sexta-feira, 31 de julho de 2009

Confissão

omar ortiz


"do teu corpo, cada poro eu adoro adoro adoro... "


Dizem que o amor é cego,
não nego,
por isso te abro os olhos:
não tenho bens nem alqueires,
eu não sou flor que se cheire,
nem tão boa cozinheira,
(bem capaz que ainda me piches
por só comer sanduíches),
minha poesia é fuleira,
tenho idéias de jerico,
um cio meio impudico
como as cadelase as gatas,
às vezes me torno chata
por me opor ao que comtemplo,
sei que sou péssimo exemplo,
por pouca coisa me grilo,
talvez por mim percas quilos,
eu não sei se valho a pena,
iguais a mim, há centenas,
desejo te ser sincera.
Mas no fundo o amor espera
que grudes qual carrapicho:
são tão grandes meu rabicho
e minha paixão por ti,
que não estão no gibi...
Ao te ver, viro pamonha,
sem ação, e sem vergonha
o meu ser inteiro goza.
Por isso, pra encurtar prosa,
do teu corpo, cada poro
eu adoro adoro adoro...


Leila Mícollis

Passeata contra Rodeio

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Amante das Letras

Laszlo Gulyas 


Não te importas com os homens que dormem comigo;
mas morres de ciúme
dos versos que faço pra eles...


Leila Míccolis


Ah, toca suavemente
Como a quem vai chorar
Qualquer canção tecida
De artifício e de luar —

Fernando Pessoa

Aqui

painting by Scott Naismith

Aqui venho depor uma palavra 
que alguém me segredou, mas onde e quando? 

Eu sei apenas que alguém falava. 
E eu ficava escutando. 

Aqui venho depor um sentimento 
que é silêncio, talvez. 

Eu nada sei senão que vibra ao vento 
distante e tormentosa lucidez. 

E deixo latejar uma palavra 
que nâo foi minha, mas vivi. 

A vida quase que se revelava... 
Onde e quando, esqueci.


Alphonsus de Guimaraens Filho 
In O Tecelão do Assombro, 2000 

"te amo, beijo em tua boca a alegria"


"te amo, beijo em tua boca a alegria"

Não tenho nunca mais, não tenho sempre,
Na areia a vitória deixou seus pés perdidos.
Sou um pobre homem disposto a amar seus semelhantes.
Não sei quem és. Te amo. Não dou, não vendo espinhos.

Alguém saberá talvez que não teci coroas
sangrentas, que combati o engano,
e que em verdade enchi a preamar de minha alma.
Eu paguei a vileza com pombas.

Eu não tenho jamais porque distinto
fui, sou, serei. E em nome
de meu mutante amor proclamo a pureza.

A morte é só pedra do esquecimento.
Te amo, beijo em tua boca a alegria.
Tragamos lenha. Faremos fogo na montanha.


Pablo Neruda

O Olho


pavelmirchuk

O olho é uma espécie de globo,
é um pequeno planeta
com pinturas do lado de fora.
Muitas pinturas:
azuis, verdes, amarelas.
É um globobrilhante:
parece cristal,
é como um aquário com plantas
finamente desenhadas: algas, sargaços,
miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrágios e peixes de ouro.

Mas por dentro há outras pinturas,
que não se vêem:
umas são imagens do mundo,
outras são inventadas.

O Olho é um teatro por dentro.
E às vezes, sejam atores, sejam cenas,
e às vezes, sejam imagens, sejam ausências,
formam, no olho, lágrimas.


Cecilia Meireles

terça-feira, 28 de julho de 2009


“Um tolo instruído é mais tolo que um tolo ignorante” 
(Un sot savant est sot plus qu'un sot ignorant)

Molière 

278 - O Pensamento da Morte


Sinto uma felicidade melancólica em viver no meio dessa confusão de ruelas, de necessidades e de vozes: quantos prazeres, impaciências, desejos, quanta sede de vida e que embriaguez vêm à luz aqui a cada instante! E logo, contudo, o silêncio cairá sobre todos esses homens barulhentos, vivos e felizes por viver! Atrás de cada se desenha sua sombra, obscuro companheiro de caminhada! Ocorre sempre como no último momento antes da partida de umm navio de emigrantes: tem-se mais coisas a dizer que nunca, o oceano e seu morno silêncio esperam impacientemente atrás de todo esse barulho – tão ávidos, tão seguros de sua presa! E todos, todos imaginam que o passado não é nada, ou tão pouca coisa e que o futuro próximo é tudo: disso decorrem essa pressa, esses gritos, essa necessidade de se ensurdecer e de extravasar! Cada um deles quer ser o primeiro nesse futuro – e, contudo, a morte, o silêncio são as únicas certezas que todos têm nesse futuro! Como é estranho que essa única certerza essa única comunhão seja quase impotente em agir sobre os homens e que eles estejam tão longe de sentir essa fraternidade da morte! Sinto-me feliz em constatar que os homens se recusam absolutamente a pensar da idéia da morte e gostaria muito de contribuir para lher tornar a idéia da vida ainda mais cem vezes mais digna de ser pensada.

Friedrich Nietzsche ― A Gaia Ciência

A criança que pensa em fadas



A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em algum ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

Alberto Caeiro,
Poemas Inconjuntos

A Lenda de Narciso


Quando Narciso morreu, vieram as Oréiades - deusas do bosque - e viram o lago transformado, de um lago de água doce, num cântaro de lágrimas salgadas.      
- Porque você chora? - perguntaram as Oréiades.
- Choro por Narciso - disse o lago.      
- Ah, não nos espanta que você chore por Narciso - continuaram elas.
- Afinal de contas, apesar de todas nós sempre corrermos atrás dele pelo bosque, você era o único que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua beleza.
- Mas Narciso era belo? - perguntou o lago.
- Quem mais do que você poderia saber disso ? - responderam, surpresas, as Oréiades.
- Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruçava todos os dias.
O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:      
- Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era belo.      
” Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha própria beleza refletida”.



Oscar Wilde

segunda-feira, 27 de julho de 2009

 Lesley Oldaker

Sofrer com a solidão é uma objecção – eu sofri sempre apenas na “multidão”… Numa idade absurdamente prematura, com sete anos, sabia já que jamais alguma palavra humana me feriria: alguém me viu alguma vez magoado a tal respeito? – Hoje ainda, tenho para com toda a gente a mesma afabilidade, mostro-me cheio de apreço pelos mais “humildes”: em tudo isso não há um grão de orgulho, de secreto desprezo. Quem é objecto do meu desprezo adivinha que é por mim desprezado: graças à minha simples existência, escandalizo tudo o que no corpo tem mau sangue…

 Friedrich  Nietzsche in Ecce Homo



Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros.
Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
Como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?


Carlos Drummond de Andrade

Amar era tão infinitamente melhor

Stefano Ussi 

Às vezes é preciso recolher-se. O coração não quer obedecer, mas alguma vez aquieta; a ansiedade tem pés ligeiros, mas alguma vez resolve sentar-se à beira dessas águas. Ficamos sem falar, sem pensar, sem agir. É um começo de sabedoria, e dói. Dói controlar o pensamento, dói abafar o sentimento, além de ser doloroso parece pobre, triste e sem sentido. Amar era tão infinitamente melhor; curtir quem hoje se ausenta era tão imensamente mais rico. Não queremos escutar essa lição da vida, amadurecer parece algo sombrio, definitivo e assustador. Mas às vezes aquietar-se e esperar que o amor do outro nos descubra nesta praia isolada é só o que nos resta. Entramos no casulo fabricado com tanta dificuldade, e ficamos quase sem sonhar. Quem nos vê nos julga alheados, quem já não nos escuta pensa que emudecemos para sempre, e a gente mesmo às vezes desconfia de que nunca mais será capaz de nada claro, alegre, feliz. Mas quem nos amou, se talvez nos amar ainda há de saber que se nossa essência é ambigüidade e mutação, este silencio é tanto uma máscara quanto foram, quem sabe, um dia os seus acenos.


Lya Luft

sábado, 25 de julho de 2009

William. A. Bouguereau


Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.


Eugénio de Andrade

Trechos - Caio F. Abreu



"E se eu mudasse meu destino num passe de mágica? (...) Estranho, mas é sempre como se houvesse por trás do livre-arbítrio um roteiro fixo, pré-determinado, que não pode ser violado."

:*

"Tento me concentrar numa daquelas sensações antigas como alegria ou fé ou esperança.Mas só fico aqui parado, sem sentir nada, sem pedir nada, sem querer nada."
:*

"tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, não me venha com essas história de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, nunca tive porra de ideal nenhum, só queria era salvar a minha, ,veja só que coisa mais individualista elitista, capitalista, só queria ser feliz, cara. "

:*

"Parece incrível ainda estar vivo quando já não se acredita em mais nada. Olhar, quando já não se acredita no que se vê. E não sentir dor nem medo porque atingiram seu limite. E não ter nada além deste amplo vazio que poderei preencher como quiser ou deixá-lo assim, sozinho em si mesmo, completo, total. Até a próxima morte, que qualquer nascimento pressagia."

:*

“Todos os dias o ciclo se repete, às vezes com mais rapidez, outras mais lentamente. E eu me pergunto se viver não será essa espécie de ciranda de sentimentos que se sucedem e se sucedem e deixam sempre sede no fim."

:*

Mas se eu tivesse ficado, teria sido diferente? Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais -por que ir em frente? Não há sentido: melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia –qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por quê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido.

:*

"Me explica, que às vezes tenho medo. Deixo de ter, como agora, quando o vento cessa e o sol volta a bater nos verdes. Mesmo sem compreender, quero continuar aqui onde está constantemente amanhecendo."

:*

"Me ajuda que hoje eu tenho certeza absoluta que já fui Pessoa ou VirginiaWoolf em outras vidas, e filósofo em tupi-guarani, enganado pelos búzios, pelascartas, pelos astros, pelas fadas. Me puxa para fora deste túnel, me mostra ocaminho para baixo da quaresmeira em flor que eu quero encontrar em seu troncoo lótus de mil pétalas do topo da minha cabeça tonta para sair de mim e respiraraliviado e por um instante não ser mais eu, que hoje não me suporto nem meperdôo de ser como sou sem solução".

:*

"A vida é agora, aprende. Ainda outra vez tocarão teus seios, lamberão teus pêlos, provarão teus gostos. E outra mais, outra vez ainda. Até esqueceres faces, nomes, cheiros. Serão tantos. O pó se acumula todos os dias sobre as emoções"

:*

"porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como "sempre" ou "nunca". Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicidio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidamente, continuamos. E substituimos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar". Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência."

:*

"Olha, eu estou te escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo o meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não queria que fosse assim. Eu queria que tudo fosse muito mais limpo e muito mais claro, mas eles não me deixam, você não me deixa"

:*

"Essa morte constante das coisas é o que mais dói"


Caio Fernando Abreu

quarta-feira, 22 de julho de 2009




“…O que a memória ama, fica eterno.
Te amo com a memória, imperecível.”

Adélia Prado

Cântico XIII



Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.


Cecília Meireles

As Palavras



São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?


Eugénio de Andrade
Coração do Dia (1958)

Herman Hesse, O lobo da estepe


Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida. Era incapaz disso, daí ser um homem descontente. Isso provinha, decerto, do fato de que, no fundo de seu coração, sabia sempre (ou julgava saber) que não era realmente um homem e sim um lobo das estepes. A esse propósito poder-se-iam tecer longas considerações e até mesmo escrever livros; mas isso de nada valeria ao Lobo da Estepe, pois para ele era indiferente saber se o lobo se havia introduzido nele por encantamento, à força de pancada ou se era apenas uma fantasia de seu espírito. O que os outros pudessem pensar a este respeito ou até mesmo o que ele próprio pudesse pensar, em nada o afetaria, nem conseguiria afetar o lobo que morava em seu interior. O Lobo da Estepe tinha, portanto, duas naturezas, uma de homem e outra de lobo; tal era seu destino, e nem por isso tão singular e raro. Deve haver muitos homens que tenham em si muito de cão ou de raposa, de peixe ou de serpente sem que com isso experimentem maiores dificuldades. Em tais casos, o homem e o peixe ou o homem e a raposa convivem normalmente e nenhum causa ao outro qualquer dano; ao contrário, um ajuda ao outro, e muito homem há que levou essa condição a tais extremos a ponto de dever sua felicidade mais à raposa ou ao macaco que nele havia, do que ao próprio homem. Tais fatos são bastante conhecidos. No caso de Harry, entretanto, o caso diferia: nele o homem e o lobo não caminhavam juntos, mas apenas permaneciam em contínua e mortal inimizade e um vivia apenas para causar dano ao outro, e quando há dois inimigos mortais num mesmo sangue e na mesma alma, então a vida é uma desgraça. Bem, cada qual tem seu fado, e nenhum deles é leve.

Era isso o que ocorria ao Lobo da Estepe, e pode-se perfeitamente imaginar que Harry não levasse de todo uma vida agradável e feliz. Isso não quer dizer, entretanto, que sua infelicidade fosse por demais singular (embora assim lhe pudesse parecer, da mesma forma como qualquer pessoa torna o sofrimento que se abate sorte ela como sendo o maior do mundo). Isso não pode ser dito a propósito de ninguém. Mesmo aquele que não tem em seu interior um lobo, nem por isso pode ser considerado mais feliz. E mesmo a mais infeliz das existências tem os seus momentos luminosos e suas pequenas flores de ventura a brotar entre a areia e as pedras. Assim também acontecia com o Lobo da Estepe. Não se pode negar que fosse, em geral, muito infeliz, e podia também fazer os outros infelizes, especialmente quando os queria ou era por eles estimado. Pois todos os que com ele se deram viram apenas uma das partes de seu ser. Muitos o estimaram por ser uma pessoa inteligente, refina e arguta, e mostraram-se horrorizados e desapontados quando descobriam o lobo que mostrava nele. E assim tinha de ser pois Harry, como toda pessoa sensível, queira ser amado como um todo e, portanto, era exatamente com aqueles cujo amor lhe era mais precioso que ele não podia de maneira alguma encobrir ou perjurar o lobo. Havia outros, todavia, que amavam nele exatamente o lobo, o livre, o selvagem, o indômito, o perigosos e forte, e estes achavam profundamente decepcionante e deplorável quando o selvagem e perverso se transformava em homem, e mostrava anseios de bondade e refinamento, gostava de ouvir Mozart, de ler poesia e acalentar ideais humanos. Em geral, estes se mostravam mais desapontados e irritados do que os outros, e dessa forma o Lobo da Estepe levava sua própria natureza dual e discordante aos destinos alheios toda vez que entrava em contato com as pessoas.

Quem, entretanto, imaginar que conhece o Lobo da Estepe e pode analisar sua existência lamentavelmente dividida, incorrerá, sem dúvida, em erro, pois ainda não sabe tudo. Não sabe que (como não há regra sem exceção e como um simples pecador em certas circunstâncias pode ser mais querido a Deus do que noventa e nove justos) Harry também conhecia de quando em vez exceções e momentos ditosos em sentir harmonia, e mesmo em raras ocasiões estabelecer a paz e viver um para outro de tal forma que não apenas um vigiava enquanto o outro dormia, mas também se fortaleciam ambos e cada um duplicava a energia do outro. Se tais curtas e raras horas de ventura compensavam e dulcificavam a triste sina do Lobo da Estepe, de forma que a felicidade e a desventura viessem a equilibra-se finalmente na balança, ou se, talvez, este breve mas intenso usufruir daquelas poucas horas compensava todo o sofrimento e deixava um saldo favorável de alegria, é questão sobre a qual podem meditar as pessoas ociosas a seu talante. Também o Lobo meditava isso, em seus dias mais ociosas e inúteis.

A esse propósito há que acrescentar algo. Muita gente existe que se assemelha a Harry; especialmente muitos artistas pertencem a essa classe de homens. Todas essas pessoas têm duas almas, dois seres em seu interior; há neles uma parte divina e uma satânica, há sangue materno e paterno, há capacidade para ventura e para a desgraça, tão contrapostas e hostis como eram o lobo e o homem dentro de Harry. E esses homens, para os quais a vida não oferece repouso, experimentam às vezes, em seus raros momentos de felicidade, tanta força e tão indizível beleza, a espuma do instante de ventura emerge às vezes tão alta e deslumbradora sobre o mar da dor, que sua luz espargindo radiância, vai atingir a outros com o seu encantamento. A isto se devem, a essa preciosa e momentânea espuma sobre o mar de sofrimento, todas aquelas obras artísticas em que o homem solitário e sofredor se eleva por uma hora tão alto sobre o seu próprio destino, que sua felicidade brilha como uma estrela, e parecem a todos os que a vêem como algo eterno e como se fosse seu próprio sonho de ventura. Todas essas pessoas, sejam quais forem seus atos e obras, não têm propriamente uma vida, ou seja, sua vida carece de essência e de forma, não são herois, nem artistas, nem pensadores de maneira como os demais homens são juízes, doutores, sapateiros ou mestres; sua existência é um movimento de fluxo e refluxo, está infeliz e dolorosamente partida e é sinistra e insensata, se não estivermos propensos a ver um sentido precisamente naqueles raros acontecimentos, ações, pensamentos e obram que brilham às vezes sobre o caos semelhante vida.

Cada espécie de homens tem suas características, seus aspectos, seus vícios e virtudes e seus pecados mortais. Um dos signos do Lobo da Estepe era o de ser noctívago. A manhã era para ele a pior parte do dia, causava-lhe temor e nunca lhe trouxera nada de bom. Nunca fora alegre em qualquer manhã de sua vida, nunca fizera nada de bom na primeira metade do dia, não tivera boas idéias, nem divisara nenhuma alegria para ele ou para os demais. Ao começar a tarde, ia reagindo lentamente, principiava a se animar e, ao cair da noite, em seus melhores dias, tornava-se frutífero, ativo e, às vezes, até brilhante e alegre. Disso decorria sua necessidade de isolamento e independência. Nunca existira um homem com tão profunda e apaixonada necessidade de independência como ele.

Só que a essa virtude estavam intimamente ligados seu sofrimento e seu destino. Ocorria a ele o que se dá com todos: o que buscava e desejava com um impulso íntimo de seu ser acabava por ser-lhe concedido, mas em grau demasiadamente superior ao que convém a um homem. A princípio, o que obtinha parecia-lhe um sonho e uma satisfação, mas logo se revelava como sendo o seu amargo destino. Assim, o poderoso era arruinado pelo poder, o rico pelo dinheiro, o subserviente pela submissão, o luxurioso pela luxúria. O Lobo da Estepe perecia por sua própria independência. Havia alcançado sua meta, seria sempre independente, ninguém haveria de mandar nele, jamais faria algo para ser agradável aos outros. Só e livre, decidia sobre seus atos e omissões. Pois todo homem forte alcança indefectivelmente o que um verdadeiro impulso lhe ordena buscar. Mas em meio à liberdade alcançada, Harry compreendia de súbito que essa liberdade era a morte, que estava só, que o mundo o deixara em paz de uma inquietante maneira, que ninguém mais se importava com ele, nem ele próprio, e que se afogava aos poucos numa atmosfera cada vez mais tênue de falta de relações e de isolamento. Havia chegado ao momento em que a solidão e a independência já não eram seu objetivo e seu anseio, mas antes sua condenação e sua sentença.Tinham-no agora deixado só. Não que fosse motivo de ódio e de repugnância. pelo contrário, tinha muitos amigos. Um grande número de pessoas o precisavam. Mas tudo não passava de simpatia e cordialidade; recebia convites, presentes, cartas gentis, mas ninguém vinha até ele, ninguém estava disposto nem era capaz de compartilhar de sua vida. Agora rodeava-o a atmosfera do solitário, uma atmosfera serena da qual fugia o mundo em seu redor, deixando-o incapaz de relacionar-se, uma atmosfera contra a qual não poderia prevalecer nem a vontade nem o ardente desejo. Esta era uma das características mais significativas de sua vida.


Hermann Hesse, O lobo da estepe

segunda-feira, 20 de julho de 2009

O Poeta e a Rosa


Ao ver uma rosa branca
O poeta disse: Que linda!
Cantarei sua beleza
Como ninguém nunca ainda!

Qual não é sua surpresa
Ao ver, à sua oração
A rosa branca ir ficando
Rubra de indignação.

É que a rosa, além de branca
(Diga-se isso a bem da rosa…)
Era da espécie mais franca
E da seiva mais raivosa.

– Que foi? – balbucia o poeta
E a rosa; – Calhorda que és!
Pára de olhar para cima!
Mira o que tens a teus pés!

E o poeta vê uma criança
Suja, esquálida, andrajosa
Comendo um torrão da terra
Que dera existência à rosa.


– São milhões! – a rosa berra
Milhões a morrer de fome
E tu, na tua vaidade
Querendo usar do meu nome!…

E num acesso de ira
Arranca as pétalas, lança-as
Fora, como a dar comida
A todas essas crianças.

O poeta baixa a cabeça.
– É aqui que a rosa respira…
Geme o vento. Morre a rosa.
E um passarinho que ouvira

Quietinho toda a disputa
Tira do galho uma reta
E ainda faz um cocozinho
Na cabeça do poeta.


Vinicius de Moraes

Construção



Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado


Chico Buarque

sexta-feira, 17 de julho de 2009



"É meu velho costume levantar-me cedo e ir ver as belas rosas, frescas murtas, e as borboletas que de todas as partes correm a amar no meu jardim. Tenho particular amor às borboletas. Acho nelas algo das minhas ideias, que vão com igual presteza, senão com a mesma graça." 

Machado de Assis. Gazeta de Notícias, 19 fev. 1893.

334 - Amar Se Aprende


Aqui está o que ocorre na música: em primeiro lugar é preciso aprender a ouvir em geral um tema ou um motivo, é preciso percebê-lo, distingui-lo, isolá-lo e limitá-lo numa vida própria; depois é preciso um esforço de boa vontade para suportá-lo, apesar de sua novidade, para ter paciência em relação a seu aspecto e a sua expressão, de caridade por sua singularidade: - chega enfim o momento em que já estamos habituados a ele, em que o esperamos, em que pressentimos que nos faltaria se não viesse; a partir de então começa a exercer por seu encanto e não cessa até que nos tornemos os amantes humildes e encantados, que não querem nada mais desse mundo senão esse motivo e sempre esse motivo. - Mas isso não ocorre somente com a música: foi exatamente da mesma maneira que aprendemos a amar as coisas que amamos.
Finalmente, somos sempre recompensados por nossa boa vontade, nossa paciência, nossa eqüidade, nossa doçura com relação às coisas estranhas, quando para nós as coisas afastam lentamente seu véu e se apresentam em sua nova e indizível beleza: é sua melhor maneira de agradecer nossa hospitalidade. Mesmo o amor de si passa por isso: não há outro caminho. O amor também deve ser aprendido.

Friedrich Nietzsche ― A Gaia Ciência


"Sabia que tinha alguma coisa fora do lugar em mim. Eu era uma soma de todos os erros: bebia, era preguiçoso, não tinha um deus, idéias, ideais, nem me preocupava com política. Eu estava ancorado no nada, uma espécie de não-ser. E aceitava isso. Eu estava longe de ser uma pessoa interessante. Não queria ser uma pessoa interessante, dava muito trabalho. Eu queria mesmo um espaço sossegado e obscuro pra viver a minha solidão. Por outro lado, de porre, eu abria o berreiro, pirava, queria tudo e não conseguia nada. Um tipo de comportamento não se casava com o outro. Pouco me importava.".


Charles Bukowski

Conveniência



Convém que o sonho tenha margens
de nuvens rápidas
e os pássaros não se expliquem,
e os velhos andem pelo sol,
e os amantes chorem, beijando-se,
por algum infanticídio

Convém tudo isso, e muito mais,
e muito mais...

E por esse motivo aqui vou, como os papéis abertos
que caem das janelas dos sobrados,
tontamente...

Depois das ruas, e dos trens, e dos navios,
encontrarei casualmente a sala que afinal buscava,
e o meu retrato, na parede,
olhará para os olhos que levo.

E encolherei meu corpo n'alguma cama dura e fria.
(Os grilos da infância estarão cantando dentro da erva...)
E eu pensarei:
«Que bom! nem é preciso respirar!...»


Cecília Meireles

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Mais um de Caio...


Eu deveria cantar.Rolar de rir ou chorar, eu deveria, mas tinha desaprendido essas coisas. Talvez então pudesse acender uma vela, correr até a igreja da Consolação, rezar um Pai Nosso, uma Ave Maria e uma Glória ao Pai, tudo que eu lembrava, depois enfiar algum trocado, se tivesse, e nos últimos meses nunca, na caixa de metal "Para as Almas do Purgatório". Agradecer, pedir luz, como nos tempos em que tinha fé.

Bons tempos aqueles, pensei. Acendi um cigarro. E não tomei nenhuma dessas atitudes, dramáticas como se em algum canto houvesse sempre uma câmera cinematográfica à minha espreita. Ou Deus. Sem juiz nem platéia, sem close nem zoom, fiquei ali parado no começo da tarde escaldante de fevereiro, olhando o telefone que acabara e desligar. Nem sequer fiz o sinal da cruz ou levantei os olhos para o céu. O mínimo, suponho, que um sujeito tem a obrigação de fazer nesses casos, mesmo sem nenhuma fé, como se reagisse a uma espécie de reflexo condicionado místico.

Acontecera um milagre. Um milagre à toa, mas básico para quem, como eu, não tinha pais ricos, dinheiro aplicado, imóveis nem herança e apenas tentava viver sozinho numa cidade infernal como aquela que trepidava lá fora, além da janela ainda fechada do apartamento. Nada muito sensacional, tipo recuperar de súbito a visão ou erguer-se da cadeira de rodas com o semblante beatificado e a leveza de quem pisa sobre as águas. Embora a miopia ficasse cada vez mais aguda e os joelhos tremessem com freqüência, não sabia se fome crônica ou pura tristeza, meus olhos e pernas ainda funcionavam razoavelmente. Outros órgãos, verdade, bem menos.
Toquei o pescoço. E o cérebro, por exemplo.

Já chega, disse para mim mesmo, parado nu no meio da penumbra gosmenta do meio-dia. Pense nesse milagre, homem. Singelo, quase insignificante na sua simplicidade, o pequeno milagre capaz de trazer alguma paz àquela série de solavancos sem rumo nem ritmo que eu, com certa complacência e nenhuma originalidade, estava habituado a chamar de minha vida, tinha um nome. Chamava-se - um emprego.

Olhei minha cara no velho espelho riscado, as marcas que eu nem sabia mais se pertenciam ao vidro ou à pele, cumprimentei com uma curvatura de cabeça: "Muito bem, parabéns. Você agora tem um emprego". Mas não conseguia sentir nenhum calafrio de dignidade, nenhum frêmito de esperança que pudesse iluminar meus olhos vermelhos ou empurrar para fora meu fatigado peito onde - não queria lembrar, mas lembrei - há menos de uma semana descobrira o primeiro fio de cabelo branco. Suspirei.

Verdade que só um completo idiota ou alguém totalmente inexperiente sentiria, nem digo êxtase, mas qualquer espécie de animação por ter conseguido um trabalhinho de repórter no Diário da Cidade, talvez o pior jornal do mundo. Acho que ainda não tinha me transformado num idiota, não completamente pelo menos. E quanto à experiência - bem, aquela cara marcada, ainda inchada de sono, com barba de três dias, me observando por entre os risos do espelho, parecia tê-la de sobra. Tudo bem, disse a cara no espelho, já que você prefere mesmo confundir experiência com devastação... Suspirei outra vez. Não, querida cara, encher laudas e laudas nas máquinas de escrever daquele pasquim pré-informático certamente não era motivo para dar pulinhos.

Mas eu tinha que ficar contente. E quando você quer, você fica. Comecei a ficar. Afinal, aquele podia ser o primeiro passo para emergir do pântano de depressão e autopiedade onde refocilava há quase um ano. Gostei tanto da expressão pântano-de-depressão-&-etc. que quase procurei papel para anotá-la. Perdera o vício paranóico de imaginar estar sendo sempre filmado ou avaliado por um deus de olhos multifacetados, como os das moscas, mas não o de estar sendo escrito. Se fosse bailarino, talvez imaginasse estar constantemente, em qualquer movimento, sendo esculpido? Ah, cada gesto, uma verdadeira apologia estética da forma pura.

Era engraçado. E bastante esquizofrênico. mas de repente o real tinha-se tornado bem menos retórico.

"Você começa hoje, cara" - dissera Castilhos no telefone. Com aquela voz no fundo da qual, para manter o velho hábito subliterário, eu poderia localizar algo que chamaria de áspera-ternura-cúmplice, mas na verdade não passava de excesso de nicotina e saco cheio: "e vê se não me faz cagada logo no primeiro dia, oquêi? Garanti pros homens que você é da pesada".

Espantoso: na noite anterior eu fora dormir como um jornalista desempregado, endividado, amargo, solitário e desiludido de quase quarenta anos para acordar no dia seguinte, magicamente, com aquela voz do passado me comunicando pelo telefone que eu era - da pesada.

A partir de hoje, uma vida feita de fatos. Ação, movimento, dinamismo. A claquete bate. Deus vira mais uma página de seu infinito, chatíssimo roteiro. O escultor tira outra lasca do mármore. Coloquei água para fazer café, cogumelos branquicentos cresciam na umidade da cozinha. Simpáticos, até meio bucólicos. Liguei o rádio, entrei no chuveiro. O apartamento era tão pequeno que a gente podia fazer todas essas coisas praticamente ao mesmo tempo. Com uma das mãos, ensaboava a cabeça, com a outra controlava o volume do rádio na sala, enquanto estendia uma das pernas para apagar o fogo quando a água fervesse.
- Eia! Avante! Sus! - gritei embaixo da água gelada. Ai - pi - ai - ô, Silver!

Enquanto ouvi no rádio uma música que parecia conhecida. Dizia qualquer coisa como "a realidade não importa, o que importa é a ilusão", no que eu concordava plenamente. Pelo menos nos últimos meses, não me acontecera nada além de fantasias. Mas a música que ressoava em algum porão da memória era antiga como um bolero, um fox, e o que saía do rádio agora era um desses rocks com baixo elétrico desesperados, percussão envenenada e sintetizadores histéricos. A voz da cantora lembrava vidro moído num liquidificador. De qualquer forma, pensei, a letra está certa. E todas as coisas que eu lembrava, ou achava que lembrava, porque de tanto lembrar delas acabara por transformá-las em mera - e péssima - literatura, já não importavam mais. O resto do último sabonete escorregou entre meus dedos. Era tão pequeno que desapareceu pelo ralo.


Caio Fernando Abreu

terça-feira, 14 de julho de 2009

Sou uma loura trintona e gostosa, dezoito por vinte e quatro, como se dizia antigamente, mas só repito essas expressões comigo mesma, aprendi que a gente entrega o tempo em lembranças assim, por isso sempre contenho o susto que me afoga o peito quando por acaso escuto Anísio Silva, Gregório Barrios, Lucho Gatica, porque além de trintona e gostosa sou também moderna e extrovertida. Daquelas louras que permanecem até o fim e o depois de qualquer coquetel, e há tantos coquetéis e tantos principalmente depois de coquetéis na minha vida, sempre repito ao espelho passando as bem tratadas mãos de longuíssimas unhas ciclamens pelas fartas curvas perigosas da opulenta carne que Deus me deu, e só ele sabe a quantas duras e caras penas mantenho firme e fresca. Sou uma loura coquete que adora coquetéis, onde costumo degustar dulcíssimos martínis com cerejas, jamais com azeitonas, detesto o amargo, minha boca de insuspeitadas próteses foi feita apenas para saborear doçuras e todo dia, com as impecáveis unhas ciclamens, bato veloz nas teclas de minha IBM de secretária eficientíssima, a coluna muito ereta, realçando o arrogante relevo do busto que, em idos tempos, já mereceu a disputada faixa de Miss Suéter, acentuado ainda mais pelas malhas justas nem sempre decotadas, pois aos poucos a vida foi me ensinando que a luxúria reside menos na exibição integral do que naquela breve nesga de carne mal-e-mal entrevista entre a luva e a manga, e tenho meus sutis pudores: cruzo as pernas ardilosa, para que esse instante fugaz em que minha intimidade quase se revela por inteiro seja feito mais de ardentes expectativas do que de cruéis certezas. Não fui jamais uma loura óbvia demais, embora tenha estado sempre e por assim dizer à tona de mim mesma, em meu longo conhecimento dos homens descobri astuciosa que, no primeiro roçar de pupilas, é preciso prometer absolutamente tudo mas, no prosseguimento desses furtivos rituais, sei esmerar-me em caprichos lânguidos e débeis negativas, de forma que, quanto mais me esquivo, mais prometo, e mais abundante, se é que me entendem - cada não saído de meus cristalinos dentes equivale a dois, dez, duzentos sins, but not now; te daria já uma turmalina, mas te darei mais tarde uma urna de diamantes. Sou uma loura facílima, e por isso mesmo extremamente difícil, minhas obviedades possuem mapas complexos, os inúmeros x apontando o local exato do tesouro são quase todos falsos, eivados de seiemaranhadas, lagos barrentos infestados de piranhas, crocodilos famintos, pigmeus vorazes, caçadores de cabeça, tigres enfurecidos, ninhos de serpentes, pestes tropicais, febres malignas, curares e tisanas. Mas para o bom caçador, e aprendi também a importância de deixar o caçador supor-se caçador quando na verdade é o caçado, eu, pantera astuciosa de garras afiadas, andar felino, ferocidades invisíveis, mas como ia dizendo - sou também uma loura labiríntica em suas próprias tramas, tão densas que freqüentemente surpreendo-me atingindo o ponto oposto ao de minha rota anterior, um bom caçador-caçado sempre sabe como chegar direto ao próprio x que nem sempre é remoto, mas só os mais astutos percebem que o x, em vez de perdido entre incontáveis perigos, pode estar à beira do mais manso dos regatos, à sombra da mais florida cerejeira, no mais fresco desvão do mais fértil dos vales. Para estes, cedo, para estes, quase sem hesitar, escancaro minhas coxas de cetim e sou guia experiente em todos os passos que conduzem aos segredos de minha licorosa caverna, para estes acendo as luzes dos meus adentros, faço com que as sombras deixem de ser ameaçadoras para tornarem-se macias penumbras, veludosas alfombras distendidas com cuidados extremos para secar o suor e matar a sede dos bravos viajantes, extenuados pelo esforço de manterem eretas suas rijas armas de fogo nos roteiros por minhas intrincadas entranhas. É verdade que por vezes me perturbo tentando localizar entre esses o Grande Descobridor, qual América em sua nativa solidão virginal, impaciente pelo Colombo que a revele de vez para o mundo, explorando-a até o derradeiro veio de ouro para torná-la escrava cativa, serva humilhada dos mais brutais colonialismos, e para esse me preparo, para esse me burilo e me lapido esmerada - e sei que virá. Há duas semanas uma cigana localizou dois sinais, dois amores entre a minha linha do coração e o solitário sintético do anular esquerdo, um já vivido, afirmou, e logo lembrei daquele inábil escoteiro que em tempos imemoriais, inconfessáveis sob pena de revelar um coração já marcado pelas intempéries da existência, deixei que ensaiasse em minha exuberante geografia seus hesitantes primeiros passos, e após trinta e seis meses de proveitosa aprendizagem permiti que partisse, disseminando por outras paragens toda a sabedoria que, com trágica paciência e dilacerada alegria, concedi que extirpasse de mim, pois sempre soube ser eu, loura febril, nada mais que a primeira, jamais a derradeira, jamais a única entronizada em santa e mãe de filhos, a escolhida de seu esplêndido e insaciável ventre juvenil. Chafurdando em abissal melancolia na crise que se sucedeu, mergulhada em fugas barbitúricas, oceanos de gim, telefonemas noturnos em desespero, perambulações sedentas por todas as vielas pecaminosas do prazer, jurei solene aos pés de Oxum jamais voltar a ser como que progenitora de meus protegidos, preparando-os para a existência e, após, quedando em frenético abandono. Mas o segundo, a unha da cigana riscou forte a linha junto à base de meu dedo mínimo, o segundo chegará nos próximos meses e será sim ele, adivinhei, o Grande Descobridor, o tão sabido que nada terei a ensinar-lhe, e tão sabida eu mesma em todas as lições que já prestei que nada terei a aprender de si. Seremos, ele e eu, infatigável troca de prazeres, tilintar de cintilantes cristais em brindes com champanhe fervilhante de luxúria, línguas divididas na volúpia, corpos ensandecidos na selvageria dos gestos mais furiosos e mais amenos, entre suores, gemidos e secreções de líquidos pujantes feito cachoeiras tropicais, sete quedas, sete orgasmos terei eu de cada vez que me engolfe náufraga em sua ejaculação amazônica. Por ele espero, monja voraz, e desde que a cigana me desvairou assim investigo os volumes, os cheiros, os pêlos de todos os homens que ousam aproximar-se do covil desta pantera, receando então que uma excessiva ansiedade no fundo das castanhas luas gêmeas de meus olhos possam evidenciar uma sede demasiada para suas viris misoginias. Pelos inúmeros coquetéis por onde tenho desfilado meus ardis, observo em desprazer e apreensão meus desbragamentos cada vez mais freqüentes nos dulcíssimos martínis, e triturando a polpa das incontáveis cerejas temo explodir os limites de meus dezoito por vinte e quatro para transformar-me súbita em outdoor coloridíssimo, tão escandaloso e desesperadamente imenso que jamais caberia em quarto ou membro algum de qualquer homem. E quando despida e solitária em minha rendada furna investigo fatigada as novas marcas que o dia passado lavrou inclemente em meu rosto, tenho tido frêmitos próximos da dor, e quando me lanço sobre os lençóis acetinados do leito inutilmente perfumado, sinto que minhas ardências ameaçam arrebentar o negro négligé, e quando por malícia ou enfado cedo a algum caçador menor, suas estocadas já não despertam meu distraído prazer, perdido x inlocalizável até para mim mesma que o dispus no mapa, meu corpo enregelado agora abriga outros delírios, enquanto sob meus louros cabelos de raízes implacável e semanalmente descoloridas desfilam inconfessáveis fantasias com esse Grande Descobridor, cuja proximidade adivinho num eriçamento tal que nunca sei se será pressentimento ou puro engano. Por vezes raras, num misto de temor e júbilo, julgo escutar o ruído dos ramos secos sob a janela esmagados por suas negras botas reluzentes, enquanto se aproxima entre folhagens, e pelas madrugadas ardidas me engano supondo divisar nas sombras a massa escura e áspera da barba que lanhará meus seios intumescidos de desejo. É quando odeio a cigana por ter me enlouquecido assim, e custo a dormir, enredada em ódio, os dedos arquitetando delícias imaginárias nos lábios mais recônditos, mas na manhã seguinte não deixo de considerar o noturno coquetel de cada dia e então escovando cem vezes meus louros cabelos, sempre penso que pode ser Hoje. Escolho com cuidado os tules, as pedras, os organdis, os brilhos e brincos, e é tão luminosa e devastadora que enfrento o dia nascente que, apesar das sombras da madrugada, a cada nova manhã os que me vêem passar soberba e apocalíptica, pisando ereta no topo dos saltos, devem pensar qualquer coisa assim: lá vai uma loura trintona e gostosa, ao certeiro encontro de seu Grande Descobridor.


Caio Fernando Abreu, Morangos Mofados

A mudez cantada, a mudez dançada



Quase não era canto, no sentido em que este é aproveitamento musical da voz. Quase não era voz, no sentido em que esta tende a dizer palavras. É antes da voz ainda, é fôlego. Uma palavra ou outra às vezes escapava, revelando de que era feita aquela mudez cantada: de história de viver, amar, e morrer. Essas três palavras não ditas eram interrompidas por lamentos e modulações. Modulações de fôlego, primeiro estágio de voz que capta o sofrimento no seu primeiro estágio de gemido, e capta a alegria no seu primeiro estágio de gemido. E de grito. E mais outro grito, este de alegria por se ter gritado. Em torno a assistência aconchegava-se escura e suja. Depois de uma das modulações que de tão prolongada morre em suspiro, o grupo esgotado como cantor murmura um "olé" em amém, última brasa.
Mas há também o canto impaciente que a voz apenas não exprime: então um sapateado nervoso e firme o entrecorta, o "olé" que interrompe a cada instante não é mais amém, é incitamento, é touro negro.


Clarice Lispector

XIV - O guardador de rebanhos

Claudia Lucia McKinney.

Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra,
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior.
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento…


Alberto Caeiro
(heterônimo de Fernando Pessoa)

segunda-feira, 13 de julho de 2009

A Alma do Vinho



A alma do vinho assim cantava nas garrafas:
“Homem, ó deserdado amigo, eu te compus,
Nesta prisão de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico em que há só fraternidade e luz!

Bem sei quanto custou, na colina incendida,
De causticante sol, de suor e de labor,
Para fazer minha alma e engendrar minha vida;
Mas eu não hei de ser ingrato e corruptor,

Porque eu sinto um prazer imenso quando baixo
À goela do homem que já trabalhou demais,
E sei peito bastante é doce tumba que acho
Mais propícia ao prazer que as adegas glaciais.

Não ouves retirar a domingueira toada
E esperanças chalrar em meu seio, febris?
Cotovelos na mesa a manga arregaçada,
Tu me hás de bendizer e tu serás feliz:

Hei de acender-te da esposa embevecida;
A teu filho farei a força e a cor
E serei para tão terno atleta da vida
Como o óleo e os tendões enrija ao lutador.

Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia,
Grão precioso que lança o eterno semeador,
Para que enfim do nosso amor nasça a poesia
Que até Deus subirá como uma rara flor!”

Charles Baudelaire 

Cântico



Não, tu não és um sonho, és a existência
Tens carne, tens fadiga e tens pudor
No calmo peito teu. Tu és a estrela
Sem nome, és a morada, és a cantiga
Do amor, és luz, és lírio, namorada!
Tu és todo o esplendor, o último claustro
Da elegia sem fim, anjo! mendiga
Do triste verso meu. Ah, fosses nunca
Minha, fosses a idéia, o sentimento
Em mim, fosses a aurora, o céu da aurora
Ausente, amiga, eu não te perderia!
Amada! onde te deixas, onde vagas
Entre as vagas flores? e por que dormes
Entre os vagos rumores do mar? Tu
Primeira, última, trágica, esquecida
De mim! És linda, és alta! és sorridente
És como o verde do trigal maduro
Teus olhos têm a cor do firmamento
Céu castanho da tarde – são teus olhos!
Teu passo arrasta a doce poesia
Do amor! prende o poema em forma e cor
No espaço; para o astro do poente
És o levante, és o Sol! eu sou o giro
O giro, o girassol. És a soberba
Também, a jovem rosa purpurina
És rápida também, como a andorinha!
Doçura! lisa e murmurante... a água
Que corre no chão morno da montanha
És tu; tens muitas emoções; o pássaro
Do trópico inventou teu meigo nome
Duas vezes, de súbito encantado!
Dona do meu amor! sede constante
Do meu corpo de homem! melodia
Da minha poesia extraordinária!
Por que me arrastas? Por que me fascinas?
Por que me ensinas a morrer? teu sonho
Me leva o verso à sombra e à claridade.
Sou teu irmão, és minha irmã; padeço
De ti, sou teu cantor humilde e terno
Teu silêncio, teu trêmulo sossego
Triste, onde se arrastam nostalgias
Melancólicas, ah, tão melancólicas...
Amiga, entra de súbito, pergunta
Por mim, se eu continuo a amar-te; ri
Esse riso que é tosse de ternura
Carrega-me em teu seio, louca! sinto
A infância em teu amor! cresçamos juntos
Como se fora agora, e sempre; demos
Nomes graves às coisas impossíveis
Recriemos a mágica do sonho
Lânguida! ah, que o destino nada pode
Contra esse teu langor; és o penúltimo
Lirismo! encosta a tua face fresca
Sobre o meu peito nu, ouves? é cedo
Quanto mais tarde for, mais cedo! a calma
É o último suspiro da poesia
O mar é nosso, a rosa tem seu nome
E recende mais pura ao seu chamado.
Julieta! Carlota! Beatriz!
Oh, deixa-me brincar, que te amo tanto
Que se não brinco, choro, e desse pranto
Desse pranto sem dor, que é o único amigo
Das horas más em que não estás comigo.


Vinicius de Moraes

Palavras



 Se te pareço ausente, não creias: hora a hora minha dor
agarra-se aos teus braços, hora a hora meu desejo revolve
teus escombros, e escorrem dos meus olhos mais promessas.
Não acredites nesse breve sono; não dês valor maior ao meu
silêncio; e se leres recados numa folha branca, não creias também:
é preciso encostar teus lábios nos meus lábios para ouvir.
Nem acredites se pensas que te falo:
palavras são meu jeito mais secreto de calar.


Lya Luft

Neurolingüistíca

 eugenio zampighi 


Quando ele me disse 
ô linda, 
pareces uma rainha, 
fui ao cúmice do ápice 
mas segurei meu desmaio. 
Aos sessenta anos de idade, 
vinte de casta viuvez, 
quero estar bem acordada, 
caso ele fale outra vez.

Adélia Prado

quinta-feira, 9 de julho de 2009



Somos, no mais das vezes, mais vítimas do nosso terror do que dos perigos reais, e sofremos mais com a ideia que fazemos das coisas do que com as próprias coisas.

(Sêneca, em Carta XIII: “O que deve ser a força do sábio; não nos devemos atormentar com o futuro”)


Milágrimas

Dimitar Voinov junior - tears


Em caso de dor ponha gelo
Mude o corte de cabelo
Mude como modelo
Vá ao cinema dê um sorriso
Ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo
Se amargo foi já ter sido
Troque já esse vestido
Troque o padrão do tecido
Saia do sério deixe os critérios
Siga todos os sentidos
Faça fazer sentido
A cada mil lágrimas sai um milagre

Caso de tristeza vire a mesa
Coma só a sobremesa coma somente a cereja
Jogue para cima faça cena
Cante as rimas de um poema
Sofra penas viva apenas
Sendo só fissura ou loucura
Quem sabe casando cura
Ninguém sabe o que procura
Faça uma novena reze um terço
Caia fora do contexto invente seu endereço
A cada mil lágrimas sai um milagre

Mas se apesar de banal
Chorar for inevitável
Sinta o gosto do sal do sal do sal
Sinta o gosto do sal
Gota a gota, uma a uma
Duas três dez cem mil lágrimas sinta o milagre
A cada mil lágrimas sai um milagre


Alice Ruiz


“Para nunca temeres a morte, pensa nela sem cessar. Adeus.”

(Sêneca, in Carta XXX - “É preciso, como Bassus, esperar a morte com calma”)

terça-feira, 7 de julho de 2009

Hora absurda



O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a idéia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
E a minha idéia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer cousa como leitos para as naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixas dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Por que me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Vejo o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a idéia de naufragar,
E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os casos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há cousas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque-
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, oteu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos desalegra !...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...


Fernando Pessoa