quinta-feira, 25 de abril de 2024


 Devagar, o tempo transforma tudo em tempo.

O ódio transforma-se em tempo.

O amor transforma-se em tempo.

A dor transforma-se em tempo.

Os assuntos que julgamos mais profundos, mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, transformam-se, devagar, em tempo.


-José Luís Peixoto

quarta-feira, 24 de abril de 2024


 Morda a mão que te alimenta

Morda a mão que te faz sangrar

Olhem bem dentro de meus olhos

Há um corte em sua garganta


Magaiver Welington

#art: yung cheng lin


 “Não gosto de dar confiança para a razão,

ela diminui a poesia.”


Manoel de Barros

 


Qual a missão da Filosofia? Segundo o filósofo e matemático inglês Bertrand Russell, “a filosofia não é capaz de determinar por si mesma as finalidades da vida, mas pode libertar-nos da tirania do preconceito e das deformações causadas por uma visão estreita. Amor, beleza, conhecimento e alegria de viver: estas coisas mantêm seu brilho, a despeito da extensão de nossa competência. E se a filosofia nos ajudar a sentir o valor de tais coisas, ela terá desempenhado sua missão na obra coletiva do homem, que é trazer luz a um mundo de trevas.”

Bertrand Russell, In An Outline of Philosophy

 




“Por que será que a vida parece melhor e mais bonita de manhã quando há sol, vento fresco, céu azul? E esta gente que acordou inda agorinha, que se debruça à janela, que canta, sorri, e cumprimenta os que passam?..”

— Erico Verissimo, no livro “Clarissa”.

As três palavras mais estranhas


Quando pronuncio a palavra Futuro,

a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,

suprimo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,

crio algo que não cabe em nenhum não ser.


SZYMBORSKA, Wisława. “Instante”. In:_____. Poemas.


 Meu coração tem mil anos

eu não sou como as outras pessoas.


Eu morreria em seus piqueniques

sufocado por suas bandeiras

espancado por suas canções

não amado por seus soldados

chifrado por seu senso de humor

assassinado por sua preocupação.


Não sou como

outras pessoas.

ardo

no inferno.


O inferno que

eu mesmo sou.


Charles Bukowski - Do poema deslocado


#art: Christian Schloe


 A melancolia se torna mais pura quando o amor a envolve e a alimenta. Dessa associação nasce uma palpitação agradável e suave, uma graça da solidão, um pressentimento voluptuoso do ilimitado. Não lamentamos então não ser uma fonte de lágrimas com uma inesgotável abundância de gotas transparentes que refletissem o mundo com seu esplendor mais encantador do que a mais divina das ilusões e mais arrebatador do que os mais doces sonhos? Não sofremos durante o consolador desfalecimento da melancolia pela impossibilidade de nos dissolver em lágrimas?

Só no amor a melancolia alcança seus próprios cumes, já que só o Eros transfigura a melancolia. A passividade, o prazer, o abandono, a palpitação imaterial purificam a melancolia em tal medida que o estado melancólico puro se torna por si mesmo extremamente fecundo, sem contudo ser criador. Somente quando uma exagerada paixão, uma tensão extrema, de um entusiasmo conquistador, perturba a suavidade e a pureza da melancolia, só então esta se torna criadora. Nos grandes criadores musicais, a melancolia foi sempre sacudida por um vivo ardor, por um apaixonado arrebatamento e por uma intensa energia. Então o infinito da melancolia se torna uma poderosa vibração; as aspirações vagas, impulsos determinados; os pressentimentos, raios; as lágrimas, tempestades; a palpitação imaterial, vontade de realização; o suave pairar acima do mundo, a realização efetiva no mundo; e o prazer, explosão. Não há disposição mais criadora do que a melancólica, quando se vê perturbada por um princípio de antinomia. A sede de mundos infinitos se torna desejo de criar mundos infinitos, e a aspiração a fundir-se na fluidez do infinito, afirmação dramática no infinito. Uma consciência demiúrgica converte o difuso da melancolia em tensões e raios, e de suas ilusões sedutoras alimenta suas trêmulas labaredas com muitas ondulações. A passagem para o plano demiúrgico faz de nossos devaneios projetos vitais; e dos pesares, impulsos irresistíveis. O fluxo da criação é uma onda de impureza e de drama; o refluxo, em um cansaço agradável, é como um retorno a purezas perdidas. Se, pela criação, tivéssemos que renunciar para sempre às delícias da melancolia pura, quantos não renunciariam antes à criação?


Emil Cioran (In: “O Livro das Ilusões”)

 


Sempre achei as quartas-feiras peculiares: dia neutro em que a preguiça da segunda já se dissipou e em que temos a impressão de que a terça-feira foi engolida.

Elas ficam bem no meio dos dias úteis, não são o prefácio do fim de semana como as quintas nem vestem a euforia das sextas, mas são alegres de futebol e gente passional nas ruas.

São elas que geralmente guardam as chegadas das frentes frias ou do estio: pelo clima da quarta, a gente calcula se no sábado estará na praia ou verá um filme debaixo do edredom.

Não se chora nas manhãs de quarta, não se abandona ninguém, não se é abandonado.

Elas são feitas de espera e rotina. São dias sem data. São como uma ponte em que se atravessa a semana de um início para o outro…


Marla de Queiroz


 Don’t worry about saving these songs!

And if one of our instruments breaks,

it doesn’t matter.


We have fallen into the place

where everything is music.


The strumming and the flute notes

rise into the atmosphere,

and even if the whole world’s harp

should burn up, there will still be

hidden instruments playing.


So the candle flickers and goes out.

We have a piece of flint, and a spark.


This singing art is sea foam.

The graceful movements come from a pearl

somewhere on the ocean floor.


Poems reach up like spindrift and the edge

of driftwood along the beach, wanting!


They derive

from a slow and powerful root

that we can’t see.


Stop the words now.

Open the window in the center of your chest,

and let the spirits fly in and out.


Rumi | “Where Everything is Music”

domingo, 14 de abril de 2024


 Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos


E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.


Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto,

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.


“O Guardador de Rebanhos”. 

In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa.

 


A minha alma partiu-se como um vaso vazio.

Caiu pela escada excessivamente abaixo.

Caiu das mãos da criada descuidada.

Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.


Asneira? Impossível? Sei lá!

Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.

Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.

Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.

E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.


Não se zanguem com ela.

São tolerantes com ela.

O que era eu um vaso vazio?


Olham os cacos absurdamente conscientes,

Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.


Olham e sorriem.

Sorriem tolerantes à criada involuntária.


Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.

Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.

A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?

Um caco.

E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.


Álvaro de Campos, 1929

(heterônimo de Fernando Pessoa)


#art: shattered venus - ► © Patrick Kramer •