quarta-feira, 29 de junho de 2022

Magia pela imagem

 



Fixo meu olho no teu olho e flagro uma

Sombra de mim queimando no teu olho. 

Meu retrato afogado numa lágrima

Logo abaixo recolho.

Se entendes de imagens e magias,

Com minha imagem nas pupilas frias,

De quantos modos tu me matarias?


John Donne

*

WITCHCRAFT BY A PICTURE.


I FIX mine eye on thine, and there 

Pity my picture burning in thine eye ; 

My picture drown'd in a transparent tear, 

When I look lower I espy ; 

Hadst thou the wicked skill 

By pictures made and marr'd, to kill, 

How many ways mightst thou perform thy will? 


But now I've drunk thy sweet salt tears, 

And though thou pour more, I'll depart ; 

My picture vanished, vanish all fears 

That I can be endamaged by that art ; 

Though thou retain of me 

One picture more, yet that will be, 

Being in thine own heart, from all malice free.

Tatuagem


"... ficar no teu corpo feito tatuagem"

chico buarque


e leva, por bagagem, o meu no teu sentir.

e quando eu for sorrir, ou for dizer bobagem,

que seja a minha imagem, a imagem que é de ti.


tu ficas por aqui — embora de viagem —

em mim, feito bandagem, na pele a me cobrir.

e eu faço coincidir — perfeita camuflagem —

meu corpo e tua linguagem, num doido possuir.


eu quero é te curtir! e ser teu personagem

dessa longa-metragem, só para te aplaudir.

eu vou me colorir com a tua maquiagem,

fazer tua dublagem sem fala a traduzir.


começo a te despir — e, a mim, tu, de passagem —

e eu (de sacanagem) assim te revestir:

com o beijo mais selvagem, nas cores da celagem

e delas me vestir.


e para concluir, te quero por blindagem

na máxima dosagem que a pele permitir.

e sem te resistir, me entrego à tua flambagem,

pra ter-te em tatuagem enquanto eu existir.


Antoniel Campos

Outono



a parte da vida

dedicada à contemplação 

não concordava com a parte

comprometida com a ação.


louise glück

 

Vladimir Volegov


A minha vida é um livro, cada página 

está preenchida com amores e canções, poemas

onde a minha voz lavra a terra e cumprimenta os pássaros

e fala baixinho com os casulos da sombra e as borboletas

da luz. O meu amor está também no caminho que percorro, 

na queixa deste planeta que tenho sob os pés,

o meu amor é imortal, é um archote que ilumina a carne,

que oferece ao meu sangue e aos meus ossos

uma alegria capaz de todos os afectos.


Joaquim Pessoa

 Tomasz Rut


O prazer proibido consumou-se.

Eles se erguem do leito e, sem falar-se,

vestem-se à pressa.

Saem da casa em separado, às escondidas; vão-se

um tanto inquietos pela rua, como se

temessem que algo neles revelasse

em que espécie de leito possuíram-se.


Mas, do artista, como a vida se enriquece!

Amanhã, no outro dia, anos depois, serão escritos

os versos que aqui têm sua origem.


Konstantinos Kaváfis 

 



Bastava que dissesses a palavra exata,

que tens aprisionada na garganta,

Bastava que pendurasses 

na porta do teu quarto um lenço branco.

Bastava que enfeitasses o chapéu

com as flores que o fim da tarde

pões sedentas da luz dos teus cabelos.


Bastava que me olhasses uma vez ainda.


Torquato da Luz



"Onde os olhos se fecham; onde o tempo 

Faz ressoar o búzio do silêncio; 

Onde o claro desmaio se dissolve 

No aroma dos nardos e do sexo; 

Onde os membros são laços, e as bocas 

Não respiram, arquejam violentas; 

Onde os dedos retraçam novas órbitas 

Pelo espaço dos corpos e dos astros; 

Onde a breve agonia; onde na pele 

Se confunde o suor; onde o amor.”


 José Saramago, in provavelmete alegria

Filhos do mar


Daniel Gerhartz 


Somos do mar e ao mar regressaremos

quando passarem todos esses anos.

Nossas mãos são vestígios desses remos

de argonautas de antigos oceanos.


Somos do mar, das conchas, dos sargaços.

O mar nos rememora e nos inventa.

Ao mar estão ligados nossos braços

como se fossem restos de placenta.


Somos do mar, dos ventos, das procelas

dos bons augúrios, dos momentos maus.

Nossos corpos são mastros ou são velas

singrando as rotas de perdidas naus.


   Somos do mar e ao mar, que nos inventa,

   nos ligam seios, restos de placenta.


Francisco Carvalho 

 

Aldo Balding



Nos perdemos

Não houve um grande evento

Como um meteoro que acabou com a vida na terra

Nada tão barulhento

Nada tão mortal

Apenas uma distância entrou no espaço entre nós dois

Entrou na ponta dos pés

E achamos que seria apenas uma fase

Como acontece com qualquer casal

Mas a vida é assim, o novo sempre vem

Aconteceu com as fitas K7, com os discos de vinil, com os aparelhos de mp3 e o VHS

Estamos tão longe um do outro

Que me sinto paralisado quando vejo o seu número no meu telefone

Distância é isso, paralisia

Abro a tela e penso em todas as mensagens que eu poderia te enviar

Alguma que pudesse nos salvar

Que diria para estarmos mais atentos

Para não deixar a distância entrar

Nenhuma delas iria te alcançar de fato

Eu deveria tentar uma mensagem para aqueles dois

Que estão lá no começo de uma história

Um aviso

Um alerta

Uma carta

Um pombo correio

Algum som

Um alienígena

Mas aqueles dois

Que estão lá no começo

Iriam rir da minha cara

Pois todo amor que está no começo

Acredita em eternidade

E é bom que seja assim


                                                                    Zack Magiezi

Que diferença!



Quando passas a meu lado,

E que olhas para mim,

Tornas-te da cor da rosa,

E eu da cor do jasmin.


Vê tu que expressões diferentes

Da nossa mesma ansiedade:

A cor da rosa é despeito,

A palidez é saudade!



Florbela Espanca,  "Trocando Olhares"

As rotações perfeitas


Se me pedisses de repente e aqui:

«fala das luas e dos dias», eu

nem falaria, diria só que estar contigo

é estar-me:

ofício de tanto tempo,

e natural,

ajustado como pequeno girassol,

ao sul: um paisagem


Nem saberia por onde começar:

se no olhar, se na palavra,

ou se no teu sorriso

que me devastou o equilíbrio do igual


Não sei, meu amor,

como entender este pequeno girassol,

explicar-lhe o movimento certo,

a rotação completa e tão

perfeita,

as folhas muito verdes

de uma tal filigrama delicada

Sobretudo, este seu hino

em direcção a tudo


e já nem sei falá-lo,

porque lhe basta o tempo, e esse

sem palavras


Ana Luísa Amaral, in Se fosse um intervalo

 



De todas as palavras escolhi água

porque lágrima chuva porque mar

porque saliva bátega nascente

porque rio porque sede porque fonte.

De todas as palavras escolhi dar.


De todas as palavras escolhi flor

porque terra papoila cor semente

porque rosa recado porque pele

porque pétala pólen porque vento.

De todas as palavras escolhi mel.


De todas as palavras escolhi voz

porque cantiga riso porque amor

porque partilha boca porque nós

porque segredo água mel e flor.


e porque poesia e porque adeus

de todas as palavras escolho dor.


Rosa Lobato Faria, in AS PEQUENAS PALAVRAS 

Dádiva


Oferece-me nos lábios

os teus olhos


a planta

é no sentir teu corpo

de asceta


Recordarei amanhã

e depois recordarei

como se fosses


como se fosses

és

a intimidade antiga

que predisse inclinada

pelas tuas mãos


tu

a ruiva sensação

de seres-me idêntico


oferece

o outono liquefeito no

teu corpo


e esta liberdade-noite

de te saber autêntico


Maria Teresa Horta, in CIDADELAS SUBMERSAS

Ninguém

 



nenhum lugar se escuta no lugar onde não existes.

aqui, não há sequer o teu esquecimento. há palavras

que não te negam. crescemos sem esperar nada de ti.


se és o silêncio, nós não conhecemos o silêncio. se és

a solidão, és inútil. o que existe longe de nós não é a

nossa casa. nós suportamos as paredes da nossa casa.


nenhum tempo pode esquecer o tempo que te esqueceu.

agora, a música repete outros rostos. os instantes não

se lembram de ti. o horizonte tenta proteger-te do medo.


José Luís Peixoto

 

Piotr Topolsky

Escrevi até o princípio da manhã aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pelo dos gatos. O sol a chegar à escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silêncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercício, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhã apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim. 

Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezesseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois, o tempo. Sempre o tempo como uma brisa. Uma aragem suave, mas definitiva, a empurrar-me os sentimentos, a deixá-los lá ao fundo e a mostrar-me na distância que eram pequenos, muito pequenos e sem valor. E sempre só a solidão. Sempre. Eu sozinho, a viver. Sozinho, a ver coisas que não iriam repetir-se; sozinho, a ver a vida gastar-se na erosão da minha memória. Sozinho, com pena de mim próprio, ridículo, mas a sofrer mesmo. Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. Muitas vezes disse amo-te, mas arrependi-me sempre. Arrependi-me sempre das palavras. 


José Luís Peixoto, in 'Uma Casa na Escuridão'

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Asteriscos

Alfredo Araujo Santoyo


Como um suicida que deixa

uma carta em cima da mesa,

para descansar a polícia,

deixo o meu poema no mundo.


Minha dor lógica jamais

necessitou de testemunho

outro, que não fosse o meu corpo,

sob os ataúdes do Céu.


Pisei nas calçadas da vida

(de cabeça baixa) e gritaram;

desci sem nenhuma palavra

e eles morreram de vergonha.


O telefone negro toca

na sala interminavelmente

deserta. Que nova esperança

dirá um telefone negro?


Os meus amigos têm olhos

horríveis, diante de mim.

Mas não pergunto o que lhes fiz:

deixo o meu poema na mesa.


    Alberto da Cunha Melo

              De Círculo Cósmico (1966)

sábado, 18 de junho de 2022

Silêncio – Clarice Lispector

Catrin-Welz-Stein

 É tão vasto o silêncio da noite na montanha. É tão despovoado. Tenta-se em vão trabalhar para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo. Ou inventar um programa, frágil ponto que mal nos liga ao subitamente improvável dia de amanhã. Como ultrapassar essa paz que nos espreita. Silêncio tão grande que o desespero tem pudor. Montanhas tão altas que o desespero tem pudor. Os ouvidos se afiam, a cabeça se inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo. Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio sem lembrança de palavras. Se és morte, como te alcançar.

É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem fantasmas. É terrível – sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é a vida. Ou neve. Que é muda mas deixa rastro – tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como se fala da neve. Não se pode dizer a ninguém como se diria da neve: sentiu o silêncio desta noite? Quem ouviu não diz.

A noite desce com suas pequenas alegrias de quem acende lâmpadas com o cansaço que tanto justifica o dia. As crianças de Berna adormecem, fecham-se as últimas portas. As ruas brilham nas pedras do chão e brilham já vazias. E afinal apagam-se as luzes as mais distantes.

Mas este primeiro silêncio ainda não é o silêncio. Que se espere, pois as folhas das árvores ainda se ajeitarão melhor, algum passo tardio talvez se ouça com esperança pelas escadas.

Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da terra a lua alta. Então ele, o silêncio, aparece.

O coração bate ao reconhecê-lo.

Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio. Mesmo o sofrimento pior, o da amizade perdida, é apenas fuga. Pois se no começo o silêncio parece aguardar uma resposta – como ardemos por ser chamados a responder – cedo se descobre que de ti ele nada exige, talvez apenas o teu silêncio. Quantas horas se perdem na escuridão supondo que o silêncio te julga – como esperamos em vão por ser julgados pelo Deus. Surgem as justificações, trágicas justificações forjadas, humildes desculpas até a indignidade. Tão suave é para o ser humano enfim mostrar sua indignidade e ser perdoado com a justificativa de que se é um ser humano humilhado de nascença.

Até que se descobre – nem a sua indignidade ele quer. Ele é o silêncio.

Pode-se tentar enganá-lo também. Deixa-se como por acaso o livro de cabeceira cair no chão. Mas, horror – o livro cai dentro do silêncio e se perde na muda e parada voragem deste. E se um pássaro enlouquecido cantasse? Esperança inútil. O canto apenas atravessaria como uma leve flauta o silêncio.

Então, se há coragem, não se luta mais. Entra-se nele, vai-se com ele, nós os únicos fantasmas de uma noite em Berna. Que se entre. Que não se espere o resto da escuridão diante dele, só ele próprio. Será como se estivéssemos num navio tão descomunalmente enorme que ignorássemos estar num navio. E este singrasse tão largamente que ignorássemos estar indo. Mais do que isso um homem não pode. Viver na orla da morte e das estrelas é vibração mais tensa do que as veias podem suportar. Não há sequer um filho de astro e de mulher como intermediário piedoso. O coração tem que se apresentar diante do nada sozinho e sozinho bater alto nas trevas. Só se sente nos ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta todo nu, nem é comunicação, é submissão. Pois nós não fomos feitos senão para o pequeno silêncio.

Se não há coragem, que não se entre. Que se espere o resto da escuridão diante do silêncio, só os pés molhados pela espuma de algo que se espraia de dentro de nós. Que se espere. Um insolúvel pelo outro. Um ao lado do outro, duas coisas que não se veem na escuridão. Que se espere. Não o fim do silêncio mas o auxílio bendito de um terceiro elemento, a luz da aurora.

Depois nunca mais se esquece. Inútil até fugir para outra cidade. Pois quando menos se espera pode-se reconhecê-lo – de repente. Ao atravessar a rua no meio das buzinas dos carros. Entre uma gargalhada fantasmagórica e outra. Depois de uma palavra dita. Às vezes no próprio coração da palavra. Os ouvidos se assombram, o olhar se esgazeia – ei-lo. E dessa vez ele é fantasma.


Clarice Lispector, no livro “Onde estivestes de noite”. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

 

René Magritte

Tudo o que vemos esconde outra coisa, e nós sempre queremos ver o que está escondido, pelo que vemos. Há um interesse no que está escondido e que o visível não nos mostra. Este interesse pode assumir a forma de um sentimento bastante intenso, uma espécie de conflito, pode-se dizer, entre o visível que está oculto e o visível que está presente.

René Magritte