quarta-feira, 23 de abril de 2014

Bem-aventurados


Jean Garton Hildebrant

Bem-aventurados os pintores escorrendo luz
Que se expressam em verde
Azul
Ocre
Cinza
Zarcão!

Bem-aventurados os músicos..
E os bailarinos
E os mímicos
E os matemáticos...
Cada qual na sua expressão!

Só o poeta é que tem de lidar com a ingrata
linguagem alheia...

A impura linguagem dos homens!


Mário Quintana - Apontamentos de historia sobrenatural

História de Inverno

Sefedin Stafa


A mulher de água
traz limos nas espáduas.
Tem olhos de lagoa
e o corpo como um rio.

Traz musgo sobre os seios
e a sua voz dá frio,
o seu olhar magoa.

Mas não lhe sei o nome.

Estende os cabelos de água
no inverno dos meus olhos,
dorme na minha sorte
por toda a noite insone.

Faz um rumor de chuva,
tem um sabor de morte.

Mas não lhe sei o nome.


Carlos de Oliveira

O verão

 Francesca Strino.


Chego úmido e túrgido,
os poros ansiosos.
Alterno o indecoroso e a lassidão.
Tropical que sou,
venho alinhavado em sedução,
no tom abrasivo do pecado.
Por onde eu vou,
risco perfis de sombras
que são do sol a cicatriz.
Ao meio-dia, elas soltam-se fartas
e amam-se quietas e sobrepostas,
deitando as sinuosas sobre as retas.
O calor, sem pudor, lhes roça as costas.


Flora Figueiredo

Clarão



O que isto é, viver! 
Abrir os olhos, ver, 
E ser o nevoeiro que se vê! 
Nevoeiro ao nascer, 
Nevoeiro ao morrer, 
E um destino na mão que se não lê... 


Miguel Torga, in 'Diário'
Jacquelyn Bischak


Água de remanso
Cismo o sereno silêncio:
sou: estou humanamente
em paz comigo: ternura.

Paz que dói, de tanta.
Mas orvalho. Em seu bojo
estou e vou, como sou.

Ternura: maneira funda,
cristalina do meu ser.
Água de remanso, mansa
brisa, luz de amanhecer.

Nunca é a mágoa mordendo.
Jamais a turva esquivança,
o apego ao cinzento, ao úmido,
a concha que aquece na alma
uma brasa de malogro.

É ter o gosto da vida,
amar o festivo, o claro,
é achar doçura nos lances
mais triviais de cada dia.

Pode também ser tristeza:
tranquilo na solidão macia.
Apaziguado comigo,
meu ser me sabe: e me finca
no fulcro vivo da vida.

Sou: estou e canto.

Thiago de Mello, em "Faz escuro mas eu canto"
ennio montariello


Olho este rosto, com a surpresa
da sua imobilidade. Que suspiro suspendem
os seus lábios? Que imagem se esconde
sob as pálpebras fechadas? Digo-lhe:
«Amo-te». Como se a pudesse
despertar. São outras as palavras
que a poderiam trazer de volta,
dissipando-se em nuvem no céu
da sua cabeça. «Nenhuma vida passa
duas vezes
pelo mesmo lugar», digo-lhe. E ela
sorri, como se me tivesse
ouvido.


Nuno Júdice

Ternura

ennio montariello



Enquanto nesta atroz demora, 
Que me tortura, que me abrasa, 
Espero a cobiçada hora 
Em que irei ver-te à tua casa; 

Por enganar o meu desejo 
De inteira e descuidada posse, 
Ai de nós! que não antevejo 
Uma só vez que ao menos fosse; 

Sentindo em minha carne langue 
Toda a volúpia do teu sonho, 
Toda a ternura do teu sangue, 
Minh'alma nestes versos ponho; 

Por que os escondas de teu seio 
No doce o pequenino vale, 
— Por que os envolva o teu enleio, 
Por que o teu hálito os embale; 

E o meu desejo, que assim foge 
Ao pé de ti e te acarinha, 
Possa sentir que minha és hoje, 
E és para todo o sempre minha... 


Manuel Bandeira, em "A cinza das horas"

BAS-FONDS




Depois à luz do dia
Eu achava tudo indecente
A cara amanhecida debaixo do chuveiro
Tinha um estranho brilho
Que não saía com água corrente

Tinha uma luz violeta, uma aura, um estilo
Que me denunciavam
E na desordem do quarto
As coisas não tavam mais onde elas tavam

E eu me sentia perdida à beça
A tal ovelha desgarrada do rebanho
Só porque traz nos olhos um brilho estranho
Que talvez nunca mais desapareça.


Bruna Lombardi in: o perigo do dragão

Vestígios

arthur-braginsky

Foram-te os anos consumindo aquela
Beleza outrora viva e hoje perdida...
Porém teu rosto da passada vida
Inda uns vestígios trêmulos revela.

Assim, dos rudes furacões batida,
Velha, exposta aos furores da procela,
Uma árvore de pé, serena e bela,
Inda se ostenta, na floresta erguida.

Raivoso o raio a lasca, e a estala, e a fende...
Racha-lhe o tronco anoso... Mas, em cima,
Verde folhagem triunfal se estende.

Mal segura no chão, vacila... Embora!
Inda os ninhos conserva, e se reanima
Ao chilrear dos pássaros de outrora...
Dá-me o fogo do teu beijo!


Olavo Bilac, Antologia: Poesias.

Som

Denis Chernov 


Nem soneto nem sonata
vou curtir um som
dissonante dos sonidos
som
ressonante de sibildos
som
sonotinto de sonalhas
nem sonoro nem sonouro
vou curtir um som
mui sonso, mui insolúvel
som não sonoterápico
bem insondável, som
de raspante derrapante
rouco reco ronco rato
som superenrolado
como se sona hoje-em-noite
vou curtir, vou curtir um som
ausente de qualquer música
e rico de curtição.


Carlos Drummond de Andrade
In Discurso de Primavera e Algumas Sombras

Desejo de regresso

 


Deixai-me nascer de novo,
nunca mais em terra estranha,
mas no meio do meu povo,
com meu céu, minha montanha,
meu mar e minha família.

E que na minha memória
fique esta vida bem viva,
para contar minha história
de mendiga e de cativa
e meus suspiros de exílio.

Porque há doçura e beleza
na amargura atravessada,
e eu quero memória acesa
depois da angústia apagada.
Com que afeição me remiro!

Marinheiro de regresso
com seu barco posto a fundo,
às vezes quase me esqueço
que foi verdade este mundo. (Ou talvez fosse mentira...)



Cecília Meireles,  "Mar absoluto". In: Obra poética


aviso prévio




embrutecidos,
estamos equilibrados
na beira do mundo

intolerantes,
balançamos à mercê
das nossas vontades

ou viramos o jogo,
acalmemos os ânimos
e desarmemos os espíritos,
ou a intolerância
nos engolirá a todos
um
por
um


 Ademir Antonio Bacca


O ver-te nua é recordar a Terra,
a Terra lisa, limpa de cavalos.
A Terra sem um junco, forma pura
e cerrada ao porvir: confim de prata.

O ver-te nua é compreender a ânsia
da chuva que procura um corpo frágil,
ou a febre do mar de imenso rosto
sem encontrar a luz da tua face.

O sangue soará pelas alcovas
e virá com espadas fulgurantes,
mas tu não saberás onde se ocultam
o coração de sapo ou a violeta.

Teu ventre é uma luta de raízes,
teus lábios uma aurora sem contorno.
Debaixo das rosas tépidas da cama,
à espera de vez, gemem os mortos.


Federico García Lorca

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Uma Alma Amante e Terna


Jamais houve alma mais amante ou terna do que a minha, alma mais repleta de bondade, de compaixão, de tudo o que é ternura e amor. Contudo, nenhuma alma há tão solitária como a minha — solitária, note-se, não mercê de circunstâncias exteriores, mas sim de circunstâncias interiores. O que quero dizer é: a par da minha grande ternura e bondade, entrou no mau caráter um elemento da natureza inteiramente oposto, um elemento de tristeza, egocentrismo, portanto de egoísmo, produzindo um efeito duplo: deformar e prejudicar o desenvolvimento e a plena ação interna daquelas outras qualidades, e prejudicar, deprimindo a vontade, a sua plena ação externa, a sua manifestação. Hei-de analisar isto; um dia hei-de examinar melhor, destrinçar, os elementos que constituem o meu caráter, pois a minha curiosidade acerca de tudo, aliada à minha curiosidade por mim próprio e pelo meu caráter, conduz a uma tentativa para compreender a minha personalidade.

Fernando Pessoa, in 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação'

O Livre Arbítrio


Um homem é dotado de livre arbítrio e de três maneiras: em primeiro lugar, era livre quando quis esta vida; agora não pode evidentemente rescindi-la, pois ele não é o que a queria outrora, exceto na medida em que completa a sua vontade de outrora, vivendo.
Em segundo lugar, é livre pelo fato de poder escolher o caminho desta vida e a maneira de o percorrer.
Em terceiro lugar, é livre pelo fato de na qualidade daquele que vier a ser de novo um dia, ter a vontade de se deixar ir custe o que custar através da vida e de chegar assim a ele próprio e isso por um caminho que pode sem dúvida escolher, mas que, em todo o caso, forma um labirinto tão complicado que toca nos menores recantos desta vida.
São esses os três aspectos do livre arbítrio que, por se oferecerem todos ao mesmo tempo formam apenas um e de tal modo que não há lugar para um arbítrio, quer seja livre ou servo.

Franz Kafka, in "Os Aforismos de Zurau ou Reflexões no Pecado, Esperança, Sofrimento, e o Caminho da Verdad"

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Desejo

rafal olbinski


A lua mingua com elegância,
olho o seu formato meia lua,
um queijo a cara dela suspensa no céu.
Eu nua, sem mentiras, sem véus
ouço a conversa das estrelas sobre as ruas,
e também ouso com elas as palavras
que Bilac me ensinou com as suas.
O que digo é que nunca estou só de todo
por causa da Via Láctea e outros acontecimentos celestes.
Quando lá não me detenho e por isso,
sem ver outros planetas, ignoro o que acontece,
o mar, revolto ou calmo,
seja lá como for, não me obedece.
Sou pequena,
o que não sei é o que o meu poema tece
para me ensinar a ser flor.

Ó luminoso beija flor
vagalume dos meus desmundos,
dos meus desterros nos caminhos escuros de nublada visão.
Ó verso antigo e novo
que desde de adolescência
vem me trazendo pela mão,
me dê sempre clareza onde antes era confusão.
Lampadinha iluminada,
remove a camada da ilusão
e deixe - me de frente pra vida,
ela mesma, a vida pura,
em sua versão milagre e espanto.
Só isso, não estou pedindo muito,
não estou pedindo tanto.
Só milagre e espanto.


Elisa Lucinda

Árvore no inverno



Abandono de aves e de folhas
Ninguém já descansa à tua sombra.
só te resta a nua arquitetura
de ramos como braços de náufragos

Assim me enternecem
o teu frio, ausência de cor,
a tua penosa hibernação

Resignados, mas confiantes,
ambos aguardamos
a ressurreição na primavera."


Fernando Couto


A neblina pisa leve e macia,
rendilhada e feminina.
Mantilha, silêncio, sapatilha.
Desce na sombra,
volita, dança e vai embora.
Névoa, bruma, fumaça, mulher.
Insinua, sugere e depois passa.
Vaga esperança em coração de malmequer


Flora Figueiredo 

Fogo e água

Anna Razumovskaya

Cansa-me ser quem serei
porque em tudo esse outro
se parece com o que sou.

Cansa-me o adeus de quem nasce.
E a viagem, à nascença, morre de fadiga.

Só a tua lava me lava.
Resto eu em ti
terra ardendo,
chão de água e fogo.

Abraça-me.
Abrasa-me.


Mia Couto


Querida Marina...
Os olhos, retirados do rosto, são peças anatômicas sinistras. O segredo do seu olhar mora no rosto com que miro você


O VINICIUS ESCREVEU um poema intitulado "O Haver". O "Haver" era o nome de uma página dos antigos livros de contabilidade onde se registrava o que havia sobrado, o ganho, o "a receber", por oposição ao "Deve", onde se registravam as dívidas, o que deveria ser pago. É um poema de velhice, balanço do que sobrou na vida.
Eu também já estou no tempo de fazer o balanço entre as dívidas e os haveres. Minha vida se divide em três fases. Na primeira fase, o meu mundo era do tamanho do universo e era habitado por deuses, verdades e absolutos. A esperança que eu escrevia na página do "Haver" era do tamanho da luz do sol ao meio-dia.
Na segunda fase, meus haveres encolheram. Meu mundo passou a ser habitado por heróis revolucionários que portavam armas e cantavam canções de transformar o mundo. A esperança que iluminava o universo passou a iluminar apenas os horizontes da história.
Na terceira fase, mortos os deuses, mortos os heróis, mortas as esperanças teológicas e políticas, fiquei pobre de verdade e o meu mundo se encolheu mais ainda -e chegou não à sua verdade final, mas à sua esperança final, que teima em se alegrar com coisas pequenas.
A esperança é a última que morre. O Vinicius reconheceu essa chama entre os seus haveres e a chamou de "pequenina luz indecifrável a que às vezes os poetas dão o nome de esperança".
Diferente do otimismo. O otimismo é "sorriso por causa de", quando há razões para sorrir. A esperança é "sorriso a despeito de", quando não há mais razões para sorrir.
A imagem que o Vinicius escolheu para descrever sua pequena esperança é comovente: "Resta esse coração queimando como um círio numa catedral em ruínas, essa tristeza diante do cotidiano; ou essa súbita alegria ao ouvir passos na noite que se perdem sem história".
Álvaro de Campos escreveu um verso bruto: "E a luxúria única de já não ter esperanças?" Não ter esperança é estar em paz, não ter causas por que lutar, o fim do esforço... Viver o presente, o presente apenas, como se o futuro já não se anunciasse, como se fosse inútil saber o que ele anuncia.
A luz do círio aceso se transforma em sombras fantasmagóricas nas paredes arruinadas daquilo que, no passado, foi uma catedral onde moravam os deuses. Muitos deuses e muitos heróis moraram dentro de mim. Hoje, não sei onde se meteram... Sou uma catedral em ruínas... Mas aí eu ouço passos na noite...
Olho e vejo que alguém, no escuro, carrega uma chama. Me animo. Escrevo: é o meu jeito de soprar cinzas. Meu círio se acende. Fico alegre. A luz põe alegria no olhar.
O que é um olhar? O olhar não se encontra nos olhos. Não adianta olhar fundo nos olhos. O olhar não está lá. Foi Sartre que disse que "o olhar do outro esconde os seus olhos." Cecília Meireles confirma: "O sentido está guardado no rosto com que te miro". Não os olhos; o rosto... Os olhos, retirados do rosto, são peças anatômicas sinistras. O segredo do seu olhar mora no rosto com que miro você.
Quero ver o seu olhar, Marina. Quero ver o seu rosto, onde mora o sentido, e não dois olhos retirados do seu rosto. O seu rosto, moldura dos seus olhos, fala mais e diferente que os seus olhos. Não quero ver os seus olhos na televisão. Quero ver o seu rosto, onde mora o seu olhar...


Rubem Alves
fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1310200904.htm

terça-feira, 1 de abril de 2014

Fui

Sergio Martinez 


Não me manietei. Dei-me totalmente e fui.
Aos deleites, que metade reais,
metade volteantes dentro da minha cabeça estavam,
fui para dentro da noite iluminada.

E bebi dos vinhos fortes, tal
como bebem os denodados do prazer.


Konstandinos Kavafis


Rukiye Garip


The little river twittering in the twilight, 
The wan, wondering look of the pale sky, 
This is almost bliss.

And everything shut up and gone to sleep, 
All the troubles and anxieties and pain 
Gone under the twilight.

Only the twilight now, and the soft "Sh!" of the river 
That will last for ever.

And at last I know my love for you is here; 
I can see it all, it is whole like the twilight, 
It is large, so large, I could not see it before, 
Because of the little lights and flickers and interruptions, 
Troubles, anxieties and pains.

You are the call and I am the answer, 
You are the wish, and I the fulfilment, 
You are the night, and I the day. 
What else - it is perfect enough. 
It is perfectly complete, 
You and I, 
What more--?

Strange, how we suffer in spite of this.


 David Herbert Lawrence

Canção azul

 George Tsui

O tempo chegará
da palavra invisível
transformada em pássaro
e que acorde lembranças
há muito esquecidas
no coração sepulto.
O tempo afinal virá
o tempo sem limites
em que os enforcados
mortos e vivos
e uma lua romântica
das noites da infância
voltem a dançar
no ar da manhã.

Paulo Plínio Abreu, em "Poesia"

Definição

OLGA VERCHOLAMOSA


poeta é onda
onda é canto
canto é espera
espera é adeus
adeus é morte
morte é nódoa
nódoa é ostra
ostra é ensaio
ensaio é busca
busca é poeira
poeira é poeta


Ana Cristina Cesar, "Poética" 

Vastos Campos

Olga Gouskova 


Vou fazer-te uma confidência, talvez tenha já começado a envelhecer e o desejo, esse cão, ladra-me agora menos à porta. Nunca precisei de frequentar curandeiros da alma para saber como são vastos os campos do delírio. Agora vou sentar-me no jardim, estou cansado, setembro foi mês de venenosas claridades, mas esta noite, para minha alegria, a terra vai arder comigo. Até ao fim.

Eugénio de Andrade, in 'Poesia e Prosa

Futuro

Nicolas Senegas

Con un cauce más bien desconocido
el futuro es un río de futuros
cada día que pasa es un quién sabe
donde lo venidero sigue oculto

en el futuro hay una pregunta
pendiente de recónditos ayeres
donde el filtro cabal de la consciencia
espera las respuestas de la gente

hay que hacer lo posible y lo imposible
para que la esperanza no se extinga
ella es la clave de cualquier mañana
y hay que cuidarla como un salvavidas

el futuro hace sombra en el aire
y tanbién hace luces en la tierra
lo esperamos fervientes y descalzos
con una expectativa sin cadenas

el futuro / suelto y deseoso
de que lo introduzcamos en un libro
y desde allí enseñarnos los secretos
para querer y para ser querido


Mario Benedetti

Um sopro de vida


Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranqüila. O beijo no rosto morto. Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura quea morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos. De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é. Hoje está um dia de nada. Hoje é zero hora. Existe por acaso um número que não é nada? que é menos que zero? que começa no que nunca começou porque sempre era? e era antes de sempre? Ligo-me a esta ausência vital e rejuvenesço-me todo, ao mesmo tempo contido e total. Redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final. Do zero ao infinito vou caminhando sem parar. Mas ao mesmo tempo tudo é tão fugaz. Eu sempre fui e imediatamente não era mais. O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma. Este livro é asombra de mim. Peço vênia para passar. Eu me sinto culpado quando nãovos obedeço. Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam. Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que oscegos se alegram. É que os infelizes se compensam. Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em vivero hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia. O aguilhão de abelha do dia florescentede hoje. Graças a Deus, tenho o que comer. O pão nosso de cada dia. Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? esgotaram-se os significados. Como surdos e mudos comunicamo-nos com as mãos. Eu queria que me dessem licença para eu escrever ao som harpejado e agreste a sucata da palavra. E prescindir de ser discursivo. Assim: poluição. Escrevo ou não escrevo? Saber desistir. Abandonar ou não abandonar — esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido em prosseguir jogando. Serei capaz deabandonar nobremente? ou sou daqueles que prosseguem teimosamente esperando que aconteça alguma coisa? como, digamos, o próprio fim do mundo? ou seja lá o que for, como a minha morte súbita, hipótese que tornaria supérflua a minha desistência? Eu não quero apostar corrida comigo mesmo. Um fato. O que é que se torna fato? Devo-me interessar pelo acontecimento? Será que desço tanto a ponto de encher as páginas com informações sobre os "fatos"? Devo imaginar uma história ou dou largas à inspiração caótica? Tanta falsa inspiração. E quando vem a verdadeira e eu não tomo conhecimento dela? Será horrível demais querer se aproximar dentro de si mesmo do límpido eu? Sim, e é quando o eu passa a não existir mais, a não reivindicar nada, passa a fazer parte da árvore da vida — é por isso que luto por alcançar. Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente.Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto — e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras — quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo. Meditação leve e terna sobre o nada. Escrevo quase que totalmente liberto de meu corpo. É como se este estivesse em levitação. Meu espírito está vazio por causa de tanta felicidade. Estou tendo uma liberdade íntima que só se compara a um cavalgar sem destino pelos campos afora. Estou livre de destino. Será o meu destino alcançar a liberdade? não há uma ruga no meu espírito que se espraia em leves espumas. Não estou mais acossado. Isto é a graça. Estou ouvindo música. Debussy usa as espumas do mar morrendo na areia, refluindo e fluindo. Bach é matemático. Mozart é o divino impessoal. Chopin conta a sua vida mais íntima. Schoenberg, através de seu eu, atinge o clássico eu de todo o mundo. Beethoven é a emulsão humana em tempestade procurando o divino e só o alcançando na morte.Quanto a mim, que não peço música, só chego ao limiar da palavra nova. Sem coragem de expô-la. Meu vocabulário é triste e às vezes wagneriano-polifônico-paranóico. Escrevo muito simples e muito nu. Por isso fere. Souuma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me na fonte seca e na luz fria.

Clarice Lispector, Um sopro de vida