os pés no ar. Eu tremia? Não. Sentia minhas próprias unhas furando as palmas das mãos, mas meu corpo estava seguro, em riste. O primeiro toque foi dele. As mãos comprimiram minhas pernas. Depois, uma das mãos libertou-se avançando em forma de ternura. Nos seus cabelos, as minhas mãos iam e vinham, adivinhando a tessitura. Era noite, ainda. O ritual já fora cumprido. Puxou-me para si, os nossos corpos opostos no assoalho, duas lanças apontando uma para a outra. E de repente nos ferimos. Com a boca. Senti seus lábios nos meus, os dentes se chocando, as mãos que seguravam meu rosto, investigavam meus traços, eu nascia por dentro, quase gritava, tentávamos desvendar um ao outro, mas não íamos além da tentativa,  que já se fazia angústia em suas mãos como espinhos, subindo por meu corpo inteiro, busca tensa. Não, não era amor, não foi amor. Tudo explodia num plano muito mais alto, muito mais intenso. Nos desvendávamos com a fúria dos que antecipadamente sabem que não vão conseguir jamais.

Alguma coisa morria em mim naquela procura de meta inatingível, desconhecida -e num tempo mesmo algo nascia de repente, puxado não sei de que desvão, de que sombra oculta, de que arca fechada, coberta de poeira, abriam-se portas em mim, janelas quebravam, estilhaços saltavam, pedaços de vidro me cortavam sem piedade, já não via a noite, o dia, o tempo, o espaço onde estávamos, vagávamos no cosmos ou estávamos presos numa esfera conhecida? Eu não sabia, eu morria, eu nascia sucessivamente, em desespero, eu compreendia súbito. Não, não era amor. Era terror.

Desce do ônibus, alcança a escada rolante. O dia morre no fim da avenida que se espalha nas nascentes da galeria. Os degraus subindo em lenta ascensão. Vai além deles, corre vencendo a máquina. A rua apinhada de gente e carros. As buzinas em loucura. Os anúncios luminosos começam a acender, indecisos. As luzes dos postes. Atravessa a rua correndo. O automóvel freia. Pessoas param, suspensas, atentas a um acontecimento que quebraria súbito o estático do momento. Junta os livros no chão, alcança a calçada, quase corre, esbarra, vira a esquina, ofega, a subida põe gotas de suor no seu rosto. Entra no edifício. O zelador lê uma fotonovela. Alguma coisa para mim? Pergunta. Quê? Alguma coisa para mim. Não pergunta mais, afirma, sabe que tem. Ah sim, uma carta. Estende o envelope pesado de que angústia, de que explicação, de que riso talvez? Olha o remetente, amassa em desalento o apoio que não quer, que não busca, que não espera.

Ninguém me procurou? Não. Ninguém. Aperta o botão do elevador. Pelo corredor vai desabotoando a camisa, tira o paletó, a gravata, afrouxa o cinto. Abre a porta. Espia, os olhos meio estrábicos no medo de ver o bilhete que não existe sobre o assoalho vazio. Joga as roupas numa cadeira. Apóia o corpo na janela. Acende um cigarro. Espia a rua, as pessoas, a noite que se cumpre mais uma vez. Liga o rádio. Não ouve a música. Os olhos se turvam, por dentro uma coisa aperta num jeito de quem estrangula. Não pode gritar. As paredes se dobram, fremem, prenhes de ironia.

Suspira. Exausto.

Não queria, desde o começo eu não quis. Desde que senti que ia cair e me quebrar inteiro na queda para depois restar incompleto, destruído talvez, as mãos desertas, o corpo lasso. Fugi. Eu não buscaria porque conhecia a queda, porque já caíra muitas vezes, e em cada vez restara mais morto, mais indefinido -e seria preciso reestruturar verdades, seria preciso ir construindo tudo aos poucos, eu temia que meus instrumentos se revelassem precários, e que nada eu pudesse fazer além de ceder. Mas no meio da fuga, você aconteceu. Foi você, não eu, quem buscou. Mas o dilaceramento foi só meu, como só meu foi o desespero. Que espécie de coisa o cigarro queimou, além dos cabelos? Sei que foi mais fundo, mais dentro, que nessa ignorada dimensão rompeu alguma coisa que estava em marcha. Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu. A noite ultrapassou a si mesma, encontrou a madrugada, se desfez em manhã, em dia claro, em tarde verde, em anoitecer e em noite outra vez. Fiquei. Você sabe que eu fiquei. E que ficaria até o fim, até o fundo. Que aceitei a queda, que aceitei a morte. Que nessa aceitação, caí. Que nessa queda, morri. Tenho me carregado tão perdido e pesado pelos dias afora. E ninguém vê que estou morto.

Abre devagar o armário do banheiro. O espelho reflete uma face de barba não feita, olheiras fundas, leve contração nas sobrancelhas. Abre o pacote de lâminas, retira uma, vai amassando aos poucos o papel. Senta na beira da cama, o aço nas mãos.

Examina a cicatriz já antiga, um simples fio no pulso. Aperta.

Sente as pulsações. O frio da lâmina entre os dedos. A cicatriz, lembrança de uma outra queda. Do apartamento ao lado chegam os sons desfeitos de algo que devia ser música. Um vento indeciso de madrugada entra pela janela. Está sentado na cama, corpo nu, pés descalços, costas curvas. A lâmina vibra entre os dedos. Nenhum pensamento. Só espera. Atenção fixa em si mesma. Dobra os ombros, como se chorasse. E não corta. Joga a lâmina pela janela, vai-se curvando para si mesmo. Os braços se cruzam, enlaçam os joelhos, a cabeça afunda entre as pernas. Não chora sequer. No cinzeiro, o cigarro esquecido queima. Um fino fio de fumaça sobe aos poucos indeciso, adensando o ar que se enche de olhos, de mãos, de gestos incompletos, vozes veladas, palavras não formuladas. Sem compreender, vaga entre a fumaça e tomba. Como um cego, vendo apenas para dentro.


Caio Fernando Abreu

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Paul McCartney ofereceu almoço vegetariano para 200 pessoas em SP



Os portões do Estádio do Morumbi ainda não tinham sido abertos para o público, mas 200 pessoas vips, que compraram um ingresso de US$ 1.400, já estavam lá dentro desde o meio-dia. Participaram de um almoço vegetariano organizado pela produção de Paul McCartney e, entre as 16h40 e as 17h30, puderam assistir à passagem de som do ex-beatle, que cantou músicas que estão fora do repertório do show.


fonte: http://vista-se.com.br/redesocial/

Transcrição de música de órgão


A flor na jarra de manteiga de cacau que estava antes na cozinha, contorcida para chegar até a luz,
a porta do armário aberta porque o usei há pouco, continuou gentilmente aberta esperando-me, seu dono.

Comecei a sentir minha miséria no catre sobre o chão, escutando a música, minha miséria, é por isso que eu quero cantar.
O quarto fechou-se por cima de mim, esperava a presença do Criador, vi minhas paredes pintadas de cinza e o forro, elas contêm meu quarto, ele me contém e o céu contém meu jardim, abro minha porta.
O pé da trepadeira subiu pela pilastra do chale, as folhas da noite lá onde o dia as havia deixado, as cabeças animais das flores lá onde haviam apodrecido para pensar ao sol

Posso trazer as palavras de volta? Pensar na transcrição, isso embaçará meu olho mental aberto?

A suave busca do crescimento, o gracioso desejo de existir das flores, meu quase êxtase de existir no meio delas.
O privilégio de testemunhar minha própria existência - você também deve procurar o sol...
Meus livros empilhados à minha frente para meu uso aguardando no espaço onde os coloquei, eles não desapareceram, o tempo deixou seus restos e qualidades para que eu os usasse - minhas palavras empilhadas, meus textos, meus manuscritos, meus amores.

Tive um lampejo de claridade, vi o sentimento no coração das coisas, saí para o jardim chorando.
Vi as flores vermelhas na luz da noite, o sol que se foi, todas elas cresceram em um momento e estavam aguardando paradas no tempo para que o sol do dia viesse e lhes desse...
Flores que num sonho ao anoitecer eu reguei fielmente sem perceber o quanto as amava.
Estou tão só em minha glória - exceto por elas também lá fora - olhei para cima - essas inflorescências dos arbustos vermelhos acenando e despontando na janela à espera em cego amor, suas folhas também sentem esperança e estão com sua parte de cima virada pra o céu para receber - toda a criação aberta para receber - até a terra achatada.

A música desce, assim como desce o pesado ramo cheio de flores, pois assim tem que ser, para continuar vivendo, para continuar até a última gota de alegria.
O mundo conhece o amor no seu seio assim como na flor, o solitário mundo sofredor.
O Pai é piedoso.

O soquete da lâmpada está cruelmente atarrachado ao forro, desde quando a casa foi construída para receber um conector bem ligado nela e que agora está ligado também à minha vitrola...

A porta do armário está aberta para mim, lá onde a deixei, e já que a deixei aberta, continuou graciosamente aberta.
A cozinha não tem porta, o buraco está lá me aceitará se eu quiser entrar na cozinha.
Lembro-me da primeira vez que fui fodido. HP graciosamente me desvirginou, estava no cais de Provincetown, 23 anos, alegre, exaltado com a esperança do Pai, a porta do ventre estava aberta para aceitar-me se eu quisesse entrar.
Há tomadas de eletricidade ainda não-usadas por toda a casa, se eu precisar delas.
A porta da cozinha está aberta para deixar o ar entrar...
O telefone - é triste contar - largado no chão - não tenho dinheiro para ligá-lo -

Quero que as pessoas se inclinem ao ver-me e digam que ele recebeu o dom da poesia, ele viu a presença do Criador.
E o Criador me deu um instante da sua presença para satisfazer meu desejo, para que eu não me desiluda no meu anseio de conhecê-lo.


Allen Ginsberg

Cantata vesperal

Christian Schloe

CERRAI-VOS, OLHOS, que é tarde, e longe,
E acabou-se a festa a festa do mundo:
Começam as saudades hoje.

Longos adeuses pelas varandas
Perdem-se; e vão fugindo em mármore
Cascatas céleres de escadas.

Pelos portões não passam mais sombras,
Nem há mais vozes que se entendam
Nas distâncias que o céu desdobra.

As ruas levam a mares densos.
E pelos mares fogem barcas
Sem esperanças de endereços.


Cecília Meireles

Crepúsculo

Darío Ortiz Robledo

É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.


 David Mourão-Ferreira

quarta-feira, 24 de novembro de 2010


Entre os dias da semana,
olhada à minha maneira,
de todos o mais bacana
sem dúvida é quarta-feira.


Carlos Drummond de Andrade

Liberdade

Dorina Costras 


Desligada
O vento morde meus cabelos sem medo:
Tenho todas as idades.


Olga Savary

Canção desilusória

Dylan John Lisle 

Já não se pode mais falar!...
O encantamento está perdido...
Tudo são frases sem sentido
e as palavras dispersas no ar...
O encantamento está perdido!...
Já não se pode mais falaR...

Já não se pode mais sonhar!...
Em vão se canta ou se deplora!
Todos os sonhos são de outrora...
Vêm de um sonho preliminar...
Em vão se canta ou se deplora...
Já não se pode mais sonhar!...

Já não se pode mais amar!...
Oh! soturna monotonia...
A saudade e a melancolia
são de todo tempo e lugar!
Oh! soturna monotonia!...
Já não se pode mais amar...

Já não se pode mais findar!
Numa interminável miséria,
depois do opróbrio da matéria,
surge o castigo do avatar!
Numa interminável miséria...
Já não se pode mais findar!...

Já não se pode mais chorar!
É o destino...o Alfa-Ômega... a Sorte...
É melhor não pensar na morte,
ao sentir a vida passar...
É o destino...o Alfa-Ômega... a Sorte...
E só nos resta renunciar!...


Cecília Meireles
Foto de Svetlana Melik-Nubarova

Recorto a minha sombra da parede,
Dou-lhe corda, calor e movimento,
Duas demãos de cor e sofrimento,
Quanto baste de fome, o som, a sede.

Fico de parte a vê-la repetir
Os gestos e palavras que me são,
Figura desdobrada e confusão
De verdade vestida de mentir.

Sobre a vida dos outros se projeta
Este jogo das duas dimensões
Em que nada se aprova com razões
Tal um arco puxado sem a seta.

Outra vida virá que me absolva
Da meia humanidade que perdura
Nesta sombra privada de espessura,
Na espessura sem forma que a resolva.


José Saramago

terça-feira, 23 de novembro de 2010

O lago morto

Pintura De Comonian


O lago morto, o céu cinzento ao luar;
Pálida, lutando, coberta pelas nuvens,
A lua.

O murmúrio obstinado que cochicha e passa
(Dir-se-ia que tem medo de falar em alta voz).
Tão triste agora,
Recae sobre meu coração,
Onde a alegria morre como um rio deserto.

Minhas pobres alegrias...
Não as toqueis,
Floridas e sorridentes.

Lentamente, a raiz acaba de morrer.


Emily Brontë
(Tradução de Lúcio Cardoso)

Mulher



Pela noite, pela tarde, pelo dia
ninguém jamais saberá onde estiveste
não dupla, múltipla e una, onde estás

menos real que pressentida.


Olga Savary

Trânsito

Ele lihuai

Tal qual me vês,
há séculos em mim:
números, nomes, o lugar dos mundos
e o poder do sem fim.

Inútil perguntar
por palavras que disse:
histórias vãs de circunstância,
coisas de desespero ou meiguice.

(Mísera concessão,
no trajeto que faço:
postal de viagem, endereço efêmero,
álibi para a sombra do meu passo…)

Começo mais além:
onde tudo isso acaba, e é solidão.
Onde se abraçam terra e céu, caladamente,
e nada mais precisa explicação.


Cecília Meireles
Fabian Perez 

Lembro-me bem do seu olhar.
Ele atravessa ainda a minha alma,
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto...
Sim o resto parece-se apenas com a vida.
Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível
Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.
Fumo, sonho, recostado na poltrona.
Dói-me viver como uma posição incômoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das cousas
Onde sofrer seja uma cousa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.
Abrigo no peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real,
Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta,
Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove.


 Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Felice-Pedretti

O poeta canta a si mesmo
porque nele é que os olhos das amadas
têm esse brilho a um tempo inocente e perverso...

O poeta canta a si mesmo
porque num seu único verso
pende - lúcida, amarga -
uma gota fugida a esse mar incessante do tempo...

Porque o seu coração é uma porta batendo
a todos os ventos do universo.

Porque além de si mesmo ele não sabe nada
ou que Deus por nascer está tentando agora
ansiosamente respirar
neste seu pobre ritmo disperso!

O poeta canta a si mesmo
porque de si mesmo é diverso.


Mario Quintana

Desenho

fidel garcia

Traça a reta e a curva,
a quebrada e a sinuosa.
Tudo é preciso.
De tudo viverás.

Cuida com exatidão da perpendicular
e das paralelas perfeitas.
Com apurado rigor.
Sem esquadro, sem nível, sem fio de prumo,
traçaras perspectivas, projetaras estruturas.
Numero, ritmo, distancia, dimensão.
Tens os teus olhos, o teu pulso, a tua memória.

Construirás os labirintos impermanentes
que sucessivamente habitaras.

Todos os dias estarás refazendo o teu desenho.
Não te fatigues logo. Tens trabalho para toda a vida.
E nem para o teu sepulcro terás a medida certa.

Somos sempre um pouco menos do que pensávamos.
Raramente, um pouco mais.


Cecília Meireles

DIÁRIO 
SEGUNDA-FEIRA, 29 DE JANEIRO DE 1932. 

ACONTECEU-ME qualquer coisa; já não posso duvidar. Qualquer coisa que veio à maneira duma doença, não como uma vulgar certeza, não como uma evidência; que se instalou sorrateiramente, pouco a pouco. A dada altura senti-me um tanto esquisito, algo incomodado, mais nada. Tomado o seu lugar, essa coisa não mexeu mais, ficou como estava, e pude assim convencer-me de que não tinha nada, que tinha sido um rebate falso. Mas eis que o mal começa a propagar-se. Não acho que a profissão de historiador disponha para a análise psicológica. É um trabalho em que só se entra em jogo com sentimentos inteiros, aos quais se dão nomes genéricos, como Ambição, Interesse. Se eu tivesse, porém, uma sombra de conhecimento de mim próprio, era agora que devia utilizá-la. Nas minhas mãos, por exemplo, há qualquer coisa de novo, certa maneira de agarrar no cachimbo ou no garfo. Ou então é o garfo que tem agora uma maneira diferente de se deixar agarrar; não sei. Há bocadinho, quando ia entrar no meu quarto, detive-me repentinamente, porque senti na mão um objeto frio que me chamava a atenção, como se possuísse uma espécie de personalidade. Abri a mão, olhei: era simplesmente o fecho da porta. Hoje de manhã, na Biblioteca, quando o Autodidata, veio cumprimentar-me. *1 Ogier P..., de quem muitas vezes se falará neste diário. Era um ajudante de tabelião. Roquentin travara conhecimento com ele, em 1930, na Biblioteca de Bouville. Precisei duns dez segundos para o reconhecer. Via diante de mim uma cara desconhecida, apenas uma cara. E depois havia a mão dele, como um grande bicho branco na minha mão. Larguei-a logo, e o braço caiu molemente. Nas ruas há também uma quantidade de ruídos equívocos que perpassa. Produziu-se pois uma mudança durante estas últimas semanas. Mas onde? uma mudança que não se fixa em sítio nenhum. Fui eu que mudei? Se não fui, então foi este quarto, esta cidade, esta natureza; é preciso escolher. Acho que fui eu que mudei: é a solução mais simples. E mais desagradável também. Mas, enfim, tenho de reconhecer que sou sujeito a estas transformações súbitas. Sucede que só muito raras vezes penso; assim uma infinidade de pequenas metamorfoses vai-se acumulando em mim sem eu dar por isso. e depois,  um belo dia, produz-se uma verdadeira revolução. Foi o que deu à minha vida estes solavancos, este aspecto incoerente. Quando saí de França, por exemplo, muita gente começou a dizer que a minha partida fora uma leviandade. E, quando voltei, bruscamente, após seis anos de viagem, de novo se podia ter falado de leviandade. Ainda me estou a ver, com Mercier, no gabinete daquele funcionário francês que se demitiu o ano passado, em consequência do caso Pétrou. Mercier dirigia-se a Bengala com uma missão arqueológica. Eu desejara sempre ir a Bengala, e ele instara comigo para que fosse ter com ele. Agora pergunto a mim próprio por quê. Creio que Mercier não tinha muita confiança em Portal e que contava comigo para o trazer debaixo de olho. Eu não via motivo para recusar. E mesmo se tivesse pressentido, na altura, esse pequeno conluio contra Portal, mais uma razão teria visto nisso para aceitar com entusiasmo. Pois bem, senti-me como paralisado, não podia dizer uma palavra. Estava a olhar para uma pequena estatueta khmeriana, assente numa toalha verde ao lado dum telefone. Parecia-me que estava cheio de linfa ou de leite morno. Mercier dizia-me com uma paciência angélica que velava uma ponta de irritação: «Não é? Tenho necessidade de obter uma resposta definitiva. Sei bem que você acabará por dizer que sim: valia mais aceitar já.» Mercier deixa crescer a barba, que é dum negro arruivado, e perfuma-a muito. A cada movimento da sua cabeça eu respirava uma baforada de perfume. E depois, bruscamente, acordei dum sono de seis anos. A estátua pareceu-me desagradável e estúpida, e senti que me aborrecia profundamente. Não conseguia compreender porque é que estava na Indochina. Que estava eu ali a fazer? Porque estava a falar com aquelas pessoas? Porque estava vestido duma maneira tão exótica? Tinha morrido a paixão que me submergia e arrastara durante anos; naquela altura sentia-me vazio. Mas não era isso o pior: defronte de mim, instalada com uma espécie de indolência, havia uma ideia volumosa e insípida. Não sei exatamente o que era, mas não podia olhá-la, a tal ponto ela me repugnava. Tudo isso se confundia para mim com o perfume da barba de Mercier. Reagi, num acesso de cólera contra ele; respondi secamente: «Agradeço-lhe, mas penso que já viajei bastante: agora tenho de voltar a França.» Dois dias depois tomava o barco para Marselha. Se não me engano, se todos os sinais que se vão acumulando são precursores duma nova transformação brutal da minha vida, então tenho medo. Não que a minha vida seja rica, importante, nem preciosa. Mas tenho medo do que vai nascer, apoderar-se de mim - e arrastar-me... arrastar-me para onde? Vou ter outra vez de partir, deixar tudo em meio, as minhas pesquisas, o meu livro? Voltarei a acordar daqui a alguns meses, daqui a alguns anos, derreado, desiludido, no meio de novas ruínas? Queria ver claramente o que se passa em mim, antes que seja tarde de mais.


Jean-Paul Sartre, A Náusea

Frieza

Francesca Strino

Os teus olhos são frios como espadas,
E claros como os trágicos punhais;
Têm brilhos cortantes de metais
E fulgores de lâminas geladas.

Vejo neles imagens retratadas
De abandonos cruéis e desleais,
Fantásticos desejos irreais,
E todo o oiro e o sol das madrugadas!

Mas não te invejo, Amor, essa indiferença,
Que viver neste mundo sem amar
É pior que ser cego de nascença!

Tu invejas a dor que vive em mim!
E quanta vez dirás a soluçar:
"Ah! Quem me dera, Irmã, amar assim!..."


Florbela Espanca