sábado, 31 de maio de 2014



"...Não sou o que pareço. O que pareço é apenas uma vestimenta cuidadosamente tecida, que me protege de tuas perguntas e te protege da minha negligência. Meu Amigo, o Eu em mim mora na casa do silêncio, e lá dentro permanecerá para sempre, despercebido, inalcançável. Não queria que acreditasses no que digo nem confiasses no que faço – pois minhas palavras são teus próprios pensamentos em articulação e meus feitos, tuas próprias esperanças em ação. Quando dizes: “O vento sopra do leste”, eu digo: “Sim, sopra mesmo do leste”, pois não queria que soubesses que minha mente não mora no vento, mas no mar. Não podes compreender meus pensamentos, filhos do mar, nem eu gostaria que compreendesses. Gostaria de estar sozinho no mar. Quando é dia contigo, meu Amigo, é noite comigo. Contudo, mesmo assim falo do meio-dia que dança sobre os montes e da sombra de púrpura que se insinua através do vale: porque não podes ouvir as canções de minhas trevas nem ver minhas asas batendo contra as estrelas – e eu prefiro que não ouças nem vejas. Gostaria de ficar a sós com a noite. Quando ascendes a teu Céu, eu desço ao meu Inferno – mesmo então chamas-me através do abismo intransponível, “Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada”, e eu te respondo: “Meu Amigo, Meu Companheiro, Meu Camarada” – porque não gostaria que visses meu Inferno. A chama queimaria teus olhos, e a fumaça encheria tuas narinas. E amo demais meu Inferno para querer que o visites. Prefiro ficar sozinho no Inferno. Amas a Verdade, e a Beleza, e a Retidão. E eu, por tua causa, digo que é bom e decente amar essas coisas. Mas, no meu coração rio-me de teu amor. Mas não gostaria que visses meu riso. Gostaria de rir sozinho. Meu Amigo, tu és bom e cauteloso e sábio. Tu és perfeito – e eu também, falo contigo sábia e cautelosamente. E, entretanto, sou louco. Porém mascaro minha loucura. Prefiro ser louco sozinho: Meu Amigo, tu não és meu Amigo, mas como te farei compreender? Meu caminho não é o teu caminho. Contudo juntos marchamos, de mãos dadas."

Gibran Khalil Gibran

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Decadência




Afinal, é o costume de viver
Que nos faz ir vivendo para a frente.
Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente
O hábito melancólico de ser...

Vai-se vivendo... é o vício de viver...
E se esse vício dá qualquer prazer à gente,
Como todo prazer vicioso é triste e doente,
Porque o Vício é a doença do Prazer...

Vai-se vivendo... vive-se demais,
E um dia chega em que tudo que somos
É apenas a saudade do que fomos...

Vai-se vivendo... e muitas vezes nem sentimos
Que somos sombras, que já não somos mais nada
Do que os sobreviventes de nós mesmos!...


Raul de Leoni
Denis Chernov

Contavam as sereias que na tempestade dos seus olhos
os barcos adormeciam tontos, cansados das marés;
que os seus beijos sabiam a mar e que na sua pele crestada
pelo sol havia a cintilância das ondas ao meio-dia;
que os seus ombros lembravam promontórios e que neles
as mulheres deixavam naufragar as mãos e os lábios;
que uma noite tocara a lua com os seus dedos-mastros
e ouvira uma voz dentro de si, vinda de muito longe;
que era hábil com as redes, como com as palavras.

Alguém veio pedir-lhe que abandonasse os peixes
pelos homens. Em troca, receberia
um templo eterno, uma chave, o privilégio de decidir
todos os lugares da chuva, um nome novo
para poder negar o que vira antes.


Maria do Rosário Pedreira

Canção do amor perfeito

Autumn-Leaves by lena sotskova


Eu vi o raio de sol
Beijar o outono.
Eu vi na mão dos adeuses
O anel de ouro.
Não quero dizer o dia.
Não posso dizer o dono.

Eu vi bandeiras abertas
Sobre o mar largo
E ouvi cantar as sereias.
Longe, num    barco,
Deixei meus olhos alegres,
Trouxe meu sorriso amargo.

Bem no regaço da lua,
Já não padeço.
Ai, seja como quiseres,
Amor-Perfeito,
Gostaria que ficasses,
Mas, se fores, não te esqueço.

Cecília Meireles

A lonjura do poema

Arturo Samaniego


A desmesura do corpo
a lonjura do poema

A largura do mar alto
em carta
de rota e pena

A luxúria da memória
a saudade do perdido
feito de nós e de olvido

De se escrever português
em páginas
de verso e vidro

No seu trabalho
e resguardo
de passado e de sigilo

Feito de língua
materna
leite de peito despido

De cantares e do contar
em versos
de linho e livro

Com palavras de poetas
de cristal e aventura
imagens e descobertas

De rimar e de remar
num oceano de perigo


Maria Teresa Horta - (21 de Março de 2014)

Saudade

 Pat Erickson


Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez ainda hoje espere por mim...

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...

Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo,
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano,
afogado no fundo de si mesmo...

 
João Guimarães Rosa, in Magma

Odes maiores ao pai




Largo Pesante

I

 Uns ventos te guardaram. Outros guardam-me a mim. E aparentemente separados
 Guardamo-nos os dois, enquanto os homens no tempo se devoram.
Será lícito guardamo-nos assim?
Pai, este é um tempo de espera. Ouço que é preciso esperar
Uns nítidos dragões de primavera, mas à minha porta eles viveram sempre,
Claros gigantes, líquida semente no meu pouco de terra.

Este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gesto
Te empobrecem de afeto. No gesto te consomem.

Tocaram-te nas tardes, assim como tocaste
Adolescente, a superfície parada de umas águas? Tens ainda nas mãos
A pequena raiz, A fibra delicada que a si se construía em solidão?
Pai, assim somos tocados sempre.
Este é um tempo de cegueira. Os homens não se vêem. Sob as vestes
Um suor invisível toma corpo e na morte nosso corpo de medo
É que floresce.

Mortos nos vemos. Mortos amamos. E de olhos fechados
Uns espaços de luz rompem a treva. Meu pai: este é um tempo de treva. 



II

Ah essas dores! E o voltar contínuo ao silêncio das tardes!
Junto ao muro dos mortos o passeio se fazia longo. Estacávamos.
A tarde empobrecia de luz. O tempo galopava.
Vês? Tenho a alma pesada. Uma avidez no olhar
Antes ingênua, agora se fez grave. Há naquele campo a imutável paisagem:
As papoulas abertas, as ruas estreitas e uma grande e única alameda.
E datas, retratos. E súbito o ocre da terra sob os passos.
A mulher caminhava. Comprimia no peito a sua flor e de humildade
Era o olhar à procura do nome. Se tu visses depois que luminosa altivez
Se insinuava, quando voltava leve, sem o peso das dádivas.
E mitas passaram vagarosas. Umas lunares, com seus rostos aduncos.
Outras com a centelha escondida dos sacrários.



III

Não é teu este canto porque as palavras se abriram sobre a mesa.
Se chegavas era em silêncio e tocavas as coisas
Com a leveza dos meninos arrumando os altares. Uma rosa tardia
Mesmo assim desmanchava-se e tua presença na noite eu procurava.
Ninguém jamais nos via quando nos falávamos. As perguntas de sempre,
Os castiçais, o adro vazio da capela em frente. (E as persianas fechadas,
Para que o sal de fora não pousasse
Nas baixelas incríveis da memória). Aquele mar repetindo seu canto
Eas vozes partindo teus cristais! Como te abrigavas do ruído das estradas
E os teus livros abertos, como se desfizeram naquelas areias!
Nem sei de onde me vêm estes musgos, açoites, esta fonte que é nova
Em minha boca, nem sei dizer da morte o que te ouvi dizer no eco de umas noites.

Enquanto te celebro, as janelas do ocaso trazem risos.
E um hóspede atravessou incógnito teu jardim, afundou-se na névoa
Cansou -se do teu hálito nas arestas, nas muradas, nos cálices, em mim.

És presente como um vento que corre entre portas abertas. 



IV

Na tua ausência, na casa o perfume das igrejas. O odor
Da castidade antiga dos incensos, reacendeu a alegria da infância
E aspirei contigo o perfume menos casto das cerejas. Na casa,
Um ruído de contas de rosário, mas eu só, meu pai, te vigiava.
Os ventos te seguiram. E próxima do teu passo, eu mesma era o silêncio.
A pedra. Impossível de abraço.
Uma torre contigo caminhava. Nos muros, nas escadas, refizeram ardis
Fibras trançadas, e aqueles pareciam mais largos, aquelas mais altas.

No teu andar, um quase nada definido. Tinhas o caminhar dos animais,
Espaçado e perdido. Respirei teu mundo movediço: Pai, não viste o sal da terra
Corroendo os pilares, as cruzes, a capela? E o sonho sobre a tua fonte
É mesmo uma crisálida pronta para ter asas?

Abriram-se os portões mas a casa era nova. A que foi nossa
Tuas filhas te disseram que na noite, um homem e sua torre,
Com paciências guardadas, pouco a pouco a demoliram.



V

Sobrevivi à morte sucessiva das coisas do teu quarto.
Vi pela primeira vez a inútil simetria dos tapetes e o azul diluído
Azul-branco das paredes. E uma fissura de um verde anoitecido
Na moldura de prata. E nela o meu retrato adolescente e gasto.
E as gavetas fechadas. Dentro delas aquele todo silencioso e raro
Como um barco de asas. Que fome de tocar-te nos papéis antigos!
Que amor se fez em mim, multiforme e calado!
Que faces infinitas eu amei para guardar teu rosto primitivo!

Desce da noite um torpor singular, água sob o casco de um velho veleiro
Calcinado. Em mim, o grande limbo de lamento, de dor, e o medo de esquecer-te
De soltar estas âncoras e depois florir sem ao menos guardar tua resonância.
Abraça-me. Um quase nada de luz pousou na tua mesa
E expandiu-se na cor, como um pequeno prisma. 



VI

Há tanto a dizer-te agora! Meus olhos se gastaram
Procurando a palavra nas figuras, nos textos, nas estórias.
Era preciso viajar e levantada em renúncias redescobrir a morte
Além de seus sudários e tremuras. Quase nada aprendi. De nada me lembrei.
Há talvez a memória de tatos, um sentir rarefeito, um ouvido inexato
Deitado em solidão sobre o teu peito. E adeuses ingênuos, calados de vitória
E aquele de fereza, de acerto, dissolvido em orgulho, ressuscitado
Vagamente em canto. E na manhã, o meu sonho passara e a minha voz
Não se erguera em poesia.

Será preciso esquecer o contorno de umas formas que vi: naves, portais
E o grande crisântemo sobre a faixa restrita do canteiro.

Através do gradil, no terraço do tempo te percebo. 
E ainda que as janelas se fechem, meu pai, é certo que amanhece.


Hilda Hilst
Odes maiores ao pai, editora globo, Livro – exercícios, editora globo,  p.91-96
imagens: Arantza Sestayo

Sem depois

John Paul


Todas as vidas gastei
para morrer contigo.

E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.

Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só os meus dedos murcharam, decepados.

Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só os meus olhos se desfizeram, redondas cinzas.

Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há domingos?

Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.

Todas as mortes gastei
para viver contigo.


Mia Couto
In Idades Cidades Divindades, 2007

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Já aconteceu




Eles mal piscaram, mas já aconteceu a transa.

Ainda nem se conhecem, mas já aconteceu a transa.

Ainda nem se abraçaram, mas já aconteceu a transa.

Não beberam juntos, não dançaram juntos, não jantaram juntos, mas já aconteceu a transa.

Não houve nenhuma saudade, desconforto, receio de se perder e já aconteceu a transa.

Não houve nenhuma confissão, partilha de memória, declaração apaixonada, e já aconteceu a transa.

Ainda não mostraram o jeito de vestir, não ensaiaram a nudez, mas já aconteceu a transa.

Eles nem supõem se um é colorado ou gremista, se um é anarquista ou conservador, se é rico ou endividado, se dança rock ou pagode, se tem filhos ou não, se foram casados ou guardados, se têm amigos em comum, mas já aconteceu a transa.

Nada pode apagar o fato consumado antes dos fatos.

O olhar é premonitório, existe uma confiança por detrás do gesto que garante que já aconteceu a transa.

Não há como impedir a união, ambos se escolheram muito rápido.

Denunciaram o enlace ao mexer os cabelos, ao sorrir encabulado, pondo as mãos no bolso.

Foi uma provocação que vingou, foi uma graça que levantou o humor, foi uma cumplicidade que declarou o início.

É assim mesmo que acontece: definimos com quem teremos o envolvimento antes do envolvimento. A atração manda no futuro.

Não significa que vão namorar, casar, serem felizes, não há estabilidade garantida pelo desejo. A curiosidade eclodiu e suspenderá os pré-requisitos, os impeditivos, os critérios preventivos.

É o instinto definindo a ação, avisando o inconsciente que a transa já aconteceu.

A transa é uma lembrança que antecede o ato.

É uma determinação de gosto que impregna a palavra. A transa está no passado, mesmo quando parece uma possibilidade remota.

Eles não se tocaram, mas já se cheiraram, já se estudaram rapidamente, já se aprovaram, já facilitaram os caminhos.

Ainda nem sabem o nome um do outro, as convicções, os medos e desejos, mas já aconteceu a transa.

Ainda não têm noção se preferem sushi ou churrasco, se são melancólicos ou ansiosos, arrebatados ou inseguros, mas já aconteceu a transa.

Ainda não se adicionaram no Facebook, mas já aconteceu a transa.

Ainda não salvaram os telefones na agenda, mas já aconteceu a transa.

Definiram pelo olhar que vão transar. Só não marcaram a data.


Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 22/12/2013 Edição N° 17652

Neste soneto


Neste soneto, meu amor, eu digo,
Um pouco à moda de Tomás Gonzaga,
Que muita coisa bela o verso indaga
Mas poucos belos versos eu consigo.
Igual à fonte escassa no deserto,
Minha emoção é muita, a forma, pouca.
Se o verso errado sempre vem-me à boca,
Só no peito vive o verso certo.
Ouço uma voz soprar à frase dura
Umas palavras brandas, entretanto,
Não sei caber as falas de meu canto
Dentro de forma fácil e segura.
E louvo aqui aqueles grandes mestres
Das emoções do céu e das terrestres.


Paulo Mendes Campos

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Canção como aviso



As minhas emoções estão intactas
como antes de acordar: serenas
nesta solidão, nem sei se esperam.
Será preciso alimentar de novo
a chama adormecida
do amor que armou incêndios na penumbra
e me apagou.

Estou aqui ainda, enriquecida a mais
com as memórias doces da alegria.
Para me alumiar, quem venha agora
terá de compreender o meu receio
de que seja longa só a fantasia
e breve a permanência de quem veio.


 Lya Luft, em "Secreta Mirada", 1997.



Pensamos tanto em nada. Despenteados,
caçamos fantasmas de elefantes
na casa desarrumada, de estores fechados,
milionários esbanjadores de instantes,
piratas de tesouros enterrados, ilhas distantes,
sorte parada. Pensamos demasiado em nada.

Cobertos por farrapos de tempo,
arame farpado de tempo, cheiro a terra
molhada, um momento, outro momento,
a memória inteira emparedada, e nós,
sem desculpas, astronautas, centauros,
entre o sexo e o medo, presos na piscina
vazia e abandonada, no centro de tudo,
pensamos apenas em nada. 


José Luis Peixoto

Canção



A palavra que te disse,
Talvez por ser tão pequena,
Em tais desprezos perdeu-se
Que não deixou pena.

Murmurei-a a uma cisterna
De turvas águas antigas
E foi-se de cova em cova
Em múltiplas cantigas.

Amadores deste mundo,
Nas águas vosso amor ponde;
Que elas vos darão resposta,
Quando ninguém responde.


Cecília Meireles
In Retrato Natural

Manhã



Estou
e num breve instante
sinto tudo
sinto-me tudo

Deito-me no meu corpo
e despeço-me de mim
para me encontrar
no próximo olhar

Ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão

Nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira

A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos

Educadamente mortos


Mia Couto, no livro "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"


Cai amplo o frio e eu durmo na tardança 
De adormecer. 
Sou, sem lar, nem conforto, nem esperança, 
Nem desejo de os ter.  
E um choro por meu ser me inunda 
A imaginação. 
Saudade vaga, anônima, profunda, 
Náusea da indecisão.  
Frio do Inverno duro, não te tira 
Agasalho ou amor. 
Dentro em meus ossos teu tremor delira. 
Cessa, seja eu quem for!  


Fernando Pessoa, 19-1-1931


59. Intelecto e moral. É preciso ter uma boa memória para poder manter as promessas feitas. É preciso ter uma forte capacidade de imaginação para se poder ter compaixão. Tão estreitamente a moral está ligada à boa qualidade do intelecto.
p.77

69. Amor e justiça. Por que é que se superestima o amor em detrimento da justiça e se diz dele as coisas mais lindas, como se ele fosse uma entidade muito superior àquela? Pois não é ele visivelmente mais estúpido que aquela? Por certo, mas, precisamente por isso, tanto mais agradável para todos. Ele é estúpido e possui uma rica cornucópia; tira desta os seus presentes e distribui-os a qualquer pessoa, mesmo que esta não os mereça e até nem sequer lhe agradeça por isso. É imparcial como a chuva, a qual, segundo a Bíblia e a experiência, não só encharca o injusto até os ossos, mas também, em determinadas circunstâncias, o justo.
p.82

70. Execução. Como sucede que cada execução nos ofenda mais que um assassinato? É a frieza dos juízes, a penosa preparação, a noção de que, neste caso, um homem é utilizado como um meio para intimidar outros. Poisa  culpa não é punida, mesmo que a houvesse; ela reside nos educadores, nos pais, nas companhias, em nós, não no assassino – eu refiro-me às circunstâncias motivadoras.
p.82

79. A vaidade enriquece. Como o espírito humano seria pobre sem a vaidade! Mas, assim, ele parece-se com um armazém comercial, bem cheio e enchendo-se sempre do novo, que atrai clientes de toda a ordem; quase tudo eles lá podem encontrar, tudo adquirir, contanto que tragam consigo o tipo de moeda válida (admiração).
p.86

84. Argúcia da vergonha. As pessoas não se envergonham de pensar alguma coisa sórdida, mas sim quando imaginam que se lhes atribui esses pensamentos sórdidos.
p.88


Friedrich Nietzsche -  in Humano, demasiado humano

Imprudência



O teu escorpião agora me parece
A tentação
Teia que aranha tece
Onça que prepara o bote
Olho de lince
Precisão de gato
Exato e fixo
A atenção da ave de rapina
A quietude
Das espera da fera
O silêncio do perigo
Lobo rondando a presa
Que adivinha a caçada
Teu animal é minha surpresa
Minha cilada

E eu sou um bicho de repente
Pressente no ar a tempestade
Corça assustada
Que pelo fascínio do risco
Se deixa ser capturada.


Bruna Lombard in O perigo do dragão, p. 79

O Evangelho eterno

William Blake (1757-1827)  - Título La escalera de Jacob


A Visão do Cristo que tu vês
É a maior inimiga da minha visão.
A tua tem um grande nariz adunco como o teu,
A minha tem um nariz redondo como o meu.
A tua é a do Amigo da Humanidade;
A minha fala em parábolas aos cegos:
A tua ama o mesmo mundo que a minha odeia;
As portas do teu céu são os portões do meu inferno.
Sócrates ensinava o que Meletus
Detestava como a mais amarga Maldição de uma Nação,
E Caifás era em sua própria Opinião
Um benfeitor da Humanidade:
Ambos lemos a Bíblia noite e dia,
Mas tu lês negro onde eu leio branco.


William Blake

Ainda agora é manhã



Ainda agora é manhã, e já os ventos
Adormecem no céu. Pouco a pouco,
A névoa antiga e baça se levanta.
Ruivamente, o sol abre uma estrada
Na prata nublada destas águas.
É manhã, meu amor, a noite foge,
E no mel dos teus olhos escurece
O amargo das sombras e das mágoas.

José Saramago

Quando despertam



Esforça-te em guardá-las, poeta,
por menos numerosas que sejam as que se detêm.
As visões de teu erotismo.
Põe-nas, meio ocultas, em tuas frases.
Esforça-te em guardá-las, poeta,
quando despertam em teu cérebro,
na noite ou no fulgor do meio-dia.


Konstantínos Kaváfis
Tradução de Ísis Borges da Fonseca

terça-feira, 13 de maio de 2014

Mulher de preto

Peter Worswick


Ela vinha de preto mas trazia
a noite pendurada no vestido.
Porém não era luto mas alegria
ou a cor do pecado anoitecido
ou talvez fosse a lua que nascia
na parte do seu rosto mais escondido.
Ela vinha de preto e resplandecia
porque era a própria noite que a vestia.


Manuel Alegre