quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Epitáfio

"Teve o orgulho de jamais mandar, de não dispor de nada nem de ninguém. Sem subalternos, sem amos, não deu nem recebeu ordens. Excluído do império das Leis, e como se fosse anterior ao bem e ao mal, nunca fez ninguém padecer. Em sua memória apagaram-se os nomes das coisas; olhava sem perceber, escutava sem ouvir: os perfumes e aromas se desvaneciam ao aproximar-se de suas narinas e de seu paladar. Seus sentidos e seus desejos foram seus únicos escravos: de tal modo que mal sentiram, mal desejaram. Esqueceu felicidade e infelicidade, sede e temores; e se em alguma ocasião tornava a lembrar-se deles, desdenhava nomeá-los e rebaixar-se assim à esperança ou à nostalgia. O gesto mais ínfimo custava-lhe mais esforços que os que custam a outros fundar ou derrubar um império. Nascido cansado de nascer, se quis sombra: quando viveu então? E por culpa de qual nascimento? E se portou seu sudário em vida, por que milagre conseguiu morrer?"

Emil Cioran

(Breviário de Decomposição, pág.188, ed. Rocco, 2011)

sábado, 26 de agosto de 2023

Rotina


Ao pentear-se, com o sol

a entrar pela janela, perguntava

a si própria se era a mesma de ontem,

como se houvesse

alguma lógica na relação entre a luz

e o pensamento que nascia do seu gesto. Mas

o que a manhã trazia era um sentimento

que interrompia o passar

dos minutos, e a levava a descobrir

que a vida pode ser um parêntesis

entre uma hora e outra. E quando

se olhava ao espelho, o tempo

voltava a passar no mostrador do relógio,

com o ponteiro a correr no sentido inverso,

trazendo-a de volta a um hoje

em que amanhã é o mesmo

dia de ontem.


Nuno Júdice

 


E que importância pode ter o fato de eu me atormentar, sofrer ou pensar? Minha presença no mundo sacudirá — para o meu grande pesar — a tranquila existência de uns e perturbará a ingenuidade inconsciente e prazerosa de outros, para o meu ainda maior pesar. Embora sinta que minha tragédia seja para mim a maior tragédia da História — maior que as quedas de impérios ou de quem sabe que desabamentos no fundo de uma mina — carrego implicitamente a sensação de minha total nulidade e insignificância. Estou convencido de que não sou absolutamente nada no universo, embora sinta que a única existência real seja a minha. Ademais, se eu fosse obrigado a escolher entre a existência do mundo e a minha existência, eu recusaria a outra, com todas as suas leis, a fim de planar sozinho no Nada absoluto. Embora para mim a vida seja um suplício, não posso abdicar dela, pois não acredito no caráter absoluto dos valores transvitais pelos quais me sacrificaria. Para ser sincero, diria que não sei por que vivo e por que não cesso de viver. A chave provavelmente reside no fenômeno da irracionalidade da vida, que faz com que ela se mantenha sem motivo.

 Emil Cioran

Reinvenção

 


A vida só é possível

reinventada.


Anda o sol pelas campinas

e passeia a mão dourada

pelas águas, pelas folhas...

Ah! tudo bolhas

que vem de fundas piscinas

de ilusionismo... - mais nada.


Mas a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível

reinventada.


Vem a lua, vem, retira

as algemas dos meus braços.

Projeto-me por espaços

cheios da tua Figura.

Tudo mentira! Mentira

da lua, na noite escura.


Não te encontro, não te alcanço...

Só - no tempo equilibrada,

desprendo-me do balanço

que além do tempo me leva.

Só - na treva,

fico: recebida e dada.


Porque a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível

reinventada.


Cecília Meireles

Biografia




Escreverás meu nome com todas as letras,

com todas as datas,

e não serei eu.


Repetirás o que ouviste,

o que leste de mim, e mostrarás meu retrato,

e nada disso serei eu.


Dirás coisas imaginárias,

invenções sutis, engenhosas teorias,

e continuarei ausente.


Somos uma difícil unidade,

de muitos instantes mínimos,

isso seria eu.


Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,

aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente.

Como me poderão encontrar?


Novos e antigos todos os dias,

transparentes e opacos, segundo o giro da luz,

nós mesmos nos procuramos.


E por entre as circunstâncias fluímos,

leves e livres como a cascata pelas pedras.

Que mortal nos poderia prender?


Cecília Meireles


Estamos trespassados de palavras inúteis, de uma quantidade demente de falas e imagens. A besteira nunca é muda nem cega. De modo que o problema não é mais fazer com que as pessoas se exprimam, mas arranjar-lhes vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais elas teriam, enfim, algo a dizer. As forças repressivas não impedem as pessoas de se exprimir, ao contrário, elas as forçam a se exprimir. Suavidade de não ter nada a dizer, direito de não ter nada a dizer; pois é a condição para que se forme algo raro ou rarefeito, que merecesse um pouco ser dito. Do que se morre atualmente não é de interferências, mas de proposições que não têm o menor interesse. Ora, o que chamamos de sentido de uma proposição é o interesse que ela apresenta, não existe outra definição para o sentido. Ele equivale exatamente à novidade de uma proposição. Podemos escutar as pessoas durante horas: sem interesse… Por isso é tão difícil discutir, por isso não cabe discutir, nunca. Não se vai dizer a alguém: “o que você diz não tem o menor interesse”. Pode-se dizer: “está errado”. Mas o que alguém diz nunca está errado, não é que esteja errado, é que é bobagem ou não tem importância alguma. É que isso já foi dito mil vezes. As noções de importância, de necessidade, de interesse são mil vezes mais determinantes que a noção de verdade.

Gilles Deleuze

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

 


Sem dúvida, nascemos todos em Arcádia, como disse Schiller; isto é, começamos a vida cheios de aspirações à felicidade, ao prazer, e abrigamos a insensata esperança de realizá-las. Entretanto, em regra, chega o ponto em que o destino nos agarra bruscamente e nos ensina que nada é nosso, senão seu, visto que tem um direito indiscutível não apenas sobre tudo o que possuímos e adquirimos, sobre mulher e filhos, mas até sobre nossos  braços e pernas, nossos olhos e ouvidos, e até sobre o nariz no meio da cara. Em todo caso, a experiência não tarda em fazer-nos compreender que felicidade e prazer são uma fata Morgana que, visível somente de longe, desaparece quando nos aproximamos. Em contrapartida, compreendemos que o sofrimento e dor são uma realidade, a qual faz sua presença ser sentida sem qualquer intermediário, sem necessidade de ilusões ou expectativas. Se a lição dá seus frutos, desistimos de correr atrás da felicidade e do prazer, dedicando-nos a nos assegurar dos ataques da dor e do sofrimento. Reconhecemos, então, que o melhor que esse mundo pode oferecer-nos é uma existência sem dores, tranquila, tolerável, na qual restringimos nossos anseios àquilo que estamos mais certos de poder alcançar. Porque o meio mais seguro para não chegar a ser muito infeliz é não desejar ser muito feliz. Merck, o amigo de juventude de Goethe, reconheceu essa verdade, posto que escreveu: Tudo neste mundo é desgraçado pela ânsia excessiva à felicidade, numa medida que, de fato, corresponde aos nossos sonhos. É, pois, prudente reduzir a proporções muito modestas nossas pretensões aos prazeres, às riquezas, às posições, às honras etc., porque essa disputa e luta pela felicidade, pelo esplendor e pelos prazeres é o que nos traz os maiores infortúnios. Reduzir nossas pretensões é prudente e desejável porque é bastante fácil ser completamente desgraçado, enquanto não é apenas difícil ser muito feliz, mas completamente impossível.

Arthur Schopenhauer

Aforismos para Sabedoria de Vida

 


Uma aliança? Não, ela não usa aliança;

eu também já reparei nisso. Meu Deus, talvez não lhe assente bem, talvez lhe faça a mão larga

demais. Ou pode ser que ela julgue o uso da aliança costume muito burguês. Andar assim com

uma argola lisa no dedo – só falta o molho de chaves num cestinho... Não, senhor, ela é muito

moderna para isso. Eu sei positivamente que todas as mulheres russas têm no seu modo de ser

qualquer coisa de liberdade e desembaraço. E esse tipo de anel é tão prosaico, tão negativo! É,

por assim dizer, um símbolo da servidão. Dá às mulheres um quê de freira, faz delas umas

florzinhas não-me-toques. Não me admiro de que Mme Chauchat não queira ser assim... Uma

mulher encantadora, na flor da idade!... Provavelmente não tem vontade nem vê motivos para

mostrar os seus laços conjugais a todo cavalheiro que lhe aperte a mão... 


Thomas Mann

A Montanha Mágica

 


Gelado e atordoante.

Eu imaginei o barulho límpido de gotas de água caindo na água — só que esse mínimo e delicado ruído seria aumentado até além do som, em enormes gotas cristalinas com um badalar molhado de sinos que submergem. No ar gelado e atordoante as estátuas adormecidas.


Clarice Lispector, 

Um sopro de vida (pulsações)



Livro do desassossego [53]


Quando, como uma noite de tempestade a que o dia se segue, o cristianismo passou de sobre as almas, viu-se o estrago que, invisivelmente, havia causado; a ruína, que causara, só se viu quando ele passara já. Julgaram uns que era por sua falta que essa ruína viera; mas fora pela sua ida que a ruína se mostrara, não que se causara.

Ficou, então, neste mundo de almas, a ruína visível, a desgraça patente, sem a treva que a cobrisse do seu carinho falso. As almas viram-se tais quais eram.

Começou, então, nas almas recentes aquela doença a que se chamou romantismo, aquele cristianismo sem ilusões, aquele cristianismo sem mitos, que é a própria secura da sua essência doentia.

O mal todo do romantismo é a confusão entre o que nos é preciso e o que desejamos. Todos nós precisamos das coisas indispensáveis à vida, à sua conservação e ao seu continuamento; todos nós desejamos uma vida mais perfeita, uma felicidade completa, a realidade dos nossos sonhos e é humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter.

“Não se pode comer um bolo sem o perder.”

Na esfera baixa da política, como no íntimo recinto das almas — o mesmo mal.

O pagão desconhecia, no mundo real, este sentido doente das coisas e de si mesmo. Como era homem, desejava também o impossível; mas não o queria. A sua religião era e só nos penetrais do mistério, aos iniciados apenas, longe do povo e dos, eram ensinadas aquelas coisas transcendentes das religiões que enchem a alma do vácuo do mundo.


 Bernardo Soares. Fernando Pessoa

O Livro do Desassossego

JOSEF BREUER [1842-1925]

Em 20 de junho de 1925 faleceu em Viena, aos 84 anos, o dr. Josef Breuer, criador do método catártico, cujo nome se acha, por isso, indissoluvelmente ligado aos primórdios da psicanálise. Breuer foi médico internista, aluno do clínico Oppolzer. Na juventude ele desenvolveu trabalho com Ewald Hering acerca da fisiologia da respiração; mais tarde, nos poucos momentos de folga de uma extensa prática médica, fez bem-sucedidos experimentos sobre a função do aparelho vestibular em animais. Nada em sua formação podia criar a expectativa de que ele teria a primeira compreensão decisiva do velho enigma da neurose histérica e daria uma contribuição de perene valor ao conhecimento da psique humana. Mas ele era um homem de rico e universal talento, e seus interesses se estendiam muito além de sua atividade profissional. Foi em 1880 que o acaso levou ao seu encontro uma paciente especial, uma jovem de inteligência extraordinária que adoecera de uma grave histeria enquanto cuidava do pai enfermo. O que ele realizou nesse “primeiro caso”, a imensa dedicação e paciência com que empregou a técnica inventada, até que a paciente se livrasse de todos os seus incompreensíveis sintomas — isso o mundo soube apenas catorze anos depois, em nossa publicação conjunta Estudos sobre a histeria (1895), infelizmente apenas em forma bastante abreviada e, devido à discrição médica, censurada. Nós, psicanalistas, que há muito estamos habituados a dedicar centenas de horas a um único paciente, já não podemos conceber a novidade que esse empenho representou 45 anos atrás.


SIGMUND FREUD, OBRAS COMPLETAS EM 20 VOLUMES

Coordenação de Paulo César de Souza

terça-feira, 22 de agosto de 2023


 Esse que em mim envelhece

assomou ao espelho

a tentar mostrar que sou eu.


Os outros de mim,

fingindo desconhecer a imagem,

deixaram-me a sós, perplexo,

com meu súbito reflexo.


A idade é isto: o peso da luz

com que nos vemos.


Mia Couto, O Espelho

sábado, 19 de agosto de 2023


 “I'm a failed poet. Maybe every novelist wants to write poetry first, finds he can't, and then tries the short story, which is the most demanding form after poetry. And, failing at that, only then does he take up novel writing.”

William Faulkner

 


there are worse things than

being alone

but it often takes decades

to realize this

and most often

when you do

it’s too late

and there’s nothing worse

than

too late.


                                                                    Charles Bukowski

 


Lloré porque jamás conoceré el encanto de la comunicación plena. Lloré porque la llave que abrió la puerta indicó un claustro (¡el anhelado encierro junto a los libros! ¡La soledad infinita!). ¡Sí! Lloré porque terminó la farsa. ¡Abajo las máscaras! Éste es tu lugar, Alejandra, y jamás saldrás de aquí. Éste es tu lugar, junto a Rimbaud y Nerval. ¡Junto a Vallejo! Junto a los adorados seres inexistentes que jamás te desilusionarán y a los que nunca cansarás con tus andares de neurótica mundana.

🖋️ Alejandra Pizarnik | Diarios.

Chorei porque nunca vou conhecer o encanto da comunicação plena. Chorei porque a chave que abriu a porta indicou um claustro (o tão desejado trancamento junto aos livros! Solidão infinita! ). Sim, sim! Chorei porque acabou a charada. Abaixo as máscaras! Este é o seu lugar, Alejandra, e você nunca sairá daqui. Aqui é o seu lugar, junto a Rimbaud e Nerval. Ao lado de Vallejo! Junto com os adorados seres inexistentes que nunca te desiludirão e que nunca te cansarás com os teus andares de neurótica mundana.

domingo, 13 de agosto de 2023

Inundação


 ‘Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo.’ – Mia Couto

Inundação

Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.

A casa, aquela casa nossa, era morada mais da noite que do dia. Estranho, dirão. Noite e dia não são metades, folha e verso? Como podiam o claro e o escuro repartir-se em desigual? Explico. Bastava que a voz de minha mãe em canto se escutasse para que, no mais lúcido meio-dia, se fechasse a noite. Lá fora, a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos meninos para sempre.

Certa vez, porém, de nossa mãe escutamos o pranto. Era um choro delgadinho, um fio de água, um chilrear de morcego. Mão em mão, ficamos à porta do quarto dela.

Nossos olhos boquiabertos. Ela só suspirou:

– Vosso pai já não é meu.

Apontou o armário e pediu que o abríssemos. A nossos olhos, bem para além do espanto, se revelaram os vestidos envelhecidos que meu pai há muito lhe ofertara. Bastou, porém, a brisa da porta se abrindo para que os vestidos se desfizessem em pó e, como cinzas, se enevoassem pelo chão. Apenas os cabides balançavam, esqueletos sem corpo.

– E agora – disse a mãe -, olhem para estas cartas.

Eram apaixonados bilhetes, antigos, que minha mãe conservava numa caixa. Mas agora os papéis estavam brancos, toda a tinta se desbotara.

– Ele foi. Tudo foi.

Desde então, a mãe se recusou a deitar no leito. Dormia no chão. A ver se o rio do tempo a levava, numa dessas invisíveis enxurradas. Assim dizia, queixosa. Em poucos dias, se aparentou às sombras, desleixando todo seu volume.

– Quero perder todas as forças. Assim não tenho mais esperas.

– Durma na cama, mãe.

– Não quero. Que a cama é engolidora de saudade.

E ela queria guardar aquela saudade. Como se aquela ausência fosse o único troféu de sua vida.

Não tinham passado nem semanas desde que meu pai se volatilizara quando, numa certa noite, não me desceu o sono. Eu estava pressentimental, incapaz de me guardar no leito. Fui ao quarto dos meus pais. Minha mãe lá estava, envolta no lençol até à cabeça. Acordei-a. O seu rosto assomou à penumbra doce que pairava. Estava sorridente.

– Não faça barulho, meu filho. Não acorde seu pai.

– Meu pai?

– Seu pai esta aqui, muito comigo.

Levantou-se com cuidado de não desalinhar o lençol. Como se ocultasse algo debaixo do pano. Foi à cozinha e serviu-se de água. Sentei-me com ela, na mesa onde se acumulavam as panelas do jantar.

– Como eu o chamei, quer saber?

Tinha sido o seu cantar. Que eu não tinha notado, porque o fizera em surdina. Mas ela cantara, sem parar, desde que ele saíra. E agora, olhando o chão da cozinha, ela dizia:

– Talvez uma minha voz seja um pano; sim, um pano que limpa o tempo.

No dia seguinte, a mãe cumpria a vontade de domingo, comparecida na igreja, seu magro joelho cumprimentando a terra. Sabendo que ela iria demorar eu voltei ao seu quarto e ali me deixei por um instante. A porta do armário escancarada deixava entrever as entranhas da sombra. Me aproximei. A surpresa me abalou: de novo se enfunavam os vestidos, cheios de formas e cores. De imediato, me virei a espreitar a caixa onde se guardavam as lembranças de namoro de meus pais. A tinta regressara ao papel, as cartas de meu velho pai se haviam recomposto? Mas não abri. Tive medo. Porque eu, secretamente, sabia a resposta.

Saí no bico do pé, quando senti minha mãe entrando. E me esgueirei pelo quintal, deitando passo na estrada de areia. Ali me retive a contemplar a casa como que irrealizada em pintura. Entendi que por muita que fosse a estrada eu nunca ficaria longe daquele lugar. Nesse instante, escutei o canto doce de minha mãe. Foi quando eu vi a casa esmorecer, engolida por um rio que tudo inundava.

 Mia Couto, conto ‘Inundação’, do livro “O fio das missangas”

Medo



Meu medo maior

não é do corte necessário

em direção ao maduro.

Temo as horas mornas dos dias infindos

quando o ser estanca cansado de si.

As frutas apodrecem nas geladeiras.

Os passarinhos morrem nas gaiolas.


Donizete Galvão 


 


 Geralmente (alguns, devo dizer) me consideram bastante bom; é que não tenho tempo suficiente para ser mau. Então, como tenho uma capacidade muito grande de arrependimento, inevitavelmente sofro por todas as torpezas que, por acaso, cometo. Arrependo-me de todo o bem e de todo o mal que faço. Deveria permanecer para sempre abaixo ou acima dos atos, esgotar-me no virtual... Aliás, é o que costumo fazer. Ninguém é mais veleidoso do que eu sou. Um aborto, um pobre tipo — com  algumas desculpas metafísicas.

Emil Cioran (In: “Cadernos: 1957–1972”)

 


Cierro mis ojos a todas las negaciones. ¡Yo he venido al mundo para realizarme! Planes. Disciplina. Aprendizaje.

 Alejandra Pizarnik | Diarios.


quarta-feira, 9 de agosto de 2023

 


Tendo penetrado, no decurso dos anos, bastante fundo em duas ou três religiões, recuei de cada vez no limiar da «conversão», por medo de mentir a mim próprio. Nenhuma delas era, aos meus olhos, suficientemente livre para admitir que a vingança é uma necessidade, a mais intensa e a mais profunda de todas, e que cada um de nós a deve satisfazer, nem que seja com palavras. Se a sufocamos, expomo-nos a graves perturbações. Vários desequilíbrios — talvez mesmo todos os desequilíbrios — provêm de uma vingança que adiamos durante demasiado tempo. Saibamos explodir! Qualquer mal-estar é mais são do que o suscitado por uma raiva acumulada.

Emil Cioran

(In: “Do inconveniente de ter nascido”)

sábado, 5 de agosto de 2023

 


Todos nós precisamos de alguém que olhe para nós. Podemos ser divididos em quatro categorias de acordo com o tipo de visual que desejamos viver.

A primeira categoria almeja o olhar de uma infinidade de olhares anônimos, ou seja, o olhar do público.

A segunda categoria é composta por pessoas que têm uma necessidade vital de serem olhadas por muitos olhos conhecidos. São os incansáveis anfitriões de coquetéis e jantares. São mais felizes do que as pessoas da primeira categoria, que, ao perderem seu público, têm a sensação de que as luzes se apagaram na sala de suas vidas. Isso acontece com quase todos eles, mais cedo ou mais tarde. As pessoas da segunda categoria, por outro lado, sempre podem apresentar os olhos de que precisam.

Depois, há a terceira categoria, a categoria de pessoas que precisam estar constantemente diante dos olhos da pessoa que amam. A situação deles é tão perigosa quanto a situação das pessoas da primeira categoria. Um dia, os olhos de sua amada se fecharão e o quarto ficará escuro.

E, finalmente, há a quarta categoria, a mais rara, a categoria de pessoas que vivem sob o olhar imaginário de quem não está presente. Eles são os sonhadores. 

Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser