quinta-feira, 30 de maio de 2013

Poema inacabado

Lauri Blank



Leio-te um poema inacabado 
Ficaram versos por escrever 

Um poema sobre poemas 
Sobre nós dois 
Sobre tudo o que foi partilhado 
Falta-lhe o que nunca fui capaz de te dizer.


José Gabriel Duarte

Morte e Vida Severina (Trecho)



Falam os vizinhos, amigos, pessoas que vieram com presentes, etc


—— De sua formosura 
já venho dizer: 
é um menino magro, 
de muito peso não é, 
mas tem o peso de homem, 
de obra de ventre de mulher. 

—— De sua formosura 
deixai-me que diga: 
é uma criança pálida, 
é uma criança franzina, 
mas tem a marca de homem, 
marca de humana oficina. 

—— Sua formosura 
deixai-me que cante: 
é um menino guenzo 
como todos os desses mangues, 
mas a máquina de homem 
já bate nele, incessante. 

—— Sua formosura 
eis aqui descrita: 
é uma criança pequena, 
enclenque e setemesinha, 
mas as mãos que criam coisas 
nas suas já se adivinha. 


—— De sua formosura 
deixai-me que diga: 
é belo como o coqueiro 
que vence a areia marinha. 

—— De sua formosura 
deixai-me que diga: 
belo como o avelós 
contra o Agreste de cinza. 

—— De sua formosura 
deixai-me que diga: 
belo como a palmatória 
na caatinga sem saliva. 

—— De sua formosura 
deixai-me que diga: 
é tão belo como um sim 
numa sala negativa. 


—— é tão belo como a soca 
que o canavial multiplica. 

—— Belo porque é uma porta 
abrindo-se em mais saídas. 

—— Belo como a última onda 
que o fim do mar sempre adia. 

—— é tão belo como as ondas 
em sua adição infinita. 


—— Belo porque tem do novo 
a surpresa e a alegria. 

—— Belo como a coisa nova 
na prateleira até então vazia. 

—— Como qualquer coisa nova 
inaugurando o seu dia. 

—— Ou como o caderno novo 
quando a gente o principia. 


—— E belo porque o novo 
todo o velho contagia. 

—— Belo porque corrompe 
com sangue novo a anemia. 

—— Infecciona a miséria 
com vida nova e sadia. 

—— Com oásis, o deserto, 
com ventos, a calmaria.


João Cabral de Melo Neto

O bairro da minha infância

maxcarlier



Não são as criaturas que morrem.
É o inverso:
só morrem as coisas.
As criaturas não morrem
porque a si mesmas se fazem.
E quem de si nasce
à eternidade se condena.
Uma poeira de túmulo
me sufoca o passado
sempre que visito o meu velho bairro.
A casa morreu
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde dormir.
Mas eis que,
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres risos
de meninos brincando.
Riem e soletram
as mesmas folias
com que já fui soberano
de castelos e quimeras.
Volto a tocar a parede fria
e sinto em mim o pulso
de quem para sempre vive.
A morte
é o impossível abraço da água.


Mia Couto



"I can never read all the books I want; I can never be all the people I want and live all the lives I want. I can never train myself in all the skills I want. And why do I want? I want to live and feel all the shades, tones and variations of mental and physical experience possible in life. And I am horribly limited.”


 Sylvia Plath

A rua

Eugene de  Blaas


Bem sei que, muitas vezes, 
O único remédio 
É adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem, 
A dívida, o divertimento, 
O pedido de emprego, ou a própria alegria. 
A esperança é também uma forma 
De continuo adiamento. 
Sei que é preciso prestigiar a esperança, 
Numa sala de espera. 
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas, 
Esperança sentada. 
Não abdicação diante da vida. 

A esperança 
Nunca é a forma burguesa, sentada e tranquila da espera. 
Nunca é figura de mulher 
Do quadro antigo. 
Sentada, dando milho aos pombos.


Cassiano Ricardo

Nada é impossível de mudar

Aguarela Morning mist, por Debbie Homewood


Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.


Bertolt Brecht

Vós que, Crentes



Vós que, crentes em Cristos e Marias,
Turvais da minha fonte as claras águas
Só para me dizerdes
Que há águas de outra espécie
Banhando prados com melhores horas
Dessas outras regiões pra que falar-me
Se estas águas e prados
São de aqui e me agradam?

Esta realidade os deuses deram
E para bem real a deram externa.
Que serão os meus sonhos
Mais que a obra dos deuses?

Deixai-me a Realidade do momento
E os meus deuses tranqüilos e imediatos
Que não moram no Vago
Mas nos campos e rios.

Deixai-me a vida ir-se pagãmente
Acompanhada pelas avenas tênues
Com que os juncos das margens
Se confessam de Pã.

Vivei nos vossos sonhos e deixai-me
O altar imortal onde é meu culto
E a visível presença
os meus próximos deuses.

Inúteis procos do melhor que a vida,
Deixai a vida aos crentes mais antigos
Que a Cristo e a sua cruz
E Maria chorando.

Ceres, dona dos campos, me console
E Apolo e Vênus, e Urano antigo
E os trovões, com o interesse
De irem da mão de Jove.


Ricardo Reis

ama uns, mas come outros...


terça-feira, 28 de maio de 2013

Eclosão diurna

 Kirsty Mitchell


Que segredos escondem os teus olhos
fechados? O sonho não faz parte da realidade em
que te encontras; e por isso a escondes quando
pensas na pura contradição de que falou o Rilke,
vendo nas pálpebras que se fecham a queda
das pétalas de uma rosa que o outono ameaça. Mas
se saíres da noite, e avançares na luz dourada
de um dia que nasce, o teu corpo confundir-se-á
com o da natureza que emerge da geada, e
os teus braços despojar-se-ão do musgo da treva
para se erguerem ao sol, e saudarem o vento
que a manhã desperta.


 Nuno Júdice 

Não sou o silêncio

Wlodzimierz Kuklinski 


não sou o silêncio
que quer dizer palavras
ou bater palmas
pras performances do acaso

sou um rio de palavras
peço um minuto de silêncios
pausas valsas calmas penadas
e um pouco de esquecimento

apenas um e eu posso deixar o espaço
e estrelar este teatro
que se chama tempo


Paulo Leminski

Canção pensativa

Jeremy Mann

Um toque da solidão, e um dedo 
severo me traz à realidade: não depender 
dos meus amores, não me enfeitar 
demais com sua graça, mas ver 
que cada um de nós é um coração sozinho. 

Cada um de nós perenemente 
é um espelho a se mirar, sabendo 
que mesmo se nesse leito frio e branco 
um outro amor quer derramar-se em nós, 
entre gélido cristal e alma ardente 
levanta-se paredes para sempre. 

(E para sempre 
a amante solidão nos chama e abraça.)


Lya Luft
In Secreta Mirada
gianni strino


Não sei distinguir no céu as várias constelações:
não sei os nomes de todos os peixes e flores,
nem dos rios nem das montanhas:
caminho por entre secretas coisas,
a cada lugar em que meus olhos pousam,
minha boca dirige uma pergunta.

Não sei o nome de todos os habitantes do mundo,
nem verei jamais todos os seus rostos,
embora sejam meus contemporâneos.

Não, não sei, na verdade, como são em corpo e alma
todos os meus amigos e parentes.
Não entendo todas as coisas que dizem,
não compreendo bem do que vivem, como vivem,
como pensam que estão vivendo.

Não me conheço completamente,
só nos espelhos me encontro,
tenho muita pena de mim.

Não penso todos os dias exatamente
do mesmo modo.
As mesmas coisas me parecem a cada instante diversas.
Amo e desamo, sofro e deixo de sofrer,
ao mesmo tempo, nas mesmas circunstâncias.

Aprendo e desaprendo,
esqueço e lembro,
meu Deus, que águas são estas onde vivo,
que ondulam em mim, dentro e fora de mim?

Se dizem meu nome, atendo por hábito.
Que nome é o meu?
Ignoro tudo.

Quando alguém diz que sabe alguma coisa,
fico perplexa:
ou estará enganado, ou é um farsante
- ou somente eu ignoro e me ignoro desta maneira?

E os homens combatem pelo que julgam saber.
E eu, que estudo tanto, 
inclino a cabeça sem ilusões,
e a minha ignorância enche-me de lágrimas as mãos.


Cecília Meireles

Reflexão sobre a reflexão

William Schneider


Terrível é o pensar.
Eu penso tanto
E me canso tanto com meu pensamento
Que às vezes penso em não pensar jamais.
Mas isto requer ser bem pensado
Pois se penso demais
Acabo despensando tudo que pensava antes
E se não penso
Fico pensando nisso o tempo todo.


Millôr Fernandes 

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Banhistas



Este poema de amor não é lamento
nem tristeza distante, nem saudade,
nem queixume traído nem o lento
perpassar da paixão ou pranto que há de

transformar-se em dorido pensamento,
em tortura querida ou em piedade
ou simplesmente em mito, doce invento,
e exaltada visão da adversidade.

É a memória ondulante da mais pura
e doce face (intérmina e tranquila)
da eterna bem-amada que eu procuro;

mas tão real, tão presente criatura
que é preciso não vê-la nem possuí-la
mas procura-la nesse vale obscuro.


Jorge de Lima

Eis o que cantando na primavera

Kate Powell Illustrations


Eis o que cantando na primavera eu colho para os amantes
(pois quem senão eu entenderia amantes e toda a sua mágoa e alegria?
e quem senão eu seria o poeta dos camaradas?),
colhendo atravesso o jardim do mundo, mas logo passo pelos portões,
ora à margem do lago, ora me adentrando um pouco, sem temer a umidade,
ora junto à cerca de mourões onde as pedras ali jogadas, provenientes dos campos, se acumularam
(flores silvestres e parras e ervas brotam em meio às pedras e as cobrem parcialmente, por tudo isso eu passo),
longe, longe na mata, ou perambulando tarde no verão, antes de me perguntar para onde vou,
solitário, sentindo o cheio da terra, parando aqui e ali no silêncio,
sozinho eu pensara: mas logo uma tropa se reúne ao meu redor,
alguns caminham ao meu lado e alguns atrás, e alguns me tomam pelo braço ou pelos ombros,
eles – os espíritos dos amigos queridos, mortos ou vivos – se ajuntam mais, uma grande multidão, e eu no meio,
colhendo, distribuindo, cantando, lá eu caminho ao lado deles,
pegando como lembrança uma coisinha aqui e ali, jogando para quem estiver perto,
aqui, um lírio, com um ramo de pinheiro,
aqui, do meu bolso, um pouco de musgo que retirei de um carvalho que se vergava para o solo na Flórida,
aqui, folhas de louro e cravina, um punhado de sálvia,
e aqui o que eu retiro da água, passeando à margem do lago,
(oh, foi aqui que eu vi por último aquele que me ama ternamente e que retorna para jamais se separar de mim,
e este, este será para sempre o sinal dos camaradas, esta raiz de cálamo será,
troquem-no uns com os outros, ó jovens, e nunca o devolvam!),
e galhinhos de bordo, e um monte de laranjeiras silvestres e castanhas,
e ramos de groselha e o cheiro das ameixas e o cedro aromático,
tudo isso eu, cercado por uma multidão de espíritos,
vagueando, aponto ou toco quando passo, ou jogo a esmo a partir de mim,
indicando para cada um o que ele terá, dando alguma coisa a cada um;
mas o que retirei da água à margem do lago, isso eu reservo
e o hei de dar, mas somente àqueles que amam como eu mesmo sou capaz de amar.


Walt Whitman

De Não Ser, Sendo Constantemente

Karol Bak


Não sou o mesmo de olhar vazio 
e palavra sem conseqüência usada. 
Andei pesando este medo 
em interrogações do que seria o poeta 
ante estruturas que o antecederam,
cercos de ferro, fechos de ferro, cercos.

No caminho de minha volta 
esqueci canções, dupliquei memórias, 
e aceito como verdade humana 
que o homem é um caminho ao homem, 
processo e pouso, caminhante e rota.


José Carlos Capinam
Nydia Lozano



Todas as coisas de que falo estão na cidade
entre o céu e a terra.
São todas elas coisas perecíveis
e eternas como o teu riso
a palavra solidária
minha mão aberta
ou este esquecido cheiro de cabelo
que volta
e acende sua flama inesperada
no coração de maio.

Todas as coisas de que falo são de carne
como o verão e o salário.
Mortalmente inseridas no tempo,
estão dispersas como o ar
no mercado, nas oficinas,
nas ruas, nos hotéis de viagem.

São coisas, todas elas,
cotidianas, como bocas
e mãos, sonhos, greves,
denúncias,
acidentes de trabalho e do amor. Coisas,
de que falam os jornais,
às vezes tão rudes
às vezes tão escuras
que mesmo a poesia as ilumina com dificuldade.

Mas é nelas que te vejo pulsando,
mundo novo,
ainda em estado de soluços e esperança.


Ferreira Gullar

Marguerite Duras, Olhos azuis cabelos pretos



Por várias vezes ela acordará desorientada, inquieta. O que  pergunta a cada noite é que casa é esta. Ele não responde à pergunta. Diz que é noite, antes do inverno, que ainda é outono.
Ela pergunta: O que é que se ouve?
Ele diz: O mar, ali, atrás da parede do quarto. E eu sou aquele que você encontrou uma noite deste verão no café à beira-mar. E depois aquele que deu dinheiro. Ela sabe, mas não se lembra bem por que está ali.
Olha para ele, diz: Você é aquele que estava desesperado. Você não acha que mal nos lembramos? Ele, de repente, também acha que mal se lembram, que quase não lembram. A propósito, desesperado por quê? Eles se surpreendem de repente a se entreolharem. E de repente a se verem. Vêem-se até a suspensão da palavra na página, até esse golpe nos olhos que fogem e que se fecham.
Ela quer ouvir como ele amava esse amante perdido. Ele responde: Além das forças, além da vida. Ela quer ouvir novamente. Ele torna a dizer. Ela volta a cobrir o rosto com a seda preta, ele se deita perto dela. Nem uma fração dos corpos se toca. A imobilidade é comum. Ela repete com a voz dele: Além das forças, além da vida.
Acontece brutalmente, com a mesma voz, a mesma lentidão. Ele diz:
— Ele me olhou. Percebeu minha presença atrás da janela do vestíbulo e olhou várias vezes para mim.
Ela está sentada sob a luz amarela. Com os olhos nele, escuta. Não sabe do que está falando, nada. Ele prossegue:
— Ele foi ao encontro de uma mulher, a mulher lhe fez um sinal com a mão, para segui-la. Foi então que vi que ele não queria deixar o vestíbulo. Ela o tomou pelo braço e o levou. Um homem nunca teria feito isso.
A voz mudou. A lentidão desapareceu. Não é mais o mesmo homem que fala. Ele grita, diz que não suporta que ela o olhe daquela maneira. Ela pára de olhá-lo. Ele grita, não quer que ela se deite, quer que fique de pé. Ela só sairá quando tiver ouvido a história.
Ele continua a história. Não vira o rosto da mulher com quem ele se encontrara, ela estava voltada para o jovem estrangeiro, ela, ela não sabia que alguém estava ali, olhando-os. Usava um vestido claro, sim, é isso, branco. Pergunta se ela está ouvindo. Ela está ouvindo, ele pode ficar tranqüilo.
Ele continua a história.
— Ela o chamou justamente porque ele me olhava com tanta insistência. Deve ter gritado para fazê-lo afastar-se de mim. De repente fomos separados. Os dois desapareceram pela porta do vestíbulo que dá para a praia.
Ele se esforça para não chorar. Chora. Diz:
— Fui procurá-lo na praia, não sabia mais o que fazia. Depois voltei ao parque. Esperei até o cair da noite. Fui embora quando apagaram as luzes do vestíbulo. Para aquele café à beira-mar. Nossas histórias geralmente são curtas, nunca experimentei algo assim. A imagem está aqui — ele mostra a cabeça, o coração —, fixa. Tranquei-me nesta casa com você para não esquecê-lo. Agora você sabe a verdade.
Ela diz: — É terrível essa história.
Ele fala da sua beleza. Com os olhos fechados ainda é capaz de ver a imagem em sua perfeição. Vê a luz vermelha do crepúsculo e os olhos terríveis de tão azuis àquela luz. Revê a tez branca dos amantes. Os cabelos pretos. Alguém gritara em um determinado momento, mas naquele instante, do grito, ele ainda não o vira. Não sabe se foi ele quem gritou. Nem mesmo tem certeza de que fora um homem que gritara. Estava ocupado olhando as pessoas reunidas no vestíbulo. E de repente houvera o grito. Não, pensando nisso, o grito não viera do vestíbulo e sim de muito mais longe, estava carregado de toda espécie de ecos, de passado, de desejo. Deve ter sido um estrangeiro quem gritou, um jovem, para se divertir e, talvez, assustar. Depois a mulher o levara. Ele esquadrinhara a cidade e a praia, não o encontrara, como se a mulher o tivesse levado para longe.
Ela torna a perguntar: Por que o dinheiro?
Ele responde: Para pagar. Para dispor do seu tempo como decidi. Para mandá-la embora quando quiser. E, de antemão, saber que obedecerá. Para ouvir minhas histórias, as inventadas e as verdadeiras.
Ela diz: Também para dormir sobre o sexo inerte.
Ela termina a frase do livro: E também chorar ali, às vezes.
Ele pergunta para que serve a seda preta. Ela responde:
— A seda preta, como o capuz preto, para enfiar a cabeça dos condenados à morte.
A audição da leitura do livro, diz o ator, deveria ser sempre igual. Quando a leitura se desse, entre os silêncios, os atores deveriam manter-se presos a ela, quase sem respirar, imobilizados nela, como se através da simplicidade das palavras, progressivamente, sempre houvesse algo mais a compreender.
Os atores olhariam para o homem da história, algumas vezes olhariam para o público. As vezes também olhariam para a mulher da história, mas nunca casualmente. Esse não-olhar dos atores para a mulher da história teria que ser percebido. Não se mostraria nada do que se passasse entre o homem e a mulher, nada seria representado. Então, a leitura do livro seria uma espécie de teatro da história.
Nenhuma emoção particular deveria ser marcada nessa ou naquela passagem da leitura. Nenhum gesto, também. Simplesmente, a emoção diante da revelação da palavra. Os homens estariam de branco. A mulher, nua. A ideia de que estaria vestida com a roupa preta foi abandonada.
Ela diz que faz parte das pessoas que caminham ao longo da praia à noite.
Ele esboça um leve movimento de recuo, como se duvidasse do que ela está dizendo. E depois diz que acredita nela. Pergunta: Além dessas caminhadas, desse amor, quem é ela? Além das caminhadas, além de sua presença no quarto, quem? Ela põe a seda preta no rosto. Diz: Sou escritora. Ele não sabe se ela está rindo. Não pergunta. Ficam calados, ouvem-se imersos na mesma distração. Perguntam sem esperar resposta. Falam sozinhos. Ele espera que ela fale. Gosta da voz dela, diz, nem sempre escuta quando falam, mas ela, sim, sempre ouve sua voz. Foi por causa de sua voz que pediu que ela viesse para o quarto.
Ela diz que, um dia, escreverá um livro sobre o quarto, acha que é um lugar como por equívoco, teoricamente inabitável, infernal, um palco fechado.
Ele diz que tirou os móveis, as cadeiras, a cama, os objetos de uso pessoal, porque desconfiava, não a conhecia, ela poderia ter roubado. Diz também que agora é o contrário, sempre tem medo de que ela vá embora enquanto está dormindo. Com ela trancada em sua companhia no quarto, não está inteiramente separado dele, do amante de olhos azuis cabelos pretos. Acha que é neste quarto, com esta iluminação de teatro, que precisa procurar o início desse amor, muito anterior a ela, desde os verões da infância vividos como uma punição. Não dá explicações.

Marguerite Duras, Olhos azuis cabelos pretos

Uma Após Uma

 SarahTrefny


Uma após uma as ondas apressadas
Enrolam o seu verde movimento
E chiam a alva 'spuma
No moreno das praias.
Uma após uma as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o 'spaço
Do ar entre as nuvens 'scassas.
Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De se esvair o tempo.
Só uma vaga pena inconseqüente
Pára um momento à porta da minha alma
E após fitar-me um pouco
Passa, a sorrir de nada.


Ricardo Reis

domingo, 26 de maio de 2013

A mulher

Antonio Sgarbossa 



Se é clara a luz desta vermelha margem 
é porque dela se ergue uma figura nua 
e o silêncio é recente e todavia antigo 
enquanto se penteia na sombra da folhagem. 
Que longe é ver tão perto o centro da frescura 

e as linhas calmas e as brisas sossegadas! 
O que ela pensa é só vagar, um ser só espaço 
que no umbigo principia e fulge em transparência. 
Numa deriva imóvel, o seu hálito é o tempo 
que em espiral circula ao ritmo da origem. 

Ela é a amante que concebe o ser no seu ouvido, na corola 
do vento. Osmose branca, embriaguez vertiginosa. 
O seu sorriso é a distância fluida, a subtileza do ar. 
Quase dorme no suave clamor e se dissipa 
e nasce do esquecimento como um sopro indivisível. 


António Ramos Rosa 

Sangrando




Quando eu soltar a minha voz
Por favor entenda
Que palavra por palavra
Eis aqui uma pessoa se entregando

Coração na boca
Peito aberto
Vou sangrando
São as lutas dessa nossa vida
Que eu estou cantando

Quando eu abrir minha garganta
Essa força tanta
Tudo que você ouvir
Esteja certa
Que estarei vivendo

Veja o brilho dos meus olhos
E o tremor nas minhas mãos
E o meu corpo tão suado
Transbordando toda a raça e emoção

E se eu chorar
E o sal molhar o meu sorriso
Não se espante, cante
Que o teu canto é a minha força
Pra cantar

Quando eu soltar a minha voz
Por favor, entenda
É apenas o meu jeito de viver
O que é amar...

Gonzaguinha

A. Broek


Não pode Amor por mais que as falas mude
exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção falar concede
é tão mesquinho o tom que o desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,
magoado parecer aos olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais excede
näo pode ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arreceio,
também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,
em verdade, em beleza, em doce enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde. 


António Gedeão

Círculos

Serge Marshennikov

Na vida na morte 
esta chama, esta fonte, 
esta noite invadida: 
seus panos na cama 
seus passos na casa 
sua voz ao meu lado, 
meu bem no seu mundo 
varando meu peito: 
me povoa, me coroa 
de beijos e mágoas 
me prende em sua rede, 
me define, me redime 
me inventa e desinventa 
me habita e transfigura, 
no ritmo das águas 
deste rio sem fundo 
que chama na fonte 
da morte, na vida.


Lya Luft
In Para não dizer adeus

Até o fim

MaXu


Nunca toque numa mulher por tédio. Nunca toque uma mulher por tocar. Nunca toque uma mulher para completar uma palavra ou ocupar um silêncio.

Nunca toque para apoiar os medos, cobrir mágoas, equilibrar a nudez.

Nunca toque uma mulher por vingança, por carência, por controle.


Não toque se não pode andar na imaginação, se não tem vontade de segurar sua mão enquanto arde, de emparedar a respiração com os olhos.

Não toque se não está disposto a sofrer, se não está disposto a curar o sofrimento.

Nunca toque uma mulher por imprecisa hospedagem, para breve visita das pálpebras.

Toque se quiser morar, se quiser naufragar pelas janelas, se quiser morrer de ansiedade.

Não toque se não deseja, se não assumiu a ponta dos lábios nos dedos.

Não acorde o corpo de uma mulher se não irá acalmá-lo depois. Não importune a mulher se não sonha em laminar o rosto em sua pele.

Não convoque os seios para despistá-los. Não prenda a cintura se não mergulhará no cheiro.

O toque é uma promessa. Não se esvazie na repetição.

Não toque se resta dúvida, não toque se vem desistindo da relação.

Não toque uma mulher por luxo, para experimentar uma fantasia, para justificar uma ideia.

Não toque uma mulher porque não tem nada a fazer, se pensava em outro lugar.

Não toque uma mulher por vaidade, para testá-la.

Não toque para apenas para se deleitar com o prazer do suspiro, pela glória de vê-la excitada.

Não toque uma mulher à toa, por brincadeira, por maldade.

Não desonre a suavidade com a falta de firmeza.

Não toque se não precisa, se não tem urgência. Até a preguiça tem urgência.

Não toque se não ficará mais tempo, se não pode conversar, se não há como gemer.

Não se sinta melhor do que o tato.

Não se aproxime se não busca deitar. Não deite se não busca acordar. Não mexa se não tem como enlouquecer.

Não finja que não chamou, não minta que não ouviu.

Não simule pergunta para fugir da resposta.

Não menospreze a frustração.

Não cumprimente se não abraçar, não abrace se não roçar.

Não toque numa mulher por obrigação, para mostrar virilidade. Não a incomode com os beijos se não pretender soprar os ouvidos.

Não desperte as contradições, os tremores, se não pretende seguir adiante.


Fabrício Carpinejar
Publicado no site Vida Breve
Coluna de quarta-feira

O pensamento nas pernas

Fabrizio R.


Sempre acreditei que, se eu quisesse transformar alguma coisa, teria antes que passar por uma racionalização profunda e, posteriormente, por uma compreensão dos fatos. Ou seja, primeiro, pensar bastante para, então, compreender.

Cumprindo essas duas etapas, atingiria a serenidade buscada, fosse nas questões amorosas, familiares, profissionais, existenciais. A compreensão, como num passe de mágica, soltaria os fios enovelados e só então eu poderia me modificar.

Acontece que pensar demais cansa. Afirmo com a experiência de uma maratonista cerebral: eu vivia sempre no módulo on, com o cérebro ligado na tomada, descansando só quando dormia, e ainda assim com um olho fechado e outro aberto. Se pensar conduzia à compreensão, bora pensar, para poder entender. Sem entender, acreditava que meu barco ficaria à deriva, noites e dias sob as intempéries, sem atracar em lugar algum.

Tanta coisa serve de cais: um casamento, uma promoção, uma cura, um projeto, uma bolada, um filho. Estamos sempre indo ao encontro de alguma coisa sensacional que ainda não sabemos o que é nem se iremos encontrar mesmo.

Pois, diante desse imenso ponto de interrogação que é o futuro de todos nós, reformulei minhas crenças: estou me dando o direito de não pensar tanto, de me cobrar menos ainda, e deixar para compreender depois. Desisti de atracar o barco e resolvi aproveitar a paisagem.

Primeiro mude, a compreensão virá depois. É mais ou menos o que a filosofia de Nietzche sugere. Ninguém muda apenas através do pensamento. A transformação meramente intelectual é uma presunção, não existe de fato. É preciso colocar o pensamento nas pernas e agir. O corpo é que nos leva para uma nova vida, e não a razão, diz o filósofo num texto chamado “A favor da crítica”.

Recentemente os integrantes do programa Saia Justa discutiram o que é drama e o que é tragédia, e chegaram à conclusão de que o drama te encarcera, enquanto a tragédia, por mais dolorosa que seja, te coloca em movimento: você sai dela diferente. Do drama você não sai: você fica remoendo, remoendo, remoendo. Excesso de racionalização engessa o sentimento e não te leva pra fora, pra frente.

De Nietzche a Saia Justa é um salto e tanto, reconheço, mas toda filosofia é bem-vinda, seja acadêmica ou de mesa de bar, de programa de tevê, de coluna de jornal. Estamos aqui para aquilo que os intelectuais rejeitam que se fale em público (mas falo baixinho: ser feliz). E a felicidade não é uma ilha paradisíaca onde nosso barco um dia atracará. A felicidade não é terra firme: ela é o próprio mar.

Passamos uma vida perseguindo a felicidade, sem reparar que ela está justamente na perseguição. O pensamento nas pernas. O movimento. A ação. Não há muito a compreender além disso.


Martha Medeiros

Tuas, Não Minhas



Tuas, não minhas, teço estas grinaldas,
Que em minha fronte renovadas ponho.
Para mim tece as tuas,
Que as minhas eu não vejo.
Se não pesar na vida melhor gozo
Que o vermo-nos, vejamo-nos, e, vendo,
Surdos conciliemos
O insubsistente surdo.
Coroemo-nos pois uns para os outros,
E brindemos uníssonos à sorte
Que houver, até que chegue
A hora do barqueiro.


Ricardo Reis

sexta-feira, 24 de maio de 2013

A umas saudades

Louis Marie de Schryver


Parti, coração, parti,
navegai sem vos deter,
ide-vos, minhas saudades,
a meu amor socorrer.

Pelo mar do meu tormento,
em que padecer me vejo,
já que amante me desejo
navegue meu pensamento:
meus suspiros formem vento,
com que me faças ir ter,
onde me desejo ver,
e diga minha alma assi,
Parti, coração parti,
navegai sem vos deter.

Ide onde meu amor
apesar desta distância
nem há perdido a constância,
nem há admitido rigos:
antes mais superior
assim se quer exceder,
porém se desfalecer
em tantas adversidades,
Ide-vos minhas saudades
a meu amor socorrer.


Gregório de Matos

Atraso Pontual



Ontens e hojes, amores e ódio,
adianta consultar o relógio?
Nada poderia ter sido feito,
a não ser o tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.
Bençãos e desgraças
vem sempre no horário.
Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontro
entre tempo e espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que faço.


Paulo Leminski

Convite

tiiti garelli


Não sou a areia 
onde se desenha um par de asas 
ou grades diante de uma janela. 
Não sou apenas a pedra que rola 
nas marés do mundo, 
em cada praia renascendo outra. 
Sou a orelha encostada na concha 
da vida, sou construção e desmoronamento, 
servo e senhor, e sou 
mistério 

A quatro mãos escrevemos este roteiro 
para o palco de meu tempo: 
o meu destino e eu. 
Nem sempre estamos afinados, 
nem sempre nos levamos 
a sério.


Lya Luft 
In Perdas e Ganhos, 2003

Espelho

stephen_gjertson



espelho, espelho meu:
diga a verdade,
quem sou eu?

Se às vezes me estilhaço,
se às vezes viro mil,
se quero mudar o mundo,
se quero mudar o rosto,
se tenho sempre na boca
um gosto de água e de céu,
se às vezes sou tão só
quando me viro do avesso,
se às vezes anoiteço
em plena luz do sol
ou então amanheço
com vontade de voar,

espelho, espelho meu:
diga a verdade,
quem sou eu? 


Roseana Murray
in Recados do Corpo e da Alma, ed. FTD, 2003

Embala-me

Manuel Barca 



Embala-me, embala-me,
E canta-me cantigas,
Cantigas antigas de embalar meninos.
- Que a tua voz seja um cântico
Onde a minha alma descanse
E alcance os seus destinos.
Que tenha sonhos brancos e suaves,
Aves roçando leve o meu sonhar
Embalando breve, junto a ti, sonhando.
- Ó noite velha, sem estrelas e sem lua,
Nua e tua sinto bem minha alma
Na calma de um lugar agónico e brando.
E canta, canta, meu amor, encanta
Com essa tua voz sonhada e benta,
E lenta, lenta, meu amor, tão lenta.
- Deixa correr a vida! Que importa a vida,
Se no ponto da partida
No teu canto o meu anseio se atormenta!?


António Sousa Freitas

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Via Vazia



I

Eu sou Medo. Estertor.
Tu, meu Deus, uma cavalo de ferro
Colado à futilidade das alturas.

II

Movo-me no charco. Entre o junco e o lagarto.
E Tu, como Petrarca, deves cantar tua Laura:

“Le Stelle, il cielo, caldi sospiri”
E nem há lua esta noite. Nascidas deste canto
Das palavras, só há borbulhas n’água.

III

Rato d’água, círculo no remoinho da busca.
Que sou teu filho, Pai, me dizem. Farejo.
Com a focinhez que me foi dada
encontro alguns dejetos. Depois, estendido 
Na pedra (que dizem ser teu peito) , busco um sinal.
E de novo farejo. Há quanto tempo. Há quanto tempo.

IV

À carnem aos pêlos, à garganta, à língua
A tudo isso te assemelhas?
Mas e o depois da morte, Pai?
As centelhas que nascem da carne sob a terra
O estar ali cintilando de treva.
À treva te assemelhas?

V

Dá-me a via do excesso. O estupor.
Amputado de gestos, dá-me a eloqüência do Nada
Os ossos cintilando 
Na orvalhada friez do teu deserto.

VI

Que vertigem, Pai.
Pueril e devasso 
No furor da tua víscera
Trituras a cada dia
Meu exíguo espaço.

VII

Tu sabes que serram cavalos vivos
Para que fiquem macias
As sacolas dos ricos?
Tu gozas ou defecas
Diante do ato sem nome
O rubro dessa orgia?

VIII

Descansa.
O Homem já se fez
O escuro cego raivoso animal
Que pretendias.

IX

Uma mulher suspensa entre as linhas e os dentes.
Antiquíssima ave, marionete de penas
As asas que pensou lhe foram arrancadas.
Lavado de luzes, um deus me movimenta.
Indiferente. Bufo.

X

PEDRA D’ÁGUA, ABISMO, PEDRA-FERRO
Como te chamas? Para que eu possa ao menos
Soletrar teu nome, grudada à tua fundura.

XI 

Nos pauis, no pau-de-lacre,
Aquele de nervuras e de folhas brilhantes, transitas. 
No pau-de-virar-tripa, só neste último, Pai
Eu sei que te demoras, meditando minha víscera.

XII

Águas de grande sombra, água de espinhos:
O Tempo não roerá o verso da minha boca.
Águas manchadas de um torpor de vinhos:
Hei de tragá-las todas. E lúbrico, descontínuo
O TEMPO NÃO VIVERÁ SE TOCAR A MINHA BOCA.


Hilda Hilst

Eu serei esse mar...

Paul Kelley


Tenho ainda na boca o sabor de teus beijos
e nos olhos a morna luz de teu olhar,
- há em teu corpo alvoradas rubras de desejos
e rompantes de vagas livres sobre o mar...

Sabes bem que te adoro, eu o disse a tua boca
naquele instante longo a cheio de delicias,
e em minhas mãos provaste a ânsia incontida e louca
de uma declaração de amor a de carícias. . .

Consegui te alcançar em minhas mãos, - assim
como quem colhe um fruto entre as sombras dos ramos...
Toquei-te o corpo inteiro.. . a pensar que a sem fim
o incêndio que nos queima enquanto nos amamos!

Hás-de ser uma praia branca ao meu enleio
nua, deitada ao sol, exposta ao mar a aos ventos,
- e eu serei esse vento de ternuras cheio!
e eu serei esse mar de desejos violentos!

Um do outro vamos ser, assim . . . divinizados
por um amor perfeito em comunhão com o céu,
- ver o céu a morrer em tens olhos parados
e a terra, aberta em flor, em teus lábios de mel. . .

Fundiremos no mesmo abraço o mesmo assomo,
dois num só - na infinita integração do amor,
tu, perfeita, eu perfeito, ambos perfeitos, como
a terra e o céu, o mar e a praia, o sol e a flor!


J.G. de Araújo Jorge
robert hefferan



OS
Homens são passos; mulheres são perfumes 
que se aproximam, param e se esquivam 
sem lançar raízes nessa treva. 
Beijam-se às vezes, como num murmúrio, 
e eu abro meus lábios tão precários, 
para depois, num mundo só de beijos, 
pousar a mão sobre meus olhos mortos, 
como se baixasse nesses entrevados 
o teu carinho, a medo. 



Lya Luft
In Mulher no Palco, 1984 

Baixo-ventre



eu não aguentava mais de amor por você
Tava ardendo de vontade de você
Você há de me querer
Há de tentar, se atrever
Mesmo se for delito, se for errado
Maldito, amaldiçoado
Mesmo que o céu nos castigue
Com um eterno eclipse
E venha o caos, satã, o fim de tudo
O cataclismo, o Apocalipse
e a gente seja culpado
Porque não soube resistir a tentação
Eu não quero me livrar desse pecado
E me salvo através dessa paixão.


Bruna Lombardi, 
(O Perigo do Dragão, Editora Record, Rio de Janeiro, 1984, 3a. edição, p.33)


terça-feira, 21 de maio de 2013

Rua dos rostos perdidos

paul kelley



Este vento não leva apenas os chapéus,
estas plumas, estas sedas:
este vento leva todos os rostos,
muito mais depressa.

Nossas vozes já estao longe,
e como se pode conversar,
como podem conversar estes passantes
decapitados pelo vento?

Não, não podemos segurar o nosso rosto:
as mãos encontram o ar,
a sucessão das datas,
a sombra das fugas, impalpável.

Quando voltares por aqui,
saberás que teus olhos
não se fundiram em lagrimas, não,
mas em tempo.

De muito longe avisto a nossa passagem
nesta rua, nesta tarde, neste outono,
nesta cidade, neste mundo, neste dia.
(Não leias o nome da rua, - não leias!)

Conta as tuas historias de amor
como quem estivesse gravando,
vagaroso, um fiel diamante.
E tudo fosse eterno e imóvel.


Cecília Meireles

Hic Et Nunc

Joseph McSween


La nobleza, las grandes palabras, que mal le van
a esta ternura sin mejillas que tocar,
a esta lengua sin labios que entender.
Envilece un amor así que rebota en las paredes del cuarto
o se va cayendo a pedazos de palabras, esto.

Es inútil la argucia y la esperanza,
somos la previsión,
los ojos y la boca orientados al viento. ¿Qué me vale
lo que fue, la suave crónica?
Siempre andaré buscándote en el hoy
de esta ciudad, de esta hora.
Si me doy vuelta, oh Lot, eres la sal
donde mi sed se hace pedazos.

Mira de qué sustancias vivo,
pero no me tengas lástima, yéndote así
todavía más.


Julio Cortázar

Strip-tease (2)

love-republic-photography



18.

emoção, que traidora você me saiu
me desmente assim na frente de todos
me faz tomar atitudes ridículas
que eu sempre detestei e neguei e nem sei

emoção, que maneira de me deixar só
agora estou sem caminho e sem solução
que jeito brusco de expulsar a razão
que sempre me fala, me guia, sei lá

emoção, que bela fera você se mostrou
invade assim sem saber, se atravessa,
domina

me agarra e sacode e balança e me enlaça
e eu já nem sei, sei lá, sou eu

Marcus Ohlsson


19.

eu quero
amor piscina
que sobe e desce trampolins
cai e sai nadando
amor em que se afunda e simplesmente
sai se amando

MaXu


20.

o mistério me fascina
porque não me explica nada
não me dá satisfação
tá pouco ligando
pro meu cárcere

e eu fico imaginando uma resposta
uma invenção
para tirar sua força
qualquer coisa como ser um morcego
que não voa
e é um pássaro



Marta Medeiros, strip-tease
MaXu


A tua boca. A tua boca.
Oh, também a tua boca.
Um túnel para a minha noite.
Um poço para a minha sede.

Os fios dormentes de água
que a tua língua solta num grito cor de rosa
e a minha língua sorve e canta
e os meus dentes mordem derramando a seiva
da tua primavera sem palavras
o poema inquieto e livre que a tua boca oferece
à minha boca.

As loucas bebedeiras de ternura
por essa viagem até ao sangue.
Os beijos como fogueiras.
As línguas como rosas.

Oh, a tua boca para a minha boca.


Joaquim Pessoa, In Os olhos de Isa