quinta-feira, 25 de abril de 2024


 Devagar, o tempo transforma tudo em tempo.

O ódio transforma-se em tempo.

O amor transforma-se em tempo.

A dor transforma-se em tempo.

Os assuntos que julgamos mais profundos, mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, transformam-se, devagar, em tempo.


-José Luís Peixoto

quarta-feira, 24 de abril de 2024


 Morda a mão que te alimenta

Morda a mão que te faz sangrar

Olhem bem dentro de meus olhos

Há um corte em sua garganta


Magaiver Welington

#art: yung cheng lin


 “Não gosto de dar confiança para a razão,

ela diminui a poesia.”


Manoel de Barros

 


Qual a missão da Filosofia? Segundo o filósofo e matemático inglês Bertrand Russell, “a filosofia não é capaz de determinar por si mesma as finalidades da vida, mas pode libertar-nos da tirania do preconceito e das deformações causadas por uma visão estreita. Amor, beleza, conhecimento e alegria de viver: estas coisas mantêm seu brilho, a despeito da extensão de nossa competência. E se a filosofia nos ajudar a sentir o valor de tais coisas, ela terá desempenhado sua missão na obra coletiva do homem, que é trazer luz a um mundo de trevas.”

Bertrand Russell, In An Outline of Philosophy

 




“Por que será que a vida parece melhor e mais bonita de manhã quando há sol, vento fresco, céu azul? E esta gente que acordou inda agorinha, que se debruça à janela, que canta, sorri, e cumprimenta os que passam?..”

— Erico Verissimo, no livro “Clarissa”.

As três palavras mais estranhas


Quando pronuncio a palavra Futuro,

a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,

suprimo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,

crio algo que não cabe em nenhum não ser.


SZYMBORSKA, Wisława. “Instante”. In:_____. Poemas.


 Meu coração tem mil anos

eu não sou como as outras pessoas.


Eu morreria em seus piqueniques

sufocado por suas bandeiras

espancado por suas canções

não amado por seus soldados

chifrado por seu senso de humor

assassinado por sua preocupação.


Não sou como

outras pessoas.

ardo

no inferno.


O inferno que

eu mesmo sou.


Charles Bukowski - Do poema deslocado


#art: Christian Schloe


 A melancolia se torna mais pura quando o amor a envolve e a alimenta. Dessa associação nasce uma palpitação agradável e suave, uma graça da solidão, um pressentimento voluptuoso do ilimitado. Não lamentamos então não ser uma fonte de lágrimas com uma inesgotável abundância de gotas transparentes que refletissem o mundo com seu esplendor mais encantador do que a mais divina das ilusões e mais arrebatador do que os mais doces sonhos? Não sofremos durante o consolador desfalecimento da melancolia pela impossibilidade de nos dissolver em lágrimas?

Só no amor a melancolia alcança seus próprios cumes, já que só o Eros transfigura a melancolia. A passividade, o prazer, o abandono, a palpitação imaterial purificam a melancolia em tal medida que o estado melancólico puro se torna por si mesmo extremamente fecundo, sem contudo ser criador. Somente quando uma exagerada paixão, uma tensão extrema, de um entusiasmo conquistador, perturba a suavidade e a pureza da melancolia, só então esta se torna criadora. Nos grandes criadores musicais, a melancolia foi sempre sacudida por um vivo ardor, por um apaixonado arrebatamento e por uma intensa energia. Então o infinito da melancolia se torna uma poderosa vibração; as aspirações vagas, impulsos determinados; os pressentimentos, raios; as lágrimas, tempestades; a palpitação imaterial, vontade de realização; o suave pairar acima do mundo, a realização efetiva no mundo; e o prazer, explosão. Não há disposição mais criadora do que a melancólica, quando se vê perturbada por um princípio de antinomia. A sede de mundos infinitos se torna desejo de criar mundos infinitos, e a aspiração a fundir-se na fluidez do infinito, afirmação dramática no infinito. Uma consciência demiúrgica converte o difuso da melancolia em tensões e raios, e de suas ilusões sedutoras alimenta suas trêmulas labaredas com muitas ondulações. A passagem para o plano demiúrgico faz de nossos devaneios projetos vitais; e dos pesares, impulsos irresistíveis. O fluxo da criação é uma onda de impureza e de drama; o refluxo, em um cansaço agradável, é como um retorno a purezas perdidas. Se, pela criação, tivéssemos que renunciar para sempre às delícias da melancolia pura, quantos não renunciariam antes à criação?


Emil Cioran (In: “O Livro das Ilusões”)

 


Sempre achei as quartas-feiras peculiares: dia neutro em que a preguiça da segunda já se dissipou e em que temos a impressão de que a terça-feira foi engolida.

Elas ficam bem no meio dos dias úteis, não são o prefácio do fim de semana como as quintas nem vestem a euforia das sextas, mas são alegres de futebol e gente passional nas ruas.

São elas que geralmente guardam as chegadas das frentes frias ou do estio: pelo clima da quarta, a gente calcula se no sábado estará na praia ou verá um filme debaixo do edredom.

Não se chora nas manhãs de quarta, não se abandona ninguém, não se é abandonado.

Elas são feitas de espera e rotina. São dias sem data. São como uma ponte em que se atravessa a semana de um início para o outro…


Marla de Queiroz


 Don’t worry about saving these songs!

And if one of our instruments breaks,

it doesn’t matter.


We have fallen into the place

where everything is music.


The strumming and the flute notes

rise into the atmosphere,

and even if the whole world’s harp

should burn up, there will still be

hidden instruments playing.


So the candle flickers and goes out.

We have a piece of flint, and a spark.


This singing art is sea foam.

The graceful movements come from a pearl

somewhere on the ocean floor.


Poems reach up like spindrift and the edge

of driftwood along the beach, wanting!


They derive

from a slow and powerful root

that we can’t see.


Stop the words now.

Open the window in the center of your chest,

and let the spirits fly in and out.


Rumi | “Where Everything is Music”

domingo, 14 de abril de 2024


 Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos


E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.


Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto,

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.


“O Guardador de Rebanhos”. 

In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa.

 


A minha alma partiu-se como um vaso vazio.

Caiu pela escada excessivamente abaixo.

Caiu das mãos da criada descuidada.

Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.


Asneira? Impossível? Sei lá!

Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.

Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.

Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.

E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.


Não se zanguem com ela.

São tolerantes com ela.

O que era eu um vaso vazio?


Olham os cacos absurdamente conscientes,

Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.


Olham e sorriem.

Sorriem tolerantes à criada involuntária.


Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.

Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.

A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?

Um caco.

E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.


Álvaro de Campos, 1929

(heterônimo de Fernando Pessoa)


#art: shattered venus - ► © Patrick Kramer •

 


Invejo — mas não sei se invejo — aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer. Que há (de alguém) confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de

sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações.

Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)

O livro do desassossego

#painting: fabian perez

 


Pai, não fale as palavras da religião! Fale só as palavras da poesia!” E assim foi. Foram textos do Cântico dos Cânticos, poema erótico da Bíblia, que deixa ruborizadas as faces dos beatos e beatas. Divirto-me pensando na cara que fariam Papa e bispos se lessem esses textos… Seguiram-se textos do Drummond, do Vinícius, da Adélia – tudo terminando não com a chatíssima Marcha Nupcial, mas com a Valsinha, do Chico, ocasião em que os convidados, moços e velhos, pegaram os seus pares e trataram de dançar. Foi bonito. Quando a coisa é bonita a gente acredita fácil.

Rubem Alves

 


Quando Espinoza diz: o surpreendente é o corpo… ainda não sabemos o que pode um corpo… ele não quer fazer do corpo um modelo, e da alma, uma simples dependência do corpo. Sua empreitada é mais sutil. Ele quer abater a pseudo-superioridade da alma sobre o corpo. Há a alma e o corpo, e ambos exprimem uma única e mesma coisa: um atributo do corpo é também um expresso da alma (por exemplo, a velocidade). Do mesmo modo que você não sabe o que pode um corpo, há muitas coisas no corpo que você não conhece, que vão além de seu conhecimento, há na alma muitas coisas que vão além de sua consciência. A questão é a seguinte: o que pode um corpo? De que afetos você é capaz? Experimente, mas é preciso muita prudência para experimentar. Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes. A tristeza, os afetos tristes são todos aqueles que diminuem nossa potência de agir. Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o padre, os tomadores de almas, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e pesada. Os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar, ou, como diz Virilio, de administrar e organizar nossos pequenos terrores íntimos. A longa lamentação universal sobre a vida: a falta-de-ser que é a vida…

Por mais que se diga “dancemos”, não se fica alegre. Por mais que se diga “que infelicidade a morte”, teria sido preciso viver para ter alguma coisa a perder. Os doentes, tanto da alma quanto do corpo, não nos largarão, vampiros, enquanto não nos tiverem comunicado sua neurose e sua angústia, sua castração bem-amada, o ressentimento contra a vida, o imundo contágio. Tudo é caso de sangue. Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou envolvem um máximo de afirmação. Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência. O célebre primeiro princípio de Espinoza (uma única substância para todos os atributos) depende desse agenciamento, e não o inverso. Há um agenciamento- Espinoza: alma e corpo, relações, encontros, poder de ser afetado, afetos que preenchem esse poder, tristeza e alegria que qualificam esses afetos. A filosofia torna-se aqui a arte de um funcionamento, de um agenciamento. Espinoza, o homem dos encontros e do devir, o filósofo do carrapato, Espinoza, o imperceptível, sempre no meio, sempre em fuga, mesmo se não se move muito, fuga em relação à comunidade judia, fuga em relação aos Poderes, fuga em relação aos doentes e aos venenosos. Ele próprio pode ser doente, e morrer; ele sabe que a morte não é o objetivo nem o fim, mas que se trata, ao contrário, de passar sua vida a outra pessoa.

(Gilles Deleuze, “Diálogos”)

#art: Cristopher Zhang

 


Onde está Deus, mesmo que não exista? Quero rezar e chorar, arrepender-me de crimes que não cometi, gozar ser perdoado como uma carícia não propriamente materna.

Um regaço para chorar, mas um regaço enorme, sem forma, espaçoso como uma noite de Verão, e contudo próximo, quente, feminino, ao pé de uma lareira qualquer… Poder ali chorar coisas impensáveis, falências que nem sei quais são, ternuras de coisas inexistentes, e grandes dúvidas arrepiadas de não sei que futuro…

Uma infância nova, uma ama velha outra vez, e um leito pequeno onde acabe por dormir, entre contos que embalam, mal ouvidos, com uma atenção que se torna morna, os perigos que penetravam em jovens cabelos louros como o trigo… E tudo isto muito grande, muito eterno, definitivo para sempre, da estatura única de Deus, lá no fundo triste e sonolento da realidade última das coisas…

Um colo ou um berço ou um braço quente em torno ao meu pescoço… Uma voz que canta baixo e parece querer fazer-me chorar… O ruído de lume na lareira… Um calor no Inverno… Um extravio morno da minha consciência… E depois sem som, um sonho calmo num espaço enorme, como a lua rodando entre estrelas…

Quando ponho de parte os meus artifícios e arrumo a um canto, com um cuidado cheio de carinho — com vontade de lhes dar beijos — os meus brinquedos, as palavras, as imagens, as frases — fico tão pequeno e inofensivo, tão só num quarto tão grande e tão triste, tão profundamente triste! …

Afinal eu quem sou, quando não brinco? Um pobre órfão abandonado nas ruas das sensações, tiritando de frio às esquinas da Realidade, tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da Fantasia. De um pai sei o nome; disseram -me que se chamava Deus, mas o nome não me dá ideia de nada. Às vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e choro, e faço-me uma ideia dele a quem possa amar… Mas depois penso que o não conheço, que talvez ele não seja assim, que talvez não seja nunca esse o pai da minha alma…

Quando acabará isto tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto as mãos da noite por entre os meus farrapos? Se um dia Deus me viesse buscar e me levasse para sua casa e me desse calor e afeição… Às vezes penso isto e choro com alegria a pensar que o posso pensar… Mas o vento arrasta-se pela rua fora e as folhas caem no passeio… Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum… E de tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, que nenhum Amor quis para seu filho adoptivo, nem nenhuma Amizade para seu companheiro de brinquedos.

Tenho frio de mais. Estou tão cansado no meu abandono. Vai buscar, O Vento, a minha Mãe. Leva-me na Noite para a casa que não conheci… Torna a dar-me ó Silêncio imenso, a minha ama e o meu berço e a minha canção com que dormia…


Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa.


 «Em literatura, não admito sistema, não sigo escola, não desfraldo bandeiras: entreter e magnetizar, estas são minhas únicas regras.

Quando alguém nos pergunta que livros mais nos marcaram, ou quais os nossos escritores preferidos, quase nunca o faz por curiosidade desinteressada ou simples abordagem amigável. Trata-se, isto sim, de um desafio para o duelo intelectual. Em geral, aqueles que vivem o meio literário mais de perto — escritores, tradutores, críticos, editores, jornalistas, professores etc. —, ao ouvirem uma dessas perguntas fatídicas, sentem-se logo obrigados a responder com nomes de prestígio indiscutível no cânone do momento. E quanto mais árdua para o leitor comum for a legibilidade dessas obras e desses autores, quanto mais deprimido for o clima neles predominante, quanto mais ideologicamente bem-vistos, melhor. A minoria daqueles um pouco mais despreocupados com sua imagem, ou com independência de julgamento um pouco maior, procurará nomes capazes de conciliar prestígio junto aos especialistas e a adesão pessoal efetiva, decorrente de uma leitura realmente mobilizadora.

Mas se você ouvir alguém, num rasgo de coragem quase suicida, afirmando ter sido marcado por um livro que os cânones rotulam de menor, ou incluindo entre seus escritores preferidos um autor considerado de segundo ou terceiro time pelos especialistas, agarre-se a essa pessoa como se fosse um tesouro, um interlocutor precioso.

Isso porque a verdadeira abertura para a arte da escrita, e para qualquer forma de arte, não aceita os filtros acadêmicos, as imposições canônicas ou as patrulhas ideológicas. O leitor realmente livre reage única e exclusivamente ao seu intransferível contato com o texto. Só ele, portanto, é capaz de construir um cânone próprio, em que as hierarquias são estabelecidas por sua própria subjetividade.»


O Conde de Monte Cristo. — Ensaio: A grande ficção e o bom gosto —


 [Renúncia é libertação. Não querer é poder.]


"(…)autodefesa. não ver, não ouvir, não deixar muita coisa se aproximar – primeira mostra de inteligência, primeira prova do fato de que a gente não é um acaso, mas sim uma necessidade.


uma outra mostra de inteligência e autodefesa consiste em reagir tão raramente quanto possível e em evitar lugares e condições nas quais se estaria condenado a suspender de imediato sua “liberdade”, sua iniciativa, para se tornar um simples reagente.


ordem hierárquica dos recursos: distância; a arte de separar sem tornar inimigo; não misturar nada, não “reconciliar” nada; uma multiplicidade monstruosa, que mesmo assim é o contrário do caos."


Friedrich Nietzsche

sábado, 13 de abril de 2024

 


" A potência do falso é o tempo, não porque os conteúdos do tempo sejam variáveis, mas porque a forma do tempo como devir põe em questão todo modelo formal de verdade."

Gilles Deleuze


 "A Filosofia se interessa por aquele instante em que o mundo das coisas (a Natureza) e o mundo dos humanos (a sociedade) tornam-se problemáticos, estranhos, incompreensíveis e enigmáticos e sobre os quais as opiniões disponíveis já não nos podem satisfazer. Ela se volta preferencialmente para os momentos de crise no pensamento, na linguagem e na ação, pois esses momentos críticos tornam manifesta a necessidade de fundamentação das ideias, dos discursos, dos valores, dos comportamentos e das ações.”

Marilena Chaui, Boas-vindas à Filosofia


 A literatura, que é a arte casada com o pensamento e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.

**_Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. _**Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.

Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos.

O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.

Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

[27] - Livro do Desassossego

 


amiga, tu não cabes num poema. esse dou a quem manda meu orgulho. ali os versos são medidos, são de propósito, mas tu me dás o verso inesperado. assim me apraz, assim eu gosto. me conversas, te converso, dizes coisas tuas e me levas coisas minhas, assim, sem que um peça, sem que o outro se obrigue.

se a esse porto nos foi fácil a atracação, dizer que não é escusado, porque sabes que não. muitas vagas e tormentas, vírgulas e reticências, pontos de interrogação —areia, pedra e cimento—, fizeram esse, teu e meu, nosso momento, onde um —capricho do acaso, sabe do outro.

se nesse porto faz-se aconchegante o cais, dizer que sim é redundante, porque sabes que sim. risos recortando papos sérios, e aquela saudade de ouvir quando há pouco já ouvidos mutuamente —areia, pedra e cimento—, fazem esse, teu e meu, nosso momento, onde um —não por acaso, cuida do outro.

mas dizia que não cabes num poema. não porque os faço com compasso, tiro o prumo, ponho esquadro e tudo mais. não.

porque és sublime.

e porque és sublime, dou-te as mãos que escrevem os poemas. os olhos que os leem. os ouvidos que ouvem os poemas ainda no devir. dou-te o cheiro dos poemas. e os lábios que os dizem.


Antoniel Campos


 Nas épocas de cultura tosca e primordial o homem acreditava conhecer no sonho um segundo mundo real; eis a origem de toda metafísica. Sem o sonho, não teríamos achado motivo para uma divisão do mundo. Também a decomposição em corpo e alma se relaciona à antiquíssima concepção do sonho, e igualmente a suposição de um simulacro corporal da alma, portanto a origem de toda crença nos espíritos e também, provavelmente, da crença nos deuses: “Os mortos continuam vivendo, porque aparecem em sonho aos vivos”: assim se raciocinava outrora, durante muitos milênios.


— Friedrich Nietzsche, in Humano, Demasiado Humano, aforismo 05.

 


Nada passa, nada expira

O passado é

um rio que dorme

e a memória uma mentira

Multiforme

Dormem do rio as águas

e em meu regaço dormem os dias

dormem

dormem mágoas

as agonias,

dormem.

Nada passa, nada expira

O passado é

um rio adormecido

parece morto, mal respira

acorda-o e saltará

num alarido.


José Eduardo Agualusa, em “O Vendedor de Passados”

 


Será mesmo verdade que quando te fotografam te roubam pouco a pouco a alma até não ficar alma alguma mas só o corpo todo virado do avesso, suspenso no nada? Não parece que assim seja. Os olhos começam a ficar tristes. É por aí que tudo começa. O riso começa a ser o de uma pessoa que sente que é o riso de outra que se ri. A própria voz sofre ligeiras alterações que permitem uma maior distância, como num exercício de esgrima num último ataque. E o tempo nunca mais acaba de passar, enquanto minuto a minuto todos os relógios avançam. É disto que se trata.

Pedro Paixão


#art: MARCOS GUINOZA

 


Ó espíritos errantes sobre a terra! Ó velas enfunadas sobre os mares!.. Vós bem sabeis quanto sois efêmeros… — passageiros que vos absorveis no espaço escuro, ou no escuro esquecimento.

E quando — comediantes do infinito — vos obumbrais nos bastidores do abismo, o que resta de vós?

— Uma esteira de espumas… — flores perdidas na vasta indiferença do oceano. — Um punhado de versos… — espumas flutuantes no dorso fero da vida!..

E o que são na verdade estes meus cantos?..

Como as espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos da musa — este sopro do alto; do coração — este pélago da alma.

E como as espumas são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles por vezes rebentaram ao estalar fatídico do látego da desgraça.

E como também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas, rutilantes do arco-íris, eles por acaso refletiram o prisma fantástico da ventura ou do entusiasmo — estes signos brilhantes da aliança de Deus com a juventude!

Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima saudosa do marujo… possam eles, ó meus amigos! — efêmeros filhos de minh’alma — levar uma lembrança de mim às vossas plagas!

Castro Alves, Espumas Flutuantes


 É bom quando nossa consciência sofre grandes ferimentos, pois isso a torna mais sensível a cada estímulo. Penso que devemos ler apenas livros que nos ferem, que nos afligem. Se o livro que estamos lendo não nos desperta como um soco no crânio, por que perder tempo lendo-o? Para que ele nos torne felizes, como você diz? Oh Deus, nós seríamos felizes do mesmo modo se esses livros não existissem. Livros que nos fazem felizes poderíamos escrever nós mesmos num piscar de olhos. Precisamos de livros que nos atinjam como a mais dolorosa desventura, que nos assolem profundamente – como a morte de alguém que amávamos mais do que a nós mesmos –, que nos façam sentir que fomos banidos para o ermo, para longe de qualquer presença humana – como um suicídio. Um livro deve ser um machado para o mar congelado que há dentro de nós.


Franz Kafka


 Perguntem, tentarei esclarecer-vos:

o que é ver com os olhos,

para que me bate o coração

e porque meu corpo não cria raízes.

Mas como responder às perguntas não colocadas,

ainda por cima, sendo eu para vocês assim,

tão ninguém.

Moitas, pinhais, prados e juncais,

tudo o que vos digo é um monólogo,

mas não são vocês que o ouvem.

Uma conversa com vocês é imprescindível e impossível.

Urgente nesta vida apressada

e adiada para nunca.


Wislawa Szymborska

O direito ao delírio


Que tal começarmos a exercer

O direito de sonhar?

Que tal se delirarmos um pouquinho?

No próximo milênio, o ar estará limpo

de todo veneno

O televisor deixará de ser

o membro mais importante da família

As pessoas trabalharão para viver,

em vez de viver para trabalhar.

Os economistas não chamarão

nível de vida o nível de consumo,

nem chamarão qualidade de vida

a quantidade de coisas.

Ninguém será considerado herói

ou tolo só porque faz aquilo que

acredita ser justo, em vez de fazer

aquilo que mais lhe convém.

A comida não será uma mercadoria,

nem a comunicação um negócio,

porque comida e comunicação

são direitos humanos.

A educação não será um privilégio

apenas de quem possa pagá-la.

A polícia não será a maldição daqueles

que não podem comprá-la.

A justiça e a liberdade,

irmãs siamesas

condenadas a viverem separadas,

voltarão a juntar-se, bem unidas

ombro com ombro.

E os desertos do mundo e os desertos

da alma serão reflorestados.


Eduardo Galeano

#art: paint-the-future-by-andrew-judd

 


A filosofia é uma estrada que percorre os pontos mais elevados dos Alpes; para chegar até lá, é preciso galgar uma senda abrupta, que atravessa rochas pontiagudas e espinhaços poderosos; é um caminho solitário que se torna cada vez mais desolado à medida em que nos aproximamos do cume; quem o segue, não deve temer o assombro, mas deixá-lo inteiramente atrás de si, enquanto abre seu próprio caminho com perseverança através da fria neve. Com frequência o filósofo se depara subitamente diante um abismo hiante e, descendo ao longo dele, consegue dirigir o olhar até o vale verde que se estende muito além, lá embaixo nas planuras. Sofre então uma terrível sensação de vertigem; mas precisa superá-la, mesmo que para isso tenha de fixar as solas de seus pés sobre as rochas com o adesivo de seu próprio sangue. Passado esse momento, verá que todo o mundo se encontra abaixo de si, perceberá como desaparecem todas as terras pantanosas e a multidão dos desertos de areia, como se afastam todas as irregularidades, como todas as discordâncias ficam contidas no conjunto e não sobem até ele e é então que percebe realmente como o mundo é redondo. Enquanto isso, ele permanece sempre no ar puro e frio das alturas e pode contemplar o Sol, enquanto o mundo inferior domina ainda a negra escuridão da noite.


— Arthur Schopenhauer, in “Primeiros Manuscritos”.


 Retiro-me do verso

Retiro-me.

Retiro.

Estou em outro verso

Reverso da estória.

Retiro-me da página

Entro na imagem.

Retiro de meus dias

O suor do poema

A acidez da imagem.


CASA NOVA, Vera. “Retiro-me do verso”.

 


Um fotógrafo-artista me disse uma vez: veja que um pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar. Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes. Que um osso é mais importante para o cachorro do que uma pedra de diamante. E um dente de macaco da era terciária é mais importante para os arqueólogos do que a Torre Eifel. (Veja que só um dente de macaco!) Que uma boneca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que o Empire State Building. Que o canto das águas e das rãs nas pedras é mais importante para os músicos do que os ruídos dos motores da Fórmula 1. Há um desagero em mim de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito do olho ou da razão. Se é defeito da alma ou do corpo. Se fizerem algum exame mental em mim por tais julgamentos, vão encontrar que eu gosto mais de conversar sobre restos de comida com as moscas do que com homens doutos.


Manoel de Barros, Sobre importâncias

#photo: Griskalia Christine

Amor líiquido

 “Amor líquido é um amor até segundo aviso, o amor a partir do padrão dos bens de consumo: mantenha-o enquanto ele te trouxer satisfação, e o substitua por outros que prometem ainda mais satisfação. É o amor com um espectro de eliminação imediata e, assim, também de ansiedade permanente, pairando acima dele. Na sua forma “líquida”, o amor tenta substituir a qualidade por quantidade — mas isso nunca pode ser feito, como seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam percebendo.”


Zygmunt Bauman, in “Amor Líquido”: Sobre a Fragilidade Dos Laços Humanos

(…) O mundo que chamo de “líquido” porque, como todos os líquidos, ele jamais se imobiliza nem conserva sua forma por muito tempo. Tudo ou quase tudo em nosso mundo está sempre em mudança: as modas que seguimos e os objetos que despertam nossa atenção (uma atenção, aliás, em constante mudança de foco, que hoje se afasta das coisas e dos acontecimentos que nos atraíam ontem, que amanhã se distanciará das coisas e acontecimentos que nos instigam hoje); as coisas que sonhamos e que tememos, aquelas que desejamos e odiamos, as que nos enchem de esperanças e as que nos enchem de aflição. As circunstâncias que nos cercam – com as quais ganhamos nosso sustento e tentamos planejar o futuro, aquelas pelas quais nos ligamos a algumas pessoas e nos desligamos (ou somos desligados) de outras – também estão sempre mudando. Oportunidades de alegria e ameaças de novos sofrimentos fluem ou flutuam no ar, vêm, voltam e mudam de lugar; na maioria das vezes, fazem isso com tamanha rapidez e agilidade que não conseguimos tomar uma providência sensata e eficaz para direcioná-las ou redirecioná-las, para conservá-las ou interceptá-las.


Zygmunt Bauman, in “44 Cartas do Mundo Líquido Moderno” (Editora Zahar, 2010)

#art: Walter shinji - Pastel Drawing.

 


As coisas não existem.

O que existe é a ideia

melancólica e suave

que fazemos das coisas.


A mesa é feita de amor

e de submissão.

No entanto

Ninguém a vê

como eu a vejo.

Para os homens

é feita de madeira

e coberta de tinta.

Para mim também

mas a madeira

somente lhe protege o interior

e o interior é humano.


Os livros são criaturas

Cada página um ano de vida,

cada leitura um pouco de alegria

e esta alegria

é igual ao consolo dos homens

quando permanecem inquietos

em resposta às suas inquietudes.


As coisas não existem

A ideia, sim.


A ideia é infinita

igual ao sonho das crianças.


Hilda Hilst, in “Balada de Alzira”

Sensibilidade




Meu coração

É um quarto de espelhos,

Que reflete e multiplica

Infinitamente,

Uma impressão.


É como o eco

Dos longos corredores desertos,

Que repete e amplifica,

Misteriosamente,

Uma palavra.


É como um frasco de perfume raro

Que guardou,

Para sempre,

Um leve aroma da essência que encerrou.


Helena Kolody

#art #painting Francine-Van-Hove


 Aquela divina e ilustre timidez que é o guarda dos tesouros e dos regalia da alma.

Ah, mas como eu desejaria lançar ao menos numa alma alguma coisa de veneno, de desassossego e de inquietação. Isso consolar-me-ia um pouco da nulidade de ação em que vivo. Perverter seria o fim da minha vida.

Mas vibra alguma alma com as minhas palavras? Ouve-as alguém que não só eu?


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

O livro do desassossego [65]


#art Nuri Duzan

Possibilidades

 


Prefiro cinema.

Prefiro os gatos.

Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.

Prefiro Dickens a Dostoiévski.

Prefiro-me gostando dos homens

em vez de estar amando a humanidade.

Prefiro ter uma agulha preparada com a linha.

Prefiro a cor verde.

Prefiro não afirmar

que a razão é culpada de tudo.

Prefiro as exceções.

Prefiro sair mais cedo.

Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa.

Prefiro as velhas ilustrações listradas.

Prefiro o ridículo de escrever poemas

ao ridículo de não escrever.

No amor prefiro os aniversários não redondos

para serem comemorados cada dia.

Prefiro os moralistas,

que não prometem nada.

Prefiro a bondade esperta à bondade ingénua demais.

Prefiro a terra à paisana.

Prefiro os países conquistados aos países conquistadores.

Prefiro ter abjecções.

Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.

Prefiro contos de fada de Grimm às manchetes de jornais.

Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.

Prefiro os cães com o rabo não cortado.

Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.

Prefiro as gavetas.

Prefiro muitas coisas que aqui não disse,

e outras tantas não mencionadas aqui.

Prefiro os zeros à solta

a tê-los numa fila junto ao algarismo.

Prefiro o tempo do inseto ao tempo das estrelas.

Prefiro isolar.

Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.

Prefiro levar em consideração até a possibilidade

do ser ter a sua razão.


#art by Andrea Kiss

 


Os que têm medo sonham. Porque tenho medo da cidade grande onde me perco eu sonho com cidade grande que posso amar. É uma utopia. Não existe. Mas não tem importância. Valéry perguntou: “Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?” O que não existe socorre. Oscar Wilde, que sabia do socorro das coisas que não existem, escreveu: “Um mapa do mundo que não inclua o país da Utopia não merece nem mesmo um olhar, pois ignora o único país ao qual a Humanidade constantemente chega. E quando a Humanidade lá atraca, fica alerta, e levanta novamente as âncoras ao vislumbrar terra melhor…

Rubem Alves

#art #painting L’utopie - René Magritte

Natureza Íntima



Cansada de observar-se na corrente

Que os acontecimentos refletia,

Reconcentrando-se em si mesma, um dia,

A Natureza olhou-se interiormente!


Baldada introspecção! Noumenalmente

O que Ela, em realidade, ainda sentia

Era a mesma imortal monotonia

De sua face externa indiferente!


E a Natureza disse com desgosto:

"Terei somente, porventura, rosto?!

"Serei apenas mera crusta espessa?!


"Pois é possível que Eu, causa do Mundo,

"Quanto mais em mim mesma me aprofundo,

“Menos interiormente me conheça?!”

As palavras se movem, a música se move




Apenas no tempo; mas só o que vive

Pode morrer. As palavras, após a fala, alcançam

o silêncio. Apenas pelo modelo, pela forma,

As palavras ou a música podem alcançar

O repouso, como um vaso chinês que ainda se move

Perpetuamente em seu repouso.

Não o repouso do violino, enquanto a nota perdura,

Não apenas isto, mas a coexistência,

Ou seja, que o fim precede o princípio,

E que o fim e o princípio sempre estiveram lá

Antes do princípio e depois do fim.

E tudo é sempre agora. As palavras se distendem,

estalam e muita vez se quebram, sob a carga,

Sob a tensão, tropeçam, escorregam, perecem,

Apodrecem com a imprecisão, não querem manter-se no lugar,

Não querem ficar quietas. Vozes estridentes,

Irritadas, zombeteiras, ou apenas tagarelas,

Sem cessar as acuam. A Palavra no deserto

É mais atacada pelas vozes da tentação,

A sombra soluçante da funérea dança,

O clamoroso lamento da quimera inconsolada.


Words move, music moves

Only in time; but that which is only living

Can only die. Words, after speech, reach

Into the silence. Only by the form, the pattern,

Can words or music reach

The stillness, as a Chinese jar still

Moves perpetually in its stillness.

Not the stillness of the violin, while the note lasts,

Not that only, but the co-existence,

Or say that the end precedes the beginning,

And the end and the beginning were always there

Before the beginning and after the end.

And all is always now. Words strain,

Crack and sometimes break, under the burden,

Under the tension, slip, slide, perish,

Decay with imprecision, will not stay in place,

Will not stay still. Shrieking voices

Scolding, mocking, or merely chattering,

Always assail them. The Word in the desert

Is most attacked by voices of temptation,

The crying shadow in the funeral dance,

The loud lament of the disconsolate chimera.


T.S. Elliot, in: Burnt Norton

“Four Quartets”.


 No centro do seu corpo irrompe um precipício

de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.

Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.

Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.

Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.

Mas apenas em corpo e sussurros partidos.

Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,

leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,

três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.

O abismo não nos divide.

O abismo nos cerca.

.

Wislawa Szymborska

#art: illustration aykut aydogdu

 


Eu gosto é do inacabado

O imperfeito, o estragado que dançou

O que dançou…

Eu quero mais erosão

Menos granito

Namorar o zero e o não

Escrever tudo o que desprezo

E desprezar tudo o que acredito


(Lenine)


 nada

com um vidro na frente

já é alguma coisa

nada

com um vento batendo

já é alguma coisa

nada

com o tempo passando

já é alguma coisa

mas

não é nada


a água

da água

não se se para

não se segura

a água

a água

só seca


Arnaldo Antunes


 Dormir é pessoal. Dormir é um ato cheio de manias e restrições. Há o colchão de toda a vida, há o cobertor predileto, há o abajur especial da cabeceira.

O sono é regrado por simpatias inegociáveis, surgidas já na infância. São exigências para enganar a insônia e reproduzir o acolhimento da casa natal.

Tem gente que só dorme com a luz acesa. Tem gente que só dorme no escuro.

Tem gente que só dorme com frestas da persiana. Tem gente que só dorme com três travesseiros. Tem gente que só dorme abraçado ao travesseiro. Tem gente que só dorme com o travesseiro entre as pernas. Tem gente que só dorme destapado.

Tem gente que só dorme com o rosto debaixo do braço. Tem gente que só dorme de banho tomado. Tem gente que só dorme com meditação. Tem gente que só dorme com música. Tem gente que só dorme com ar-condicionado ligado. Tem gente que só dorme com televisão acesa. Tem gente que só dorme depois de ler. Tem gente que só dorme roncando. Tem gente que só dorme falando. Tem gente que só dorme em silêncio.

Tem gente que só dorme com remédio de nariz. Tem gente que só dorme com o despertador programado. Tem gente que só dorme com o seu gato. Tem gente que só dorme com o seu cachorro aos pés. Tem gente que só dorme de meias. Tem gente que só dorme no lado esquerdo. Tem gente que só dorme no lado direito. Tem gente que só dorme atravessado. Tem gente que só dorme com lençóis limpos. Tem gente que só dorme de portas fechadas. Tem gente que só dorme nu.

Tem gente que só dorme de pijama. Tem gente que só dorme no sofá. Tem gente que só dorme vendo filme. Tem gente que só dorme ao rezar. Tem gente que só dorme com celular do lado. Tem gente que só dorme após um copo de leite. Tem gente que só dorme após um cálice de vinho. Tem gente que só dorme acompanhado do urso de pelúcia. Tem gente que só dorme de bruços. Tem gente que só dorme quando o filho volta da universidade ou da festa.


Mia Couto


#art: Lord Frederic Leighton Cymon and Iphigenia

sexta-feira, 12 de abril de 2024


 “Apressa-te em viver bem e saiba que cada dia é por si só uma vida.” 

Sêneca

arte: Alex Russell Flint