terça-feira, 28 de junho de 2016

O lugar mais perto

Ariel Thilly


O corpo nunca é triste; 
o corpo é o lugar 
mais perto onde o lume canta. 
É na alma que a morte faz a casa. 


Eugénio de Andrade
In Ofício de Paciência, 1994 

A Queda, capítulo 2


Minha profissão satisfazia, felizmente, essa vocação das alturas. Ela me livrava de qualquer amargura em relação ao próximo, a quem eu sempre servia, sem nunca lhe dever nada.
Ela me colocava acima do juiz, que, por minha vez, eu julgava; acima do réu, que eu obrigava ao reconhecimento. Medite bem sobre isso, meu caro senhor: eu vivia impunemente.
Nenhum julgamento me dizia respeito, não me encontrava no palco do tribunal, mas em algum lugar nas galerias, como esses deuses que, de tempos em tempos, se fazem descer por meio de um maquinismo, para transfigurar a ação e dar-lhe sentido. Afinal, viver no alto ainda é a única maneira de ser visto e saudado pela maioria das pessoas.
Aliás, alguns de meus bons criminosos tinham, ao matar, obedecido ao mesmo sentimento.
A leitura dos jornais, na triste situação em que se encontravam, trazia-lhes, sem dúvida, uma espécie de infeliz compensação. Como muitos outros homens, eles já não suportavam o anonimato, e essa impaciência os havia, em parte, levado a lastimáveis extremos.
Em suma, para alguém se tornar conhecido, basta matar a porteira. Trata-se, infelizmente, de uma reputação efêmera, tantas são as porteiras que merecem e recebem uma facada. O crime está incessantemente em cena, mas o criminoso só figura fugazmente, para logo ser substituído.
Enfim, paga-se muito caro por estes breves triunfos. Pelo contrário, defender nossos infelizes aspirantes à fama resultava em ser verdadeiramente reconhecido, ao mesmo tempo e nos mesmos lugares, mas por meios mais econômicos. Isso animava-me também a envidar apreciáveis esforços para que eles sofressem a menor pena possível: a que sofriam, sofriam-na um pouco em meu lugar. A indignação, o talento, a emoção que eu despendia livravam-me, em compensação, de qualquer dívida em relação a eles. Os juízes condenavam, os réus expiavam e eu, livre de qualquer obrigação, isento tanto de julgamento quanto de sanção, eu imperava, livremente, numa luz edênica.
Na realidade, não seria isso o Éden, meu caro senhor: a vida bem engrenada? Foi assim a minha. Nunca tive necessidade de aprender a viver. A esse respeito, já sabia de tudo ao nascer.
Há pessoas cujo problema é resguardar-se dos homens ou, pelo menos, acomodar-se a eles.
Quanto a mim, a acomodação estava feita. Familiar quando era preciso, silencioso se necessário, capaz tanto de desenvoltura quanto de gravidade, estava sempre à altura. Dessa forma, era grande minha popularidade, e meus êxitos no mundo eu nem contava mais. Fazia boa figura, revelava-me simultaneamente incansável dançarino e erudito discreto, chegava a amar ao mesmo tempo, o que não é nada fácil, as mulheres e a justiça, praticava esportes e belas-artes. Em resumo: vou parar para que não me julgue imodesto. Mas imagine, eu lhe peço, um homem na força da idade, com a saúde perfeita, generosamente dotado, hábil tanto nos exercícios do corpo quanto da inteligência, nem pobre nem rico, de sono fácil, e profundamente satisfeito consigo mesmo, sem demonstrá-la, a não ser por uma alegre sociabilidade. Admitirá, então, que eu possa falar, com toda a modéstia, de uma vida bem-sucedida.
Sim, poucos seres terão sido mais integrados à natureza do que eu. Meu entendimento com a vida era total, eu aderia ao que ela era, de alto a baixo, sem nada recusar de suas ironias, de sua grandeza, nem de suas servidões. Particularmente a carne, a matéria, em resumo, o físico, que desconcerta ou desanima tantos homens no amor ou na solidão, dava-me, sem me escravizar, alegrias iguais. Fora feito para ter um corpo. Daí essa harmonia em mim próprio, esse autocontrole sem esforço que as pessoas sentiam e que, segundo confessavam, às vezes, ajudava-as a viver. Buscavam, pois, minha companhia. Muitas vezes, por exemplo, julgavam já me ter encontrado. A vida, seus seres e seus dons vinham ao meu encontro; eu aceitava essas homenagens com orgulho benevolente. Na verdade, à força de ser homem, com tanta plenitude e simplicidade, achava-me um pouco super-homem.
Era de origem honesta, mas obscura (meu pai era militar) e, no entanto, certas manhãs, humildemente o confesso, sentia-me um filho de rei ou uma sarça ardente. Tratava-se, repare bem, de algo bem diferente da certeza em que eu vivia de ser mais inteligente do que todo mundo. Tal certeza, aliás, não tem consequência, pelo fato de ser compartilhada por tantos imbecis. Não, por estar no auge, eu me sentia, hesito em confessá-la, um eleito. Eleito pessoalmente, entre todos, para este longo e constante êxito. Nisso residia, em suma, um efeito de minha modéstia. Negava-me a atribuir este êxito unicamente a meus méritos e não conseguia acreditar que a reunião, numa só pessoa, de qualidades tão diferentes e tão opostas resultasse de mero acaso. Eis por que, vivendo feliz, eu me sentia, de certo modo, autorizado a gozar esta felicidade por algum decreto superior. Se eu lhe disser que não tinha religião alguma, você compreenderá ainda melhor o que havia de extraordinário nessa convicção.
Extraordinária ou não, ela me ergueu durante muito tempo acima do tedioso dia a dia, e fiquei planando literalmente, durante anos, dos quais, para dizer a verdade, ainda tenho saudades. Planei até a noite em que... Mas, não, isso é outro assunto que deve ser esquecido. Aliás, talvez eu esteja exagerando. Sentia-me à vontade em tudo, é bem verdade, mas, ao mesmo tempo, nada me satisfazia. Cada alegria fazia com que desejasse outra. Ia de festa em festa. Chegava a dançar noites inteiras, cada vez mais louco com os seres e com a vida. Às vezes, já bastante tarde, nessas noites em que a dança, o álcool leve, meu modo desenfreado, o violento abandono de todos me lançavam a um arrebatamento ao mesmo tempo lasso e pleno, parecia-me no extremo da exaustão e no espaço de um segundo, compreender, enfim, o segredo dos seres e do mundo. Mas o cansaço desaparecia no dia seguinte e com ele o segredo; e eu me lançava outra vez com todo ímpeto. Assim corria eu, sempre pleno, jamais saciado, sem saber onde parar, até o dia, ou melhor, até a noite em que a música parou e as luzes se apagaram. A festa em que eu fora feliz...

Albert Camus
A Queda (Capítulo 2)

Tenho pena e não respondo

Fabian Perez

Tenho pena e não respondo. 
Mas não tenho culpa enfim 
De que em mim não correspondo 
Ao outro que amaste em mim. 

Cada um é muita gente. 
Para mim sou quem me penso, 
Para outros — cada um sente 
O que julga, e é um erro imenso. 

Ah, deixem-me sossegar 
Não me sonhem nem me outrem. 
Se eu não me quero encontrar, 
Quererei que outros me encontrem? 


Fernando Pessoa 
In Novas Poesias Inéditas, 1973 
Ed. Ática, Lisboa 


James Van Fossan

Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

As Flores

Elegant lady with a bouquet of roses - Emile Vernon

as flores
são mesmo
ingratas

a gente colhe
depois elas morrem
sem mais nem menos
como se entre nós
nunca tivesse
havido vênus


Paulo Leminski
In Caprichos e relaxos, 1983

Primavera

Dorina Costras

Primavera gentil dos meus amores,
- Arca cerúlea de ilusões etéreas,
Chova-te o Céu cintilações sidéreas
E a terra chova no teu seio flores!

Esplende, Primavera, os teus fulgores,
Na auréola azul dos dias teus risonhos,
Tu que sorveste o fel das minhas dores
E me trouxeste o néctar dos teus sonhos!

Cedo virá, porém, o triste outono,
Os dias voltarão a ser tristonhos
E tu hás de dormir o eterno sono,

Num sepulcro de rosas e de flores,
Arca sagrada de cerúleos sonhos,
Primavera gentil dos meus amores!


Augusto dos Anjos

Pelos

zinaida serebriakova

Macia selva que o teu corpo tapeteia.
Fina ramagem onde o toque se aveluda.
Vaivém de vento que penteia e despenteia.
Sensível manta que te cobre e te desnuda.

Pouso de face — a tua face — em minha face,
passando, aos poucos, a carinhos circulares.
Corta o silêncio abafadiço roçar: dá-se
a sinfonia dos murmúrios capilares.

Miro a penugem que recobre a tua orelha,
e os meus ouvidos, feito dedos, passam leves.
Cílio teus cílios, sobrancelho a sobrancelha,
e um humm e um ai e um ai e um humm sussurram breves.

Plumagens raras — tua nuca envolta em rama.
O meu pescoço quer o teu e tu mo encostas.
Tu te declinas à maneira de quem chama.
Nas mãos reversas sei da relva em tuas costas.

O que me é tátil à minha boca ora transfiro,
visto que assim, se sei do toque, sei do gosto.
E mais eu sei se pela boca te respiro,
pois menos sei qual do teu pelo me é posto.

Pelos que eu gosto: os que cercam teus mamilos,
onde em percursos labiais circunavego.
Tal o prazer tê-los assim, assim senti-los,
que a minha boca no teu seio às vezes nego.

Pelos que eu amo: os da barriga, feito seta,
que a boca assanha indo e vindo ao teu umbigo.
Como uma onda, o teu quadril se me projeta,
surfo teu ventre e nos teus pelos eu prossigo.

Pelos que eu quero: os teus pelos inguinais,
onde, bem sei, se me demoro, tu te adias.
Desses eu passo a outros pelos, capitais,
e em tais arranho a minha barba de dois dias.

Antoniel Campos


"— A felicidade não se caça. Pares amorosos voltam às vezes a dado lugar, querendo reproduzir êxtases ou enlevos; encontram é o desrequentado, discórdia e arrufo, aquele caminho não ia dar a Roma nenhuma. Outros recebem o dom em momentos neutros, até no meio dos sofrimentos, há as doces pausas da angústia."

João Guimarães Rosa, no livro “Tutaméia: terceiras estórias”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985
Lynn Sanguedolce 

Nas cartas que se escrevem e não
chegam ao destino, o que ficou dito
tem o eco do que nunca será
esquecido: a voz que se ouviu numa
paragem do tempo, e atravessa
o centro da memória numa inquieta
procissão de sombras.
Pudessem os arcos do horizonte
abrir-se como um lamento de pombas;
ou este sonho fechar-se com o correr
da cortina de um último acto: nunca
os dedos amados irão soletrar
a frase do crepúsculo, soltando
da sua música um enxame de sílabas.
E o azul enche a garrafa do céu
para que as aves se embriaguem
no púlpito do infinito, arrastando
no seu voo uma cinza de imagens.

 Nuno Júdice

Vigiar e Punir


Eis como ainda no início do século XVII se descrevia a figura ideal do soldado. O soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe; que leva os sinais naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho: seu corpo é o brasão de sua força e de sua valentia; e se é verdade que deve aprender aos poucos o ofício das armas - essencialmente lutando - as manobras como a marcha, as atitudes como o porte da cabeça se originam, em boa parte, de uma retórica corporal da honra:

Os sinais para reconhecer os mais idôneos para esse ofício são a atitude viva e alerta, a cabeça direita, o estômago levantado, os ombros largos, os braços longos, os dedos fortes, o ventre pequeno, as coxas grossas, as pernas finas e os pés secos, pois o homem desse tipo não poderia deixar de ser ágil e forte: (tornado lanceiro,o soldado) deverá ao marchar tomar a cadência dos passos para ter o máximo de graça e gravidade que for possível, pois a Lança é uma arma honrada e merece ser  levada com um porte grave e audaz.

Segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi "expulso o camponês" e lhe foi dada a "fisionomia de soldado". Os recrutas são habituados a manter a cabeça ereta e alta; a se manter direito sem curvar as costas, a fazer avançar o ventre, a salientar o peito, e encolher o dorso; e a fim de que se habituem, essa posição lhes será dada apoiando-os contra um muro, de maneira que os calcanhares, a batata da perna, os ombros e a cintura encostem nele, assim como as costas das mãos, virando os braços para fora, sem afastá-los do corpo... ser-lhes-á igualmente ensinado a nunca fixar os olhos na terra, mas a olhar com ousadia aqueles diante de quem eles passam... a ficar imóveis esperando o comando, sem mexer a cabeça, as mãos nem os pés... enfim a marchar com passo firme, com o joelho e a perna esticados, a ponta baixa e para fora...

Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo - ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homem-máquina foi escrito simultaneamente em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas por Descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois tratava-se ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e de explicação: corpo útil, corpo inteligível. E entretanto, de um ao outro, pontos de cruzamento. "O Homem-máquina" de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de "docilidade" que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. Os famosos autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo; eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de poder: obsessão de Frederico II, rei minucioso das pequenas máquinas, dos regimentos bem treinados e dos longos exercícios.

Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que há de tão novo? Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações. Muitas coisas entretanto são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica - movimentos, gestos, atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A modalidade enfim: implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as "disciplinas". Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes. Diferentes também da domesticidade, que é uma relação de dominação, constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do patrão, seu "capricho". Diferentes da vassalidade que é uma relação de submissão altamente codificada, mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais da obediência. Diferentes ainda do ascetismo e das "disciplinas" de tipo monástico, que têm por função realizar renúncias mais do que aumentos de utilidade e que, se implicam em obediência a outrem, têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre seu próprio corpo. O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma "anatomia política", que é também igualmente uma "mecânica do poder", está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos "dóceis". A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma "aptidão", uma "capacidade" que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.

A "invenção" dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral. Encontramo-los em funcionamento nos colégios, muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em algumas dezenas de anos reestruturam a organização militar. Circularam às vezes muito rápido de um ponto a outro (entre o exército e as escolas técnicas ou os colégios e liceus), às vezes lentamente e de maneira mais discreta (militarização insidiosa das grandes oficinas). A cada vez, ou quase, impuseram-se para responder a exigências de conjuntura: aqui uma inovação industrial, lá a recrudescência de certas doenças epidêmicas, acolá a invenção do fuzil ou as vitórias da Prússia. O que não impede que se inscrevam, no total, nas transformações gerais e essenciais que necessariamente serão determinadas.

Não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares, no que podem ter cada uma de singular. Mas de localizar apenas numa série de exemplos algumas das técnicas essenciais que, de uma a outra, se generalizaram mais facilmente. Técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas, mas que têm sua importância: porque definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova "microfísica" do poder; e porque não cessaram, desde o século XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro. Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são eles entretanto que levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da época contemporânea. Descrevê-las implicará na demora sobre o detalhe e na atenção às minúcias: sob as mínimas figuras, procurar não um sentido, mas uma precaução; recolocá-las não apenas na solidariedade de um funcionamento, mas na coerência de uma tática. Astúcias, não tanto de grande razão que trabalha até durante o sono e dá um sentido ao insignificante, quanto da atenta "malevolência" que de tudo se alimenta. A disciplina é uma anatomia política do detalhe.

Para advertir os impacientes, lembremos o marechal de Saxe:

Aqueles que cuidam dos detalhes muitas vezes parecem espíritos tacanhos, entretanto esta parte é essencial, porque ela é o fundamento, e é impossível levantar qualquer edifício ou estabelecer qualquer método sem ter os princípios. Não basta ter o gosto pela arquitetura. É preciso conhecer a arte de talhar pedras.

Dessa "arte de talhar pedras" haveria uma longa história a ser escrita - história da racionalização utilitária do detalhe na contabilidade moral e no controle político. A era clássica não a inaugurou; ela a acelerou, mudou sua escala, deu-lhe instrumentos precisos, e talvez tenha encontrado alguns ecos para ela no cálculo do infinitamente pequeno ou na descrição das características mais tênues dos seres naturais. Em todo caso, o "detalhe" era já há muito tempo uma categoria da teologia e do ascetismo: todo detalhe é importante, pois aos olhos de Deus nenhuma imensidão é maior que um detalhe, e nada há tão pequeno que não seja querido por uma dessas vontades singulares. Nessa grande tradição da eminência do detalhe viriam se localizar, sem dificuldade, todas as meticulosidades da educação cristã, da pedagogia escolar ou militar, de todas as formas, finalmente, de treinamento. Para o homem disciplinado, como para o verdadeiro crente, nenhum detalhe é indiferente, mas menos pelo sentido que nele se esconde que pela entrada que aí encontra o poder que quer apanhá-lo. Característico, esse hino às "pequenas coisas" e à sua eterna importância, cantado por Jean-Baptiste de La Salle, em seu Tratado sobre as Obrigações dos Irmãos das Escolas Cristãs. A mística do cotidiano aí se associa à disciplina do minúsculo.

 Como é perigoso negligenciar as pequenas coisas. É um pensamento bem consolador para uma alma como a minha, pouco indicada para as grandes ações, pensar que a fidelidade às pequenas coisas pode, por um progresso insensível, elevar-nos à mais eminente santidade: porque as pequenas coisas nos dispõem às grandes... Pequenas coisas, meu Deus, infelizmente dirá alguém, que podemos fazer de grande para Vós, criaturas fracas e mortais que somos. Pequenas coisas: se as grandes se apresentassem, praticá-las-íamos? Não as creríamos acima de nossas forças? Pequenas coisas: e se Deus as aceita e quer recebê-las como grandes? Pequenas coisas: acaso já as experimentamos? Acaso as julgamos pela experiência? Pequenas coisas: somos então culpados, se, vendo-as como tais, as recusamos? Pequenas coisas: são elas entretanto que, com o tempo, formaram grandes santos! Sim, pequenas coisas mas grandes móveis, grandes sentimentos, grande fervor, grande ardor, e em conseqüência grandes méritos, grandes tesouros, grandes recompensas.

A minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo darão em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito. E uma História do Detalhe no século XVIII, colocada sob o signo de Jean-Baptiste de La Salle, esbarrando em Leibniz e Buffon, passando por Frederico II, atravessando a pedagogia, a medicina, a tática militar e a economia, deveria chegar ao homem que sonhara no fim do século ser um novo Newton, não mais aquele das imensidões do céu ou das massas planetárias, mas dos "pequenos corpos", dos pequenos movimentos, das pequenas ações; ao homem que respondeu a Monge ("Só havia um mundo a ser descoberto"):
 Que ouvi eu? Mas o mundo dos detalhes, quem jamais pensou neste ou naquele? Desde meus quinze anos, eu acreditava nele. Cuidei disso então, e essa lembrança vive em mim, como uma ideia fixa que nunca me abandonará... Esse outro mundo é o mais importante de todos os que mergulhei de descobrir: de pensar nisso, doi-me a alma.

Ele não o descobriu; mas sabemos que empreendeu organizá-la, e quis distribuir em torno de si um dispositivo de poder que lhe permitisse perceber até o menor acontecimento do Estado que governava; pretendia, com a rigorosa disciplina que fazia reinar, "abraçar o conjunto dessa vasta máquina sem que lhe pudesse escapar o mínimo detalhe".

Uma observação minuciosa do detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas, para controle e utilização dos homens, sobem através da era clássica, levando consigo todo um conjunto de técnicas, todo um corpo de processos e de saber, de descrições, de receitas e dados. E desses esmiuçamentos, sem dúvida, nasceu o homem do humanismo moderno.

FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis. In: ________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 2. ed. Petrópolis: Vozes,1983.