quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Que é voar?

elena dudina



Que é voar?
É só subir no ar,
levantar da terra o corpo, os pés?
Isso é que é voar?
Não.

Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre, leve, independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não-vivência.
E isso é voar?
Não.

Voar é humano
é transitório, momentâneo...
Aquele que voa tem de pousar em algum lugar:
isso é partir
e não voltar.


Ana Hatherly

Acerola louca

Igor Zenin


troquei o poema pela ema
as palmas pelas palmeiras
as vaias pelas uvaias

eu faço poesia como quem brinca
de trocar tristeza por alegria


nas profundezas das florestas
de palavras vivem os poetas
disfarçados de árvores e ditongos

se alimentam do nada
e de tudo o que
a imaginação decompõe



Nicolas Behr

terça-feira, 29 de outubro de 2013

haleh bryan


O amor é sempre breve, mas desenha
na nossa vida um rasto que perdura
para além do novelo da ternura:
o rasto que transporta o santo-e-senha
para as portas fechadas que o destino
depara a cada um desde menino.
Sobre ser breve, o amor é sempre frágil
e raro escuta o ritmo das marés
que nos faz oscilar o dia-a-dia.
Mas é ver como às vezes fica ágil
e corre e salta e foge a sete pés
do que nos tolhe o rosto da alegria.


Torquato da Luz

O Amor é uma Falácia

Ghada


Eu era frio e lógico. Sutil, calculista, perspicaz, arguto e astuto - era tudo isso. Tinha um cérebro poderoso como um dínamo, preciso como uma balança de farmácia, penetrante como um bisturi. E tinha - imaginem só - dezoito anos.

Não é comum ver alguém tão jovem com um intelecto tão gigantesco. Tomem, por exemplo, o caso do meu companheiro de quarto na universidade, Pettey Bellows. Mesma idade, mesma formação, mas burro como uma porta. Um bom sujeito, compreendam, mas sem nada lá em cima. Do tipo emocional. Instável, impressionável. Pior do que tudo, dado a manias. Eu afirmo que a mania é a própria negação da razão. Deixar-se levar por qualquer nova moda que apareça, entregar a alguma idiotice só porque os outros a segue, isto, para mim, é o cúmulo da insensatez. Petey, no entanto, não pensava assim.

Certa tarde, encontrei-o deitado na cama com tal expressão de sofrimento no rosto que o meu diagnóstico foi imediato: apendicite.

- Não se mexa. Não tome laxante. Vou chamar o médico.

- Couro preto - balbuciou ele.

- Couro preto? - disse eu, interrompendo a minha corrida.

- Quero uma jaqueta de couro preto - disse.

Percebi que o seu problema não era físico, mas mental.

- Por que você quer uma jaqueta de couro preto?

- Eu devia ter adivinhado - gritou ele, socando a cabeça - Devia ter adivinhado que eles voltariam com o Charleston. Como um idiota, gastei todo o meu dinheiro em livros para as aulas e agora não posso comprar uma jaqueta de couro preto.

- Quer dizer - perguntei incrédulo - que estão mesmo usando jaquetas de couro preto outra vez?

- Todas as pessoas importantes da universidade estão. Onde você tem andado?

- Na biblioteca - respondi, citando um lugar não freqüentado pela pessoas importantes da Universidade.

Ele saltou da cama e pôs-se a andar de um lado para o outro do quarto.

- Preciso conseguir uma jaqueta de couro preto - disse, exaltado - Preciso mesmo.

- Por que, Pety? Veja a coisa racionalmente. Jaquetas de couro preto são desconfortáveis. Impedem o movimento dos braços. São pesadas, são feias, são ...

- Você não compreende - interrompeu ele com impaciência - é o que todos estão usando. Você não quer andar na moda?

- Não - respondi, sinceramente.

- Pois eu sim - declarou ele - daria tudo para ter uma jaqueta de couro preto. Tudo.

Aquele instrumento de precisão, meu cérebro, começou a funcionar a todo vapor.

- Tudo? - perguntei, examinando seu rosto com olhos semicerrados.

- Tudo - confirmou ele, em tom dramático.

Alisei o queixo, pensativo. Eu, por acaso, sabia onde encontrar uma jaqueta de couro preto. Meu pai usara um nos seus tempos de estudante; estava agora dentro de um malão, no sótão da casa. E, também por acaso, Petey tinha algo que eu queria. Não era dele, exatamente, mas pelo menos ele tinha alguns direitos sobre ela. Refiro-me à sua namorada, Polly Spy.

Eu há muito desejava Polly Spy. Apresso-me a esclarecer que o meu desejo não era de natureza emotiva. A moça, não há dúvida, despertava emoções, mas eu não era daqueles que se deixam dominar pelo coração. Desejava Polly para fins engenhosamente calculados e inteiramente cerebrais.

Cursava eu o primeiro ano de direito. Dali a algum tempo, estaria me iniciando na profissão. Sabia muito bem a importância que tinha a esposa na vida e na carreira de um advogado. Os advogados de sucesso, segundo as minhas observações, eram quase sempre casados com mulheres bonitas, graciosas e inteligentes. Com uma única exceção, Polly preenchia perfeitamente estes requisitos.

Era bonita. Suas proporções ainda não eram clássicas, mas eu tinha certeza de que o tempo se encarregaria de fornecer o que faltava. A estrutura básica estava lá.

Graciosa também era. Por graciosa quero dizer cheia de graças sociais. Tinha porte ereto, a naturalidade no andar e a elegância que deixavam transparecer a melhor das linhagens. Á mesa, suas maneiras eram finíssimas. Eu já vira Polly no barzinho da escola comendo a especialidade da casa - um sanduíche que continha pedaços de carne assada, molho, castanhas e repolho - sem nem sequer umedecer os dedos.

Inteligente ela não era. Na verdade, tendia para o oposto. Mas eu confiava em que, sob a minha tutela, haveria de tornar-se brilhante. Pelo menos valia a pena tentar. Afinal de contas, é mais fácil fazer uma moça bonita e burra ficar inteligente do que uma moça feia e inteligente ficar bonita.

- Petey - perguntei - você ama Polly Spy?

- Eu acho que ela é interessante - respondeu - mas não sei se chamaria isso de amor. Por quê?

- Você - continuei - tem alguma espécie de arranjo formal com ela? Quero dizer, vocês saem exclusivamente um com o outro?

- Não. Nos vemos seguidamente. Mas saímos os dois com outros também. Por quê?

- Existe alguém - perguntei - algum outro homem que ela goste de maneira especial?

- Que eu saiba não. Por quê?

Fiz que sim com a cabeça, satisfeito.

- Em outras palavras, a não ser por você, o campo está livre, é isso?

- Acho que sim. Aonde você quer chegar?

- Nada, anda - respondi com inocência, tirando minha mala de dentro do armário.

- Onde é que você vai? - quis saber Petey.

- Passar o fim de semana em casa.

Atirei algumas roupas dentro da mala.

- Escute - disse Petey, apegando-se com força ao meu braço - em casa, será que você não poderia pedir dinheiro ao seu pai, e me emprestar para comprar uma jaqueta de couro preto?

- Posso até fazer mais do que isso - respondi, piscando o olho misteriosamente. Fechei a mala e saí.

- Olhe - disse a Petey, ao voltar na segunda feira de manhã. Abri a mala e mostrei o enorme objeto cabeludo e fedorento que meu pai usara ao volante de seu Stutz Beacat em 1955.

- Santo Pai - exclamou Petey com reverência. Passou as mãos na jaqueta e depois no rosto.

- Santo Pai - repetiu, umas quinze ou vinte vezes.

- Você gostaria de ficar com ele? - perguntei.

- Sim - gritou ele, apertando a jaqueta contra o peito. Em seguida, seus olhos assumiram um ar precavido. - O que quer em troca?

- A sua namorada - disse eu, não desperdiçando palavras.

- Polly? - sussurrou Petey, horrorizado. - Você quer a Polly?

- Isso mesmo.

Ele jogou a jaqueta pra longe.

- Nunca - declarou resoluto.

Dei de ombros.

- Tudo bem. Se você não quer andar na moda, o problema é seu.

Sentei-me numa cadeira e fingi que lia um livro, mas continuei espiando Petey, com o rabo dos olhos. Era um homem partido em dois. Primeiro olhava para a jaqueta com a expressão de uma criança desamparada diante da vitrine de uma confeitaria. Depois dava-lhe as costas e cerrava os dentes, altivo. Depois voltava a olhar para a jaqueta. Com uma expressão ainda maior de desejo no rosto. Depois virava-se outra vez, mas agora sem tanta resolução. Sua cabeça ia e vinha, o desejo ascendendo, a resolução descendendo. Finalmente, não se virou mais: ficou olhando para a jaqueta com pura lascívia.

- Não é como se eu estivesse apaixonado por Polly - balbuciou. - Ou mesmo namorando sério, ou coisa parecida.

- Isso mesmo - murmurei.

- Afinal, Polly significa o que para mim, ou eu pra ela?

- Nada - respondi.

- Foi uma coisa banal. Nos divertimos um pouco. Só isso.

- Experimente a jaqueta - disse eu.

Ele obedeceu. A jaqueta ficou bem larga, passando da cintura. Ele parecia um motoqueiro mal vestido da década de cinqüenta.

- Serve perfeitamente - disse, contente.

Levantei-me da cadeira e perguntei, estendendo a mão.

- Negócio feito?

Ele engoliu a seco.

- Feito - disse, e apertou a minha mão.

Saí com Polly pela primeira vez na noite seguinte.

O Primeiro programa teria o caráter de pesquisa preparatória. Eu desejava saber o trabalho que me esperava para elevar a sua mente ao nível desejado. Levei-a para jantar.

- Puxa, que jantar interessante! - disse ela, quando saímos do restaurante. Fomos ao cinema.

- Puxa, que filme interessante! - disse ela, quando saímos do cinema.

Levei-a para casa.

- Puxa, que noite interessante - disse ela, ao nos despedirmos.

Voltei para o quarto com o coração pesado. Eu subestimara gravemente as proporções da minha tarefa. A ignorância daquela moça era aterradora. E não seria o bastante apenas instruí-la. Era preciso, antes de tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento se me afigurava gigantesco, e a princípio me vi inclinado a devolvê-la a Petey. Mas aí comecei a pensar nos seus dotes físicos generosos e na maneira como entrava numa sala ou segurava uma faca, um garfo, e decidi tentar novamente.

Procedi, como sempre, sistematicamente. Dei-lhe um curso de Lógica. Acontece que, como estudante de direito, eu freqüentava na ocasião aulas de Lógica, e portanto tinha tudo na ponta da língua.

- Polly - disse eu, quando fui buscá-la para o nosso segundo encontro. - Esta noite vamos até o parque conversar.

- Ah, que interessante! - respondeu ela.

Uma coisa deve ser dita em favor da moça: seria difícil encontrar alguém tão bem disposta para tudo.

Fomos até o parque, o local de encontros da universidade, nos sentamos debaixo de uma árvore, e ela me olhou cheia de expectativa.

- Sobre o que vamos conversar? - perguntou.

- Sobre Lógica.

Ela pensou durante alguns segundos e depois sentenciou:

- Interessante!

- A Lógica - comecei, limpando a garganta - é a ciência do pensamento. Se quisermos pensar corretamente, é preciso antes saber identificar as falácias mais comuns da Lógica. É o que vamos abordar hoje.

- Interessante! - exclamou ela, batendo palmas de alegria.

Fiz uma careta, mas segui em frente, com coragem.

- Vamos primeiro examinar uma falácia chamada Dicto Simpliciter.

- Vamos - animou-se ela, piscando os olhos com animação.

- Dicto Simpliciter quer dizer um argumento baseado numa generalização não qualificada. Por exemplo: o exercício é bom, portanto todos devem se exercitar.

- Eu estou de acordo - disse Polly, fervorosamente. - Quer dizer, o exercício é maravilhoso. Isto é, desenvolve o corpo e tudo.

- Polly - disse eu, com ternura - o argumento é uma falácia. Dizer que o exercício é bom é uma generalização não qualificada. Por exemplo: para quem sofre do coração, o exercício é ruim. Muitas pessoas têm ordem de seus médicos para não exercitarem. É preciso qualificar a generalização. Deve-se dizer: o exercício é geralmente bom, ou é bom para a maioria das pessoas. Do contrário está-se cometendo um Dicto Simpliciter. Você compreende?

- Não - confessou ela. - Mas isso é interessante. Quero mais. Quero mais!

- Será melhor se você parar de puxar a manga da minha camisa - disse eu e, quando ela parou, continuei:

- Em seguida, abordaremos uma falácia chamada generalização apressada. Ouça com atenção: você não sabe falar francês, eu não sei falar francês, Petey Bellows não sabe falar francês. Devo portanto concluir que ninguém na universidade sabe falar francês.

- É mesmo? - espantou-se Polly. - Ninguém?

Contive a minha impaciência.

- É uma falácia, Polly. A generalização é feita apressadamente. Não há exemplos suficientes para justificar a conclusão.

- Você conhece outras falácias? - perguntou ela, animada. - Isto é até melhor do que dançar.

- Esforcei-me por conter a onda de desespero que ameaçava me invadir. Não estava conseguindo nada com aquela moça, absolutamente nada. Mas não sou outra coisa senão persistente. Continuei.

- A seguir, vem o Post Hoc. Ouça: Não levemos Bill conosco ao piquenique. Toda vez que ele vai junto, começa a chover.

- Eu conheço uma pessoa exatamente assim - exclamou Polly. - Uma moça da minha cidade, Eula Becker. Nunca falha. Toda vez que ela vai junto a um piquenique...

- Polly - interrompi, com energia - é uma falácia. Não é Eula Becker que causa a chuva. Ela não tem nada a ver com a chuva. Você estará incorrendo em Post Hoc, se puser a culpa na Eula Becker.

- Nunca mais farei isso - prometeu ela, constrangida. - Você está bravo comigo?

- Não Polly - suspirei. - Não estou bravo.

- Então conte outra falácia.

- Muito bem. Vamos experimentar as premissas contraditórias.

- Vamos - exclamou ela alegremente.

Franzi a testa, mas continuei.

- Aí vai um exemplo de premissas contraditórias. Se Deus pode fazer tudo, pode fazer uma pedra tão pesada que ele mesmo não conseguirá levantar?

- É claro - respondeu ela imediatamente.

- Mas se ele pode fazer tudo, pode levantar a pedra.

- É mesmo - disse ela, pensativa. - Bem, então eu acho que ele não pode fazer a pedra.

- Mas ele pode fazer tudo - lembrei-lhe.

Ela coçou a cabeça linda e vazia.

- Estou confusa - admitiu.

- É claro que está. Quando as premissas de um argumento se contradizem, não pode haver argumento. Se existe uma força irresistível, não pode existir um objeto irremovível. Compreendeu?

- Conte outra dessas histórias interessantes - disse Polly, entusiasmada.

Consultei o relógio.

- Acho melhor parar por aqui. Levarei você em casa, e lá pensará no que aprendeu hoje. Teremos outra sessão amanhã.

Deixei-a no dormitório das moças, onde ela me assegurou que a noitada fora realmente interessante, e voltei desanimadamente para o meu quarto. Petey roncava sobre sua cama, com a jaqueta de couro encolhida a seus pés. Por alguns segundos, pensei em acordá-lo e dizer que ele podia ter Polly de volta. Era evidente que o meu projeto estava condenado ao fracasso. Ela tinha, simplesmente, uma cabeça à prova de Lógica.

Mas logo reconsiderei. Perdera uma noite, por que não perder outra? Quem sabe se em alguma parte daquela cratera de vulcão adormecido que era a mente de Polly, algumas brasas ainda estivessem vivas. Talvez, de alguma maneira, eu ainda conseguisse abaná-las até que flamejasse. As perspectivas não eram das mais animadoras, mas decidi tentar outra vez.

Sentado sob uma árvore, na noite seguinte, disse:

- Nossa primeira falácia desta noite se chama ad misericordiam.

Ela estremeceu de emoção.

- Ouça com atenção - comecei - Um homem vai pedir emprego. Quando o patrão pergunta quais as suas qualificações, o homem responde que tem uma mulher e dois filhos em casa, que a mulher e aleijada, as crianças não tem o que comer, não tem o que vestir nem o que calçar, a casa não tem camas, não há carvão no porão e o inverno se aproxima.

Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas de Polly.

- Isso é horrível, horrível! - soluçou.

- É horrível - concordei - mas não é um argumento. O homem não respondeu à pergunta do patrão sobre as suas qualificações. Ao invés disso, tentou despertar a sua compaixão. Cometeu a falácia de ad misericordiam. Compreendeu?

Dei-lhe um lenço e fiz o possível para não gritar enquanto ela enxugava os olhos.

- A seguir - disse, controlando o tom da voz - discutiremos a falsa analogia. Eis um exemplo: deviam permitir aos estudantes consultar seus livros durante os exames. Afinal, os cirurgiões levam as radiografias para se guiarem durante uma operação, os advogados consultam seus papéis durante um julgamento, os construtores têm plantas que os orientam na construção de uma casa. Por quê, então, não deixar que os alunos recorram a seus livros durante uma prova?

- Pois olhe - disse ela entusiasmada - está e a idéia mais interessante que eu já ouvi há muito tempo.

- Polly - disse eu com impaciência - o argumento é falacioso. Os cirurgiões, os advogados e os construtores não estão fazendo teste para ver o que aprenderam, e os estudantes sim. As situações são completamente diferentes e não se pode fazer analogia entre elas.

- Continuo achando a idéia interessante - disse Polly.

- Santo Cristo! - murmurei, com impaciência.

- A seguir, tentaremos a hipótese contrária ao fato.

- Essa parece ser boa - foi a reação de Polly.

- Preste atenção: se Madame Curie não deixasse, por acaso, uma chapa fotográfica numa gaveta junto com uma pitada de pechblenda, nós hoje não saberíamos da existência do rádio.

- É mesmo, é mesmo - concordou Polly, sacudindo a cabeça. - Você viu o filme? Eu fiquei louca pelo filme. Aquele Walter Pidgeon é tão bacana! Ele me faz vibrar.

- Se conseguir esquecer o Sr. Pidgeon por alguns minutos - disse eu, friamente - gostaria de lembrar que o que eu disse é uma falácia. Madame Curie teria descoberto o rádio de alguma outra maneira. Talvez outra pessoa o descobrisse. Muita coisa podia acontecer. Não se pode partir de uma hipótese que não é verdadeira e tirar dela qualquer conclusão defensável.

- Eles deviam colocar o Walter Pidgeon em mais filmes - disse Polly - Eu quase não vejo ele no cinema.

Mais uma tentativa, decidi. Mas só mais uma. Há um limite para o que podemos suportar.

- A próxima falácia é chamada de envenenar o poço.

- Que engraçadinho! - deliciou-se Polly.

- Dois homens vão começar um debate. O primeiro se levante e diz: ‘o meu oponente é um mentiroso conhecido. Não é possível acreditar numa só apalavra do que ele disser’. Agora, Polly, pense bem, o que está errado?

Vi-a enrugar a sua testa cremosa, concentrando-se. De repente, um brilho de inteligência - o primeiro que vira - surgiu nos seus olhos.

- Não é justo! - disse ela com indignação - Não é justo. O primeiro envenenou o poço antes que os outros pudesse beber dele. Atou as mãos do adversário antes da luta começar... Polly, estou orgulhoso de você.

- Ora - murmurou ela, ruborizando de prazer.

- Como vê, minha querida, não é tão difícil. Só requer concentração. É só pensar, examinar, avaliar. Venha, vamos repassar tudo o que aprendemos até agora.

- Vamos lá - disse ela, com um abano distraído da mão.

Animado pela descoberta de que Polly não era uma cretina total, comecei uma longa e paciente revisão de tudo o que dissera até ali. Sem parar citei exemplos, apontei falhas, martelei sem dar trégua. Era como cavar um túnel. A princípio, trabalho duro e escuridão. Não tinha idéia de quando veria a luz ou mesmo se a veria. Mas insisti. Dei duro, até que fui recompensado. Descobri uma fresta de luz. E a fresta foi se alargando até que o sol jorrou para dentro do túnel, clareando tudo.

Levara cinco noites de trabalho forçado, mas valera a pena. Eu transformara Polly em uma lógica, e a ensinara a pensar. Minha tarefa chegara a bom termo. Fizera dela uma mulher digna de mim. Está apta a ser minha esposa, uma anfitriã perfeita para as minhas muitas mansões. Uma mãe adequada para os meus filhos privilegiados.

Não se deve deduzir que eu não sentia amor por ela. Muito pelo contrário. Assim como Pigmaleão amara a mulher perfeita que moldara para si, eu amava a minha. Decidi comunicar-lhe os meus sentimentos no nosso encontro seguinte. Chegara a hora de mudar as nossas relações, de acadêmicas para românticas.

- Polly, disse eu, na próxima vez que nos sentamos sob a árvore - hoje não falaremos de falácias.

- Puxa! - disse ela, desapontada.

- Minha querida - prossegui, favorecendo-a com um sorriso - hoje é a sexta noite que estamos juntos. Nos demos esplendidamente bem. Não há dúvidas de que formamos um bom par.

- Generalização apressada - exclamou ela, alegremente.

- Perdão - disse eu.

- Generalização apressada - repetiu ela. - Como é que você pode dizer que formamos um bom par baseado em apenas cinco encontros?

Dei uma risada, contente. Aquela criança adorável aprendera bem as suas lições.

- Minha querida - disse eu, dando um tapinha tolerante na sua mão - cinco encontros são o bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro para saber se ele é bom ou não.

- Falsa Analogia - disse Polly prontamente - eu não sou um bolo, sou uma pessoa.

Dei outra risada, já não tão contente. A criança adorável talvez tivesse aprendido a sua lição bem demais. Resolvi mudar de tática. Obviamente, o indicado era uma declaração de amor simples, direta e convincente. Fiz uma pausa, enquanto o meu potente cérebro selecionava as palavras adequadas. Depois reiniciei.

- Polly, eu te amo. Você é tudo no mundo pra mim, é a lua e a estrelas e as constelações no firmamento. For favor, minha querida, diga que será minha namorada, senão a minha vida não terá mais sentido. Enfraquecerei, recusarei comida, vagarei pelo mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios.

Pronto, pensei; está liquidado o assunto.

- Ad misericordiam - disse Polly.

Cerrei os dentes. Eu não era Pigmaleão; era Frankenstein, e o meu monstro me tinha pela garganta. Lutei desesperadamente contra o pânico que ameaçava invadir-me. Era preciso manter a calma a qualquer preço.

- Bem, Polly - disse, forçando um sorriso - não há dúvida que você aprendeu bem as falácias.

- Aprendi mesmo - respondeu ela, inclinando a cabeça com vigor.

- E quem foi que ensinou a você, Polly?

- Foi você.

- Isso mesmo. E portanto você me deve alguma coisa, não é mesmo, minha querida? Se não fosse por mim, você nunca saberia o que é uma falácia.

- Hipótese Contrária ao Fato - disse ela sem pestanejar.

Enxuguei o suor do rosto.

- Polly - insisti, com voz rouca - você não deve levar tudo ao pé da letra. Estas coisas só têm valor acadêmico. Você sabe muito bem que o que aprendemos na escola nada tem a ver com a vida.

- Dicto Simpliciter - brincou ela, sacudindo o dedo na minha direção.

Foi o bastante. Levantei-me num salto, berrando como um touro.

- Você vai ou não vai me namorar?

- Não vou - respondeu ela.

- Por que não? - exigi.

- Porque hoje à tarde eu prometi a Petey Bellows que eu seria a namorada dele.

Quase caí para trás, fulminado por aquela infâmia. Depois de prometer, depois de fecharmos negócio, depois de apertar a minha mão!

- Aquele rato! - gritei, chutando a grama. - Você não pode sair com ele, Polly. É um mentiroso. Um traidor. Um rato.

- Envenenar o poço - disse Polly - E pare de gritar. Acho que gritar também deve ser uma falácia.

Com uma admirável demonstração de força de vontade, modulei a minha voz.

- Muito bem - disse - você é uma lógica. Vamos olhar as coisas logicamente. Como pode preferir Petey Bellows? Olhe para mim: um aluno brilhante, um intelectual formidável, um homem com futuro assegurado. E veja Petey: um maluco, um boa vida, um sujeito que nunca saberá se vai comer ou não no dia seguinte. Você pode me dar uma única razão lógica para namorar Petey Bellows?

- Posso sim - declarou Polly - Ele tem uma jaqueta de couro preto.


M. Sulman,  As calcinhas cor-de-rosas do Capitão

Personalidade forte

Francesco Hayez - The Kiss


Sou teimoso.

Juliana é teimosa.

Nosso amor é uma caprichada teimosia do destino.

É inacreditável o quanto somos felizes provocando o outro.

Não testando, jamais jogando, o que consideramos diversão para insensíveis.

Provocar é chamar para perto. É desejar a proximidade.

Nosso humor é uma homenagem da intimidade.

Ela ri para mim, eu rio para ela.

Não nos avacalhamos, não nos debochamos, não nos julgamos, nada que envolva recalques.

O sarcasmo é reservado para os desafetos. A ironia fica no emprego.

Usamos a graça, a leveza do gracejo, sempre acompanhado de abraços e beijos para não gerar dúvidas.

Eu brinco e abraço, ela brinca e me abraça. O corpo afasta mal-entendidos.

Nosso riso é ingênuo. Rir é um modo de aceitar os defeitos e as manias. Um modo de acolher e de não se sentir superior ou melhor que ninguém.

Rir é dizer que eu também sou assim, da parte falível dessa luz.

Rir é autocrítica. A gargalhada é uma confissão de humildade.

Portanto, confesso que errei, mas errei rindo.

Olhamos um vestido em loja de São Paulo.

Ela criticou abertamente as rendas lisérgicas que prestavam tributo aos Beatles. Apontou que nunca compraria.

Eu concordei na hora, fiz charme com as sobrancelhas, mas quando reencontrei o vestido em Porto Alegre, acredita que fiquei com vontade de comprar?

Levei o vestido que ela não gostou.

É o cúmulo da provocação. Nenhum homem em sã consciência deveria adotar esta atitude.

É um gesto arriscado. Um gesto impensável. Já erramos quando ela escolhe a peça, imagina quando rejeita?

Não entendo o que passou ou não passou pela minha cabeça. A questão é que pensei em dar uma segunda chance ao figurino.

E para mim mesmo, mesmo que representasse uma briga homérica de que “você não me escuta”, de que “você não me respeita”, de que “você não presta atenção em mim”.

Assumi os efeitos colaterais.

Ela pegou a maldita peça com generosidade e provou, rebolou, experimentou, encarou o espelho. Não faltou vontade, inclusive se maquiou para ajudar o enredo azul do vestido.

E, depois de uma longa sessão de poses, me devolveu:

— Não quero, amor. Agora tenho certeza.

Ela teve uma educação invejável. Não comprou briga, nem revendeu minha briga. Negou calmamente.

O que me faz concluir que não fui corajoso por adquirir algo que ela recusou. Ela é que foi corajosa por recusar duas vezes. Na teoria e na prática.

Êta mulher orgulhosa que é meu orgulho.


Fabrício Carpinejar
Crônica publicada em Vida Breve

O símbolo perdido


- O corpo humano é espantoso  - disse ela  – Se você o priva de uma informação sensorial, os outro sentidos assumem o comando quase no mesmo instante.
*

- Chama-se Câmara de Reflexões. Estas salas são lugares frios e austeros onde um maçom pode refletir sobre a prória mortalidade. Ao meditar sobre o caráter inevitável da morte, um maçom adquire uma valiosa compreensão sobre a natureza efêmera da vida.
*

- Bebeu dois copos d’água para acalmar o estômago faminto. Então foi até o espelho e estudou seu corpo nu. Os dois dias de jejum haviam acentuado sua musculatura e ele não pôde deixar de admirar aquilo em que tinha se transformado. Ao raiar do dia, eu serei muito mais.
*

- Langdon sabia que o decano estava certo. O famoso aforismo hermético – Não sabeis que sois deuses? – era um dos pilares dos Antigos Mistérios. Assim em cima como embaixo... homem criado à imagem de Deus... apoteose... Essa mensagem persiste da divindade do próprio homem – de seu potencial oculto – era o tema recorrente dos textos antigos de inúmeras tradições. Até mesmo a Bíblia Sagrada, em Salmos 82:6, proclamava: Vós sois deuses!
- Professor – disse o velho -, eu entendo que o senhor, assim como muitas pessoas instruídas, vive dividido, com um pé no mundo espiritual e o outro no mundo físico. Seu coração anseia por acreditar... mas seu intelecto se recusa a permitir isso. Como acadêmico, seria sensato da sua parte aprender com as grandes mentes da história. – Ele fez uma pausa e pigarreou. – Se não me falha a memória, uma das maiores mentes de todos os tempos afirmou: “Aquilo que é impenetrável para nós existe de fato. Por trás dos segredos da natureza há algo sutil, intangível e inexplicável. A veneração a essa força que está além de tudo o que podemos compreender é a minha religião.”
- Quem disse isso? – indagou Langdon. – Gandhi?
- Não – respondeu Katherine. – Albert Einstein.
*

Um ano antes, Katherine e o irmão estavam conversando sobre uma das questões mais perenes da filosofia – a existência da alma -, e em particular se os humanos possuem ou não algum tipo de consciência capaz de sobreviver fora do corpo.
Ambos intuíam que essa alma humana provavelmente existia. A maioria das filosofias antigas também acreditava nisso. O budismo e o bramanismo endossavam a metempsicose – a reencarnação, a transmigração da alma para um novo corpo após a morte. Os platônicos sustentavam que o corpo é uma “prisão” da qual a alma escapa. E os estoicos a chamavam de apospasma tou theu – “uma partícula de Deus” – e acreditavam que, na hora da morte, ela volta para junto Dele.
A existência da alma humana, percebeu Katherine com alguma frustração, era provavelmente um conceito que jamais seria provado pela ciência. Confirmar que uma consciência sobrevive fora do corpo humano após a morte equivalia a soltar uma nuvem de fumaça pela boca e esperar encontrá-la anos depois.
Após a conversa com o irmão, Katherine teve uma ideia estranha. Peter havia mencionado o Livro do Gênesis e sua descrição da alma como Neshemah – um sopro de vida, uma espécie de “inteligência” espiritual separada do corpo. Ocorreu-lhe que a palavra inteligência sugeria a presença de pensamento. A ciência noética propõe que os pensamentos têm massa, portanto, era lógico que a alma humana também poderia ter.
Seria possível pesar a alma humana?
Era um conceito absurdo, é claro... o simples fato de cogitar isso era tolice.
*

A mente de Robert Langdon pairava sobre um abismo sem fim.
Nenhuma luz. Nenhum som. Nenhuma sensação.
Somente um vazio infinito e silencioso.
Suavidade.
Ausência de peso.
Seu corpo o havia libertado. Nada mais o prendia.
O mundo físico deixara de existir. O tempo deixara de existir.
Ele agora era pura consciência... uma inteligência descarnada suspensa no vazio de um Universo incomensurável.
*
As nossas mitologias têm uma longa tradição de palavras mágicas capazes de proporcionar uma compreensão profunda e poderes divinos. Até hoje as crianças gritam ”abracadabra” na esperança de criar algo a partir do nada. É claro que todos nós esquecemos que essa palavra não tem nada a ver com brincadeira. Suas raízes estão no antigo misticismo aramaico: avra kedabra significa “Eu crio ao falar”.
*
- Senhorita? – ele apontou para a combativa menina loura no fundo do auditório. – Sei que nós dois não concordamos em muita coisa, mas quero lhe agradecer. Sua paixão é um catalisador importante das mudanças que estão por vir. As trevas se alimentam de apatia... e a convicção é nosso mais potente antídoto. Continue cultivando sua fé. Estude a Bíblia. – ele sorriu. – Principalmente as últimas páginas.
- O apocalipse? – indagou ela.
- Claro. O Livro do Apocalipse é um exemplo vibrante de nossa verdade compartilhada. Ele conta a mesmíssima história que inúmeras outras tradições. Todas elas predizem a futura revelação de um grande saber.
- Mas o Apocalipse não fala sobre o fim do mundo? – perguntou outra pessoa.
- O senhor sabe... O Anticristo, o Armagedom, a batalha decisiva entre o bem  e o mal?
Solomon deu uma risadinha.
- Quem aqui estuda grego?
Várias mãos se levantaram
- qual o significado literal da palavra apocalipse?
- Apocalipse significa... – começou a responder um aluno, parando no meio como se estivesse surpreso – “desvendar”... ou “revelar”.
Salomon balançou a cabeça para o menino em um gesto de aprovação.
- Isso mesmo. Apocalipse quer dizer literalmente revelação. O último livro da Bíblia prevê o desvendamento de uma grande verdade e de um conhecimento inimaginável. O apocalipse não é o fim do mundo, mas sim o fim do mundo tal como nós o conhecemos. Essa profecia é apenas uma das lindas mensagens da Bíblia que foram distorcidas. – Solomon caminhou até a frente do tablado. – Podem acreditar em mim, o Apocalipse está chegando... e não vai se parecer em nada com o que nos ensinaram.
Bem alto acima de sua cabeça, o sino começou a dobrar.
Os alunos irromperam atônitos em uma estrondosa salva de palmas.
*

A infame técnica de interrogatório conhecida como water boarding é altamente eficaz porque a vítima acredita mesmo estar se afogando. Sato sabia de várias operações confidenciais em que tanques de privação sensorial como aquele haviam sido usados para levar essa ilusão a níveis aterrorizantes. Uma vítima submersa em líquido respirável podia ser literalmente “afogada”. O pânico associado à experiência do afogamento em si fazia com que a vítima, em geral, nem percebesse que o líquido que estava respirando era mais viscoso do que a água. Quando ele entrava em seus pulmões, a pessoa em geral desmaiava de medo, acordando em seguida no mais perfeito “confinamento solitário”.
Anestésicos tópicos e drogas de efeito paralisante e alucinógeno eram misturados ao líquido oxigenado para dar ao prisioneiro a sensação de que ele estava totalmente separado do próprio corpo. Quando sua mente enviava comandos para mover pernas e braços, nada acontecia. O estado de “morte” por si só já era apavorante, mas a verdadeira desorientação vinha do processo de “renascimento” que, com o auxílio de luzes intensas, ar frio e barulho ensurdecedor, podia ser extremamente traumático e doloroso. Após um punhado de “renascimentos” e afogamentos subsequentes, o prisioneiro ficava tão desorientado que não fazia mais ideia se estava vivo ou morto... e contava absolutamente qualquer coisa a quem estivesse conduzindo o interrogatório.
*

- Como você bem sabe... o segredo é saber como morrer.
*

O objetivo do ritual maçônico é despertar o homem adormecido dentro de cada um, tirá-lo de seu escuro caixão de ignorância, alçá-lo à luz e dar-lhe olhos para ver. Somente por meio da morte o homem pode compreender totalmente sua experiência de vida. Apenas depois de entender que seus dias na Terra são finitos ele pode compreender a importância de vivê-los com honra, integridade e altruísmo.
*

Todas as grandes verdades são simples.
*

Os tesouros mais preciosos muitas vezes são os mais simples.
*

Eu estou olhando para mim mesmo, uma ruína de carne ensanguentada sobre a plataforma sagrada de mármore. Meu pai está ajoelhado atrás de mim, segurando minha cabeça sem vida com a única mão que lhe resta.
Sinto uma onda crescente de raiva... e de confusão.
A hora não é de compaixão... mas de vingança, de transformação... porém, mesmo assim, meu pai se recusa a ceder, a cumprir seu papel, a canalizar sua dor e sua raiva para a lâmina da faca e cravá-la no meu coração.
Estou amarrado aqui, suspenso... preso à minha casca terrena.
Meu pai passa suavemente a palma da mão pelo meu rosto para fechar meus olhos que se apagam.
Sinto as amarras se soltarem.
Um véu esvoaçante se materializa à minha volta, tornando-se mais espesso e fazendo a luz diminuir, escondendo o mundo de mim. De repente, o tempo se acelera e estou mergulhando em um abismo muito mais escuro do que algum dia pude imaginar. Ali, dentro de um vazio estéril, ouço um sussurro... sinto uma força se acumular. Ela vai ficando mais potente, crescendo a uma velocidade espantosa, me rodeando. Assustadora e poderosa. Sombria e impotente.
Eu não estou sozinho aqui.
Este é meu triunfo, minha grande recepção. No entanto, por algum motivo, sinto-me cheio não de alegria, mas de um medo sem limites.
É totalmente diferente do que eu esperava.
A força então se agita, rodopiando ao meu redor com uma potência irrefreável, ameaçando me partir ao meio. De repente, sem aviso, as trevas se adensam como uma grande fera pré-histórica, empinando-se à minha frente.
Estou diante de todas almas obscuras que me precederam.
Estou gritando com um terror sem fim... enquanto a escuridão me devora por dentro.

Dan Brown, O  símbolo perdido

sábado, 26 de outubro de 2013

Fenêtres ouvertes

Anatoly Piatkevich


Le matin - En dormant

J'entends des voix. Lueurs à travers ma paupière.
Une cloche est en branle à l'église Saint-Pierre.
Cris des baigneurs. Plus près ! plus loin ! non, par ici !
Non, par là ! Les oiseaux gazouillent, Jeanne aussi.
Georges l'appelle. Chant des coqs. Une truelle
Racle un toit. Des chevaux passent dans la ruelle.
Grincement d'une faux qui coupe le gazon.
Chocs. Rumeurs. Des couvreurs marchent sur la maison.
Bruits du port. Sifflement des machines chauffées.
Musique militaire arrivant par bouffées.
Brouhaha sur le quai. Voix françaises. Merci.
Bonjour. Adieu. Sans doute il est tard, car voici
Que vient tout près de moi chanter mon rouge-gorge.
Vacarme de marteaux lointains dans une forge.
L'eau clapote. On entend haleter un steamer.
Une mouche entre. Souffle immense de la mer.


Victor Hugo

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Original é o poeta

An He

Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutro pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse um abismo
e faz um filho ás palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever um sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte faz
devorar um jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce á rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse uma mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.


Ary dos Santos

Canto da estrada aberta




A pé e de coração leve
eu enveredo pela estrada aberta,
saudável, livre, o mundo à minha frente,
à minha frente o longo atalho pardo
levando-me aonde eu queira.

Daqui em diante não peço mais boa-sorte,
boa-sorte sou eu.
Daqui em diante não lamento mais,
não transfiro, não careço de nada;
nada de queixas atrás das portas,
de bibliotecas, de tristonhas críticas;
forte e contente vou eu
pela estrada aberta.

A terra é quanto basta:
eu não quero as constelações mais perto
nem um pouquinho, sei que se acham muito bem
onde se acham, sei que são suficientes
para os que estão em relação com elas.

(Carrego ainda aqui
os meus antigos fardos de delícias,
carrego - mulheres e homens -
carregos-os comigo por onde eu vou,
confesso que é impossível para mim
ficar sem eles: deles estou recheado
e em troca eu os recheio.)


Walt Whitman

O advogado do diabo (trecho)


Aquele era o mistério da Igreja: manter numa unidade orgânica humanistas como Marotta, formalistas como Blaise Meredith e idiotas como o calabrês, reformadores, rebeldes e conformistas puritanos, papas políticos e freiras-enfermeiras, sacerdotes mundanos e anticlericais devotos. Exigia inflexível assentimento a uma doutrina definida e permitia extraordinária divergência de disciplina.
Impunha pobreza a seus religiosos; no entanto, através do Banco do Vaticano, agia nas bolsas de valores mundiais. Pregava o desapego pelos bens do mundo; no entanto, aumentava seus bens de raiz como qualquer companhia pública. Perdoava adúlteros e excomungava heréticos. Era áspera com os seus
próprios reformadores; no entanto, assinava concordatas com aqueles que queriam destrui-la. Era a mais difícil comunidade do mundo em cujo seio se pudesse viver; no entanto, todos os seus membros queriam nela morrer, e o papa, um cardeal ou uma lavadeira, recebiam com gratidão o viático das mãos do mais humilde sacerdote rural.
Era um mistério e um paradoxo — e Blaise Meredith estava longe de entendê-la, longe de aceitá-la como o havia feito pelo espaço de vinte anos. Eis aí o que o perturbava. Enquanto estivera bem de saúde, seu espírito se inclinava a aceitar a ideia de uma intervenção divina nos assuntos humanos. Agora, que a
vida sangrava dele lentamente, via a si próprio agarrando-se desesperadamente às mais simples manifestações de continuidade física: uma árvore, uma flor, as águas de um lago, tranqüilas sob o luar eterno.
Uma ligeira brisa estremeceu o vale, farfalhou as folhas crespas, fez com que as estrelas ondulassem na água. Meredith sentiu súbito arrepio e entrou, fechando a porta atrás de si. Ajoelhou-se no genuflexório, sob a figura de madeira do Cristo, e pôs-se a rezar: "Pater Noster qui es in Coelis..."
Mas o céu, se é que existia, estava fechado para ele, e não houve resposta do Deus sem rosto para o seu filho agonizante.


Morris West, O advogado do diabo

Ausência



Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.

Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornam vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.

Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.

Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?

A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.


Jorge Luís Borges

Prelúdio da Gota d'água




Cheio da tua ausência me angustio
a cada hora que passa... a cada instante...
- pelo meu pensamento, como um fio,
és uma gota d'água, tremulante...

Uma gota suspensa e cintilante,
límpida e imóvel como um desafio...
Tua ausência, - é a presença triunfante
daquela gota que ficou no fio. . .

As outras todas, céleres, pingaram,
e caíram na terra onde secaram,
só tu ficaste, última gota, assim

como uma estrela sem ter firmamento,
suspensa ao fio do meu pensamento
e a brilhar, sem cair... dentro de mim...


J. G. de Araújo Jorge

Poema quieto



Deixe que o silêncio discorra por nós
e ache as respostas.
Que nos beije o peito,
que nos coce as costas
e nos dê o direito de calar o tempo.
Deixe que ele cubra o momento
e se distenda leve
como um lençol de renda;
que seja arguto o bastante
para impedir o instante de ser breve,
Deixe que o silêncio nos proteja.
Pra que ninguém escute,
nada se revele
e possamos trocar as nossas peles
sem que a censura veja.


Flora Figueiredo
In Calçada de Verão, 1989

Não me sinto mudar



Não me sinto mudar. Ontem eu era o mesmo.
O tempo passa lento sobre os meus entusiasmos
cada dia mais raros são os meus cepticismos,
nunca fui vítima sequer de um pequeno orgasmo

mental que derrubasse a canção dos meus dias
que rompesse as minhas dúvidas que apagasse o meu nome.
Não mudei. É um pouco mais de melancolia,
um pouco de tédio que me deram os homens.

Não mudei. Não mudo. O meu pai está muito velho.

As roseiras florescem, as mulheres partem
cada dia há mais meninas para cada conselho
para cada cansaço para cada bondade.

Por isso continuo o mesmo. Nas sepulturas antigas
os vermes raivosos desfazem a dor,
todos os homens pedem de mais para amanhã
eu não peço nada nem um pouco de mundo.

Mas num dia amargo, num dia distante
sentirei a raiva de não estender as mãos
de não erguer as asas da renovação.

Será talvez um pouco mais de melancolia
mas na certeza da crise tardia
farei uma primavera para o meu coração.


Pablo Neruda, in "Cadernos de Temuco"

Outono



As folhas caem como se do alto
caíssem, murchas, dos jardins do céu;
caem com gestos de quem renuncia.
E a Terra, só, na noite de cobalto,
cai de entre os astros na amplidão vazia.
Caimos todos nós. Cai esta mão.
Olha em redor: cair é a lei geral.
E a terna mão de Alguém colhe, afinal,
todas as coisas que caindo vão.


Rainer Maria Rilke

Ah! querem uma luz melhor que a do Sol!

vidan

Ah! querem uma luz melhor que a do Sol!
Querem prados mais verdes do que estes!
Querem flores mais belas do que estas que vejo!
A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me.
Mas, se acaso me descontentam,
O que quero é um sol mais sol que o Sol,
O que quero é prados mais prados que estes prados,
O que quero é flores mais estas flores que estas flores -
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!
Sim, choro às vezes o corpo perfeito que não existe.
Mas o corpo perfeito é o corpo mais corpo que pode haver.
E o resto são os sonhos dos homens,
A miopia de quem vê pouco,
E o desejo de estar sentado de quem não sabe estar de pé.
Todo o cristianismo é um sonho de cadeiras.

E como a alma é aquilo que não aparece,
A alma mais perfeita é aquela que não aparece nunca —
A alma que está feita com o corpo
O absoluto corpo das cousas,
A existência absolutamente real sem sombras nem erros,
A coincidência exata e inteira de uma cousa consigo mesma.


Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
 In Poemas Inconjuntos

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Encostei-me

Beth Conklin


Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.
Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na idéia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.
Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.
Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos -
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.


Álvaro de Campos
(heterônimo de Fernando Pessoa)

Gorjeio



Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se
inclui a sedução.
É quando a pássara está namorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.


Manoel de Barros, in 'Ensaios Fotográficos'

sábado, 19 de outubro de 2013

Pequena elegia de Setembro

Daniel F. Gerhartz


Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.


Eugénio de Andrade

Nenhum pecado desertou de mim

arthur braginski


Nenhum pecado desertou de mim.
Ainda assim eu devo estar nimbada,
porque um amor me expande.
Como quando na infância
eu contava até cinco para enxotar fantasmas,
beijo por cinco vezes minha mão.
Este é meu corpo, corpo que me foi dado
para Deus saciar sua natureza onívora.
Tomai e comei sem medo,
na fímbria do amor mais tosco
meu pobre corpo
é feito corpo de Deus.


Adélia Prado,  A duração do dia

Enchantagem



de tanto não fazer nada
acabo de ser culpado de tudo

esperanças, cheguei
tarde demais como uma lágrima

de tanto fazer tudo
parecer perfeito
você pode ficar louco
ou para todos os efeitos
suspeito
de ser verbo sem sujeito

pense um pouco
beba bastante
depois me conte direito

que aconteça o contrário
custe o que custar
deseja
quem quer que seja
tem calendário de tristezas
celebrar

tanto evitar o inevitável
in vino veritas
me parece
verdade

o pau na vida
o vinagre
vinho suave

pense e te pareça
senão eu te invento por toda a eternidade


Paulo Leminski


pode nem sempre ser assim; e eu digo
que se os teus lábios, que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;
se na face de outro os teus suaves cabelos repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou nessas
palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficam desamparadamente diante do espírito vozeando;


se assim for, eu digo se assim for –
tu do meu coração, manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
Então hei-de voltar a cara, e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.


e. e. Cummings

Soneto da contradição enorme

Anna Dittman


Faço força em esconder o sentimento
Do mundo triste e feio que eu vejo.
Tento esconder de todos o desejo
Que eu não sinto em viver todo o momento

Que passa. Mas que nunca passa inteiro.
Deixa comigo o rosto da lembrança
E o fantasma de só desesperança
Que me empurra e de mim me faz obreiro

De sonhos. Faço força em esconder
Do mundo, a dor, a mágoa e a cabeça
Que pensa tão-somente em não viver.

Faço força mas sei que não consigo
E em versos integral eu me derramo
Para depois sofrer. E então, prossigo.


Torquato Neto

"Um Emaranhado"



sei que estou louca de riscos
que me oriento de imprevistos
e me visto dessas ganas
um misto de filigranas
e glicínias e gracinhas
na desordem dos lençóis
tuas coisas em cima das minhas

na nudez do quarto meus rabiscos
nossos lobos dentro dos espelhos
desbotados sonhos de artifício
nossos contornos, nossos pentelhos
crespos, nossas artimanhas
nosso temperamento difícil

um monte de mentira nos dissemos
lânguido amor selado com um bocejo
íntimo de coxas, sovacos, dedos
coisa acidental e incoerente, os arrepios
na espinha à noite e esse desejo
de frutos do mar de manhã cedo.


Bruna Lombardi in "Gaia"

O elefante



Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos moveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
e é a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.
Eis meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê nos bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há na cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
e as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,

Caiu-lhe o vasto engenho
Como simples papel.
A cola se dissolve
E todo seu conteúdo
De perdão, de carícia,
De pluma, de algodão,
Jorra sobre o tapete, qual mito desmontado
Amanhã recomeço.


Carlos Drummond de Andrade

Liberdade Condicional



Poderás ir até a esquina
comprar cigarros e voltar
ou mudar-te para a China
- só não podes sair de onde tu estás.


Mario Quintana, A vaca e o Hipogrifo
A Water Baby - Herbert James Draper


A primeira vez que eu o vi, meu filho, você ainda não tinha nascido. Eu o vi numa gota de chuva.
Sim, ela me vira numa gota que escorria pelo vidro, como se tivesse intenção de fazer parte da casa. Minha mãe colheu essa gota na ponta do dedo e, depois, a semeou entre as pestanas. Nessa altura ela prometera:
- Na próxima tristeza hei-de chorar-te a ti, meu filho…
Eu não lhe saí do ventre. Mas da tristeza. Era por isso que aquela chuva, aquela chuva que não tombava, estava falando fundo em sua alma.
- E diz o quê, mãe?
- São segredos entre mulher e água.



Mia Couto,  "A Chuva Pasmada"

A obscena senhora (trecho)



Venho, Senhora D, a pedido da vila, a confissão, a comunhão, não quer? meu nome é
de onde vem o Mal, senhor?
misterium iniquitatis, Senhora D, há milênios lutamos com a resposta, coexistem bons e maus, o corpo do Mal é separado do divino.
quem criou o corpo do Mal?
Senhora D, o Mal não foi criado, fez-se, arde como ferro em brasa, e quando quer esfria, é gelo, neve, tem muitas máscaras, por sinal, não gostaria de se desfazer das suas, e trazer a paz de volta à vizinhança?
e como é o corpo do Mal?
de escuridão e ouro
só tenho coisas baças, peixes pardos, frutas secas, sacos, ferrugem, esterco e meu próprio barro: a carne.
por que fecha sempre as janelas?
e por que devo abri-las?
e por que as abre derepente e assusta as gentes e grita?
o corpo é quem grita esses vazios tristes
por que não alimenta o corpo com benquerença, aceitando o agrado dos outros?
porque o corpo está morto
e a alma?
a alma é hóspede da Terra, procura e te olha os olhos agora, e te vê cheio de perguntas
sou um homem como outro qualquer, Senhora D
então rua rua, fora, despacha-te homem como outro qualquer


Hilda Hilst, A obscena senhora D.


Apavorado acordo, em treva. O luar 
É como o espectro do meu sonho em mim 
E sem destino, e louco, sou o mar 
Patético, sonâmbulo e sem fim. 

Desço na noite, envolto em sono; e os braços 
Como ímãs, atraio o firmamento 
Enquanto os bruxos, velhos e devassos 
Assoviam de mim na voz do vento. 

Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe 
Sem dimensão e sem razão me leva 
Para o silêncio onde o Silêncio dorme 

Enorme. E como o mar dentro da treva 
Num constante arremesso largo e aflito 
Eu me espedaço em vão contra o infinito.


Vinícius De Moraes

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Dá a surpresa de ser

douglas hofmann


Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

Fernando Pessoa

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Uma mulher no meio do mar




Rio de Janeiro
(Sobre um desenho original de Almir Castro)

Na praia batida de vento a voz entrecontada chama
Dentro da noite amarga a grande lua está contigo e está com ela - pousa o teu rosto sobre a areia!
A tua lágrima de homem ficará correndo sobre o teu corpo dormindo e te levará boiando
E talvez a tua mão inerme encontre a sua mão cheia de frio
Tudo está sozinho e o supremo abandono pousou sobre o corpo nu da que deixaste ir
A onda solitária é o berço do amor e há uma música eterna nas formas invisíveis
Passa o teu braço sobre o que foi o triste destroço de um outro mar bem mais revolto
E sentirás que nunca o pobre corpo foi mais flexuoso ao teu afago nem o olhar mais aberto ao teu desejo.
Afaga os seios que os seus beijos poluíram e que a água amante fez altos e serenos
Mergulha os dedos pela última vez na úmida cabeleira espessa que se vai abrir como as medusas
Porque também a lua vive a vez derradeira a visão escrava
Porque nunca mais também os olhos que estão parados te mostrarão o céu
E as linhas que vês desfeitas já pesam como que para o descanso do fundo que não atingirás.
Não sentes que é preciso que ela vá, vá dar morada às algas que lhe cobrirão amorosamente o corpo
Para fugir de ti que o cobrias apenas com a ardência imutável do teu desejo?

Oh, o amor que abre os braços à piedade!…


Vinícius de Moraes
 Lucia Coghetto


Assim, sem nada feito e o por fazer 
Mal pensado, ou sonhado sem pensar, 
Vejo os meus dias nulos decorrer, 
E o cansaço de nada me aumentar. 

Perdura, sim, como uma mocidade 
Que a si mesma se sobrevive, a esperança, 
Mas a mesma esperança o tédio invade, 
E a mesma falsa mocidade cansa. 

Tênue passar das horas sem proveito, 
Leve correr dos dias sem ação, 
Como a quem com saúde jaz no leito 
Ou quem sempre se atrasa sem razão. 

Vadio sem andar, meu ser inerte 
Contempla-me, que esqueço de querer, 
E a tarde exterior seu tédio verte 
Sobre quem nada fez e nada quere. 

Inútil vida, posta a um canto e ida 
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar, 
Obra solentemente por ser lida, 
Ah, deixem-se sonhar sem esperar! 

Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

A letra e a música

Anna Razumovskaya


Quando nos encontramos
Dizemo-nos sempre as mesmas palavras que todos os
amantes dizem...
Mas que nos importa que as nossas palavras sejam as
mesmas de sempre?
A música é outra!


Mário Quintana - A cor do invisível

Oleg Bulgakov


Glossário de transnominações em que não
se explicam algumas delas (nenhumas) - ou menos


Poesia, s. f.
Raiz de água larga no rosto da noite
Produto de uma pessoa inclinada a antro
Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã
Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de um homem
Designa também a armação de objetos lúdicos com empregos de palavras imagens cores
sons etc. geralmente feitos por crianças pessoas esquisitas loucos e bêbados

Poeta, s. m. e f.
Indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu
Espécie de um vazadouro para contradições
Sabiá com trevas
Sujeito inviável: aberto aos desentendimentos como um rosto

Boca, s. f.
Brasa verdejante que se usa em música
Lugar de um arroio haver sol
Espécie de orvalho cor de morango
Ave-nêspera!
Pequena abertura para o deserto

Sol, s. m.
Quem tira a roupa da manhã e acende o mar
Quem assanha as formigas e os touros
Diz-se que:
se a mulher espiar o seu corpo num ribeiro florescido de sol, sazona
Estar sol: o que a invenção de um verso contém

Árvore, s. f.
Gente que despetala
Possessão de insetos
Aquilo que ensina de chão
diz-se de alguém com resina e falenas
Algumas pessoas em quem o desejo é capaz de irromper
sobre o lábio, como se fosse a raiz de seu canto

Apêndice:
Olho é uma coisa que participa o silêncio dos outros
Coisa é uma pessoa que termina como sílaba
O chão é um ensino.



Manoel de Barros
Gramática Expositiva do Chão
Editora Civilização Brasileira, 1990

Cilada

Prólogo


EU SABIA QUE MINHA VIDA SERIA destruída se abrisse aquela porta vermelha.

Isso pode parecer melodramático e de mau agouro. Não sou lá muito chegado a nada disso. Além do mais, verdade seja dita: não havia nada de ameaçador naquela porta. Ela era absolutamente comum, dessas que a gente vê em quase todas as casas dos bairros de classe média, com a pintura já meio desbotada, quatro almofadas de madeira, maçaneta imitando bronze e, mais ou menos à altura do peito, uma aldrava sem qualquer utilidade.

No entanto, enquanto eu caminhava em direção a ela sob a luz débil de um poste distante, a escuridão parecia se abrir como uma boca prestes a me devorar inteiro. Era impossível afastar a sensação de perigo iminente. Cada passo me custava certo esforço, como se eu estivesse pisando não em uma calçada já um tanto gasta, mas em cimento fresco. O corpo dava todos os avisos: frio na espinha, pelos eriçados nos braços, arrepio na nuca e no couro cabeludo.

As luzes da casa estavam apagadas. Chynna havia me avisado que estariam. A casa em si era das mais comuns, talvez discreta demais, e por algum motivo isso me incomodava. Ficava isolada no fim de uma rua sem saída, misturando-se à escuridão como se quisesse manter os intrusos a distância.

Aquilo não me agradava.

Nada daquilo me agradava, mas o que eu podia fazer? Eu sou assim. Recebi a ligação de Chynna pouco depois do jogo de basquete dos Newark Biddy. Sou o técnico do time formado por alunos do quarto ano que, assim como eu, são órfãos de pai e mãe. Apesar da vantagem de seis pontos, conseguimos perder a partida a dois minutos do final. Nas quadras, como na vida, não nos saímos muito bem sob pressão.

O telefone tocou quando eu me reunia com a garotada para a preleção pós-jogo, que de modo geral consiste em mensagens profundas e inspiradoras do tipo “Belo trabalho!”, “No próximo a gente vai à forra” ou “Não esqueçam que quinta-feira tem mais” e que sempre terminam com todos os garotos formando um círculo, juntando as mãos no centro e gritando: “Defesa!”, talvez porque não tenhamos nenhuma.

– Dan?

– Quem é?

– É Chynna. Venha para cá, por favor.
Percebendo a agitação na voz dela, despachei os garotos e corri para o carro. Nem banho havia tido tempo de tomar e agora o suor do jogo se misturava ao de nervosismo.

Reduzi o ritmo das passadas e perguntei a meus botões onde é que eu estava com a cabeça. Para início de conversa, deveria ter tomado uma ducha. Não funciono direito quando me sinto sujo. Sempre fui assim. Mas Chynna havia pedido, mais do que isso, implorado que eu fosse rápido, antes que os outros chegassem.

Portanto, segui caminhando rumo à porta, a camisa de malha cinza marcada pela transpiração e grudando no peito.

Como a maioria dos jovens com os quais trabalho, Chynna era uma garota problemática. Talvez por isso meu alarme interno tivesse disparado. Eu não havia gostado nem um pouco do tom de sua voz ao telefone, achara aquilo tudo muito estranho.

Respirei fundo e dei uma rápida conferida na retaguarda. Alguns sinais de vida surgiam ao longe: lâmpadas acesas nas casas, uma porta de garagem aberta, a cintilação de uma tela de TV ou de computador – mas naquela rua sem saída não havia nada, nenhum ruído ou movimento, apenas o silêncio da noite.

Meu celular vibrou e quase morri de susto. Deduzi que fosse Chynna, mas não, era Jenna, minha ex-mulher. Atendi e ela disse:

– Preciso de um favorzinho, pode ser?

– Estou meio ocupado agora – falei.

– Preciso de um baby-sitter amanhã à noite, só isso. Pode trazer a Shelly se quiser.

– Shelly e eu... bem, nós estamos com alguns problemas.

– De novo? Mas ela é perfeita para você!

– Esse é o problema. Eu sempre estrago tudo quando a mulher é perfeita.

– Disso eu já sabia.

Faz oito anos que Jenna, minha adorável ex, se casou de novo. O marido dela é um respeitado médico, Noel Wheeler, que trabalha como voluntário no meu centro de assistência a adolescentes. Gosto dele e ele gosta de mim. Ele tem uma filha de um casamento anterior, além de Kari, a menina de 6 anos que teve com Jenna e que é minha afilhada. As duas garotas me chamam de tio Dan e sou o baby-sitter oficial da família.

Sei que tudo isso pode parecer civilizado demais, Pollyanna demais, e talvez seja mesmo. De minha parte, talvez isso seja apenas uma questão de necessidade. Não tenho ninguém no mundo – nem pais, nem irmãos. Portanto, o mais próximo que tenho de uma família é minha ex-mulher. A garotada com a qual trabalho, ajudando e defendendo como posso, é o alicerce da minha vida, mas, no fim das contas, nem sei ao certo se minha ajuda faz mesmo
alguma diferença.

– Terra chamando Dan – disse Jenna.

– Amanhã à noite – falei. – Pode contar comigo.

– Às seis e meia. Você é o máximo.

Jenna jogou um beijo do outro lado da linha e desligou. Encarando o celular por um instante, me lembrei do dia do nosso casamento. Casar foi um erro. É sempre um erro me aproximar demais das pessoas, mas, mesmo sabendo disso, não me contenho. Ponham um violino ao fundo, porque agora vou filosofar sobre o provérbio que diz que é melhor perder quem se ama do que nunca ter amado. Acho que isso não se aplica a mim. Repetir sempre os mesmos erros, ainda que tenhamos consciência deles, está no DNA de todos nós. Portanto aqui estou eu, o pobre órfão que conseguiu subir na vida, se formar com louvor em uma universidade de elite, mas que nem por isso conseguiu deixar de ser quem é. É uma pieguice, eu sei, mas quero ter alguém. Infelizmente esse não é meu destino. Sou um lobo solitário que não quer ficar sozinho.

“Somos o lixo da evolução, Dan...”

Aprendi isso com meu “pai” substituto favorito, um professor universitário que adorava um debate filosófico.

“Pense bem. Ao longo de toda a história da humanidade, os mais fortes e inteligentes fizeram o quê? Foram para a guerra. As coisas só mudaram no último século. Antes disso, mandávamos para as linhas de frente o que tínhamos de melhor. Quem ficava em casa fazendo filhos enquanto eles morriam nos campos de batalha? Os fracos, os doentes, os aleijados, os desonestos, os covardes... em suma, a escória. É dessa escória que nós viemos, Dan. Passamos séculos e séculos jogando fora o trigo e aproveitando o joio. Por isso eu digo: somos produto do lixo, todos nós – o excremento que restou depois de séculos de degradação genética.”

Ignorei a aldrava e bati de leve na porta, que rangeu e se abriu alguns centímetros. Não havia percebido que estava só encostada.

Também não gostei disso. Não gostei nada disso.

Quando garoto, eu via muitos filmes de terror, o que era estranho, porque os detestava. Odiava levar sustos, não suportava todo aquele sangue e, apesar disso, assistia aos filmes e adorava as protagonistas burrinhas e previsíveis. Pois agora as cenas se repetiam na minha cabeça, aquelas em que a tal mocinha burra bate à porta, a porta se abre lentamente e você grita: “Sai daí!”. Aí ela não sai e você não entende por que e, dois minutos depois, o assassino está triturando o cérebro dela.

Eu deveria cair fora imediatamente.

Era o que eu estava prestes a fazer, mas então pensei no telefonema de
Chynna, nas palavras dela, na voz trêmula. Respirei fundo e enfiei a cabeça pela
fresta.

Apenas escuridão.

Bem, chega de suspense barato.

– Chynna? – arrisquei, minha voz ecoando pela casa.

Se eu estivesse certo, a sequência seria apenas silêncio, nenhuma resposta.

Abri a porta mais um pouco, arrisquei um passo adiante e...

– Dan? Estou aqui nos fundos. Pode entrar.

A voz estava abafada, distante.

Mais uma vez, não gostei nada daquilo. Mas àquela altura não havia como voltar atrás. Recuar já havia me custado muito caro na vida. Minha hesitação sumiu de repente. Eu sabia o que precisava fazer.

Entrei no hall e fechei a porta.

Qualquer outra pessoa no meu lugar teria levado uma arma. Cheguei a pensar no assunto, mas não sou lá muito fã dessas coisas. De qualquer forma, era tarde demais para me arrepender. Não havia ninguém mais em casa, Chynna tinha dito. E caso houvesse, eu daria um jeito.

– Chynna?

– Me espere na saleta. Encontro você lá daqui a pouco.

A voz dela parecia... arredia.

Uma luz estava acesa no fim do corredor. Fui caminhando na direção dela.

Agora havia ruídos. Parei para ouvir. Água. De um chuveiro, talvez.

– Chynna?

– Só mais um segundo. Estou trocando de roupa.

Fui até a saleta mal iluminada. Havia um interruptor com dimmer e pensei em aumentar a intensidade da luz, mas acabei desistindo. Logo meus olhos se adaptaram. O forro das paredes era de um material que mais parecia PVC que qualquer tipo de madeira. Havia dois quadros: imagens de palhaços tristes com flores enormes na lapela, do tipo que se encontraria em um hotel de beira de estrada. Uma enorme garrafa de vodca barata estava aberta sobre o bar.

Pensei ter ouvido um sussurro.

– Chynna? – chamei.

Nenhuma resposta. Agucei os ouvidos. Nada.

Já ia voltar ao corredor, para o ponto onde ouvira o som de água, quando a voz disse:

– Já estou indo.

Senti um frio na espinha. A voz estava mais perto agora, eu podia ouvi-la melhor. E isto era o mais estranho: não soava nem um pouco como a de Chynna.

Então três coisas me atingiram. Primeiro, o pânico. Não era Chynna quem estava ali e o mais sensato seria bater logo em retirada. Depois, a curiosidade.

Se não era Chynna, quem seria, afinal? E o que, diabos, estaria acontecendo? Por fim, mais pânico. A ligação havia sido de Chynna. O que teria acontecido a ela? Eu não podia simplesmente sair correndo.

Dei um passo em direção à porta da saleta. E foi então que tudo aconteceu.

Uma luz forte me cegou. Cambaleei para trás, tapando os olhos com a mão.

– Dan Mercer?

Pisquei. Uma voz feminina. Profissional. Séria e estranhamente familiar.

– Quem é você?

Subitamente outras pessoas entraram na sala. Um homem com uma câmera sobre o ombro. Outro com uma haste que parecia ter um microfone na ponta. E a mulher de voz familiar, cabelos castanhos e terninho. Linda.

– Wendy Tynes, NTC News. O que você veio fazer aqui, Dan?

Abri a boca para falar, mas nada saiu. Reconheci a apresentadora da tal rede de TV...

– Por que você tem mantido conversas on-line de cunho sexual com uma garota de 13 anos? Temos todos os registros dessas conversas.

... aquela que atraía pedófilos para uma armadilha e os flagrava diante das câmeras para que o mundo inteiro pudesse ver.

– Veio aqui para ter relações sexuais com uma garota de 13 anos?

Quando enfim me dei conta do que realmente estava acontecendo, senti os ossos congelarem. Mais pessoas irromperam na sala. Produtores, na certa. Um segundo cameraman. Dois policiais. As lentes chegaram mais perto. As luzes se intensificaram. Gotículas de suor brotavam em minha testa. Comecei a tremer, a negar.

Tarde demais.

Dois dias depois, o programa estava no ar. O mundo inteiro viu.

E a vida de Dan Mercer, exatamente como eu havia pressentido diante daquela porta vermelha, foi destruída.

***


Marcia McWaid não entrou em pânico quando viu a cama da filha vazia. Isso aconteceria depois.

Ela havia acordado às seis da manhã, cedo para um sábado, sentindo-se ótima. O marido, Ted, com quem estava casada fazia 20 anos, dormia de bruços a seu lado, o braço enlaçando sua cintura. Ted gostava de dormir apenas de camiseta, sem a calça do pijama ou qualquer outra peça de roupa, totalmente nu da cintura para baixo. “Meu amigo aqui precisa de espaço”, ele costumava dizer com um sorriso malicioso. E Marcia, imitando as filhas adolescentes, retrucava: “Nem me faaaaale!”

Marcia se desvencilhou do marido, desceu até a cozinha e preparou uma xícara de café com a nova máquina de espresso, dessas em que o pó vem em sachês. Ted adorava novidades tecnológicas (meninos e seus brinquedos), mas essa era de fato útil. Bastava pegar o sachê, encaixar na máquina e pronto: café.

Nada de wireless, telas digitais ou touch pads. Marcia a adorara.

Haviam reformado a casa fazia pouco tempo: outro quarto, mais um banheiro e uma extensão da cozinha, um cantinho extra cercado por vidraças que deixavam o sol da manhã entrar sem nenhuma cerimônia. Esse agora era o lugar preferido de Marcia na casa. Foi para lá que ela levou seu café e o jornal.

Acomodou-se junto a uma das janelas e cruzou os pés à sua frente.

Um pedacinho do paraíso.

Ela se deixou levar pela leitura regada a café. Dali a pouco precisaria começar a cumprir a agenda do dia. Às oito teria de levar Ryan, seu caçula, para o jogo de basquete dos alunos do terceiro ano. Ted era o técnico da equipe, que não vencia um jogo havia duas temporadas.

“Por que suas equipes nunca ganham?”, Marcia havia perguntado certa vez.

“Deve ser por causa dos meus dois critérios de seleção dos garotos.”

“Que são?...”

“Pai gente boa... e mãe gostosa.”

Rindo, Marcia o cobrira de tapas. Teria até ficado preocupada, se já não conhecesse as mães em questão e tivesse certeza de que o marido estava brincando.

Na verdade, Ted era um excelente técnico, não por ser um bom estrategista, mas porque sabia lidar com os garotos. Todos o adoravam e ficavam felizes por ele não cobrar loucamente que vencessem, de modo que até mesmo os jogadores menos talentosos, os que geralmente perdiam a motivação e abandonavam o time no meio da temporada, compareciam religiosamente aos treinos semanais.

Ted chegara a improvisar uma musiquinha: “Vocês dão à derrota uma ótima reputação.” Os garotos riam e vibravam a cada cesta marcada e, para uma criança de terceiro ano, era assim que devia ser.

Patricia, a filha de 14 anos do casal, teria de ir para o ensaio de uma peça, uma versão do musical Os miseráveis. Embora tivesse recebido apenas alguns papéis sem muito destaque, precisava ensaiar tanto quanto os colegas. E Haley, a filha mais velha, já no último ano do colégio, havia agendado um treino livre para a equipe feminina de lacrosse. “Treino livre” era a artimanha que usavam para burlar as rígidas normas dos esportes estudantis e se divertirem em uma partida organizada pelas capitãs de cada time, sem técnicos ou juízes.

Assim como a maioria dos pais e mães que moravam nos bairros mais nobres, Marcia tinha uma relação de amor e ódio com os esportes. Sabia que eles teriam relativamente pouca relevância a longo prazo, mas nem por isso conseguia refrear seu entusiasmo.

Uma meia horinha de paz para começar o dia. Era o que bastava. Ela preparou uma segunda xícara de café e pegou o caderno “Estilo” do jornal. Percebendo o silêncio que ainda reinava na casa, voltou ao andar de cima para dar uma conferida em sua trupe. Ryan dormia de lado, virado para a porta, e mais uma vez ela se sentiu feliz por ver os traços de Ted no rosto do filho.

Em seguida foi até o quarto de Patricia, que também dormia ainda.

– Filha!... – chamou.

Patricia resmungou e se mexeu na cama. Seu quarto, assim como o de Ryan, dava a impressão de que alguém havia colocado dinamite nas gavetas: peças de roupa jaziam mortas no chão ou feridas a meio caminho dele, penduradas na cômoda feito combatentes das barricadas revolucionárias.

– Patricia, você tem ensaio daqui a uma hora.

– Já estou acordada – ela gemeu, numa voz que indicava o contrário.

Marcia passou ao quarto de Haley e, cuidando para não fazer barulho, espiou pela porta.

A cama estava vazia.

Também estava arrumada, mas isso não chegava a ser surpresa. Ao contrário dos quartos dos irmãos, o de Haley estava sempre em ordem, limpo e meticulosamente organizado. Poderia ser confundido com a vitrine de uma loja de móveis.

Nenhuma roupa no chão, todas as gavetas fechadas. Os troféus – e havia muitos – alinhados com perfeição em quatro prateleiras. Ted havia acrescentado a última delas recentemente, após a vitória do time da filha no torneio de fim de ano em Franklin Lakes. Haley havia redistribuído todos os troféus, de modo que o mais recente não ficasse sozinho na prateleira nova. Marcia não sabia por quê. Parte do motivo era que Haley não queria dar a entender que esperava ganhar mais troféus para completar o espaço, mas a verdade era que a menina tinha horror a qualquer sintoma de desorganização. Gostava de manter a mesma distância entre cada troféu. Sempre que ganhava mais um, reorganizava todos.

Haley era equilíbrio. Era a filha exemplar e, ainda que isso fosse bom – a garota tinha planos, estudava por iniciativa própria, detestava que os outros pensassem mal dela, era absurdamente competitiva –, seu comportamento tinha uma rigidez que beirava o TOC e preocupava a mãe.

Marcia se perguntou a que horas Haley havia chegado em casa. Não impunha mais horários à filha, simplesmente porque não havia necessidade. Haley era responsável, muito em breve iria para a universidade e jamais se aproveitava dos privilégios que tinha. Marcia estava cansada e fora dormir às 10 da noite. Ted, em seu constante estado de “cio”, subira logo depois.

Ela estava prestes a deixar o assunto de lado, quando algo, ela não sabia exatamente o quê, fez com que decidisse pôr roupa para bater na máquina. Foi em direção ao banheiro de Haley. Ryan e Patricia, os filhos mais novos, achavam que “cesto de roupa suja” não passava de um eufemismo para “chão”, ou melhor, para “qualquer outro lugar que não seja o cesto de roupa suja”. Mas Haley, é claro, obediente e religiosamente, todas as noites jogava no cesto do banheiro as roupas que havia usado durante o dia. Foi então que Marcia sentiu uma pequena pedra se formar no peito.

O cesto de Haley estava vazio.

Sentiu a pedra crescer quando examinou a escova de dentes, depois a pia e o
boxe.

Tudo absolutamente seco.

Sentiu-a crescer um pouco mais quando chamou por Ted, tentando apagar da voz qualquer sinal de pânico. Mais ainda quando eles foram até o campo de lacrosse e descobriram que Haley não havia passado por lá. Mais ainda quando ela ligou para as amigas da filha enquanto Ted mandava e-mails a todos os conhecidos. Mais ainda quando eles ligaram para a polícia e foram obrigados a ouvir do delegado que Haley decerto havia saído de casa só para extravasar suas frustrações na rua. Mais ainda quando, 48 horas depois, o FBI foi chamado.

Mais ainda quando uma semana inteira se passou sem que eles tivessem qualquer notícia da filha.

Era como se Haley tivesse sido tragada pela terra.

Um mês se passou. Nada. Depois dois. Nada também.

Já haviam se passado quase três meses quando enfim eles receberam a notícia – e a pedra que havia se formado no peito de Marcia, a pedra que não a deixava respirar ou dormir durante a noite, parou de crescer.


Harlan Coben, Cilada 
Editora Arqueiro, SP. Tadução: Marcelo Mendes, p. 7-14