domingo, 30 de janeiro de 2022

 



Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e

dos restos do dia, tira da tua boca

o punhal e o trânsito, sombras de

teus gritos, e roupas, choros, cordas e

também as faces que assomam sobre a

tua sonora forma de dar, e os outros corpos

que se deitam e se pisam, e as moscas

que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)

que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que

esqueceram teus braços e tantos movimentos

que perdem teus silêncios, o os ventos altos

que não dormem, que te olham da janela

e em tua porta penetram como loucos

pois nada te abandona nem tu ao sono..


Ana Cristina César

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022


 Paramos à beira do precipício. Nossa visão se projeta para o abismo, somos tomados por um assomo de náusea e vertigem. Nosso primeiro impulso é afastar-nos do perigo. Sem a menor explicação, permanecemos ali. Lentamente, nosso enjoo, nossa tontura, nosso horror se mesclam a uma nuvem de sentimentos indizíveis. Gradativamente, ainda mais perceptível, esta nuvem toma forma, como o vapor que surgiu da garrafa de Aladim e formou o gênio das Mil e Uma Noites. Porém desta nossa nuvem à beira do despenhadeiro, torna-se progressivamente uma forma mais terrível que a do gênio, muito mais horrenda que a de qualquer demônio lendário; e no entanto, é somente um pensamento, por mais amedrontador que seja, que nos gela até a medula dos ossos com a ferocidade inerente à delícia de seu pavor. É meramente a ideia de qual seria a nossa sensação durante o mergulho precipitado de uma queda de tal altura. E esta queda — esta aniquilação rápida — pela própria razão de que invoca a mais macabra e repugnante dentre todas as imagens tétricas e repelentes da morte e sofrimento que já se apresentaram à nossa imaginação — por esta mesma causa imaginamos saltar agora e o desejamos vividamente. E uma vez que nossa razão violentamente nos impede que cheguemos à borda, justamente por isso nos aproximamos mais impetuosamente. Não existe na natureza que seja tão demoníacamente impaciente como a daquele que hesita à margem de um precipício, meditando sobre se há de saltar ou não. Deter-se, ainda que por um momento, na contemplação desse pensamento, é estar violentamente perdido; porque a reflexão nos ordena afastar-nos sem demora e portanto, exatamente por isso, é que não podemos. Se não houver um braço amigo que nos ampare, ou se não fizermos um esforço súbito para afastar-nos do abismo, saltaremos e seremos destruídos.⠀

Edgar Allan Poe

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

A Rota

 



O mundo pulveriza-nos sem revelar

Seus intuitos secretos.

A vida é contemplá-los nos seus gestos mais sutis

E sentir nas águas profundas

O que de cada destino foi escrito

Nos penhascos dos mares agitados.

No vácuo do espírito

Anda a forma sem direção

Por caminhos já pisados

E inseguros são os passos repetidos.

Nem sempre o olhar mais aberto

À procura da estrada de nós mesmos

Torna o espírito mais desperto.

Vivemos nos penhascos dos mares agitados.


Adalgisa Nery

In Erosão (1973)



Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.

Mário de Sá-Carneiro, in 'Cartas a Fernando Pessoa'

UM DIA



um dia eu

morrerei

de sol, de

vida acumulada

na convulsão

das ruas


um dia eu

morrerei e

não

podia:


há poemas

escorregando de meus dedos

e um vinho não

provado


Eunice Arruda

 


Nunca falámos muito. (acho que nunca falámos nada) e não sinto necessidade de começar agora. o que poderia dizer? existem séculos e séculos de silêncio entre nós e, debaixo dos séculos do silêncio, ocultas lá no fundo, se calhar esquecidas, se calhar presentes, se calhar apagadas, se calhar vivas e a doerem-me, coisas que prefiro não transformar em palavras, coisas anteriores às palavras...

António Lobo Antunes

Degraus

 



Assim como as flores murcham

E a juventude cede à velhice,

Também os degraus da Vida,

A sabedoria e a virtude, a seu tempo,

Florescem e não duram eternamente.

A cada apelo da vida deve o coração

Estar pronto a despedir-se e a começar de novo,

Para, com coragem e sem lágrimas se

Dar a outras novas ligações.

Em todo o começo reside um encanto

Que nos protege e ajuda a viver

Serenos transponhamos o espaço após espaço,

Não nos prendendo a nenhum elo, a um lar;

Sermos corrente ou parada não quer o

espírito do mundo

Mas de degrau em degrau elevar-nos e aumentar-nos.

Apenas nos habituamos a um círculo de vida,

Íntimos, ameaça-nos o torpor;

Só aquele que está pronto a partir e parte

Se furtará à paralisia dos hábitos.

Talvez também a hora da morte

Nos lance, jovens, para novos espaços,

O apelo da Vida nunca tem fim …

Vamos, Coração, despede-te e cura-te!"


 Hermann Hesse


 

Alongo-me

O rio nasce

toda a vida.

Dá-se

ao mar a alma vivida.

A água amadurecida,

a face

ida.

O rio sempre renasce

A morte é vida.

.

– João Guimarães Rosa, do livro “Ave, palavra”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª ed., 2009.

AVISO PRÉVIO



Os meus amigos

não apareceram;

e, solitário,

procuro o buraco

na lona do circo.

Os meus amigos

se calaram;

e, solitário,

descubro o silêncio

mais profundo.

Os meus amigos

saltaram o muro

que não alcanço

e partiram

sem aviso prévio.


Damário Cruz

 



O Homem desperta e sai cada alvorada

Para o acaso das cousas… e, à saída, 

Leva uma crença vaga, indefinida, 

De achar o Ideal nalguma encruzilhada…


As horas morrem sobre as horas… Nada!

E ao poente, o Homem, com a sombra recolhida

Volta, pensando: “Se o Ideal da Vida

Não vejo hoje, virá na outra jornada…


Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim, 

Mais ele avança, mais distante é o fim, 

Mais se afasta o horizonte pela esfera;


E a Vida passa… efêmera e vazia:

Um adiantamento eterno que se espera, 

Numa eterna esperança que se adia…


Raul de Leôni

domingo, 23 de janeiro de 2022


 Sou uma mulher madura

Que às vezes anda de balanço

Sou uma criança insegura

Que às vezes usa salto alto

Sou uma mulher que balança

Sou uma criança que atura


Martha Medeiros

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

 



Não te rendas, ainda é tempo

De se ter objetivos e começar de novo,

Aceitar tuas sombras,

Enterrar teus medos

Soltar o lastro,

Retomar o voo.


Não te rendas que a vida é isso,

Continuar a viagem,

Perseguir teus sonhos,

Destravar o tempo,

Correr os escombros

E destapar o céu.


Não te rendas, por favor, não cedas,

Ainda que o frio queime,

Ainda que o medo morda,

Ainda que o sol se esconda,

E o vento se cale,

Ainda existe fogo na tua alma.

Ainda existe vida nos teus sonhos.


Porque a vida é tua e teu também o desejo

Porque o tens querido e porque eu te quero

Porque existe o vinho e o amor, é certo.

Porque não existem feridas que o tempo não cure.


Abrir as portas,

Tirar as trancas,

Abandonar as muralhas que te protegeram,

Viver a vida e aceitar o desafio,

Recuperar o sorriso,

Ensaiar um canto,

Baixar a guarda e estender as mãos

Abrir as asas

E tentar de novo

Celebrar a vida e se apossar dos céus.


Não te rendas, por favor, não cedas,

Ainda que o frio te queime,

Ainda que o medo te morda,

Ainda que o sol ponha e se cale o vento,

Ainda existe fogo na tua alma,

Ainda existe vida nos teus sonhos

Porque cada dia é um novo começo,

Porque esta é a hora e o melhor momento

Porque não estás sozinho, porque eu te amo


Mário Benedetti

O véu pintado

OVeu -William-Adolphe-Bouguereau

- Eu não tinha ilusões a seu respeito. Sabia que era tola, frívola e tinha a cabeça vazia. Mas eu a amava. Sabia que seus ideais e objetivos eram vulgares. Mas eu a amava. Sabia que era uma pessoa de segunda classe. Mas eu a amava. É cômico lembrar do quanto me esforcei para divertir-me com as coisas que a divertiam, e do quanto eu procurava esconder que não era ignorante, vulgar, maledicente e estúpido. Eu sabia o quanto a inteligência lhe fazia medo e tentei tudo para lhe dar a impressão de que era um tolo tão grande quanto os homens que você conhecia. Sabia que você somente se casaria comigo por conveniência. Eu a amava tanto que isso não me fazia diferença. Muitas pessoas, até onde pude observar, sentem uma espécie de ressentimento quando amam alguém e esse amor não é correspondido. Tornam-se furiosas e amargas. Não foi assim comigo. Nunca esperei que você me amasse nem encontrei um motivo que a pudesse levar a amar-me, pois nunca me julguei capaz de inspirar amor. Eu era grato a você por me permitir amá-la e sentia-me enlevado quando, às vezes, você ficava satisfeita comigo, ou quando eu via nos seus olhos um lampejo de afeição bem-humorada. Procurei não aborrecê-la com meu amor. Eu sabia que não tinha esse direito e sempre estava à espreita de um primeiro sinal de sua impaciência diante do meu afeto.

W. Somerset Maugham

Rostos da Decadência - Emil Cioran


“Não consigo tirar de minhas pálpebras a fadiga dos povos completamente esquecidos”

Hugo von Hofmannsthal


Uma civilização começa a decair a partir do momento em que a Vida torna-se sua única obsessão. As épocas de apogeu cultivam os valores por si mesmos: a vida é apenas um meio de realizá-los: o indivíduo não sabe que vive. Ele vive, escravo feliz das formas que engendra, preserva e idolatra. A afetividade o domina e o preenche. Não há criação alguma sem os recursos do “sentimento”, que são limitados: no entanto, para aquele que só experimenta sua riqueza, parecem inesgotáveis: esta ilusão produz a história. Na decadência, o embrutecimento afetivo só permite duas modalidades de sentir e de compreender: a sensação e a ideia. Ora, é pela afetividade que nos entregamos ao mundo dos valores, que projetamos vitalidade nas categorias e nas normas. A atividade de uma civilização em seus momentos fecundos consiste em fazer sair as ideias de seu nada abstrato, em transformar os conceitos em mitos. A passagem do indivíduo anônimo ao indivíduo consciente ainda não se realizou: no entanto, é inevitável. Avaliem: na Grécia, de Homero aos sofistas: em Roma, da antiga República austera às “sabedorias” do império: no mundo moderno, das catedrais às rendas do século XVIII.


Uma nação não poderia criar indefinidamente. Está chamada a dar expressão e sentido a um conjunto de valores que esgotam-se com a alma que os engendrou. O cidadão desperta de uma hipnose produtiva, o reino da lucidez começa: as massas só manejam categorias vazias. Os mitos tornam-se novamente conceitos: é a decadência. E as consequências se fazem sentir: o indivíduo quer viver, converte a vida em finalidade, eleva-se à categoria de pequena exceção. O balanço dessas exceções, ao compor o déficit de uma civilização, prefigura seu desaparecimento. Todo mundo alcançou a delicadeza; mas não é radiante estupidez dos simplórios que realiza a obra das grandes épocas?


Montesquieu afirma que, no final do Império, o exército romano era composto apenas pela cavalaria . mas esquece de indicar-nos a razão disso. Imaginemos o legionário saturado de glória, de riqueza e de devassidão depois de haver percorrido inúmeros países e perdido a sua fé e seu vigor ao contato de tantos templos e vícios, imaginemo-lo a pé! Conquistou o mundo como infame: o perderá como cavaleiro. Em toda brandura revela-se uma incapacidade fisiológica de aderir por mais tempo aos mitos da comunidade. O soldado emancipado e o cidadão lúcido sucumbem sob o bárbaro. A descoberta da Vida aniquila a vida.


Quando todo um povo, em diferentes graus, está á espreita de sensações raras, quando, pelas sutilezas do gosto, complica seus reflexos, chegou a um nível de superioridade fatal. A decadência não é outra coisa senão o instinto tornado impuro pela ação da consciência. Assim não se pode superestimar a importância da gastronomia na existência de uma coletividade. O ato consciente de comer é um fenômeno alexandrino; o bárbaro se alimenta. O ecletismo intelectual e religioso, o engenho sensual, o esteticismo e a obsessão hábil de boa mesa são os sinais diferentes de uma mesma forma de espírito. Quando Gabius Apicius peregrinava pelas costas da África para buscar lagostas, sem estabelecer-se em parte alguma porque não as encontrava a seu gosto, era contemporâneo das almas inquietas que adoravam uma multidão de deuses estrangeiros sem encontrar satisfação nem repouso. Sensações raras, deidades diversas, frutos paralelos de uma mesma secura, de uma mesma curiosidade sem força interior. O cristianismo apareceu: um só deus – e o jejum. E a era do trivial e do sublime começou...


Um povo está prestes a morrer quando já não tem força para inventar outros deuses, outros mitos, outros absurdos; seus ídolos empalidecem e desaparecem; busca outros, em outra parte, e sente-se só ante monstros desconhecidos. Também isto é a decadência. Mas se um desses monstros o vence, outro mundo se põe em movimento, rude, obscuro, intolerante até que esgota seu deus e se liberta dele; pois o homem só é livre – e estéril – nos intervalos em que os deuses morrem; escravo – criador – quando, tiranos, prosperam.


Meditar as sensações – saber que se come – é uma tomada de consciência graças à qual um ato elementar ultrapassa seu objetivo imediato. Ao lado do nojo intelectual desenvolve-se outro, mais profundo e mais perigoso: proveniente das vísceras, desemboca na forma mais grave de niilismo da repleção. As considerações mais amargas não poderiam comparar-se em seus efeitos, à visão que se segue a um festim opulento. Toda refeição que ultrapassa em duração os escassos minutos e, em iguarias, o necessário, desagrega nossas certezas. O abuso culinário e a saciedade destruíram o Império mais implacavelmente do que o fizeram as seitas orientais e as doutrinas gregas mal assimiladas. Só se experimenta um autêntico arrepio de ceticismo em trono de uma mesa copiosa. O “Reino dos Céus” devia oferecer-se como uma tentação depois de tantos excessos ou como uma surpresa deliciosamente perversa na monotonia da digestão. A fome busca na religião uma via de salvação; a saciedade, um veneno. “Salvar-se” por meio do vírus e, na indistinção das orações e dos vícios, fugir do mundo e chafurda-se nele pelo mesmo ato... esta é sem dúvida a suma das amarguras do alexandrinismo.


Há uma plenitude de diminuição em toda civilização demasiado madura. Os instintos tornam-se flexíveis; os prazeres se dilatam e não correspondem mais à sua função biológica; o prazer torna-se um fim em si, seu prolongamento uma arte, a escamoteação do orgasmo uma técnica, a sexualidade uma ciência. Procedimentos e inspirações livrescas para multiplicar as vias do desejo, a imaginação torturada para diversificar os preliminares do gozo, o espírito mesmo misturado com um setor estranho à sua natureza e sobre o qual não deveria ter nenhum domínio – tantos sintomas de empobrecimento do sangue e de intelectualização mórbida da carne. O amor concebido como ritual torna a inteligência soberana no império da besteira. Ressentem-se disto os automatismos; entravados, perdem sua impaciência por provocar uma inconfessável contorção; os nervos tornam-se o teatro de mal-estares e arrepios clarividentes e finalmente a sensação prolonga-se além de sua duração bruta graças à habilidade de dois carrascos da volúpia estudada. Trata-se do indivíduo enganando a espécie, do sangue demasiado tíbio para aturdir ainda o espírito, é o sangue esfriado e enfraquecido pelas ideias, o sangue racional.


Do diálogo nunca saiu nada monumental, explosivo, “grande”. Se a humanidade não houvesse se comprazido em discutir suas próprias forças, não teria superado a visão e os métodos de Homero. Mas a dialética, estragando a espontaneidade dos reflexos e o frescor dos mitos, reduziu o herói a um modelo titubeante. Os Aquiles de hoje devem temer mais do que um calcanhar... A vulnerabilidade, outrora parcial e sem importância, tornou-se o privilégio maldito, a essência de cada ser. A consciência penetrou em todas as partes e reside até na medula; de tal modo que o homem já não vive na existência, mas na teoria da existência...


Quem, lúcido, se compreenda, se explique, se justifique e domine seus atos, jamais fará um gesto memorável. A psicologia é o túmulo do herói. Os milhares de anos de religião e raciocínio debilitaram os músculos, a decisão e o impulso aventureiro. Como não desprezar as empresas da glória? Todo ato que não é presidido pela maldição luminosa do espírito representa uma sobrevivência da estupidez ancestral. As ideologias só foram inventadas para dar um brilho ao fundo de barbárie que se mantém através dos séculos, para cobrir as inclinações assassinas comuns a todos os homens. Hoje mata-se em nome de algo; ninguém se atreve a fazê-lo espontaneamente; de tal sorte que até os carrascos devem invocar motivos e, estando o heroísmo em desuso, quem se deixa tentar por ele, mais resolve um problema do que consome um sacrifício. A abstração insinuou-se na vida e na morte; os “complexos” apoderaram-se de grandes e pequenos. Da Ilíada à psicopatologia: este é todo o caminho do homem...


Nas civilizações em retrocesso, o crepúsculo é o sinal de um nobre castigo. Que deliciosa ironia devem experimentar ao ver-se excluídos do devir, após haver fixado durante séculos as normas do poder e os critérios do gosto! Com cada uma delas, todo um mundo se extingue. Sensações do último Grego, do último Romano! Como não deixar-se cativar pelos grandes ocasos? O encanto agônico que rodeia uma civilização, depois que abordou todos os problemas e os falseou maravilhosamente, oferece mais atrativos do que a ignorância inviolada por onde começou.


Cada civilização representa uma resposta às interrogações que o universo suscita; mas o mistério permanece intacto; outras civilizações, com novas curiosidades e deuses, se aventurarão nele, igualmente em vão, pois cada uma delas é apenas um sistema de equívocos...


No apogeu, engendram-se os valores; no crepúsculo, gastos e derrotados, são abolidos. Fascinação da decadência, das épocas em que as verdades já não têm vida... em que amontoam-se como esqueletos na alma pensativa e seca, no ossário dos sonhos...


Como me é caro este filósofo de Alexandria chamado Olimpius que, ao escutar uma voz cantar a Aleluia no Serapeion, expatriou-se para sempre! Isto aconteceu por volta do final do século IV: a sombria loucura da Cruz já lançava suas sombras sobre o Espírito. Mas ou menos na mesma época, um gramático, Paladas, por acaso escrevia; “Nós, os gregos, já não somos senão cinzas. Nossas esperanças estão tão enterradas como a dos mortos.” E isto é verdadeiro para todas as inteligências da época.


Em vão os Celso, Porfírio, Juliano o Apóstata obstinam-se em deter a invasão dessa sublimidade nebulosa que transborda das catacumbas: os apóstolos deixaram seus estigmas nas almas e multiplicaram seus estragos nas cidades. A era da grande Deformidade começa: uma histeria sem qualidade espalha-se pelo mundo. São Paulo – o agente eleitoral mais considerável de todos os tempos – fez suas excursões, infectando com suas epístolas, a claridade do crepúsculo antigo. Um epiléptico triunfa sobre cinco séculos de filosofia! A razão confiscada pelos Padres da igreja!


E se busco a data mais mortificante para o orgulho do espírito, se percorro o inventário das intolerâncias, não encontro nada comparável a este ano de 529,no qual, por ordem de Justiniano, a escola de Atenas foi fechada. Uma vez oficialmente suprimido o direito à decadência, crer torna-se uma obrigação... Este é o momento mais doloroso na história da Dúvida.


Quando um povo já não tem nenhum preconceito no sangue, só lhe resta como último recurso a vontade de desagregar-se. Imitando a música, essa disciplina da dissolução, despede-se das paixões, da dissipação lírica, do sentimentalismo, da cegueira. A partir de então, já não poderá adorar sem ironia: o sentimento das distâncias será para sempre seu atributo.


O preconceito é uma verdade orgânica, falsa em si mesma, mas acumulada pelas gerações e transmitida: não há modo de livrar-se dela impunemente. O povo que renuncia a ela sem escrúpulos renega-se sucessivamente até que não tenha mais nada a renegar. A duração e a consistência de seus preconceitos. Os povos orientais devem sua perenidade á sua fidelidade a eles mesmos: não tendo evoluído quase nada, não se traíram; não viveram, no sentido em que a vida é concebida pelas civilizações de ritmo precipitado, as únicas de que se ocupa a história; pois esta disciplina das auroras e das agonias arquejantes é um romance que se pretende rigoroso e que extrai seus temas dos arquivos do sangue...


O alexandrinismo é um período de sábias negações, um estilo de inutilidade e de recusa, um passeio de erudição e sarcasmo através da confusão dos valores e das crenças. Uma civilização evolui da agricultura ao paradoxo. Entre estes dois extremos desenvolve-se o combate entre a barbárie e a neurose: disto resulta o equilíbrio instável das épocas criadoras. Tal combate aproxima-se de seu fim; todos os horizontes se abrem sem que nenhum possa excitar uma curiosidade simultaneamente fatigada e desperta. Cabe então ao indivíduo desenganado florescer no vazio e ao vampiro intelectual saciar-se no sangue viciado das civilizações.


Deve-se levar a História a sério ou assisti-la como espectador? Ver nela um esforço na direção de uma meta ou o jogo de uma luz que se aviva e empalidece sem necessidade nem razão? A resposta depende de nosso grau de ilusão sobre o homem, de nossa curiosidade em adivinhar amaneira como se resolverá essa mistura de valsa e de matadouro que compõe e estimula seu devir. Há um mal do século, que é apenas a doença de uma geração; há outro que resulta de toda a experiência histórica e que se impõe como única conclusão para os tempos vindouros. Trata-se do “vago na alma”, da melancolia do “fim do mundo”. Tudo muda de aspecto, até o sol, tudo envelhece, até a desgraça...


Incapazes da retórica, somos os românticos da decepção clara. Hoje, Werther, Manfredo, René conhecedores de sua doença, a ostentariam sem pompa. Biologia, Fisiologia, Psicologia – nomes grotescos que, ao suprimir a ingenuidade de nosso desespero e introduzir a análise em nossos cantos, nos fazem desprezar a declamação! Filtradas pelos tratados, nossas doutas amarguras explicam nossas vergonhas e classificam nossos frenesis. Quando a consciência chegar a inclinar-se sobre todos os nossos segredos, quando for evacuado de nossa desgraça o último vestígio de mistério, guardaremos ainda um resto de febre e de exaltação para contemplar a ruína da existência e da poesia?


Sentir o peso da história, o fardo do devir e esse abatimento sob o qual se dobra a consciência quando considera o conjunto e a inanidade dos acontecimentos passados ou possíveis... A nostalgia, em vão, invoca um impulso ignorante das lições que se depreendem de tudo o que foi; há um cansaço, para o qual o próprio futuro é um cemitério, um cemitério virtual como tudo o que espera chegar a ser. Os séculos tornaram-se onerosos e pesam sobre cada instante. Estamos mais apodrecidos que todas as épocas, mais decompostos que todos os impérios. Nosso esgotamento interpreta a história, nossa prostração nos faz escutar os estertores das nações. Como atores cloróticos, nos preparamos para interpretar os papéis de parte supérflua no tempo castigado: o pano de busca do universo está roído pelas traças e, através de seus furos, só se veem máscaras e fantasmas...


O erro dos que captam a decadência é querer combatê-la, enquanto seria preciso fomentá-la: ao desenvolver-se, esgota-se e permite o advento de outras formas. O verdadeiro precursor não é o que propõe um sistema quando ninguém o quer, mas o que precipita o Caos e é seu agente e turiferário. É uma vulgaridade apregoar dogmas em plena época extenuada da qual todo sonho de futuro parece delírio ou impostura. Encaminhar-se para o fim da história com uma flor na lapela; único traje apropriado no desenvolvimento do tempo. Que lástima que não haja um Juízo Final, que não tenhamos ocasião para um grande desafio! Os crentes: farsantes da eternidade; a fé: necessidade de uma cena intemporal... Mas nós, descrentes, morremos com nossos cenários e demasiado cansados para nos deixar enganar pelas pompas prometidas a nossos cadáveres... Segundo Mestre Eckhart, a divindade precede Deus, e é sua essência, seu fundo insondável. O que encontraríamos no mais íntimo do homem que definisse sua substância por oposição à essência divina? A neurastenia; esta é para o homem o que a divindade é para Deus.


Vivemos em um clima de esgotamento: o ato de criar, de forjar, de fabricar é menos significativo por si mesmo que pelo vazio, pela, pela queda que se segue a ele. Comprometido por nossos esforços sempre e inevitavelmente, o fundo divino e inesgotável situa-se fora do campo de nossos conceitos e de nossas sensações. O homem nasceu com a vocação da fadiga: quando adotou a posição vertical e diminuiu assim suas possibilidades de apoio, condenou-se a debilidades desconhecidas para o animal que foi. Levar sobre duas pernas tanta matéria e todas as repugnâncias ligadas a ela! As gerações acumulam a fadiga e a transmitem; nossos pais nos legam um patrimônio de anemia, reservas de desânimo, recursos de decomposição e uma energia de morte que chega a ser mais poderosa que nossos instintos de vida. E é assim que o costume de desaparecer, apoiado por nosso capital de lassidão, nos permitirá realizar, na carne difusa, a neurastenia – nossa essência...


Não há nenhuma necessidade de crer em uma verdade para sustentá-la nem de amar uma época para justificá-la, pois todo princípio é demonstrável e todo acontecimento legítimo. O conjunto dos fenômenos – frutos do espírito ou do tempo, indiferentemente – é suscetível de ser aceito ou negado segundo nossa disposição do momento: os argumentos, surgidos de nosso rigor ou do nosso capricho, equivalem-se em tudo. Nada é indefensável, desde a proposição mais absurda ao crime mais monstruoso. A história das ideias, como a dos fatos, desenrola-se em um clima insensato: quem poderia, de boa-fé, encontrar um árbitro que conciliasse os litígios desses gorilas anêmicos ou sanguinários? Este mundo é o lugar onde se pode afirmar tudo com igual verossimilhança: axiomas e delírios são intercambiáveis; ímpetos e desfalecimentos se confundem; elevações e baixezas participam de um mesmo movimento. Indique-me um só caso em defesa do qual não se pudesse encontrar nada. Os advogados do inferno não têm menos títulos de verdade que os do céu, e eu defenderia a causa do sábio e a do louco com igual fervor ou um acontecimento, quando se atualizam, tomam uma forma e se degradam. Assim, da comoção da turba dos seres derivou a História e, com ela, o único desejo puro que inspirou: que se acabe de uma maneira ou de outra.


Demasiado maduros para outras auroras, e tendo compreendido demasiados séculos para desejar outros novos, só nos resta chafurdar na escória das civilizações. A marcha do tempo só seduz ainda os imberbes e os fanáticos...


Somos os grandes decrépitos, oprimidos pelos antigos sonhos, para sempre inaptos para a utopia, técnicos de fadigas, coveiros do futuro, horrorizados pelos avatares do velho Adão. A árvore da vida não conhecerá mais primaveras: é madeira seca; com ela se farão ataúdes para nossos ossos, nossos sonhos e nossas dores. Nossa carne herdou o fedor das belas carcaças disseminadas pelos milênios. Sua glória nos fascinou e a esgotamos. No cemitério do Espírito repousam os princípios e as fórmulas: o Belo está definido e ali jaz enterrado. E também o Verdadeiro, o Bem, o Saber e os Deuses. Ali apodrecem todos (a história: âmbito onde se decompõem as maiúsculas e, com elas, os que as imaginaram e veneraram).


Passeio. Sob esta cruz dorme seu último sono a Verdade, a seu lado, o Encanto; mais diante, o Rigor e sobre uma multidão de lajes que cobrem delírios e hipóteses ergue-se o mausoléu do Absoluto: nele jazem as falsas consolações e os cumes enganosos da alma. Mas mais alto ainda, coroando esse silêncio. O Erro paira – e detém os passos do fúnebre sofista.


Como a existência do homem é a aventura mais considerável e mais estranha que a natureza já conheceu, é inevitável que seja também a mais curta; seu fim é previsível e desejável: prolongá-la indefinidamente seria indecente. Tendo percebido os riscos de sua exceção, o animal paradoxal vai jogar ainda durante séculos e mesmo milênios sua última cartada. Devemos lamentá-lo? Evidentemente jamais igualará suas glórias passadas, pois nada indica que suas possibilidades suscitem um dia um rival de Bach ou de Shakespeare. A decadência manifesta-se em primeiro lugar nas artes: a “civilização” sobrevive certo tempo à sua decomposição. Assim ocorrerá com o homem: continuará suas proezas, mas seus recursos espirituais se esgotarão, da mesma forma que o vigor de sua inspiração. A sede de poder e de domínio apossou-se demasiado de sua alma: quando for dono de tudo, já não será de seu fim. Como ainda não possui todos os meios para destruir e destruir-se, não perecerá de imediato: mas é indubitável que forjará um instrumento de aniquilação total antes de descobrir uma panacéia, a qual, de resto, não parece entrar nas possibilidades da natureza. Se aniquilará enquanto criador: devemos concluir que todos os homens desaparecerão da terra? Não é preciso ver as coisas cor-de-rosa. Uma boa, os sobreviventes, continuarão se arrastando, raça de sub-homens, exploradores do apocalipse...


Não está nas mãos do homem evitar perder-se. Seu instinto de conquista e de análise aumenta seu império para em seguida destruir o que encontra; o que acrescenta à vida volta-se contra ela. Escravo de suas criações, é – enquanto criador –, um agente do Mal. Isto é tão certo aplicado a um remendão como a um sábio, e – em um plano absoluto – ao menor inseto e a Deus. A humanidade poderia ter permanecido na estagnação e prolongado sua duração se fosse composta apenas por brutos e céticos; mas, sequiosa de eficácia, promoveu essa multidão ofegante e positiva, condenada à ruína por excesso de trabalho e curiosidade. Ávida de seu próprio pó, preparou seu fim e o prepara todos os dias. Assim, mais próxima de seu desenlace que de seu começo, só reserva a seus filhos o ardor desiludido ante o apocalipse...


A imaginação concebe facilmente um porvir em que os homens gritarão em coro: “Somos os últimos: cansados do futuro, e ainda mais de nós mesmos, extraímos o sumo da terra e despojamos os céus. Nem a miséria nem o espírito podem continuar alimentando nossos sonhos: este universo está tão seco como nossos corações. Já não há substância em parte alguma: nossos ancestrais nos legaram sua alma em farrapos e sua medula carcomida. A aventura chega ao seu fim: a consciência expira; nossos cantos se desvaneceram; eis que brilha o sol dos moribundos!”


Se, por acaso ou por milagre, as palavras se volatilizassem, mergulharíamos em uma angústia e em um embotamento intoleráveis. Tal mutismo nos exporia ao mais cruel suplício. É o uso do conceito que nos torna donos de nossos temores. Dizemos: a Morte, e esta abstração nos exime de experimentar sua infinitude e seu horror. Batizando as coisas e os acontecimentos eludimos o Inexplicável: a atividade do espírito é uma trapaça salutar, um exercício de escamoteação; permite-nos circular por uma realidade suavizada, confortável e inexata. Aprender a manejar os conceitos – desaprender a olhar as coisas... A reflexão nasceu em um dia de fuga; dela resultou a pompa verbal. Mas quando se volta a si mesmo e se está só – sem a companhia das palavras –, redescobre-se o universo inqualificado, o objeto puro, o acontecimento nu: de onde extrais a audácia para enfrentá-los? Já não se especula sobre a morte, se é a morte; em vez de adornar a vida e atribuir-lhes fins, arrancamos seus ornamentos e reduzimo-la a sua justa significação: um eufemismo para o Mal. As grandes palavras: destino, infortúnio, desgraça, despojam-se de seu brilho; e é então que se percebe a criatura brigando com órgãos enfraquecidos, vencida por uma matéria prostrada e atônita. Retire do homem a mentira da Desgraça, dê-lhe o poder de olhar por debaixo desse vocábulo: não poderá suportar um só instante sua desgraça. É a abstração, as sonoridades sem conteúdo, dilapidadas e empoladas, que o impediram de desaparecer, e não as religiões e os instintos.


Quando Adão foi expulso do Paraíso, em vez de insultar seu perseguidor, apressou-se em batizar as coisas: era a única maneira de acomodar-se com elas e de esquecê-las; foram assentadas as bases do idealismo. E o que foi apenas um gesto, uma reação de defesa no primeiro balbuciador, tornou-se teoria em Platão, Kant e Hegel.


Para não nos determos demais em nosso acidente, convertemos em entidade até nosso nome; como morrer quando nos chamamos Pedro ou Paulo? Cada um de nós, mais atento à aparência imutável de seu nome que à de seu ser, entrega-se a uma ilusão de imortalidade; uma vez desvanecida a articulação, ficaríamos totalmente sós; o místico que adota o silêncio renunciou à sua condição de criatura. Imaginemo-lo, além disso, sem fé – místico niilista – e temos o coroamento desastroso da aventura terrestre.


... É muito natural pensar que o homem, cansado das palavras, ao cabo da repetição fatidiosa do tempo, desbatizará as coisas e queimará seus nomes e o seu em um grande auto-de-fé onde sumirão suas esperanças. Todos nós corremos na direção desse modelo final, na direção do homem mudo e desnudo...


Experimento a idade da Vida, sua velhice, sua decrepitude. Desde épocas incalculáveis, transcorre sobre a superfície do globo graças ao milagre dessa falsa imortalidade que é a inércia; demora-se ainda nos reumatismos do Tempo, nesse tempo mais velho do que ela, extenuado em seu delírio senil, no fastio repetitivo de seus instantes, de sua duração caduca.


E sinto todo peso da espécie e assunto toda a sua solidão. Oxalá desaparecesse! – mas sua agonia prolonga-se em uma eternidade de podridão. Proporciono a cada instante a opção de destruir-me: não envergonhar-se de respirar é uma canalhice. Nem pacto com a vida, nem pacto com a morte: havendo desaprendido a ser, consinto em apagar-me. O devir, que crime enorme!


Exaurido por todos os pulmões, o ar já não se renova. Cada dia vomita sua manhã e em vão esforço-me para imaginar o rosto de um só desejo. Tudo me é pesado: extenuado como uma besta de carga à qual se tivesse atrelado a Matéria, arrasto os planetas.


Que me ofereçam outro universo, ou sucumbo.


Só amo a irrupção e a ruína das coisas, o fogo que as suscita e que as devora. A duração do mundo me exaspera; seu nascimento e seu desvanecimento me encantam. Viver sob a fascinação do sol virginal e do sol decrépito; saltar as pulsações do tempo para captar a original e a última..., sonhar com a improvisação dos astros e com sua decantação; desdenhar a rotina de ser e precipitar-se nos dois abismos que a ameaçam; esgotar-se no início e no término dos instantes...


... Assim se descobre dentro de si o Selvagem e o Decadente, coabitação predestinada e contraditória: dois personagens que sofrem a mesma atração da passagem, um do nada para o mundo, o outro do mundo para o nada: é a necessidade de uma dupla convulsão, em escala metafísica. Está aí a necessidade traduzir-se na escala da história, na obsessão de Adão que o Paraíso expulsou, e daquele que a Terra expulsará: os dois extremos da impossibilidade do homem.


Pelo que há de “profundo” em nós, estamos expostos a todos os males: não há salvação enquanto conservemos a conformidade com nosso ser. Algo deve desaparecer de nossa composição e uma fonte nefasta deve secar; só há uma saída: abolir a alma, suas aspirações e seus abismos; ela envenenou nossos sonhos; é preciso extirpá-la, como também sua necessidade de “profundidade”, sua fecundidade “interior”, e suas demais aberrações. O espírito e a sensação nos bastarão; de seu concurso nascerá uma disciplina da esterilidade que nos preservará dos entusiasmos e das angústias. Que nenhum “sentimento” torne a preocupar-nos, e que a “alma” se transforme na velharia mais ridícula...


 Emil Cioran

Todo risco

Abdullah Evindar.


A possibilidade

de arriscar

é que nos faz homens.


Voo perfeito

no espaço que criamos.


Ninguém decide

sobre os passos

que evitamos.


Certeza

de que somos pássaros

e que voamos.


Tristeza

de que não vamos

por medo dos caminhos.


Damário Cruz


quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

O livro do desassossego [102]


A vida é para nós o que concebemos nela. Para o rústico cujo campo próprio lhe é tudo, esse campo é um império. Para o César cujo império lhe ainda é pouco, esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade, não possuímos mais que as nossas próprias sensações; nelas, pois, que não no que elas veem, temos que fundamentar a realidade da nossa vida.

Isto não vem a propósito de nada.

Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa? Quantos Césares fui! E os gloriosos, que mesquinhos! César, salvo da morte pela generosidade de um pirata, manda crucificar esse pirata logo que, procurando-o bem, o consegue prender. Napoleão, fazendo seu testamento em Santa Helena, deixa um legado a um facínora que tentara assinar a Wellington. Ó grandezas iguais às da alma da vizinha vesga! Ó grandes homens da cozinheira de outro mundo! Quantos Césares fui, e sonho todavia ser.

Quantos Césares fui, mas não dos reais. Fui verdadeiramente imperial enquanto sonhei, e por isso nunca fui nada. Os meus exércitos foram derrotados, mas a derrota foi fofa, e ninguém morreu. Não perdi bandeiras. Não sonhei até ao ponto do exército, onde elas aparecessem ao meu olhar em cujo sonho há esquina. Quantos Césares fui, aqui mesmo, na Rua dos Douradores. E os Césares que fui vivem ainda na minha imaginação; mas os Césares que foram estão mortos, e a Rua dos Douradores, isto é, a Realidade, não os pode conhecer.

Atiro com a caixa de fósforos, que está vazia, para o abismo que a rua é para além do parapeito da minha janela alta sem sacada. Ergo-me na cadeira e escuto. Nitidamente, como significasse qualquer coisa, a caixa de fósforos vazia soa na rua que me declara deserta. Não há mais som nenhum, salvo os da cidade inteira. Sim, os da cidade dum domingo inteiro — tantos, sem se entenderem, e todos certos.

Quão pouco, no mundo real, forma o suporte das melhores meditações. O ter chegado tarde para almoçar, o terem-se acabado os fósforos, o ter eu atirado, individualmente, a caixa para a rua, maldisposto por ter comido fora de horas, ser domingo a promessa aérea de um poente mau, o não ser ninguém no mundo, e toda a metafísica.

Mas quantos Césares fui!


Bernardo Soares. Fernando Pessoa

O livro do desassossego

DOS QUE DESPREZAM O CORPO



Aos que desprezam o corpo quero dizer a minha opinião. O que devem fazer não é mudar de preceito, mas simplesmente despedirem-se do seu próprio corpo, e por conseguinte, ficarem mudos.


“Eu sou corpo e alma” — assim fala a criança. — E porque sei não há de falar como as crianças?

Mas o que está desperto e atento diz: — “Tudo é corpo, e nada mais; a alma é apenas nome de qualquer coisa do corpo”.

O corpo é uma razão em ponto grande, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.

Instrumento do teu corpo é também a tua razão pequena, a que chamas espírito: um instrumentozinho e um pequeno brinquedo da tua razão grande.

Tu dizes “Eu” e orgulhas-te dessa palavra. Porém, maior — coisa que tu não queres crer — é o teu corpo e a tua razão grande. Ele não diz Eu, mas: procede como Eu.

O que os sentidos apreciam, o que o espírito conhece, nunca em si tem seu fim; mas os sentidos e o espirito quereriam convencer-te de que são fim de tudo; tão soberbos são.

Os sentidos e o espírito são instrumentos e joguetes; por detrás deles se encontra o nosso próprio ser . Ele esquadrinha com os olhos dos sentidos e escuta com os olhos do espirito.

Sempre escuta e esquadrinha o próprio ser: combina, submete, conquista e destrói.

Reina, e é também soberano do Eu.

Por detrás dos teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um senhor mais poderoso, um guia desconhecido, chama-se “eu sou”. Habita no teu corpo; é o teu corpo.

Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E quem sabe para que necessitará o teu corpo precisamente da tua melhor sabedoria?

O próprio ser se ri do teu Eu e dos seus saltos arrogantes. Que significam para mim esses saltos e voos do pensamento? — diz. — Um rodeio para o meu fim. Eu sou o guia do Eu e o inspirador de suas ideias.

O nosso próprio ser diz ao Eu: “Experimenta dores!” E sofre e medita em não sofrer mais; e para isso deve pensar.

O nosso próprio ser diz ao Eu: “Experimenta alegrias!” regozija-se então e pensa em continuar a regozijar-se frequentemente; e para isso deve pensar.

Quero dizer uma coisa aos que desprezam o corpo: desprezam aquilo a que devem a sua estima. Quem criou a estima e o menosprezo e o valor e a vontade?

O próprio ser criador criou a sua estima e o seu menosprezo, criou a sua alegria e a sua dor. O corpo criador criou a si mesmo o espírito como emanação da sua vontade.

Desprezadores do corpo: até na vossa loucura e no vosso desdém sereis o vosso próprio ser. Eu vos digo: o vosso próprio ser quer morrer e se afasta da vida.

Não pode fazer o que mais desejaria: criar superando-se a si mesmo. É isto o que ele mais deseja; é esta a sua paixão toda.

É, porém, tarde demais para isso: de maneira que até o vosso próprio ser quer desaparecer, desprezadores do corpo.

O vosso próprio ser quer desaparecer: por isso desprezais o corpo! Porque não podeis criar já, superando-vos a vós mesmos.

Por isso vos revoltais contra a vida e a terra. No olhar oblíquo do vosso menosprezo transparece uma inveja inconsciente.

Eu não sigo o vosso caminho, desprezadores do corpo! Vós, para mim não sois pontes que se encaminhem para o Super-homem!


Friedrich Nietzsche Assim falou Zaratustra


quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A sociedade do espetáculo (Guy Debord)


Capítulo I

A separação acabada


E sem dúvida o nosso tempo prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... O que é sagrado para ele, não é senão a ilusão, mas o que é profano é a verdade. Melhor, o sagrado cresce a seus olhos à medida que decresce a verdade e que a ilusão aumenta, de modo que para ele o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado. (Feuerbach, prefácio à segunda edição de A essência do cristianismo.)

1

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se afastou numa representação.

2

As imagens que se desligaram de cada aspecto da vida fundem-se num curso comum, onde a unidade desta vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente desdobra-se na sua própria unidade geral enquanto pseudomundo à parte, objeto de exclusiva contemplação. A especialização das imagens do mundo encontra-se realizada no mundo da imagem autonomizada, onde o mentiroso mentiu a si próprio. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo.

3

O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade, e como instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, ele é expressamente o setor que concentra todo o olhar e toda a consciência. Pelo próprio fato de este setor ser separado, ele é o lugar do olhar iludido e da falsa consciência; e a unificação que realiza não é outra coisa senão uma linguagem oficial da separação generalizada.

4

O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.

5

O espetáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da visão, o produto das técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é bem mais uma Weltanschauung tornada efetiva, materialmente traduzida. É uma visão do mundo que se objetivou.

6

O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um suplemento ao mundo real, a sua decoração re-adicionada. É o coração da irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares, informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o seu corolário o consumo. Forma e conteúdo do espetáculo são, identicamente, a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo é também a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação da parte principal do tempo vivido fora da produção moderna.

7

A própria separação faz parte da unidade do mundo, da práxis social global que se cindiu em realidade e imagem. A prática social, perante a qual se põe o espetáculo autônomo, é também a totalidade real que contém o espetáculo. Mas a cisão nesta totalidade mutila-a ao ponto de fazer aparecer o espetáculo como sua finalidade. A linguagem do espetáculo é constituída por signos da produção reinante, que são ao mesmo tempo a finalidade última desta produção.

8

Não se pode opor abstratamente o espetáculo e a atividade social efetiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espetáculo que inverte o real é efetivamente produzido. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, e retoma em si própria a ordem espetacular dando-lhe uma adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. Cada noção assim fixada não tem por fundamento senão a sua passagem ao oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente.

9

No mundo realmente re-invertido, o verdadeiro é um momento do falso.

10

O conceito de espetáculo unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. As suas diversidades e contrastes são as aparências desta aparência organizada socialmente, que deve, ela própria, ser reconhecida na sua verdade geral. Considerado segundo os seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, isto é, social, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; como uma negação da vida que se tornou visível.

11

Para descrever o espetáculo, a sua formação, as suas funções e as forças que tendem para a sua dissolução, é preciso distinguir artificialmente elementos inseparáveis. Ao analisar o espetáculo, fala-se em certa medida a própria linguagem do espetacular, no sentido em que se pisa o terreno metodológico desta sociedade que se exprime no espetáculo. Mas o espetáculo não é outra coisa senão o sentido da prática total de uma formação socioeconômica, o seu emprego do tempo. É o momento histórico que nos contém.

12

O espetáculo apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão que "o que aparece é bom, o que é bom aparece". A atitude que ele exige por princípio é esta aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência.

13

O caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do simples fato de os seus meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade. Ele é o sol que não tem poente, no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria glória.

14

A sociedade que repousa sobre a indústria moderna não é fortuitamente ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente espetaculosa. No espetáculo, imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenvolvimento é tudo. O espetáculo não quer chegar a outra coisa senão a si próprio.

15

Enquanto indispensável adorno dos objetos hoje produzidos, enquanto exposição geral da racionalidade do sistema, e enquanto setor econômico avançado que modela diretamente uma multidão crescente de imagens-objetos, o espetáculo é a principal produção da sociedade atual.

16

O espetáculo submete a si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si própria. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores.

17

A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social pelos resultados acumulados da economia conduz a um deslizar generalizado do ter em parecer, de que todo o "ter" efetivo deve tirar o seu prestígio imediato e a sua função última. Ao mesmo tempo, toda a realidade individual se tornou social, diretamente dependente do poderio social, por ele moldada. Somente nisto em que ela não é, lhe é permitido aparecer.

18

Lá onde o mundo real se converte em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especializadas o mundo que já não é diretamente apreensível, encontra normalmente na visão o sentido humano privilegiado que noutras épocas foi o tato; o sentido mais abstrato, e o mais mistificável, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o espetáculo não é identificável ao simples olhar, mesmo combinado com o ouvido. Ele é o que escapa à atividade dos homens, à reconsideração e à correção da sua obra. É o contrário do diálogo. Em toda a parte onde há representação independente, o espetáculo reconstitui-se.

19

O espetáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental, que foi uma compreensão da atividade, dominada pelas categorias do ver; assim como se baseia no incessante alargamento da racionalidade técnica precisa, proveniente deste pensamento. Ele não realiza a filosofia, ele filosofa a realidade. É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo.

20

A filosofia, enquanto poder do pensamento separado, e pensamento do poder separado, nunca pode por si própria superar a teologia. O espetáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa. A técnica espetacular não dissipou as nuvens religiosas onde os homens tinham colocado os seus próprios poderes desligados de si: ela ligou- os somente a uma base terrestre. Assim, é a mais terrestre das vidas que se torna opaca e irrespirável. Ela já não reenvia para o céu, mas alberga em si a sua recusa absoluta, o seu falacioso paraíso. O espetáculo é a realização técnica do exílio dos poderes humanos num além; a cisão acabada no interior do homem.

21

À medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que finalmente não exprime senão o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono.

22

O fato de o poder prático da sociedade moderna se ter desligado de si próprio, e ter edificado para si um império independente no espetáculo, não se pode explicar senão pelo fato de esta prática poderosa continuar a ter falta de coesão, e permanecer em contradição consigo própria.

23

É a especialização do poder, a mais velha especialização social, que está na raiz do espetáculo. O espetáculo é, assim, uma atividade especializada que fala pelo conjunto das outras. É a representação diplomática da sociedade hierárquica perante si própria, onde qualquer outra palavra é banida. O mais moderno é também aí o mais arcaico.

24

O espetáculo é o discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso. É o autorretrato do poder na época da sua gestão totalitária das condições de existência. A aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares esconde o seu caráter de relação entre homens e entre classes: uma segunda natureza parece dominar o nosso meio ambiente com as suas leis fatais. Mas o espetáculo não é esse produto necessário do desenvolvimento técnico olhado como um desenvolvimento natural. A sociedade do espetáculo é, pelo contrário, a forma que escolhe o seu próprio conteúdo técnico. Se o espetáculo, considerado sob o aspecto restrito dos "meios de comunicação de massa", que são a sua manifestação superficial mais esmagadora, pode parecer invadir a sociedade como uma simples instrumentação, esta não é de fato nada de neutro, mas a instrumentação mesmo que convém ao seu automovimento total. Se as necessidades sociais da época em que se desenvolvem tais técnicas não podem encontrar satisfação senão pela sua mediação, se a administração desta sociedade e todo o contato entre os homens já não se podem exercer senão por intermédio deste poder de comunicação instantâneo, é porque esta "comunicação" é essencialmente unilateral; de modo que a sua concentração se traduz no acumular nas mãos da administração do sistema existente os meios que lhe permitem prosseguir esta administração determinada. A cisão generalizada do espetáculo é inseparável do Estado moderno, isto é, da forma geral da cisão na sociedade, produto da divisão do trabalho social e órgão da dominação de classe.

25

A separação é o alfa e o ômega do espetáculo. A institucionalização da divisão social do trabalho, a formação das classes, tinha construído uma primeira contemplação sagrada, a ordem mítica em que todo o poder se envolve desde a origem. O sagrado justificou a ordenação cósmica e ontológica que correspondia aos interesses dos Senhores, ele explicou e embelezou o que a sociedade não podia fazer. Todo o poder separado foi pois espetacular, mas a adesão de todos a uma tal imagem imóvel não significava senão o reconhecimento comum de um prolongamento imaginário para a pobreza da atividade social real, ainda largamente ressentida como uma condição unitária. O espetáculo moderno exprime, pelo contrário, o que a sociedade pode fazer, mas nesta expressão o permitido opõe-se absolutamente ao possível. O espetáculo é a conservação da inconsciência na modificação prática das condições de existência. Ele é o seu próprio produto, e ele próprio fez as suas regras: é um pseudo-sagrado. Ele mostra o que é: o poder separado, desenvolvendo-se em si mesmo no crescimento da produtividade por intermédio do refinamento incessante da divisão do trabalho na parcelarização dos gestos, desde então dominados pelo movimento independente das máquinas; e trabalhando para um mercado cada vez mais vasto. Toda a comunidade e todo o sentido crítico se dissolveram ao longo deste movimento, no qual as forças que puderam crescer, separando-se, ainda não se reencontraram.

26

Com a separação generalizada do trabalhador e do seu produto perde-se todo o ponto de vista unitário sobre a atividade realizada, toda a comunicação pessoal direta entre os produtores. Na senda do progresso da acumulação dos produtos separados, e da concentração do processo produtivo, a unidade e a comunicação tornam-se o atributo exclusivo da direção do sistema. O êxito do sistema econômico da separação é a proletarização do mundo.

27

Pelo próprio êxito da produção separada enquanto produção do separado, a experiência fundamental ligada nas sociedades primitivas a um trabalho principal está a deslocar-se, no polo do desenvolvimento do sistema, para o não-trabalho, a inatividade. Mas esta inatividade não está em nada liberta da atividade produtiva: depende desta, é a submissão inquieta e admirativa às necessidades e aos resultados da produção; ela própria é um produto da sua racionalidade. Nela não pode haver liberdade fora da atividade, e no quadro do espetáculo toda a atividade é negada, exatamente como a atividade real foi integralmente captada para a edificação global desse resultado. Assim, a atual "libertação do trabalho", o aumento dos tempos livres, não é de modo algum libertação do trabalho, nem libertação de um mundo moldado por este trabalho. Nada da atividade roubada no trabalho pode reencontrar-se na submissão ao seu resultado.

28

O sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular do isolamento. O isolamento funda a técnica, e, em retorno, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também as suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das "multidões solitárias". O espetáculo reencontra cada vez mais concretamente os seus próprios pressupostos.

29

A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno exprime a totalidade desta perda: a abstração de todo o trabalho particular e a abstração geral da produção do conjunto traduzem-se perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstração. No espetáculo, uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e é-lhe superior. O espetáculo não é mais do que a linguagem comum desta separação. O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível no próprio centro que mantém o seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado.

30

A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhos apresenta. Eis porque o espectador não se sente em casa em nenhum lado, porque o espetáculo está em toda a parte.

31

O trabalhador não se produz a si próprio, ele produz um poder independente. O sucesso desta produção, a sua abundância, regressa ao produtor como abundância da despossessão. Todo o tempo e o espaço do seu mundo se lhe tornam estranhos com a acumulação dos seus produtos alienados. O espetáculo é o mapa deste novo mundo, mapa que recobre exatamente o seu território. As próprias forças que nos escaparam se nos mostram em todo o seu poderio.

32

O espetáculo na sociedade corresponde a um fabrico concreto de alienação. A expansão econômica é principalmente a expansão desta produção industrial precisa. O que cresce com a economia, movendo-se para si própria, não pode ser senão a alienação que estava justamente no seu núcleo original.

33

O homem separado do seu produto produz cada vez mais poderosamente todos os detalhes do seu mundo e, assim, encontra-se cada vez mais separado do seu mundo. Quanto mais a sua vida é agora seu produto, tanto mais ele está separado da sua vida.

34

O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se toma imagem.

Poema



Diante de tua beleza as coisas se apagaram.

És o golfo onde escondi meu barco doente

e a cripta onde deporei meus mortos.

Ave e orvalho, mulher e cornamusa.

Somos irmãos no mito

e eis que te refaço

com a seiva de meu ser.

De ti recolho este secreto espanto,

este secreto mel,

Em ti refaço a viagem não feita, o riso não rido e o amor não amado.

És a beleza mesma adiada no tempo

E nos outros a necessidade de sua perfeição.


- Paulo Plínio Abreu, em "Poesia". 2ª ed., Belém: EDUFPA, 2008.

 

Willem Haenraets

A manhã é a juventude do dia; tudo é luminoso, fresco e fácil; sentimo-nos vigorosos e dispomos de todas as nossas faculdades. Não devemos abreviá-la levantando tarde, nem gastá-la em ocupações ou em conversas vulgares; pelo contrário, devemos considerá-la como a quintessência da vida e, por assim dizer, como algo sagrado.


— Arthur Schopenhauer, in aforismos para a sabedoria

domingo, 16 de janeiro de 2022

O aprendiz

 



Primeiro construí na areia, depois na rocha,

Quando a rocha ruiu,

Não construí mais nada.

Depois construí muitas vezes de novo

Ora na areia, ora na rocha, porém

Eu aprendi.


Aqueles a quem confiei a carta

Jogaram-na fora. Os outros, que nem notei,

A mim a trouxeram de volta.

Então aprendi.


O que eu mandei fazer não foi realizado,

Mas quando cheguei ao lugar

Vi que seria errado. O certo

Foi feito.

Disso eu aprendi.


As cicatrizes doem

No tempo frio.

Mas eu digo sempre: só o túmulo

Não me ensina mais nada.


Bertolt Brecht 

Livro do desassossego [36]


Não são as paredes reles do meu quarto vulgar, nem as secretárias velhas do escritório alheio, nem a pobreza das ruas intermédias da Baixa usual, tantas vezes por mim percorridas que já me parecem ter usurpado a fixidez da irreparabilidade, que formam no meu espírito a náusea, que nele é frequente, da quotidianidade enxovalhante da vida. São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto físico. E a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo.

Há momentos em que cada pormenor do vulgar me interessa na sua existência própria, e eu tenho por tudo a afeição de saber ler tudo claramente. Então vejo — como Vieira disse que Sousa descrevia — o comum com singularidade, e sou poeta com aquela alma com que a crítica dos gregos formou a idade intelectual da poesia. Mas também há momentos, e um é este que me oprime agora, em que me sinto mais a mim que às coisas externas, e tudo se me converte numa noite de chuva e lama, perdido na solidão de um apeadeiro de desvio, entre dois comboios de terceira classe.

Sim, a minha virtude íntima de ser frequentemente objetivo, e assim me extraviar de pensar-me, sofre, como todas as virtudes, e até como todos os vícios, decréscimos de afirmação. Então pergunto a mim mesmo como é que me sobrevivo, como é que ouso ter a covardia de estar aqui, entre esta gente, com esta igualdade certeira com eles, com esta conformação verdadeira com a ilusão de lixo de eles todos? Ocorrem-me com um brilho de farol distante todas as soluções com que a imaginação é mulher — o suicídio, a fuga, a renúncia, os grandes gestos da aristocracia da individualidade, o capa e espada das existências sem balcão.

Mas a Julieta ideal da realidade melhor fechou sobre o Romeu fictício do meu sangue a janela alta da entrevista literária. Ela obedece ao pai dela; ele obedece ao pai dele. Continua a rixa dos Montecchios e dos Capuletos; cai o pano sobre o que não se deu; e eu recolho a casa — àquele quarto onde é sórdida a dona de casa que não está lá, os filhos que raras vezes vejo, a gente do escritório que só verei amanhã — com a gola de um casaco de empregado do comércio erguida sem estranhezas sobre o pescoço de um poeta, com as botas compradas sempre na mesma casa evitando inconscientemente os charcos da chuva fria, e um pouco preocupado, misturadamente, de me ter esquecido sempre do guarda-chuva e da dignidade da alma.


Bernardo Soares. Fernando Pessoa

Livro do desassossego

Limite Branco - Caio Fernando Abreu

 


IV LUCIANA 

Luciana morta dentro do caixão enorme. Sobre a mesa, quatro velas ardendo. Coroas de flores por toda parte. A chuva batendo nas vidraças, o vento inclinando plátanos e eucaliptos, que despiam suas folhas para jogá-las contra a janela. A chuva esmaecia o contorno dos corpos, apagava o rosto das pessoas, suavizando os ângulos dos objetos para transformar tudo numa massa cinzenta, aqui e ali entrecortada por soluços. Caminhos de lama pelo chão, coisas de fora que as solas dos sapatos das pessoas traziam e depositavam no assoalho encerado dois dias antes pela própria Luciana. 

Maurício encolheu-se no fundo da poltrona, enrolando-se mais no cobertor. Mamãe o mandara ficar ali, sem se mover, com um rosto tão sério que ele nem sequer se atrevia a mudar de posição. A perna já estava dormente, como se cravassem nela mil agulhas muito finas e compridas. Luciana não ia voltar nunca mais, ele sabia. E agora, meu Deus, como seria agora nas noites de chuva e vento — como hoje — quando ela vinha com seus braços cheirosos e seu sorriso bonito afastar o medo e a insônia — como seria, meu Deus? Veio uma ardência nos olhos. Uma sugestão de lágrima dançou úmida no pensamento. Mas ele a afastou, medo e vergonha de ceder: “Seja homem”, Luciana dizia. “Homem não chora.” 

Como vai ser, Luciana? Me diz, como vai ser quando eu estiver com resfriado e tu não estiveres pra me dar chá de laranjeira? Como vai ser quando entrar um caco de vidro no meu pé e não tiver ninguém pra botar mercúrio e esparadrapo? Luciana, me diz, quem é que vai fazer pandorga pra mim quando estiver ventando um ventinho bom? Quem vai fazer doce de abóbora e me deixar comer a rapa no fundo do tacho? Quem vai escolher forquilha boa pra me fazer um bodoque? Quem Luciana, quem? 

As lágrimas começavam a escorrer, ele não tinha mais vergonha. Quentes, desciam pelas faces, ensopando o cobertor, pingando sobre o chão encerado — ainda anteontem, meu Deus — por Luciana. E Maurício não sabia se chorava por ela ou por si mesmo, sem Luciana. Sentia-se pequenino, só, perdido dentro do cobertor, aquele tremor que não era frio nem medo: uma tristeza fininha como as agulhas cravadas na perna dormente, vontade de encostar a cabeça no ombro de alguém que contasse baixinho uma história qualquer.  

Olhou em volta. Não conseguia distinguir os rostos das pessoas. Sabia que ali estavam vizinhos, comadres, que aquela sombra de farda verde, cabeça enterrada nas mãos abertas, era o noivo de Luciana, que o vulto mais soluçante de todos era o de tia Violeta. Sabia, mas não podia acreditar que fossem eles mesmos. Quem sabe se não estavam todos fazendo de conta e de repente alguém ia dar uma grande risada enquanto Luciana levantava do caixão, atirando para longe os panos roxos e as flores que afogavam seu rosto, quem sabe? Chegou a mexer a perna, tirou o pescoço para fora do cobertor. Agora, pensou com força. Cravou as unhas nas palmas das mãos, fechou os olhos, aguardou a risada que viria acabar com tudo. Agora, repetiu. Foi baixando novamente a cabeça, os lábios roçando pelo pano áspero de lã. Agora agora agora. Mas nada acontecia além das conversas que saíam das bocas das pessoas e rolavam até seus ouvidos, incompreensíveis: 

— Mas como foi fazer isso? Uma moça boa, forte, bonita, alegre, trabalhadeira... 

— ... noiva — acrescentou alguém de voz rouca. 

— É mesmo, ainda mais essa. Fico com pena é do rapaz. Dela, não, porque, afinal, o que é que a gente importa neste vale de lágrimas? 

— Nada — respondeu a voz rouca.

Uma terceira voz intrometeu-se na conversa. Voz de cachorro, Maurício pensou, descobrindo no fim das palavras tons agudos que lembravam latidos. 

— Diz que o padre nem quis encomendar o corpo da infeliz. 

— É pecado — disse a voz rouca. 

A primeira tornou a falar: 

— Foi formicida, não foi? 

A voz de cachorro, que parecia bem-informada, esclareceu:

— Não. Soda cáustica. 

— Aceita um cafezinho? — perguntou de repente uma outra voz. 

Maurício escondeu as orelhas no cobertor. Não queria mais ouvir. Passou as mãos pelos tornozelos fazendo-as subir até os joelhos, onde se detiveram sobre uma casquinha de ferida. Tiro ou não tiro? Acariciou a casquinha, deixando deslizar entre os dedos a forma arredondada. Lembrou a voz de Luciana, uma voz lustrosa, entremeada de reflexos de riso: “Tira nada, guri. Olha que as tripas saem por aí.” E ele não tirava. Então ela vinha com a água oxigenada, algodão, iodo, gaze, e curava o machucado tão bem que até dava vontade de se machucar de novo. Suspirou, a perna começando a adormecer outra vez. 

As pernas grossas de Luciana, os seios fartos de Luciana, as cadeiras largas de Luciana — tudo enrolado em panos roxos, preso dentro do caixão. O caixão enrolado em flores que transbordavam sobre a mesa, algumas escapulindo para o chão, esmagadas por pés cobertos de lama. Aquilo era o começo do nunca mais, pensou Mauricio. E repetiu em pensamento: nunca nunca nunca mais. Porque quando uma pessoa morria, era para sempre. Mas não conseguia compreender palavras grandes como essas: nunca, sempre. Havia o dia de ontem, o dia de hoje e o dia de amanhã. Havia mesmo os dias de uma semana atrás, de um mês ou, com um grande esforço que quase fazia a cabeça estourar, os dias de um ano atrás. Mas sempre era muito mais que um ano; e nunca, muito menos que um segundo. Sempre e nunca — ele imaginava uma coisa muito grande e branca, que a gente olhava debaixo para cima, sem conseguir ver onde terminava. Luciana ia ficar para sempre na parede branca, para nunca mais voltar. 

Bocejou sem querer, o pensamento difícil fazendo o sono pesar nas pálpebras que ameaçavam fechar. De repente sua atenção voltou-se para a silhueta que surgia na porta. Era vovó, com seus cabelos cor de cinza, as rosas murchas no lugar das mãos. Aproximava-se com firmeza do caixão, os tacos grossos dos sapatos batendo fortemente no assoalho, fazendo as conversas morrerem, transformadas num murmúrio de expectativa. Por um segundo Maurício imaginou que ela fosse sacudir Luciana pelo ombro e dizer com voz seca: “Vamos, sua china preguiçosa, chega de folga. Já chega de estar se refestelando aí nessa maciota de panos e flores.” imaginou e desejou, desejou que ela dissesse, vamos, vovó, diga. Esqueceu da perna, a boca entreaberta por um bocejo que não se completou. Diga, vovó, diga. Mas a velha curvou-se sobre o caixão, afastou o lenço e depositou um beijo na face branca de Luciana. 

Maurício escondeu o rosto. Não era raiva o que sentia, era de novo aquela tristeza fininha, agulhando seu pensamento, seu coração. Arrancou com força a casca de ferida do joelho, espiou por baixo do cobertor. Mas o sangue não veio. Então ergueu os olhos, ficou olhando as folhas de platanos coladas à vidraça, a cabeleira despenteada dos eucaliptos. O vento, a chuva. A noite que vinha chegando. Tornou a afundar a cabeça na quentura úmida do cobertor. Como vai ser, como vai ser, Luciana?, perguntou baixinho. Mas ninguém respondeu. 

Esperava ansioso as noites de inverno quando o minuano uivava enfurecido, com vontade de derrubar a casa. Encolhia-se no fundo dos lençóis, o peso dos acolchoados esquentando o corpo, vontade de ficar uma vida inteirinha ali, esquecido de tudo, de todos. Era nessas noites que Luciana vinha. Vinha com seu corpo grande, seu sorriso bonito, uma xícara de leite morno, um pedaço de bolo. E as reclamações: 

— Deita aí, seu pestinha. Fica se fresqueando nesse vento frio e acaba pegando uma constipação. Depois a gente é que sofre o dia inteiro, cuidando dessa porcariazinha de guri. 

Reclamava rindo, as mãos ajeitando as cobertas em volta do corpo do menino. Que cheiro bom tinha Luciana quando se curvava para ele. Maurício fechava os olhos, aspirava fundo: parecia o cheiro da fazenda. Depois abria os olhos, ficava vendo os movimentos dela. Como Luciana era grande, como Luciana era boa, como Luciana era bonita, como... 

— Luciana, por que é que tens as mamicas tão grandes? 

Por um segundo a moça ficava séria. Depois ria: 

— Porque sim, ué. 

— Mas por quê, Luciana? As minhas são pequenininhas, olha aqui, ó — desabotoava o pijama e mostrava.

Luciana ralhava de novo: 

— Abotoa esse troço, guri! Se tu pega uma pulmonia acabam é botando a culpa em mim. 

— Mas por que, Luciana... 

— Por que o quê? — perguntava ela distraída, enquanto mexia nas cortinas, já esquecida da pergunta. 

— ... que tu tens umas mamicas tão grandes?

 Ela largava os braços como quem diz: “Quem é que pode com esse pestinha?” Então explicava: 

— É porque eu sou mulher e tu és homem.

 — E se eu fosse mulher, aí tinha? 

— Tinha. 

— E se tu fosses homem, aí não tinha? 

— Não tinha. 

— E se... 

Luciana fechava a cara: 

— Toma já-já este leite e para com essas perguntas senão eu chamo a comadre Joana! 

Maurício parava. Comadre Joana — brrrrr! —, um arrepio de nojo, frio e medo eriçava-o todo. Lembrava da velha babona, a boca sem dentes, as mãos iguais a duas garras. Estendia a mão, pegava o copo de leite. Bebia devagar, calorzinho gostoso descendo pela garganta, espalhando-se pelo corpo inteiro. Depois era a vez do bolo, que tinha o mesmo cheiro de Luciana. 

— Já tomei — dizia. — Agora conta uma historia. 

Ela sentava na beira da cama. Voltava os olhos para a janela onde o vento colocava assobios de inverno. 

— Qual? A do Negrinho do Pastorejo? 

— Não. Essa tu já contou. Outra. 

— Deixa ver... A do Boitatá? 

— Essa também tu já contou. 

— A da Moura-Torta, então. 

— Puxa, Luciana, eu já conheço todas essas. Uma história nova.

— Hum... nova? 

Ela começava a passar a mão sobre a colcha de retalhos que tia Violeta tinha feito. A mão morena contrastava com os pedaços coloridos de tecido. Baixava a cabeça, uma sombra escurecia seu rosto, fazendo-a ficar muito séria. Mauricio espichava o corpo na cama, preparando-se para a ouvir, Luciana começava: 

— Era uma vez... 

— Uma princesa, já sei. 

— Não sabe nada. Fica quieto senão não conto. Era uma vez um castelo onde morava uma rainha muito velha, junto com três filhas. Uma das filhas era solteira, mas as outras duas eram casadas. Uma das casadas tinha um filho assinzinho do teu tamanho e igualzinho a ti, só que era ainda mais chato. A outra tinha um filho que era um príncipe muito bonito, de olhos azuis e dedos muito compridos. Esse príncipe não morava junto com elas no castelo, morava numa cidade muito grande e muito longe. Só vinha nas férias, e então todo mundo ficava mais alegre, tudo ficava mais colorido, porque ele era muito bom e muito bonito. 

Maurício achava graça: 

— Que engraçado, parece o Edu, não é, Luciana? Me diz, ele era parecido com o Edu, era? 

Luciana ficava muito tempo quieta, alisando os fios rebeldes da colcha de retalhos. Depois dizia: 

— Era. Era sim. Bem igualzinho a seu Eduardo. 

Maurício achava engraçado ela dizer “seu Eduardo” e ficar tão triste sempre que falavam nele. A história continuava: 

— Nesse castelo também tinha uma moça muito pobre que servia de empregada. Todos tratavam muito bem ela, e ela queria muito bem todo mundo, principalmente aquele piazinho que era igual a ti. 

— E era bonita a moça essa? 

— Era. Acho que era. 

— Como é que ela era, hein? 

— Grande, trabalhadeira, os cabelos pretos e os olhos dum castanho bem claro, quase cor de casca de laranja quando esta madura.

— Parecidos com os teus, então? 

— É. Parecidos com os meus. Mas a moça vivia muito triste, porque ela gostava do príncipe e tinha roubado um retrato dele. Todos os dias, quando acordava de manhã, a primeira coisa que ela fazia era olhar bem pra cara dele. Aí a moça sorria e ficava um pouquinho alegre. De noite, antes de dormir, ela olhava de novo o retrato, dava um beijo nele e ficava outro pouquinho alegre. 

— Péra aí— interrompia Maurício. — Naquele tempo já tinha retrato? 

— Retratos são modos de dizer. Era uma pintura que um pintor tinha feito do príncipe. 

— Ah, bem. Mas essa moça era meio doida, não era?

 — Doida por quê, guri? 

— Ih, Luciana, esse negócio de beijar retrato e só doido que faz. 

Ela explicava, sorrindo — um sorriso diferente dos que costumava sorrir: 

— Não, gurizinho. Quando a gente gosta mesmo duma pessoa, a gente faz essas coisas. — Calou um momento, depois acrescentou: — Faz até pior. 

— Pior, como? Lamber o prato que a pessoa come? 

Ela não respondeu. Mauricio deu uma cuspidinha de lado, fazendo cara de nojo. 

— E daí, Luciana? 

— Daí que a vida da moça foi ficando um inferno. Ela não pensava noutra coisa o dia inteiro. Só no amor que sentia. Pensava no amor que sentia pelo príncipe o dia inteiro, nem comia mais direito, nem dormia, nem trabalhava nem nada. As princesas e a rainha ralhavam com ela o tempo todo. Passava o ano todo esperando o príncipe vir de férias. Mas quando ele vinha, a moça ficava ainda mais triste. 

— Por quê, hein? 

— Porque ela via ele todos os dias. 

— Ué, mas não era então pra ela ficar alegre em vez de triste? 

— Não, porque o príncipe não ligava mesmo pra ela. 

— Mas ela não era bonita? 

— Era.

— Então por que o príncipe não gostava dela? 

— É que ela era empregada. 

— E o que tem isso?

 — Tem que ela não sabia calçar um sapato bonito pra ir nas festas do castelo, nem tinha nunca vestido uma roupa bonita nem ido num baile. E se fosse, todo mundo ia ficar logo vendo que ela nunca tinha ido e o príncipe ia ficar muito triste e morto de vergonha. 

— E o príncipe sabia que ela gostava dele? 

— Não. Ela não queria contar pra ele porque ele era muito bom e ia ficar triste por não poder gostar dela. E ela não queria que ele ficasse triste. 

— E depois, Luciana? — perguntou Mauricio, que estava achando aquela história meio sem jeito. 

— Depois o príncipe foi embora. 

— E a moça? 

— A moça morreu, coitada. 

— Morreu como, Luciana? 

— Tomou um veneno. 

— Tadinha da moça... 

Maurício baixava os olhos, encostava a cabeça no travesseiro. Uma vontade de chorar e chorar de pura pena da moça. 

— Que história mais triste, Luciana. 

O minuano forçava as vidraças. Por baixo delas escorregava um friozinho que colocava arrepios na pele da gente. Maurício tinha a impressão de que junto com o frio escorregava também um grande silêncio. Lá fora só se ouvia algum latido de cachorro ou barulho de lata que o vento levava para diante, sem dó. De manhãzinha o pátio estaria todo atapetado de geada, ele espiaria pela janela e acharia tudo muito bonito. Depois voltaria para a cama, cairia num sono ainda mais gostoso, para acordar com a voz da mãe chamando: “Tá na hora da aula, Maurício.” A colcha de tia Violeta esquentava o corpo por fora, o copo de leite de Luciana esquentava a gente por dentro. Todo ele estava quentinho e pronto para dormir. O frio continuava escorregando pela janela, cada vez mais gelado. Um silêncio, meu Deus. Tadinha da moça da história. Os olhos iam-se fechando, o corpo diminuindo, caindo num poço todo algodoado, sem fundo. De súbito voltava à tona, atraído por um barulho muito leve. Abria os olhos e perguntava: 

— Luciana, por que é que tu estás chorando?


Limite Branco, Caio Fernando Abreu