quinta-feira, 21 de janeiro de 2016



Not only the thirsty seek the water,
the water as well seeks the thirsty.

Jalaluddin Rumi

29. Metafísica

fabian perez

A sua metafísica é uma mora simples: não fazer a ninguém nem mal nem bem

«Não tenho fé em nada, esperança em nada, caridade para nada.»

Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma metafísica, assim também, quer o queiramos quer não, temos todos uma moral. Tenho uma moral muito simples - não fazer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha de haver no mundo. Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem. Não fazer bem, porque não sei o que é o bem, nem se o faço quando julgo que o faço. Sei eu que males produz se dou esmola? Sei eu que males produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. E acho, ainda, que auxiliar ou esclarecer é, em certo modo, fazer o mal de intervir na vida alheia. A bondade é um capricho temperamental: não temos o direito de fazer os outros vítimas de nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de ternura. Os benefícios são coisas que se infligem; por isso os abomino friamente.

Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo façam Se adoeço, o que mais me pesa é que obrigo alguém a tratar-me, coisa que me repugnaria de fazer a outrem. Nunca visitei um amigo doente. Sempre que, tendo eu adoecido, me visitaram, sofri cada visita como um incômodo, um insulto, uma violação injustificável da minha intimidade decisiva. Não gosto que me deem coisas; parecem com isso obrigar-me a que as dê também - aos mesmos ou a outros, seja a quem for.

Sou altamente sociável de um modo altamente negativo. Sou a inofensividade encarnada. Mas não sou mais do que isso, não quero ser mais do que isso, não posso ser mais do que isso. Tenho para com tudo que existe uma ternura visual, um carinho da inteligência - nada no coração. Não tenho fé em nada, esperança de nada, caridade para nada. Abomino com náusea e pasmo os sinceros de todas as sinceridades e os místicos de todos os misticismos ou, antes e melhor, as sinceridades de todos os sinceros e os misticismos de todos os místicos. Essa náusea é quase física quando esses misticismos são ativos, quando pretendem convencer a inteligência alheia, ou mover a vontade alheia, encontrar a verdade ou reformar o mundo.

Considero-me feliz por não ter já parentes. Não me vejo assim na obrigação, que inevitavelmente me pesaria, de ter que amar alguém. Não tenho saudades senão literariamente. Lembro a minha infância com lágrimas, mas são lágrimas rítmicas, onde já se prepara a prosa. Lembro-a como uma coisa externa e através de coisas externas; lembro só as coisas externas. Não é sossego dos serões de província que me enternece da infância que vivi neles, é a disposição da mesa para o chá, são os vultos dos móveis em torno da casa, são as caras e os gestos físicos das pessoas. É de quadros que tenho saudades. Por isso, tanto me enternece a minha infância como a de outrem: são ambas, no passado que não sei o que é, fenômenos puramente visuais, que sinto com a atenção literária. Enterneço-me, sim, mas não é porque lembro, mas porque vejo.

Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensações minhas - estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes que são uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo, dizer-me coisas do passado (tão fácil de lembrar pelos cheiros)   isto é, de me darem mais realidade, mais emoção, que o simples pão a cozer lá dentro na padaria funda, como naquela tarde longínqua em que vinha do enterro do meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um alívio, não sei bem de quê.

É esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu; transeunte de tudo - até de minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada - centro abstrato de sensações impessoais, espelho caído sentiente virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz; nem me importa.

Bernardo Soares
Livro do desassossego

Vai-te


marcus stone

Por que voltaste? Esquecidos
Meus sonhos, e meus amores
Frios, pálidos morreram
Em meu peito. Aquelas flores
Da grinalda da ventura
Tão de lágrimas regada,
Nesta fronte apaixonada
Cingida por tua mão,
Secaram, mortas estão.
Pobre pálida grinalda!
Faltou-lhe um orvalho eterno
De teu belo coração.
Foi de curta duração
Teu amor: não compreendeste
Quanto amor esta alma tinha…
Vai, leviana andorinha,
A outro clima, outro céu:
Meu coração? Já morreu
Para ti e teus amores,
E não pode amar-te — vai!
O hino das minhas dores
Dir-te-á a brisa, à noite,
Num terno, saudoso — ai —
Vai-te — e possa a asa do vento
Que pelas selvas murmura,
Da grinalda da ventura
Que em mim outrora cingiste,
Inda um perfume levar-te,
Morta assim: como um remorso
Do teu olvido… eu amar-te?
Não, não posso; esquece, parte;
Eu não posso amar-te… vai!


Machado de Assis
 (1º jan. 1858), em “Marmota, 26 jan. 1858.”. In: ASSIS, Machado. “Toda poesia de Machado de Assis”. [organização: Cláudio Murilo Leal].Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.

Daniel F. Gerhartz.

"Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o mundo, lemos a vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não leem livros. Mas o déficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros."

Mia couto, em "E se obama fosse africano?

Eterno

Bryce Cameron Liston


Entre uma flor colhida e outra ofertada
o inexprimível nada


Tra un fiore colto e l'altro donato
l'inesprimibile nulla


Giuseppe Ungaretti

Ensaio sobre a cegueira


José Saramago foto Nuno Ferreira Santos

O edifício à porta do qual a limusina se encontra é um banco. O carro trouxe o presidente do conselho de administração à reunião plenária semanal, a primeira que se realizava desde que se tinha declarado a epidemia de mal-branco, e não houve tempo depois para levá-lo à garagem subterrânea, onde esperaria o fim dos debates. O condutor cegou quando o presidente ia a entrar no edifício, pela porta principal, como gostava, ainda deu um grito, estamos a falar do condutor, mas ele, estamos a falar do presidente, já não o ouviu. Aliás, a reunião não seria tão plenária quanto a sua designação presumia, nos últimos dias tinham cegado alguns dos membros do conselho. O presidente não chegou a abrir a sessão, cuja ordem de trabalhos previa precisamente a discussão e tomada de medidas para o caso de virem a cegar todos os membros do conselho de administração efetivos e suplentes, e nem sequer pôde entrar na sala de reuniões porque quando o ascensor o levava ao décimo quinto andar, exatamente entre o nono e o décimo, faltou a corrente eléctrica, para nunca mais. E como uma desgraça nunca vem só, no mesmo instante cegaram os eletricistas que se ocupavam da manutenção da rede interna de energia e consequentemente também do gerador, modelo antigo, não automático, que andava há tempos para ser substituído, o resultado, como antes se disse, foi ter ficado o ascensor parado entre o nono e o décimo andares. O presidente viu cegar o ascensorista que o acompanhava, ele próprio perdeu a vista uma hora depois, e como a energia não voltou e os casos de cegueira dentro do banco se multiplicaram nesse dia, o mais certo é que os dois ainda lá estejam, mortos, escusado será dizê-lo, fechados num túmulo de aço, e por isso felizmente a salvo de cães devoradores.

Não havendo testemunhas, e se as houve não consta que tenham sido chamadas a estes autos para nos relatarem o que se passou, é compreensível que alguém pergunte como foi possível saber que estas coisas sucederam assim e não doutra maneira, a resposta a dar é a de que todos os relatos são como os da criação do universo, ninguém lá esteve, ninguém assistiu, mas toda a gente sabe o que aconteceu. A mulher do médico tinha perguntado, que se terá passado com os bancos, não era que lhe importasse muito, apesar de ter confiado as suas economias a um deles, fez a pergunta por simples curiosidade, apenas porque o pensou, nada mais, nem esperava que lhe respondessem, por exemplo, assim, No princípio, Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas, em vez disto o que sucedeu foi o velho da venda preta dizer enquanto seguiam avenida abaixo, Pelo que pude saber quando ainda tinha um olho para ver no princípio foi o diabo, as pessoas. com o medo de ficarem cegas e desmunidas, correram aos bancos para retirarem os seus dinheiros, achavam que deviam acautelar o futuro, e isto há que compreendê-lo, se alguém sabe que não vai poder trabalhar mais, o único remédio, pelo tempo que elas durarem, é recorrer às economias feitas no tempo da prosperidade e das previsões de largo alcance, supondo que a pessoa tivera de fato a prudência de ir acumulando as poupanças grão a grão, o resultado da fulminante corrida foi terem falido em vinte e quatro horas alguns dos principais bancos, o governo interveio a pedir que se acalmassem os ânimos e a apelar para a consciência cívica dos cidadãos, terminando a proclamação com a declaração solene de que assumiria todas as responsabilidades e deveres decorrentes da situação de calamidade pública que se vivia, mas o parche não conseguiu aliviar a crise, não só porque as pessoas continuavam a cegar, mas também porque as que ainda viam só pensavam em salvar o seu rico dinheiro.

José Saramago em "Ensaio sobre a cegueira"

Três amores

as três graças Yvonne Jeanette Karlsen 2008


Três amores... Quem me deu
Tão estranha sorte assim?
Três amores, tenho-os eu
E nenhum me tem a mim!


Mário Quintana - Poesia Completa
Ed. Nova Aguilar, 2006
Preparativos de Viagem p. 767

Amores

Anatomy of a dancer - Carrie Graber

Cada alegria desfaz algum nó
Não é preciso entender as paixões
Cada manhã vai te encontrar
Mesmo sem você querer
Mesmo se o sono durar

Sim cabe ao amor te aliviar
Do que te cansa
Sai dança no sol solta tua voz
Que a luz te alcança
Dança
Dança
Que o mundo vai te esquecer
Que o mundo não vai lembrar
Dança
Dança

Cada surpresa desfaz o que for
Não é preciso guardar as canções
Cada intenção muda de cor
Cada alegria é uma voz
Que alguém vai ter que escutar

Sim tudo é em vão nada é em vão
Então descansa
Sim nada demais tudo se faz
Vira lembrança
Dança
Dança


Oswaldo Montenegro

Jogos amorosos


Victoria Stoyarova 

Ela não era o tipo de mulher que se contenta com um olhar
Queria pegar e ter e arder, queimar
E suportar o peso da paixão de um homem
Ainda que breve

Tinha aprendido cedo e por instinto
A amar o transitório, o mais fugaz
Do instante, e sonhava momentos excitantes
Quase sempre escondidos

Às vezes misturava a libido a outras convicções
Via mudar a ideologia conforme a luz
Pequenas artimanhas de quem é do signo da serpente
e usa minuciosa e deliberadamente
A estratégia da aranha.


Bruna Lombardi
O perigo do dragão, Rio de janeiro, Record, 1984, p. 42

A lavadeira no tanque



Bate roupa em pedra bem. 
Canta porque canta e é triste 
Porque canta porque existe; 
Por isso é alegre também.  
Ora se eu alguma vez 
Pudesse fazer nos versos 
O que a essa roupa ela fez, 
Eu perderia talvez 
Os meus destinos diversos.  
Há uma grande unidade 
Em, sem pensar nem razão, 
E até cantando a metade, 
Bater roupa em realidade... 
Quem me lava o coração?  

Fernando Pessoa

Alma ausente


Hartwig Kopp-Delaney 

Não te conhece o touro nem a figueira, 
nem cavalos nem formigas de tua casa. 
Não te conhece o menino nem a tarde 
porque já morreste para sempre. 

Não te conhece o lombo da pedra, 
Nem o raso negro onde te destroças. 
Não te conhece a lembrança muda 
Porque já morreste para sempre. 

O outono virá com suas conchas, 
uva de névoa e montes agrupados, 
mas ninguém virá olhar teus olhos 
porque já morreste para sempre. 

Porque já morreste para sempre, 
como todos os mortos da Terra, 
como todos os mortos esquecidos 
em um monte de cães apagados. 

Ninguém te reconhece. Não. Mas eu te louvo. 
Eu canto desde já teu perfil e tua graça. 
A madurez insigne de teu conhecimento. 
Tua apetência de morte e o gosto de sua boca. 
A tristeza que teve tua valente alegria. 

Tardará muito tempo em nascer, se é que nasce, 
um andaluz tão claro, tão pleno de ventura. 
Eu canto sua elegância com palavras que gemem 
e relembro uma brisa triste pelas oliveiras. 


Federico García Lorca
Tradução: Antonio Miranda 

Olaria

 
Inna Tsukakhina

No lençol do campo, o corpo procura
a terra macia que renasce da memória
insone. Não ouve os pássaros, nem
se oferece a um sol proscrito do seu
rosto. Morde a maçã do instante
no ofício do desejo, matando a sede
que lhe secou os lábios. E o dia sobe
nos seus dedos, como o barro, para
que deles surja a figura do amor.

 Nuno Júdice

domingo, 3 de janeiro de 2016

As três palavras mais estranhas


Francesca Strino


Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.

Quando pronuncio a  palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.


Wisława.Szymborska, 
"Instante". In: Poemas. Trad. Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Livro do desassossego [28]

Alexander Gunin



Um hálito de música ou de sonho, qualquer coisa que faça quase sentir, qualquer coisa que faça não pensar.


Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)
Livro do desassossego 

Diz tu por mim, silêncio

Ennio Montariello


Não era hoje um dia de palavras, 
Intenções de poemas ou discursos, 
Nem qualquer dos caminhos era nosso. 
A definir-nos bastava um ato só, 
E já que nas palavras me não salvo, 
Diz tu por mim, silêncio, o que não posso. 


José Saramago 
In Os Poemas Possíveis

"Noturno"


A profile of a woman looking at the stars Alois Heinrich Priechenfried imgkid com


Não sei por que, sorri de repente
E um gosto de estrela me veio na boca...
Eu penso em ti, em Deus, nas voltas inumeráveis que fazem os
caminhos...
Em Deus, em ti, de novo...
Tua ternura tão simples...
Eu queria, não sei por que, sair correndo descalço pela noite imensa
E o vento da madrugada me encontraria morto junto de um arroio,
Com os cabelos e a fronte mergulhados na água Límpida...
Mergulhados na água límpida, cantante e fresca de um arroio!


Mário Quintana  
Liz Viztes

Gosto da palavra "amantes". Amantes são aqueles que se amam. Os amantes, separados pela distância, sentem saudades… Alegram-se com a memória do rosto da pessoa amada. Diferente das palavras "marido" e "esposa". Para se ser "marido" e "esposa" não é preciso amar. Ouvi, de um padre, na sua homilia aos noivos: "O que os une não é o seu amor. É o contrato". Padre ortodoxo aquele. Conhecia bem a teologia da igreja. Porque, para a igreja, o que une as pessoas não é o que elas sentem. É o ato sacramental que o sacerdote executa. É a igreja que estabelece a união matrimonial. Sacramentos são atos que um sacerdote executa, em nome de Deus. Portanto, é Deus que executa. E se é Deus que executa, não pode ser desfeito. "Aquilo que Deus juntou não o separe o homem". A rejeição do divórcio por parte da igreja nada tem a ver com o seu amor pela família. O que está em jogo é o poder divino da igreja para unir. Se a igreja aceitasse o divórcio ela estaria confessando que o sacramento do matrimônio não é coisa divina. E, com isso, estaria se desqualificando como legítima representante de Deus.

Acho que o certo seria dizer: Aquilo que Deus juntou o homem não separa. Se separou é porque Deus não juntou…

Unidos pela igreja o marido e a esposa tem a permissão – corrijo-me, têm a obrigação de realizar o ato sexual. A obrigação de realizar o ato sexual tem a ver com a demografia dos céus e dos infernos. É preciso completar o número dos salvos e dos condenados para que venha o dia do juízo. O objetivo da união sexual não é a realização do amor. O amor é sentimento humano. O objetivo da união sexual é a procriação. Essa é a lei da natureza.

Um homem e uma mulher unidos pelo sacramento tem o dever de se unirem sexualmente, ainda que se odeiem. Porque não é o amor que justifica o sexo; é o contrato…

Para a igreja o sexo pertence ao mundo a que Buber deu o nome de "Eu-Isso" e não ao mundo "Eu – Tu".

Santo Agostinho colocou essa questão de maneira muito precisa ao elogiar o fato de Abraão haver engravidado sua escrava Hagar a fim de ter um filho, posto que Sara, sua mulher, era estéril. Diz o Santo que Abraão agiu de maneira racional, por dever e não por prazer. Ele não gozou ao transar com Hagar. Estabelece-se um problema fisiológico: " É possivel ejacular sem prazer?"

O prazer, segundo a teologia de Santo Agostinho, é uma perturbação introduzida pelo pecado original. O prazer desviou o sexo da sua verdadeira função: passou a ser um fim em si mesmo – os amantes fazem amor por pura alegria, sem pensar em gerar um filho. O sexo, assim, pelo prazer,  tornou-se escravo da carne e deixou de se subordinar aos imperativos da razão. O pênis passou a ter ideias próprias. Movimenta-se sem a ordem da razão. O pênis deveria ser como o dedo que faz o que a razão manda.

Amar é brincar. Não leva a nada. Não é para levar a nada. Quem brinca já chegou. Fazer amor com uma mulher ou um homem é brincar com o seu corpo. Cada amante é um brinquedo brincante.  "Creio na ressurreição do corpo":  não é a esperança de um milagre escatológico no fim dos tempo. É uma possibilidade de cada dia.  Os sentidos precisam sair do túmulo onde os deveres os enterraram. Corpo de criança, corpo brincante: é nele que acontece a alegria!

O corpo é um lugar maravilhoso de delícias. Mas Xerazade sabia que todo amor construído sobre as delícias do corpo tem vida breve. A chama se apaga tão logo o corpo se tenha esvaziado o seu fogo. O seu triste destino é ser decapitado pela madrugada.

Nos livros de medicina os orgãos sexuais aparecem sob o título de "aparelho reprodutor". Essa ideia de sexo como aparelho,  maquineta de fazer crianças,  me é repulsiva. Só podem tê-la aqueles que não leram o " Cântico dos Cânticos ". Não existe naquele livro uma única sugestão de que sexo seja para procriar. Ali, sexo é só para a alegria do amor.

O bicho-de-pé  ( tunga penetrans) merece sobreviver por suas múltiplas utilidades, entre elas, o seu uso didático, utilíssimo em aulas de educação sexual. A jovem, com medo da noite de núpcias, perguntou à mãe se doía muito. Ao que a mãe respondeu: "É feito bicho-de-pé. Dói um pouquinho, mas depois a gente não quer parar de esfregar…"

O amor nasce, vive e morre pelo poder – delicado – da imagem poética que o amante vê no rosto da amada. O amor prefere a luz das velas. Talvez porque seja isso tudo o que desejamos da pessoa amada: que ela seja uma luz suave que nos ajude a suportar o terror da noite.

Como são diferentes as mãos ternas das mãos que desejam a posse! A ternura não deseja nada. O beijo terno apenas encosta os lábios…  O olhar terno deseja que aquele momento seja eterno. Daí o seu cuidado, a voz que fala baixo, a mão que tateia, o mover-se vagaroso: para que o encanto da imagem não se quebre…

"Ao pensar a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: ‘Serei capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a minha velhice?" (Nietzsche). Tudo o mais no casamento é transitório.

O segredo do amor é a androgenia: somos todos, homens e mulheres, masculinos e femininos ao mesmo tempo. É preciso saber ouvir. Deixar que o outro entre dentro da gente. Nada mais fatal contra o amor que a resposta rápida. Uma resposta rápida é um alfanje que decapita. Escutar demanda tempo. Há pessoas muito velhas cujos ouvidos ainda são virginais: nunca foram penetrados.

Releio as Confissões  de Santo Agostinho. Faz a Deus a pergunta impossível: "Que é que eu amo quando amo o meu Deus?"  Deseja entender o mistério do amor. Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: "Que é que eu amo quando  amo você?"   Ela responderia perplexa: "Então, não é a mim que você ama? Você ama uma outra coisa através de mim?"  Segredo que nenhum amante sabe: não amo a minha amada. Amo algo que aparece refletido no seu rosto. A raposa não amava os campos de trigo. Amava o Pequeno Príncipe que ela via quando o vento balançava o trigo. Não é o pé de rosmaninho que eu amo. É um rosto que vejo quando sinto o seu perfume. A pessoa amada é os campos de trigo, o pé de rosmaninho… "O que amamos é sempre um símbolo",  disse Hermann Hesse. "Símbolo" é algo que está no lugar da outra coisa. O pão e o vinho eucarísticos marcam o lugar de uma ausência: Cristo não está lá. O símbolo, qualquer símbolo, sendo "uma outra coisa" que não a coisa amada,  é sempre um lugar da ausência da coisa amada.

A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa. Em ti amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada… Quem está apaixonado não se dá conta de que o rosto da pessoa amada, presente,  é apenas a superfície da lagoa onde se reflete o obscuro objeto do desejo (ausente). A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa.
A pergunta que Agostinho dirige ao seu Deus é a mesma que pode ser  feita à pessoa que amamos: pois a pessoa que amamos, no momento do amor, é o nosso deus… A experiência amorosa é divina! Quem está mergulhado no amor atingiu a bem-aventurança eterna – não precisa de mais nada. Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como peixes fugidios…

Ângelus Silésius disse que o amor é como a rosa: " A rosa não tem ‘porquês’. Ela floresce porque floresce"..

O apaixonado sofre menos com a morte da pessoa amada que com a sua partida para um novo amor. A morte eterniza o amor. Ela o fixa, para sempre, a bela cena. A partida, ao contrário, a destrói.

Somos amantes muito antes de nos encontrarmos com a mulher ou o homem que será objeto do nosso amor. Somos como a criancinha que já ama o seio mesmo antes do primeiro encontro.
Somos donos dos nossos atos mas não somos donos dos nossos sentimentos. Somos culpados pelo que fazemos mas não somos culpados pelo que sentimos.  Podemos prometer atos. Não podemos prometer sentimentos. "Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida vou te amar…" Lindo e mentiroso. Não se pode prometer sentimentos.  Eles não dependem da nossa vontade. Sua existência é efêmera. Como o voo dos pássaros…

Meditando sobre as telas de Monet você entenderá o amor. Tudo são reflexos efêmeros… Por um momento a beleza cintila, mas logo o tremor da água faz desaparecer o reflexo… O êxtase do amor é como os reflexos da luz sobre a superfície das águas da lagoa.
Todo símbolo é alegre-triste. Alegre, por lembrar a coisa amada, triste por ser o lugar onde ela não está… Hesse conclui  não ser possível fixar o nosso amor em nenhuma pessoa.  A fidelidade a uma única pessoa seria um equívoco…

Pobre Narciso, enfeitiçado pela beleza que via refletida na superfície da fonte… Sempre que tentava tocá-la com os dedos – a imagem desaparecia quando seus dedos encrespavam a superfície das águas. Será assim o êxtase da experiência amorosa?  A bela imagem está lá, sorridente, no rosto da pessoa amada! Aí, vamos tocá-la – e ao tentar fazê-lo ela se desvanece…

Amor, imagem fugidia, escorregadia como um peixe… Tento pegá-lo com a mão. Ele foge. Esconde-se de mim. Zomba de mim. Desliza entre meus dedos quando eu já pensava tê-lo.  Eu te abraço para abraçar o que me foge. Ao te possuir alegro-me na ilusão de  possuir o que amo. Tu és o lugar onde me encontro com esta outra coisa que, por pura graça, apareceu refletida em ti, a bela imagem. Mas, por ser graça,  da mesma forma como apareceu poderá  partir. Se isto acontecer deixarei de te amar mas continuarei a amar a imagem que, um dia, vi refletida no teu rosto. E minha busca recomeçará de novo…


Rubem Alves em Quarto de Badulaques

Palavra que desnudo

Lauri Blank

Entre a asa e o voo
nos trocámos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo


Mia Couto

Droga del amor

James Van Fossan 

La droga del amor
tiene sobre las otras la ventaja
de que con ella es mágico enviciarse
además en su rumbo
todo a todo se acerca
los ojos a los ojos
las manos a las manos
el tiempo de vivir
a la supuesta vida
una hoguera se enciende
sin pasarnos aviso

en los primeros besos no se piensa
cómo serán allá los besos últimos
los sentimientos lo dominan todo
o nos hacen creer que lo dominan

la droga del amor se evade y vuelve
y una vez que nos cerca es más difícil
quedarnos sin la droga del amor

si ésta concurre con el desconsuelo
vale la pena armarnos de bastiones
porque con la tristeza no se juega.


Mario Benedetti
Christian Schloe

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue  
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir  
para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça. 

Fernando Pessoa
donna ritratto by Cesar santos 


O que Foucault diz é que só podemos evitar a morte e a loucura se fizermos da existência um “modo”, uma “arte”. É idiota dizer que Foucault descobre ou reintroduz um sujeito oculto depois de o ter negado. Não há sujeito, mas uma produção de subjetividade: a subjetividade deve ser produzida, quando chega o momento, justamente porque não há sujeito. E o momento chega quando transpomos as etapas do saber e do poder; são essas etapas que nos forçam a colocar a nova questão, não se podia colocá-la antes. A subjetividade não é de modo algum uma formação de saber ou uma função de poder que Foucault não teria visto anteriormente; a subjetivação é uma operação artista que se distingue do saber e do poder e não tem lugar no interior deles.

Gilles Deleuze em "Conversações"

Metamorfose fluvial

Grandes Banhistas de Pierre-Auguste Renoir

Estas são as mulheres, levando
nas mãos os castiçais de fogo da sua manhã,
subindo uma escada de silêncio para dentro
das casas de onde vieram, empurrando
as portas dos rios mais fundos para entrarem
nos palácios do abismo, e os iluminarem
com as lâmpadas nuas dos seus corpos. Ouço
as suas vozes crescerem no interior
dos montes, num fulgor amarelo de flores
vagarosas como as mãos que nascem
dos seus braços. Estas mulheres são imensas
como as nuvens que atravessam a paisagem,
e escrevem na página do céu o nome
dos deuses que as amaram, transformando-as
em árvores, em astros, em animais
incalculáveis num prado breve como
a sua eternidade. Dizem-me que as suas vozes
são roucas, que os seus cabelos cobrem
os arvoredos do horizonte, que os seus dedos
contam os amantes na exaustão da madrugada. E
empurro-as para o corredor da memória,
para que se percam numa vociferação de sombras,
como se não soubessem o caminho do átrio
onde as espero, e não viessem tapadas
por um manto de orvalho, gota a gota escorrendo
dos seus lábios.

Nuno Júdice 
The golden apple - François Lafon

"Se Eva tivesse escrito o Gênesis, como seria a primeira noite de amor do gênero humano?
Eva teria começado por esclarecer que não nasceu de nenhuma costela, não conheceu qualquer serpente, não ofereceu maçã a ninguém e tampouco Deus chegou a lhe dizer 'parirás com dor e teu marido te dominará'. E que, enfim, todas essas histórias são mentiras descaradas que Adão contou aos jornalistas".


Eduardo Galeano - Pontos de Vista/6 - in: "De Pernas Pro Ar: A Escola do Mundo Ao Avesso"