quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Quadrilha

heike fuchs



João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


Carlos Drummond de Andrade 

Três coisas

by Michael Dachstein


Não consigo entender 
O tempo 
A morte 
Teu olhar 

O tempo é muito comprido 
A morte não tem sentido 
Teu olhar me põe perdido 

Não consigo medir 
O tempo 
A morte 
Teu olhar 

O tempo, quando é que cessa? 
A morte, quando começa? 
Teu olhar, quando se expressa? 

Muito medo tenho 
Do tempo 
Da morte 
De teu olhar 

O tempo levanta o muro. 

A morte será o escuro? 

Em teu olhar me procuro.


Paulo Mendes Campos

Génese

© Denis Kaseckij



Todo o poema começa de manhã, com o sol. Mesmo
que o poema não esteja à vista (isto é céu de chuva)
o poema é o que explica tudo, o que dá luz
à terra, ao céu, e com nuvens à mistura – a luz incomoda
quando é excessiva. Depois, o poema sobe
com as névoas que o dia arrasta; mete-se pelas copas das
árvores, canta com os pássaros e corre com os ribeiros
que vêm não se sabe de onde e vão para onde
não se sabe. O poema conta como tudo é feito:
menos ele próprio, que começa por uma acaso cinzento,
como esta manhã, e acaba, também por acaso,
com o sol a querer romper.


Nuno Júdice

Dos pregadores da morte


Há pregadores da morte, e a terra está cheia de indivíduos a quem é preciso pregar que desapareçam da vida.

A terra está cheia de supérfluos, e os que estão demais prejudicam a vida. Tirem-nos desta com o engodo da “eterna”!

“Amarelos” se costuma chamar aos pregadores da morte, ou então “pretos”. Eu, porém, quero apresentá-los também sob outras cores.

Terríveis são os que têm dentro de si a terra, e que só podem escolher entre as concupiscências e as mortificações.

Nem sequer chegariam a ser homens esses seres terríveis.

Preguem, pois, o abandono da vida, e vão-se eles também!

Eis os tísicos da alma. Mal nasceram e já comçaram a morrer, e sonham com as doutrinas do cansaço e da renúncia.

Quereriam estar mortos, e nós devemos santificar-lhes a vontade. Livremo-nos de ressuscitar esses mortos e de lhes violar as sepulturas.

Encontram um doente, um velho ou um cadáver, e depois dizem: “Reprove-se a vida!”

Os reprovados, contudo, são eles unicamente, assim como os seus olhos que só vêem um aspecto da sua existência.

Sumidos na densa melancolia e ávidos dos leves acidentes que matam, esperam cerrando os dentes.

Ou então estendem a mão para doces e zombam das suas próprias criancices: estão encostados à vida como uma palha, e escarnecem de se apoiarem a uma palha.

A sua sabedoria diz: “Louco é aquele que pertence à vida, mas, assim somos nós loucos! E esta é a maior loucura da vida!”

“A vida não é mais do que sofrimento”, dizem outros, e não mentem.

Tratai pois de abreviar a vossa. Fazei cessar a vida que é só sofrimento!

Eis o ensinamento da vossa virtude: “Deves matar-te a ti mesmo! Deves desaparecer diante de ti mesmo!”

“A luxúria é pecado — dizem alguns dos que pregam a morte. — Separemo-nos e não engendremos filhos!”

“É doloroso dar à luz — dizem os outros. — Para que se há de continuar a dar à luz?” E também eles são pregadores da morte.

“É preciso ser compassivo — dizem os terceiros — Recebei o que tenho. Recebei o que sou! Assim me prendo menos à vida”.

Se fossem verdadeiramente compassivos procurariam desgostar da vida o próximo. Serem maus, seria a verdadeira bondade.

Eles, porém, querem libertar-se da vida. Que lhes importa prender outros a ela mais estreitamente com as suas cadeias e as suas dádivas?

E vós outros também, vós que levais uma vida de inquietação e de trabalho furioso, não estais cansadíssimos da vida? Não estais bastante sazonados para a pregação da morte?


Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra 

Le Balcon / A Varanda



Mère des souvenirs, maîtresse des maîtresses,
Ô toi, tous mes plaisirs! ô toi, tous mes devoirs!
Tu te rappelleras la beauté des caresses,
La douceur du foyer et le charme des soirs,
Mère des souvenirs, maîtresse des maîtresses!

Les soirs illuminés par l'ardeur du charbon,
Et les soirs au balcon, voilés de vapeurs roses.
Que ton sein m'était doux! que ton coeur m'était bon!
Nous avons dit souvent d'impérissables choses
Les soirs illumines par l'ardeur du charbon.

Que les soleils sont beaux dans les chaudes soirées!
Que l'espace est profond! que le coeur est puissant!
En me penchant vers toi, reine des adorées,
Je croyais respirer le parfum de ton sang.
Que les soleils sont beaux dans les chaudes soirées!

La nuit s'épaississait ainsi qu'une cloison,
Et mes yeux dans le noir devinaient tes prunelles,
Et je buvais ton souffle, ô douceur! ô poison!
Et tes pieds s'endormaient dans mes mains fraternelles.
La nuit s'épaississait ainsi qu'une cloison.

Je sais l'art d'évoquer les minutes heureuses,
Et revis mon passé blotti dans tes genoux.
Car à quoi bon chercher tes beautés langoureuses
Ailleurs qu'en ton cher corps et qu'en ton coeur si doux?
Je sais l'art d'évoquer les minutes heureuses!

Ces serments, ces parfums, ces baisers infinis,
Renaîtront-ils d'un gouffre interdit à nos sondes,
Comme montent au ciel les soleils rajeunis
Après s'être lavés au fond des mers profondes?
-- Ô serments! ô parfums! ô baisers infinis!

Charles Baudelaire

***

A Varanda

Mãe da recordação, amante das amantes,
tu, minha devoção! Tu, todo o meu prazer!
Sei que recordarás os mais belos instantes,
a quentura do lar, o tom do entardecer,
mãe da recordação, amante das amantes!

No fim da tarde, à luz das brasas do carvão
e na varanda escura em rósea sombra imersa
tão doce era tua voz! Tão bom teu coração!
Eternamente vou lembrar nossa conversa
no fim da tarde, à luz das brasas do carvão.

Como é bonito o sol na tarde acalorada!
Como é profundo o céu e forte o coração!
Curvado sobre ti, rainha adorada,
aspirava do sangue o perfume são.
Como é bonito o sol na tarde acalorada!

A noite se fechava assim como uma flor.
Meus olhos no escuro os teus adivinhavam
e eu bebia o teu ar, ó veneno! ó licor!
Nas minhas doces mãos os teus pés cochilavam.
A noite se fechava assim como uma flor.

Sei a arte de ter de volta esses momentos,
reviver o passado imerso em teu calor.
Para que procurar os teus encantamentos
longe do colo doce e do seio de amor?
Sei a arte de ter de volta esses momentos!

As juras, os perfumes e os beijos sem fim
poderão ressurgir das mais profundas mágoas
como os sóis que no céu renascem para mim
depois de se lavarem no fundo das águas?
-- Ó juras! ó perfumes! ó beijos sem fim

tradução: Jorge Pontual

Jean-Paul Sartre, A idade da razão

Uma vida”, pensou Mathieu, “ é feita com futuro, como os corpos são feitos com vácuo.” Baixou a cabeça. Pensava na própria vida. O futuro penetrara-a até a medula. Tudo estava nela em suspenso, em sursis. Os dias mais recuados de sua infância , o dia em que dissera: “serei livre”, o dia em que dissera: “serei grande”, apareciam-lhe, ainda agora, com seu futuro particular, como um pequenino céu pessoal e bem redondo em cima deles, e esse futuro era ele, ele tal e qual era agora, cansado e amadurecido. Tinham direitos sobre ele e através de todo aquele tempo decorrido mantinham suas exigências, e ele tinha amiúde remorsos abafantes, porque o seu presente negligente e cético era o velho futuro dos dias do passado. Era ele que eles tinham esperado vinte anos, era dele, desse homem cansado, que uma criança dura exigira a realização de suas esperanças; dependia dele que os juramentos infantis permanecessem infantis para sempre ou se tornassem os primeiros sinais de um destino. Seu passado sofria sem cessar os retoques do presente; cada dia vivido destruía um pouco mais os velhos sonhos de grandeza, e cada novo dia tinha um novo futuro; de esperança em espera, de futuro em futuro, a vida de Mathieu deslizava docemente... em direção a que?
Em direção a nada.(...)
“Se eu morresse hoje”, pensou repentinamente Mathieu, “ninguém saberia se estava realmente liquidado ou se tinha ainda possibilidade de me salvar.”


Jean-Paul Sartre, Idade da razão

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Frutos


Heike Fuchs


A bondade da mangueira
não é o fruto.

É a sombra.

A térrea,
quotidiana,
abnegada sombra:
no inverso do suor colhida,
no avesso da mão guardada.

Há a estação dos frutos.
Ninguém celebra a estação das sombras.

Assim, o amor e a paixão:
um, fruto; outro, sombra.

A suave e cruel mordedura
do fruto em tua boca:
mais do que entrar em ti
eu quero ser tu.

O que em mim espanta:
não a obra do tempo
mas a viagem do Sol na seiva da árvore

A arte da mangueira
é a veste de sombra
embrulhando o seu ventre solar.

Para o homem
vale a polpa.

Para a terra
só a semente conta.


Mia Couto

Desmandamentos

photo © Barbara Marin



1. Ame a Vida sobre todas as coisas. 
2. Não obedeça a ordens — exceto àquelas que venham do teu próprio coração. 
3. A felicidade está dentro de você. Não a procure em nenhum outro lugar. 
4. O amor livre é a mais religiosa das orações. 
5. O desapego é a única porta para o Céu. 
6. A vida só existe aqui e agora
7. Não corra: dance. 
8. Viva acordado — em todos os sentidos. 
9. Pare de buscar: o que é teu já te pertence. 
10.Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade. 


Edson Marques

Beautiful Woman

Enzo Perrazziello 




The spring
in

her step
has

turned to
fall



A. R. Ammons

Três Idades


Heike Fuchs


A vez primeira que te vi, 
Era eu menino e tu menina. 
Sorrias tanto... Havia em ti 
Graça de instinto, airosa e fina. 
Eras pequena, eras franzina...
Ao ver-te, a rir numa gavota, 
Meu coração entristeceu. 
Por quê? Relembro, nota a nota, 
Essa ária como enterneceu 
O meu olhar cheio do teu.
Quando te vi segunda vez, 
Já eras moça, e com que encanto 
A adolescência em ti se fez! 
Flor e botão... Sorrias tanto... 
E o teu sorriso foi meu pranto...
Já eras moça... Eu, um menino... 
Como contar-te o que passei? 
Seguiste alegre o teu destino... 
Em pobres versos te chorei, 
Teu caro nome abençoei.
Vejo-e agora. Oito anos faz, 
Oito anos faz que não te via... 
Quanta mudança o tempo traz 
Em sua atroz monotonia! 
Que é do teu riso de alegria?
Foi bem cruel o teu desgosto. 
Essa tristeza é que mo diz... 
Ele marcou sobre o teu rosto 
A imperecível cicatriz: 
És triste até quando sorris...
Porém teu vulto conservou 
A mesma graça ingênua e fina... 
A desventura te afeiçoou 
À tua imagem de menina. 
E estás delgada, estás franzina...


Manuel Bandeira

É Noite

Dariusz Nowicki


É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.

Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só veio aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?


Alberto Caeiro,
Poemas Inconjuntos

Os Dois Horizontes


klaus.goffelmeyer


Dous horizonte fecham nossa vida:

Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro, —
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.

Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais.
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.

Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.

No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.

Que cismas, homem? — Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? — Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.
Dous horizontes fecham nossa vida.


Machado de Assis

sábado, 27 de outubro de 2012

George Orwell, A Revolução dos Bichos



...Por que então permanecemos nessa miséria? Porque quase todo o produto do nosso esforço  nos é roubado pelos seres humanos. Eis aí, camaradas, a resposta a todos os nossos problemas. Resume-se em uma só palavra - Homem. O Homem é o nosso verdadeiro e único inimigo. Retire-se da cena o Homem e a causa principal da fome e da sobrecarga de trabalho desaparecerá para sempre.

O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não corre o que dê para pegar uma lebre. Mesmo assim, é o senhor de todos os animais. Põe-nos a mourejar, dá-nos de volta o mínimo para evitar a inanição e fica com o restante. Nosso trabalho amanha o solo, nosso estrume o fertiliza, e, no entanto, nenhum de nós possui mais que a própria pele. As vacas, que aqui vejo à minha frente, quantos litros de leite terão produzido neste ano? E que aconteceu a esse leite, que poderia estar alimentando robustos bezerrinhos? Desceu pela garganta dos nossos inimigos. E as galinhas, quantos ovos puseram neste ano, e quantos se transformaram em pintinhos? Os restantes foram para o mercado, fazer dinheiro para Jones e seus homens. E você, Quitéria, diga-me onde estão os quatro potrinhos que deveriam ser o apoio e o prazer da sua velhice. Foram vendidos com a idade de um ano - nunca mais você os verá. Como paga por seus quatro partos e por todo o seu trabalho no campo, que recebeu você, além de ração e baia?

Mesmo miserável como é, nossa vida não chega nem ao fim de modo natural. (...) ... no fim, nenhum animal escapa ao cutelo. (...)

Esta é a mensagem que eu vos trago, camaradas; rebelião! Não sei dizer quando será esta revolução, pode ser daqui a uma semana ou daqui a um século, mas uma coisa eu sei, tão certo quanto vejo esta palha sob os meus pés: mais cedo ou mais tarde, justiça será feita. Fixai isso, camaradas, para o resto de vossas curtas vidas! E, sobretudo, transmiti esta minha mensagem aos que virão depois de vós, para que as futuras gerações continuem na luta até a vitória.


George Orwell,  A Revolução dos Bichos
Companhia das Letras
Tradução: Heitor Aquino Ferreira
p. 12-14

O VOSSO TANQUE, GENERAL, É UM CARRO FORTE




Derruba uma floresta, esmaga cem
Homens,
Mas tem um defeito
– Precisa de um motorista

O vosso bombardeiro, general, 
É poderoso:
Voa mais depressa do que a tempestade
E transporta mais carga do que um Elefante
Mas tem um defeito
– Precisa de um piloto

O homem, meu general, é muito útil: 
Sabe voar e sabe matar
Mas tem um defeito
– Sabe pensar.
                                                                       


  Bertolt Brecht

Amanhecimento

stas gordienko



De tanta noite que dormi contigo
no sono acordado dos amores
de tudo que desembocamos em amanhecimento
a aurora acabou por virar processo.
Mesmo agora
quando nossos poentes se acumulam
quando nossos destinos se torturam
no acaso ocaso das escolhas
as ternas folhas roçam
a dura parede.
nossa sede se esconde
atrás do tronco da árvore
e geme muda de modo a
só nós ouvirmos.
Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos
o pio de todas as asneiras
todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha
para um dia partirem em revoada.
Ainda que nos anoiteça
tem manhã nessa invernada
Violões, canções, invenções de alvorada...
Ninguém repara,
nossa noite está acostumada.


Elisa Lucinda 

The Voice

Sophie Thouvenin


Woman much missed, how you call to me, call to me,
Saying that now you are not as you were
When you had changed from the one who was all to me,
But as at first, when our day was fair.
Can it be you that I hear? Let me view you, then,
Standing as when I drew near to the town
Where you would wait for me: yes, as I knew you then,
Even to the original air-blue gown!

Or is it only the breeze in its listlessness
Travelling across the wet mead to me here,
You being ever dissolved to wan wistlessness,
Heard no more again far or near?

Thus I; faltering forward,
Leaves around me falling,
Wind oozing thin through the thorn from norward,
And the woman calling.


 Thomas Hardy 

À Poesia

Shaun Stubley


Vou de comboio...
Vou
Mecanizado e duro como sou
Neste dia;
- E mesmo asim tu vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!

Vão homens a meu lado distraídos
Da sua condição de almas penadas;
Vão outros à janela, diluídos
Nas paisagens passadas...
E porque hei-de ter eu nos meus sentidos
As tuas formas brancas e aladas?

O campos, imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos às montanhas;
O mar protesta contra não sei quê;
E eu, movido por ti, por tuas manhas,
A sonhar um painel que não se vê!

Porque me tocas? Porque me destinas
Este cilício vivo de cantar?
Porque hei-de eu padecer e ter matinas
Sem sequer acordar?

Porque há-de a tua vez chamar a estrela
Onde descansa e dorme a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto teu
A harmonia me fira?

Poeta sou e a ti me escravizei,
Incapaz de fugi ao meu destino.
Mas, se todo me dei,
Porque não há-de haver na tua lei
O lugar do menino
Que a fazer versos e a crescer fiquei?

Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que viesse padecer,
E não visse...

Alguém que fosse pelo dia fora
Neutro como um rapaz
Que come e bebe cada hora
Sem saber o que faz...

Alguém que não tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
E coisas de escrever e de exprimir...
Alguém que se deitasse
No banco mais comprido que vagasse,
E pudesse dormir...

Mas eu sei que não posso.
Se que sou todo vosso,
Ritos, imagens, emoções!
Sei que serve quem ama,
E que eu jurei amor à minha dama,
À mágica senhora das paixões.

Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão:
Aqui vou de longada;
Mas qui estou, e aqui serás louvada,
Se aqui mesmo me obriga a tua mão!


Miguel Torga

sexta-feira, 26 de outubro de 2012


vogue homotography



amar
nem sempre é zarpar
por águas desconhecidas
e se deixar perder
no mar bravio da paixão

tem vezes
que é muito mais:

é recolher as velas
e esperar
por um novo sopro
de vento

amar,
tem vezes,
é refazer a rota
entre os lençóis



 Ademir Antonio Bacca
do livro “Grito por dentro das palavras”

Recado

jaroslav monchak



ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço


Al Berto

Sinfonia do Ocaso



Musselinosas como brumas diurnas
descem do ocaso as sombras harmoniosas,
sombras veladas e musselinosas
para as profundas solidões noturnas.

Sacrários virgens, sacrossantas urnas,
os céus resplendem de sidéreas rosas,
da Lua e das Estrelas majestosas
iluminando a escuridão das furnas.

Ah! por estes sinfônicos ocasos
a terra exala aromas de áureos vasos,
incensos de turíbulos divinos.

Os plenilúnios mórbidos vaporam ...
E como que no Azul plangem e choram
cítaras, harpas, bandolins, violinos ...


Cruz e Sousa 

Nota Social

Paolo Scarano



O poeta chega na estação.
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso
como qualquer homem da terra,
uma ovação o persegue
feito vaia.
Bandeirolas
abrem alas.
Bandas de música. Foguetes.
Discursos. Povo de chapéu de palha.
Máquinas fotográficas assestadas.
Automóveis imóveis.
Bravos…
O poeta está melancólico.
Numa árvore do passeio público
(melhoramento da atual administração)
árvore gorda, prisioneira
de anúncios coloridos,
árvore banal, árvore que ninguém vê
canta uma cigarra.
Canta uma cigarra que ninguém ouve
um hino que ninguém aplaude.
Canta, no sol danado.
O poeta entra no elevador
o poeta sobe
o poeta fecha-se no quarto.
O poeta está melancólico.


Carlos Drummond de Andrade

O ovo apunhalado




Ele saiu da moldura e veio caminhando em minha direção. Olhei para outro lado, mordi o lábio inferior, mas nada aconteceu: os carros passavam por cima da minha imagem refletida nas vidraças, os carros corriam e a minha imagem mordia o lábio inferior. Quando tornei a me voltar, ele continuava ali, a casca branca, as linhas mansas de seu contorno: um ovo. Disse-lhe isso — mas ele não parou —, você não vê que não tem a menor originalidade — e ele não parou—, todos já disseram tudo sobre você, qualquer cozinheira conhece o seu segredo.
Foi então que ele se voltou meio de lado, sobre a base mais larga, num movimento suave e um pouco cômico, como uma dessas mulheres de ombros caídos, seios pequenos, quadris fartos e pernas grossas. Eu comecei a rir e disse que tinha tido uma namorada assim, e como se não bastasse, ainda por cima se chamava Marizeti, veja só: Vera Marizeti. Mas ele não interrompeu o movimento. Continuou a voltar-se, até que eu pudesse ver o punhal cravado em seu dorso branco. Não gritei, não um desses gritos de voz, mas alguma região dentro de mim estremeceu num terror e numa náusea tão violentos que a dona da galeria voltou-se e me encarou de repente, com um ar pálido.
Que foi, ela disse. Eu disse: é um bonito ovo, não é um ovo como os outros. Ela aproximou-se sorrindo, parou ao lado dele e estendeu um braço por cima de sua casca, tão desenvolta como se nunca em sua vida tivesse feito outra coisa senão apoiar-se em ovos apunhalados. Não é mesmo? disse. Tão liso, tão oval, veja como sua superfície é mansa, veja como minha mão desliza por ela, sinta como ele vibra quando eu o toco, agora veja como ele incha todo e parece aumentar de tamanho, veja como meu corpo se encosta ao dele, veja como minha boca se abre e minha língua freme, ouça esse gemido saindo de minha garganta, toque meus olhos fechados, acompanhe os movimentos de meu corpo contra o dele, observe como minha carne morena se confunde com sua casca branca e como eu enterro as unhas na sua superfície macia, e como eu o atraio para mim e como nos confundimos, até que eu me torne numa coisa entre ovo e mulher, ovomulher, enquanto ele se torna numa coisa entre mulher e ovo, mulherovo, e como rolamos juntos pelo tapete, prove a espuma roxa que escorre da minha boca, não tenha medo: venha, veja, toque, sinta, seja.
Como se atreve, como se atreve? eu gritei, eu gritei então um grito de voz, de garganta, de estômago, de víscera. Mas eles não ouviram. Rolavam pelo tapete verde, sem se importarem com os encontrões que davam nas esculturas. Algumas pessoas se aglomeravam na porta, e foi com dificuldade que consegui abrir caminho entre elas, afastando braços, pernas, sacolas recheadas de tomates maduros que escorregavam pelas bordas, achatando-se contra o chão de cimento. Esbarrei num guarda e parei em frente a um cinema. Fiquei olhando os cartazes sem ver os cartazes, ouvindo sem ouvir uma música que vinha da casa ao lado. Levei o braço até a cabeça para ajeitar uma mecha de cabelo que o guarda havia desarrumado, mas detive o gesto no momento em que percebi a esteira colorida que meu braço ia deixando no ar. Então houve um momento em que os cartazes se tornaram apenas cartazes, a música apenas música, e o meu braço não ia além de um braço parado no ar, em meio a um gesto interrompido.
Por favor, eu disse para ninguém — e comecei a contar para mim mesmo uma história que só eu conhecia. Uma história assim: ao lado da minha casa, moram uns meninos que passam o dia inteiro ouvindo música. A música é quase sempre esta: you may say I’m a dreamer but I’m not the only one imagine there’s no countries nothing to kill or die for all the people living in peace . É bonita, a música. Os meninos também. Bonitos, eles são bonitos, quero dizer. Claro, nunca falei com eles. Acho mesmo que nunca prestei bem atenção na cara de algum deles, mas eu sei que são muito bonitos. Uma tarde eu coloquei uma cadeira de balanço no pátio de minha casa e fiquei ouvindo essa música. Tinha umas roupas brancas corando no varal, um sol forte batendo bem na minha cara, eu comecei a suar, mas não tinha importância: eu queria ficar ali, no meio das roupas brancas, sentindo o sol quente bater na minha cabeça, balançando a cadeira e ouvindo aquela música. Quando o sol estava se tornando insuportável — porque sempre chega um momento em que até o bom se torna insuportável —, quando chegou esse momento eu olhei para a janela deles e vi uma menina me olhando atrás das grades. Quando ela viu que eu olhava, começou a erguer devagar a blusa, uma blusa curta, cheia de listras coloridas, e me mostrou os seios. Entre os seios recém-nascidos, havia um ovo com um punhal cravado no centro de onde escorria um fio de sangue que descia pelo umbigo da menina, escorregava por cima do fecho da calça e pingava devagar bem no meio da clareira de sol onde eu estava.
— Meu nome é Lúcia — ela disse. — Eu estou no céu com os diamantes.
A minha cabeça gira. Não. A minha cabeça não gira. A minha cabeça cresce e se derrama pela rua e eu fico vendo as pessoas caminharem por entre meus cabelos. No começo elas têm alguma dificuldade, mas sorriem e vão afastando pacientemente os fios, mas os fios aumentam e se tornam cada vez mais espessos, mais intransponíveis. Então as pessoas se enfurecem, apanham foices, tesouras, facas, agulhas, e voltam com ódio saindo pelos olhos, e enquanto eu me deito sobre o asfalto elas vão cortando e furando meus cabelos que não param de crescer sobre a cidade de pessoas enfurecidas.
É difícil chegar até a beira da calçada, fazer sinal para o táxi, ouvi-lo frear, correr, abrir a porta, sentar, dar o endereço ao motorista e pedir que ande depressa porque as pessoas armadas batem contra as vidraças do carro, e eu digo ao motorista que corra, que corra. Então ele corre e eu jogo meu corpo contra o assento, e abaixo a cabeça no momento em que um tomate maduro vem esborrachar-se contra o plástico vermelho. O vermelho do plástico suga o vermelho do tomate: estou sentado sobre tomates esborrachados, mas não quero pensar nisso, é preciso que o motorista não perceba.
Então, para disfarçar, digo ao motorista que me sinto sozinho. Mas ele não ouve, e eu entendo que desse jeito não irei muito longe. Então pergunto a ele se já leu Goethe, se já leu Werther. Ele pergunta o que, mas faço que não entendo — retiro do bolso uma edição portuguesa de 1916 e digo que ele deveria ler, que ele não sabe o que está perdendo, e abro à toa e leio um trecho assim: Ella não vê, não sente que está preparando um veneno que será mortal para ambos nós. E eu... bebo com avidez, com soffreguidão, a taça fatal que ella me apresenta. O que significa o meigo olhar com que muitas vezes me contempla? Ela se chama Lúcia, esclareço, mora ao lado da minha casa e costuma estar no céu com os diamantes. Mas julgo perceber um brilho assassino nos olhos que me espreitam pelo espelho retrovisor. Fecho o livro, sorrio um sorriso compreensivo, bem-educado, discreto, tolerante — é, eu sou assim quase o tempo todo, compreensivo, bem-educado, discreto, tolerante. Cruzo as pernas e os braços, sei que é preciso tentar novamente, prendo no bolso o tentáculo que insiste em escapar de minha cintura e digo que Cleópatra era apenas uma prostituta, bem como dois e dois são cinco, também como a soma do quadrado dos catetos, o próprio binômio de Newton que, dizem, é mais bonito que a Vênus de Milo, apesar de Angela Davis ter sido a melhor aluna de Marcuse, para ser bem claro, exatamente como aquele umbu no pátio da casa de minha avó e, concluindo, para dizer a verdade, bem, não costumo ser assim o tempo todo...
O carro pára e o motorista me olha: sua cara é um ovo macio, redondo, liso e branco, com um punhal fincado no centro. Sorrio para ele, bato-lhe devagar no ombro, querendo dizer que compreendo, que não tenho preconceitos. Pago e desço e entro em minha casa e corro para o pátio, sento na cadeira de balanço e fico ouvindo a música. Mas não há música. O varal está vazio e não há mais sol. O sol acabou de se pôr. A casa ao lado está vazia. Olho para a janela. A janela tem grades. Olho para trás das grades, onde estava a menina de seios nus. Ela se chama Lúcia e, naquela tarde, estava no céu com os diamantes. Mas não há nada lá. Sobre o muro está sentado um ovo de pernas cruzadas.
Sorrio para ele e digo: olá, Humpty-Dumpty, como vai Alice? Mas ele descruza as pernas e arma o salto. Pressinto que vai cair sobre mim e corro para a cozinha. Atravesso a cozinha, a sala, o corredor, olho por cima dos ombros e vejo que ele não me segue, talvez porque minhas vibrações coloridas tomem toda a passagem atrás de mim. A cozinha, a sala e o corredor estão cheios de eus azuis, vermelhos, amarelos, roxos, eus brilhantes que deslizam e flutuam e se fundem uns com os outros, e depois se desdobram em vários outros eus ainda mais coloridos e mais brilhantes que deslizam e flutuam. Gostaria de ficar olhando para eles, mas lembro do ovo, empurro a porta do banheiro, encosto meu corpo em sua superfície quando ela se fecha sobre mim: agora a câmara se aproximaria em zoom e daria um dose nas minhas narinas ofegantes, meus olhos esgazeados, uma gota de suor escorrendo da testa, depois baixaria até as mãos e ficaria fixa durante algum tempo, as minhas mãos crispadas contra a madeira da porta. Acho tão bonito que quero ver meu rosto espavorido no espelho. Olho meu rosto espavorido no espelho: a gota de suor não é uma gota de suor, é uma gota de sangue. As minhas narinas ofegantes não são narinas ofegantes, são o cabo de bronze de um punhal. E meu rosto espavorido não é um rosto espavorido. É um ovo.
Ele saiu do espelho e veio caminhando em minha direção. Olhei para outro lado, mordi o lábio. Quis brincar com ele, cheguei a sorrir, perguntei se queria ouvir uma história, movimentei meu braço, veja como são bonitos esses outros braços coloridos que ele vai deixando atrás de si, veja como são evanescentes, não é linda essa palavra? e-va-nes-cen-tes, veja como sei fazer caras engraçadas, veja os meus eus coloridos escorregando por baixo da porta, ouça minha voz dizendo todas essas coisas, sinta como ela ressoa cristalina pelos azulejos azuis do banheiro, não é interessante? cristalina crista cristal sua casca também é de cristal cristalina Krishnamurti, veja que relações loucas eu faço, veja como eu vibro, como eu vivo, como eu vejo: veja.
Mas ele não se move. Está parado à minha frente e volta-se devagar para que eu fique cara a cara com o punhal cravado em suas costas. É quando julgo perceber nele uma espécie de súplica: socorra-me, poupe-me, abrevie-me. Agora é um ovo delicado, tenro, humilde, e não tenho medo, e sinto pena dele, quase ternura. Então estendo os meus muitos braços coloridos e toco no cabo de bronze do punhal. A sua casca está manchada pelo fio de sangue coagulado. Hesito um pouco, mas fecho os olhos no mesmo momento em que meus dedos se cerram em torno do punhal. Meus olhos são janelas, minhas pálpebras grades, minhas mãos tentáculos, meus dedos ferro. Uma breve hesitação, depois empurro lento, firme. E sinto uma lâmina penetrando fundo em minhas costas, até o pesado cabo de bronze onde dedos comprimem com força, perdidos entre as espáduas. Lúcia grita, mas é tarde demais. Vejo minha casca clara partir-se inteira em cacos brilhantes que ficam cintilando pelo chão do banheiro. O sangue escorre e eu, agora, também estou no céu com os diamantes.


Caio Fernando Abreu, O ovo apunhalado

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Números


MaXu


Desiguais as contas:
para cada anjo, dois demônios.

Para um só Sol, quatro Luas.

Para a tua boca, todas as vidas.

Dar vida aos mortos
é obra para infinitos deuses.

Ressuscitar um vivo:
um só amor cumpre o milagre.


Mia Couto

Ode descontínua e remota para flauta e Oboé


De Ariana para Dionísio:



I

É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.


II

Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.


III

A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência

E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.

A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
A uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta

Por que recusas amor e permanência?


IV

Porque te amo
Deverias ao menos te deter
Um instante

Como as pessoas fazem
Quando vêem a petúnia
Ou a chuva de granizo.

Porque te amo
Deveria a teus olhos parecer
Uma outra Ariana

Não essa que te louva

A cada verso
Mas outra

Reverso de sua própria placidez
Escudo e crueldade a cada gesto.

Porque te amo, Dionísio,
é que me faço assim tão simultânea
Madura, adolescente

E por isso talvez
Te aborreças de mim.


V

Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio
Se me amas, podes dizer que não. Pouco me importa
ser nada à tua volta, sombra, coisa esgarçada
No entendimento de tua mãe e irmã. A mim me importa,
Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido
E o que tu dizes nem pode ser cantado
Porque é palavra de luta e despudor.

E no meu verso se faria injúria

E no meu quarto se faz verbo de amor


VI

Três luas, Dionísio, que não te vejo.
Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães

E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sirius pressagia

Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:

Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta

Quando tu, Dionísio, não estás.


VII

É lícito me dizeres, que Manan, tua mulher
Virá à minha casa, para aprender comigo
Minha extensa e difícil dialética lírica?
Canção e liberdade não se aprendem

Mas posso, encantada, se quiseres
Deitar-me com o amigo que escolheres
E ensinar à mulher e a ti, Dionísio,
A eloqüência da boca nos prazeres
E plantar no teu peito, prodigiosa
Um ciúme venenoso e derradeiro.


VIII

Se Clódia desprezou Catulo
E teve Rufus, Quintius, Gelius
Inacius e Ravidus

Tu podes muito bem, Dionísio,
Ter mais cinco mulheres
E desprezar Ariana
Que é centelha e âncora

E refrescar tuas noites
Com teus amores breves.
Ariana e Catulo, luxuriantes

Pretendem eternidade, e a coisa breve
A alma dos poetas não inflama.
Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta

Que seja sempre terra o que é celeste
E que terrestre não seja o que é só terra.


IX

“Conta-se que havia na China uma mulher
belíssima que enlouquecia de amor todos
os homens. Mas certa vez caiu nas
profundezas de um lago e assustou os peixes.”

Tenho meditado e sofrido
Irmanada com esse corpo
E seu aquático jazigo

Pensando

Que se a mim não deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida.

E te assustas do meu canto.
Tendo-me a mim
Preexistida e exata

Apenas tu, Dionísio, é que recusas
Ariana suspensa nas tuas águas.


X

Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, Dionísio, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa

E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.

Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, Dionísio, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu.



Hilda Hilst 
Imagens: MaXu

Musa Consolatrix

klaus.goffelmeyer


Que a mão do tempo e o hálito dos homens
Murchem a flor das ilusões da vida,
Musa consoladora,
É no teu seio amigo e sossegado
Que o poeta respira o suave sono.

Não há, não há contigo,
Nem dor aguda, nem sombrios ermos;
Da tua voz os namorados cantos
Enchem, povoam tudo
Da íntima paz de vida e de conforto.

Ante esta voz que as dores adormece,
E muda o agudo espinho em flor cheirosa,
Que vales tu, desilusão dos homens?
Tu que podes, ó tempo?
A alma triste do poeta sobrenada
À enchente das angústias,
E, afrontando o rugido da tormenta,
Passa cantando, alcíone divina.

Musa consoladora,
Quando da minha fronte da mancebo
A última ilusão cair, bem como
Folha amarela e seca
Que ao chão atira a viração do outono,
Ah! no teu seio amigo
Acolhe-me, - e haverá minha alma aflita,
Em vez de algumas ilusões que teve,
A paz, o último bem, último e puro!


Machado de Assis

Poema XIV

Jackie Hall 


Juegas todos los días con la luz del universo.
Sutil visitadora, llegas en la flor y en el agua.
Eres más que esta blanca cabecita que aprieto
como un racimo entre mis manos cada día.

A nadie te pareces desde que yo te amo.
Déjame tenderte entre guirnaldas amarillas.
Quién escribe tu nombre con letras de humo entre las estrellas del sur?
Ah déjame recordarte cómo eras entonces, cuando aún no existías.

De pronto el viento aúlla y golpea mi ventana cerrada.
El cielo es una red cuajada de peces sombríos.
Aquí vienen a dar todos los vientos, todos.
Se desviste la lluvia.

Pasan huyendo los pájaros.
El viento. El viento.
Yo sólo puedo luchar contra la fuerza de los hombres.
El temporal arremolina hojas oscuras
y suelta todas las barcas que anoche amarraron al cielo.

Tú estás aquí. Ah tú no huyes.
Tú me responderás hasta el último grito.
Ovíllate a mi lado como si tuvieras miedo.
Sin embargo alguna vez corrió una sombra extraña por tus ojos.

Ahora, ahora también, pequeña, me traes madreselvas,
y tienes hasta los senos perfumados.
Mientras el viento triste galopa matando mariposas
yo te amo, y mi alegría muerde tu boca de ciruela.

Cuanto te habrá dolido acostumbrarte a mí,
a mi alma sola y salvaje, a mi nombre que todos ahuyentan.
Hemos visto arder tantas veces el lucero besándonos los ojos
y sobre nuestras cabezas destorcerse los crepúsculos en abanicos girantes.

Mis palabras llovieron sobre ti acariciándote.
Amé desde hace tiempo tu cuerpo de nácar soleado.
Hasta te creo dueña del universo.
Te traeré de las montañas flores alegres, copihues,
avellanas oscuras, y cestas silvestres de besos.

Quiero hacer contigo
lo que la primavera hace con los cerezos.



Pablo Neruda 
20 poemas de amor y una canción desesperada


Derretendo o gelo

@ Eldar Aliev



As palavras morrem na porta da garganta e não saem. A mão caminha à procura de um afago ou de uma outra mão, mas não chega a lugar nenhum. Pensamos em  tomar uma atitude, mas não tomamos. Medo de rejeição. Medo do não, que doeria mais que uma bofetada.

A barreira invisível que nos separa das pessoas que mais amamos se transforma em gelo com o passar dos anos. Geralmente começa na infância, onde as manifestações de carinho são dadas através de outras coisas que beijos abraços e eu te amo. O amor existe, ele está lá, indubitavelmente, mas ele se apresenta de outras maneiras. Quem nunca teve um tio, pai, mãe ou parente que sabe que ama, mas que não consegue dar um abraço caloroso porque alguma coisa impede essa aproximação? Isso acontece mesmo entre irmãos.

O pior é quando tomamos a atitude de romper essa barreira e a outra pessoa se torna uma estátua de gelo nos nossos braços, sem saber o que fazer. O sentimento de rejeição que sentimos, ainda que rejeição não seja, pode desmoronar nossa decisão de ter dado um passo à frente. É necessário muito amor para olhar nos olhos dessa pessoa e dizer que você gosta dela, mesmo se esse sentimento é claro e evidente. É necessário dar à outra pessoa o tempo necessário para se acostumar e se moldar a esse novo modo de vida, essa nova maneira de ser.

É simples! Para se derreter o gelo, nada melhor que o calor. Não, talvez seja óbvio, mas simples não é. Não na vida, não com os sentimentos. Não existe fósforo e nem isqueiro emocional. Há um coração e é dele que precisa surgir a primeira chama. Só dele pode emanar calor suficiente para derreter o gelo da indiferença, para derrubar a barreira que nos impede de estar mais próximos das pessoas, principalmente daquelas que amamos e sabemos que nos amam, mesmo se não expressam isso com gestos e palavras carinhosas.

É sabido de todos que o calor derrete gelo, certo, mas da maneira certa. E se não derreter, é porque não era gelo, era pedra mesmo.

Quando você estiver com alguém que você ama e que te ama e seu coração acelerado te disser para transformar em gestos o que você sente por essa pessoa, não tenha medo. E não espere receber retorno imediato, não fique decepcionado se a pessoa ficar "em estado de choque." Dê a ela o tempo de se acostumar, olhe em seus olhos e em outras oportunidades, tente novamente.

Com o tempo você vai sentir que o gelo começa a derreter-se e que a pessoa se abandona, talvez ainda seus braços te cerquem e te apertem. Talvez até lágrimas surjam, mas serão lágrimas de felicidade.

E se depois de ler tudo isso, você perceber que é a pessoa que está do outro lado, não pense que é anormal. Somos todos a conseqüência de uma educação. Deixa-te envolver pelo calor que te invade e você vai perceber que de você mesmo vai emanar o carinho que poderá mudar tudo ao seu redor.



Letícia Thompson

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Estas Verdades





Estas verdades não são perfeitas porque são ditas.
E antes de ditas pensadas.
Mas no fundo o que está certo é elas negarem-se a si próprias.
Na negação oposta de afirmarem qualquer cousa.
A única afirmação é ser.
E ser o oposto é o que não queria de mim.



Alberto Caeiro
Poemas Inconjuntos

Amo-te

MaXu



Amo-te quando em largo, alto e profundo
Minha alma alcança quando, transportada
Sente, alongando os olhos deste mundo
Os fins do ser, a graça entressonhada.

Amo-te em cada dia, hora e segundo:
à luz do sol, na noite sossegada.
E é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não podem nada.

Amo-te com o doer das velhas penas,
Com sorrisos, com lágrimas de prece,
e a fé da minha infância, ingênua e forte.

Amo-te até nas coisas mais pequenas.
Por toda a vida. E assim Deus o quisesse,
Ainda mais te amarei depois da morte.


Elizabeth Barrett Browning
Trad. Manuel Bandeira