sábado, 31 de julho de 2010

Jessmarie photography

Eu desejo que desejes ser feliz de um modo possível e rápido, desejo que desejes uma via expressa rumo a realizações não-utópicas, mas viáveis, que desejes coisas simples como um suco gelado depois de correr ou um abraço ao chegar em casa, desejo que desejes com discernimento e com alvos bem-mirados. Mas desejo também que desejes com audácia, que desejes uns sonhos descabidos e que ao sabê-los impossíveis não os leve em grande consideração, mas os mantenha acesos, livres de frustração, desejes com fantasia e atrevimento, estando alerta para as casualidades e os milagres, para o imponderável da vida, onde os desejos secretos são atendidos.
Desejo que desejes trabalhar melhor, que desejes amar com menos amarras, que desejes parar de fumar, que desejes viajar para bem longe e desejes voltar para teu canto, desejo que desejes crescer e que desejes o choro e o silêncio, através deles somos puxados pra dentro, eu desejo que desejes ter a coragem de se enxergar mais nitidamente.
Mas desejo também que desejes uma alegria incontida, que desejes mais amigos, e nem precisam ser melhores amigos, basta que sejam bons parceiros de esporte e de mesas de bar, que desejes o bar tanto quanto a igreja, mas que o desejo pelo encontro seja sincero, que desejes escutar as histórias dos outros, que desejes acreditar nelas e desacreditar também – faz parte este ir-e-vir de certezas e incertezas -, que desejes não ter tantos desejos concretos, que o desejo maior seja a convivência pacífica com outros que desejam outras coisas.
Desejo que desejes alguma mudança, uma mudança que seja necessária e que ela não te pese na alma; mudanças são temidas, mas não há outro combustível para essa travessia. Desejo que desejes um ano inteiro de muitos meses bem fechados, que nada fique por fazer, e desejo, principalmente, que desejes desejar, que te permitas desejar, pois o desejo é vigoroso e gratuito, o desejo é inocente, não reprime teus pedidos ocultos, desejo que desejes mais vitórias, romances, diagnósticos favoráveis, aplausos, mais dinheiro e sentimentos vários, mas desejo antes de tudo que desejes, simplesmente.

Martha Medeiros

boa noite e bom domingo a todos!

Bradley Cooper e meu amiguinho

O poeta na madrugada


Quando o poeta chegou à cidade
A aurora vinha clareando o céu distante
E as primeiras mulheres passavam levando cântaros cheios.
Os olhos do poeta tinham as claridades da aurora
E ele cantou a beleza da nova madrugada.
As mulheres beijaram a fronte do poeta
E rogaram o seu amor.
O poeta sorriu.
Mostrou-lhes no céu claro o pássaro que voava
E disse que a visão da beleza era da poesia
O poeta tem a alegria que vive na luz
E tem a mocidade que nasce da luz.
As mulheres seguiram o poeta
Oferecendo a tristeza do seu amor e a alegria da sua carne
O poeta amou a carne das mulheres
Mas não envelheceu no amor que elas lhe davam.
O poeta quando ama
É como a flor que murcha sem seiva
Porque o amor do poeta
É a seiva do mundo
E se o poeta amasse
Ele não viveria eternamente jovem, brilhando na luz.

Quando a nova madrugada raiou no céu distante
O poeta já tinha partido
E seguindo o poeta as mulheres de peitos fartos e de cântaros cheios
Falavam de ardentes promessas de amor.


Vinícius de Moraes

Espera…



Não me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!

Sou a dona dos místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços…
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!

Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!

Espera… espera… ó minha sombra amada…
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo!…

Florbela Espanca

Miguel de Cervantes Saavedra , Novelas exemplares

Em seis dias Tomás tornou-se conhecido de toda a corte e de todos os rapazes; na rua, ou em qualquer esquina, respondia a todas as perguntas que lhe faziam; um estudante perguntou-lhe se ele era poeta, pois parecia ter talento para tudo.
- Até agora não tive oportunidade de ser assim tão néscio nem tão venturoso - respondeu ele.
- Não entendo essa história de néscio e de venturoso - disse o estudante.
- Não fui néscio porque não quis ser um mau poeta, nem tão venturoso que tenha merecido ser um bom poeta.
Outro estudante perguntou-lhe o que  pensava dos poetas. Ele respondeu que admirava muito a ciência, mas  os poetas não. Perguntaram-lhe por que dizia aquilo e ele respondeu que da grande quantidade de poetas, raríssimos eram os bons e, portando, não havendo quase poetas, não poderia estimá-los; admirava, entretanto, a ciência da poesia, pois ela encerra em si todas as outras ciências, serve-se de todas as outras, enfeita-se com todas elas e dá à luz suas maravilhosas obras, oferecendo ao mundo grandes lições, prazer e encantamento. E acrescentou:
- Bem sei o quanto se deve estimar um bom poeta e lembro-me daqueles versos de Ovídio que dizem:

"cura ducum fuerunt olim regumque poetae,
Praemiaque antiqui magna tulere chori.
Sanctaque magistras et erat venerabile nomen
Vatibus et larguae saepe dabantur opes"*

Não posso também esquecer-me dos poetas de alta categoria, aqueles que Platão chama de intérpretes dos deuses e dos quais diz Ovídio:

" Est Deus in nobis, agitante calescimus illo"**

E ainda:

"At sacri vates, et Divum cura vocamur"***

Isto diz ele dos bons poetas, pois dos maus, dos charlatães, o que se pode dizer senão que são eles a idiotice e a arrogândia do mundo? Como é aborrecido ver-se quando um destes poetas pede licença aos que o rodeiam para dizer um soneto: "Escutem os senhores um sonetinho que fiz uma noite dessas, pois, embora me pareça não valer nada, tem um não-sei-quê de bonito." E,  assim dizendo, torce a boca, levanta as sobrancelhas, remexe o bolso e tira, do meio de mil papéis ensebados e rasgados que contêm uns mil sonetos, o soneto que quer recitar, e o recita de fato, com voz melíflua e afetada. E se por acaso os que o escutam não o elogiam, ou porque seja astutos, ou porque sejam ignorantes, diz: "Ou os senhores não entenderam o soneto ou eu não soube recitá-lo; é bom que eu o recite novamente e que os senhores prestem mais atenção, porque na verdade o soneto merece." e torna a recitar, com novos trejeitos e novas pautas. Como é aborrecido ver estes poetas censurarem-se mutuamente! Que posso eu dizer de cachorros e de alguns indivíduos chamados modernos que latem para os grandes mastins, antigos e graves? Que direi eu dos que criticam alguns ilustres e excelentes indivíduos, onde resplandece a verdadeira luz da poesia, que, considerando com alívio o entretenimento para suas inúmeras graves preocupações, mostram a divindade de seus talentos, a excelência de seus conceitos, pouco se importando com o ignorante que emite juízos a respeito do que não conhece, que menospreza o que não entende? Que direi eu daquele que se deseja ver estimado, apreciado em sua estupidez, venerando, enquanto a ignorância se aproxima dela cada vez mais?"
De outra feita perguntaram-lhe por que a maior parte dos poetas era pobre. Respondeu ele que os poetas eram pobres porque queriam, pois estava em suas mãos serem ricos; era só saberem aproveitar a ocasião, uma vez que a fortuna se encontrava nas mãos de suas namoradas, pois eram todas riquíssimas: possuiam cabelos de ouro, rosto de prata polida, olhos de verde esmeralda, dentes de marfim, lábios de coral, colo de cristal transparente e suas lágrimas, pérolas líquidas; seus pés, ao pisarem a terra mais dura e estéril do mundo, faziam-na produzir jasmins e rosas; que seu hálito era de puro âmbar, almíscar e algália; e que tudo isso eram pequenas mostras de sua imensa riqueza. Esta era sua opinião sobre os maus e bons poetas; dos bons sempre falou bem, pondo-os nas alturas.


Miguel de Cervantes Saavedra , Novelas exemplares

* Os poetas foram outrora a preocupação dos generais e dos reis; os coros da antiguidade ofereceram-lhes grandes honrarias. Os poetas tinham, então, uma soberania sagrada, um nome venerado e inúmeras recompensas foram-lhes muitas vezes oferecidas.
** Há um deus em nós, e nós nos inspiramos nele quando ele se inflama.
*** Mas nós, os poetas, somos chamados sagrados e somos a preocupação dos deuses.
Automat - Edward Hopper. 

No fundo, é um sentimento aristocrático que alimenta a inclinação ao isolamento e à solidão. Todos os desgraçados são sociáveis; que pena. Por outro lado, vemos que um homem é de natureza nobre quando não encontra prazer nos demais; sempre prefere a solidão em vez de companhia. Com o passar dos anos, chega a perceber que, salvo raras exceções, no mundo não há meio termo entre solidão e vulgaridade.

Arthur Schopenhauer, in Aforismos Para a Sabedoria de Vida

sexta-feira, 30 de julho de 2010


Prende os teus cabelos num alfinete de ouro,
E prende cada trança vagabunda;
Pedi ao meu coração para fazer estes pobres versos;
Neles trabalhou, dia após dia,
Edificando de antigas batalhas
Uma dolente formusura.

Basta levantares a tua mão nacarada
E prenderes os teus cabelos longos e suspirares,
para que o coração dos homens arda e palpite;
E a espuma como uma vela sobre a areia opaca,
E as estrelas que trepam do céu de orvalho,
Só vivam para iluminar os teus pés que passam.


W. B. Yeats

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
desejasse.
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo.
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Hilda Hilst

Deixa-te estar embalado no mar noturno
onde se apaga e acende a salvação.

Deixa-te estar na exalação do sonho sem forma:
em redor do horizonte, vigiam meus braços abertos,
e por cima do céu estão pregados meus olhos, guardando-te.

Deixa-te balançar entre a vida e a morte, sem nenhuma saudade.
Deslizam os planetas, na abundância do tempo que cai
Nós somos um ténue pólen dos mundos...

Deixa-te estar neste embalo de água gerando círculos.

Nem é preciso dormir, para a imaginação desmanchar-se em figuras ambíguas.

Nem é preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo.

Nem é preciso querer mais, que vem de nós um beijo eterno
e afoga a boca da vontade e os seus pedidos...

Cecília Meireles

Pintura admirável de uma beleza


Vês esse Sol de luzes coroado?
Em pérolas a Aurora convertida?
Vês a Lua de estrelas guarnecida?
Vês o Céu de Planetas adorado?

O Céu deixemos; vês naquele prado
A Rosa com razão desvanecida?
A Açucena por alva presumida?
O Cravo por galã lisonjeado?

Deixa o prado; vem cá, minha adorada,
Vês de esse mar a esfera cristalina
Em sucessivo aljôfar desatada?

Parece aos olhos ser de prata fina?
Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada
À vista do teu rosto, Caterina.

Gregório de Matos

Pensamento dela


Talvez, à noite, quando a hora finda
Em que eu vivo de tua formosura,
Vendo em teus olhos… nessa face linda
A sombra de meu anjo da ventura,
Tu sorrias de mim porque não ouso
Leve turbar teu virginal repouso,
A murmurar ternura.
Eu sei. Entre minha alma e tua aurora
Murmura meu gelado coração.
Meu enredo morreu. Sou triste agora,
Estrela morta em noite de verão!
Prefiro amar-te bela no segredo!
Se foras minha tu verias cedo
Morrer tua ilusão!
Eu não sou o ideal, alma celeste,
Vida pura de lábios recendentes,
Que teu imaginar de encantos veste
E sonhas nos teus seios inocentes!…
Flor que vives de aromas e luar,
Oh! nunca possas ler do meu penar
As páginas ardentes!
Se em cânticos de amor a minha fronte
Engrinaldo por ti, amor cantando,
Com as rosas que amava Anacreonte,
É que alma dormida, palpitando…
No raio de teus olhos se ilumina,
Em ti respira inspiração divina
E ela sonha cantando!
Não a acordes contudo. A vida nela
Como a ave no mar suspira e cai…
Às vezes, teu alento de donzela
E de teus lábios o morrer de um ai,
Tua imagem de fada, num instante
Estremecem-na, embalam-na expirante
E lhe dizem: “sonhai!”
Mas quando o teu amante fosse esposo
E tu, sequiosa e lânguida de amor,
O embalasses ao seio voluptuoso
E o beijasses dos lábios no calor,
Quando tremesses mais, não te doera
Sentir que nesse peito que vivera
Murchou a vida em flor?

Álvares de Azevedo

Fogueira


Queimam-se os livros e todas as palavras-fumaça
enchem-me os pulmões de mágoa.

Onde estão Allah e seus homens,
enquanto outros humanos nos tiram a alma
expondo nosso sofrimento
nas pilhas de livros retorcidos?

Ah, esta adaga cravada, a fogueira,
sem música,
sem vozes que a tristeza.
As idéias escritas a evaporarem-se
nas chamas.

Mulher que sou,
desprezo o chador,
escrevo a revolta à sombra do carvalho.
Escrever é minha vingança,
os livros a arderem, minha dor.

Silvia Chueire

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Incontestável

Katarzyna Kurkowska

soubesse eu dos dias verdes
em que a música é tão distante
e o mar rebelado;

soubesse eu do que me esperava,
enquanto escrevia palavras,
com a boca a servir de paleta e pincel
em desenhos perdidos
em ti;

soubesse eu do vendaval que havia de vir,
depois daquelas horas nas quais corremos soltos
pela relva
na felicidade sem palavras com palavras
de um amor desmedido;

soubesse eu de todas as coisas
que ainda hoje desconheço,
e não fosse um rio a desaguar no oceano
e não tivesse olhos glaucos e crédulos
num corpo que navegava livremente;

soubesse eu que certas coisas tu não sabias
e do vasto porto mar a avistar-se de santa luzia;

teria dado os exatos mesmos passos,
entregues ao vermelho da paixão.

Silvia chueire

Def Leppard

Friedrich Nietzsche, O anticristo, af. 7

Chamam ao cristianismo a religião da compaixão. A compaixão, porém, é contradição das emoções tônicas, que aumentam a energia do sentimento vital; a compaixão tem uma ação depressiva. Quando alguém se compadece, perde a força. Pela compaixão aumenta-se e multiplica-se o desperdício de energia que o sofrimento, por si próprio, já traz à vida. O próprio sentimento torna-se, pela compaixão, infeccioso: em determinadas circunstâncias, pode chegar-se a um desperdício global de vida e de energia vital, que se encontra numa relação absurda com o quantum da causa (o caso da morte do Nazareno). Eis o primeiro ponto de vista; mas existe outro ainda mais importante. Medindo-se a compaixão pelo valor das reações que costuma suscitar, surge ainda mais claramente o seu caráter nocivo à vida. A compaixão contradiz completamente a lei da evolução, que é a lei da seleção natural. Conserva o que está maduro para o declínio, luta em prol dos deserdados e dos condenados pela vida; e, pela abundância dos fracassados de toda a espécie que mantém vivos, confere à própria vida um aspecto lúgubre e duvidoso. Ousou-se mesmo chamar virtude à compaixão (em qualquer moral superior surge como fraqueza); foi-se mais longe, fez-se dela a virtude, o solo e a origem de todas as virtudes – só que, e é necessário não o esquecer, a partir do ponto de vista de uma filosofia que era niilista, que inscrevia como divisa em seu escudo a negação da vida. Schopenhauer tinha razão ao dizer:
“A vida é negada pela compaixão, a compaixão torna a vida ainda mais digna de ser negada” - compadecer-se é praticar o niilismo. Uma vez mais: esse instinto depressivo e contagioso contradiz os instintos de conservação e de valorização da vida: como multiplicador da miséria, mais ainda como conservador dos miseráveis, é um instrumento essencial na acentuação da décadence; a compaixão incita ao nada!... Não se diz “nada”: menciona-se em seu lugar “o além”, ou “Deus”, ou “a verdadeira vida”, ou ainda Nirvana, redenção, beatitude... Essa inocente retórica, proveniente do domínio da idiosssincrasia religiosa e moral, revela-se logo muito menos inocente quando se elucida qual a tendência que ali se abriga, sob o manto de sublimes palavras: a tendência hostil à vida. Schopenhauer era inimigo da vida; por isso, a piedade se transformou para ele numa virtude... Aristóteles, como se sabe, via a compaixão como um estado mórbido e perigoso, que seria útil extirpar de quando em quando por meio de um purgante: para ele, o purgante era a tragédia. Em nome do instinto vital, deveria efetivamente arranjar-se um meio de espetar essa acumulação de piedade, tão mórbida e nociva, como no caso de Schopenhauer (e, infelizmente, também no de toda a nossa décadence literária e artística, de São Petersburgo a Paris, de Tolstói a Wagner): que estoure... Nada é mais insalubre, em meio à nossa insalubre modernidade, do que a nossa compaixão cristã. É aí que importa se rmédico, é aí que é preciso ser implacável e manejar o escalpelo – eis o que nos incumbe, eis a nossa filantropia, eis o que nos faz filósofos, a nós, hiperbóreos!

Friedrich Nietzsche, O anticristo, af. 7

Véspera


Amor: em teu regaço as formas sonham
o instante de existir: ainda é bem cedo
para acordar, sofrer. Nem se conhecem
os que se destruirão em teu bruxedo.
Nem tu sabes, amor, que te aproximas
a passo de veludo. És tão secreto,
reticente e ardiloso, que semelhas
uma casa fugindo ao arquiteto.
Que presságios circulam pelo éter,
que signos de paixão, que suspirália
hesita em consumar-se, como flúor,
se não a roça enfim tua sandália?
Não queres morder célere nem forte.
Evitas o clarão aberto em susto.
Examinas cada alma. É fogo inerte?
O sacrifício há de ser lento e augusto.
Então, amor, escolhes o disfarce.
Como brincas (e és sério) em cabriolas,
em risadas sem modo, pés descalços,
no círculo de luz que desenrolas!
Contempla este jardim, os namorados,
dois a dois, lábio a lábio, vão seguindo
de teu capricho o hermético astrolábio
e perseguem o sol no dia findo.
E se deitam na relva; e se enlaçando
num desejo menor, ou na indecisa
procura de si mesmos, que se expande,
corpóreo, são mais leves do que brisa.
E na montanha-russa o grito unânime
é medo e gozo ingênuo, repartido
em casais que se fundem, mas sem flama,
que só mais tarde o peito é consumido.
Olha, amor, o que fazes deses jovens
(ou velhos) debruçados na água mansa,
relendo a sem-palavra das estórias
que nosso entendimento não alcança.
Na pressa dos comboios, entre silvos,
carregadores e campainhas, rouca
explosão de viagem, como é lírico
o batom a fugir de uma a outra boca.
Assim teus namorados se prospectam:
um é mina do outro; e não se esgota
esse ouro surpreendido nas cavernas
de que o instinto possui a esquiva rota.
Serão cegos, autômatos, escravos
de um deus sem caridade e sem presença?
Mas sorriem os olhos, e que claros
gestos de integração, na noite densa!
Não ensaies demais as tuas vítimas
ó amor, deixa em paz os namorados.
Eles guardam em si, coral sem ritmo,
os infernos futuros e passados.

Carlos Drummond de Andrade

Quietação

Steve Hanks

No espaço claro e longo
O silêncio é como uma penetração de olhares calmos...
Eu sinto tudo pousado dentro da noite
E chega até mim um lamento contínuo de árvores curvas.
Como desesperados de melancolia
Uivam na estrada cães cheios de lua.
O silêncio pesado que desce
Curva todas as coisas religiosamente
E o murmúrio que sobe é como uma oração da noite...

Eu penso em ti.
Minha boca cicia longamente o teu nome
E eu busco sentir no ar o aroma morno da tua carne.
Vejo-te ainda na visão que te precisou no espaço
Ouvindo de olhos dolentes as palavras de amor que eu te dizia
Fora do tempo, fora da vida, na cessação suprema do instante
Ouvindo, junta de mim, a angústia apaixonada da minha voz
Num desfalecimento.
Pelo espaço claro e longo
Vibra a luz branca das estrelas.
Nem uma aragem, tudo parado, tudo silêncio
Tudo imensamente repousado.
E eu cheio de tristeza, sozinho, parado
Pensando em ti.


Vinícius de Moraes

Saudades



Sinto saudades de tudo que marcou a minha vida.
Quando vejo retratos, quando sinto cheiros,
quando escuto uma voz, quando me lembro do passado,
eu sinto saudades…
Sinto saudades de amigos que nunca mais vi,
de pessoas com quem não mais falei ou cruzei…
Sinto saudades da minha infância,
do meu primeiro amor, do meu segundo, do terceiro,
do penúltimo e daqueles que ainda vou ter, se Deus quiser…
Sinto saudades do presente,
que não aproveitei de todo,
lembrando do passado
e apostando no futuro…

Letícia Thompson

As minhas revoluções



Nunca fiz o que esperavam que eu fizesse: não me tornei o macho reprodutor latino-americano agressivo, que desrespeita as mulheres e é cruel com os animais. Brinquei de bonecas com a minha irmã, chorei em público, falhei nalguns exames mas não na vida. Não permaneci na minha classe social. Desconfiei sempre dos sacerdotes que preferem Deus aos homens, e dos cientistas que põem a ciência acima da Humanidade. Minhas revoluções, amar mais e melhor: amar as mulheres, amar os homens, escolher hoje um e amanhã, quem sabe, outra, amar o ser humano. Desconfiar dos líderes, dos homens e mulheres que têm opiniões formadas. Desconfiar dos homens que não sabem cozinhar (porque estes não têm, por completo, a compreensão do que significa a autonomia), desconfiar das mulheres que educam os homens de forma diferente das mulheres. As minhas revoluções: educar e ser educado ao mesmo tempo, ensinar a aprender. As minhas revoluções: construir uma casa sólida, confortável, engordar, conhecer alguém, apaixonar-me, abandonar a casa, passar fome uma semana, emagrecer, chorar e começar tudo de novo. As minhas revoluções: ler Marx, acreditar nele, para desacreditá-lo em seguida, superá-lo e voltar a lê-lo. As minhas revoluções: dizer não, dizer sim, dizer talvez e nunca ter certeza das coisas. As minhas revoluções: abandonar Caçapava, abandonar Foz do Iguaçu, abandonar Manaus, abandonar o Rio de Janeiro, abandonar Lisboa e abandonar no futuro Tunis - e no intervalo, amar mais e melhor. As minhas revoluções: amar os homens, os inteligentes porque são inteligentes, os feios porque são feios, os vaidosos pela sua vaidade, os inseguros pelas suas inseguranças, amar mais e melhor. As minhas revoluções, as minhas pequenas revoluções quotidianas.

- e acreditar que sim, que a igualdade é dos mitos, o mais bonito.


Oscar Mourave

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Catalunha proíbe touradas

DEMOROU... até que enfim uma boa notícia!




Trata-se de um primeiro passo para a abolição das touradas em todo o mundo.

saiba mais: aqui 

Revolta


Alma que sofres pavorosamente
A dor de seres privilegiada
Abandona o teu pranto, sê contente
Antes que o horror da solidão te invada.

Deixa que a vida te possua ardente
Ó alma supremamente desgraçada.
Abandona, águia, a inóspita morada
Vem rastejar no chão como a serpente.

De que te vale o espaço se te cansa?
Quanto mais sobes mais o espaço avança...
Desce ao chão, águia audaz, que a noite é fria.

Volta, ó alma, ao lugar de onde partiste
O mundo é bom, o espaço é muito triste...
Talvez tu possas ser feliz um dia.

Vinicius de Moraes

Apenas um Rapaz Latino-Americano



Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes e vindo do interior
Mas trago na cabeça uma canção do rádio
Em que um antigo compositor baiano me dizia
Tudo é divino, tudo é maravilhoso
Tenho ouvido muitos discos, conversando com pessoas
Caminhado o meu caminho, papo o som dentro da noite
E não tenho um amigo sequer que ainda acredite nisso não
Tudo muda, e com toda a razão
Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes e vindo do interior
Mas sei que tudo é proibido, aliás, eu queria dizer que tudo é permitido
Até beijar você no escuro do cinema quando ninguém nos vê
Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve
Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve
Som, palavras são navalhas e eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém
Mas não se preocupe, meu amigo, com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo, é muito pior
Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco
Por favor não saque a arma no saloon, eu sou apenas um cantor
Mas se depois de cantar você ainda quiser me atirar
Mate-me logo à tarde, às três, que à noite eu tenho compromisso
E não posso faltar por causa de você
Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes e vindo do interior
Mas sei, sei que nada é divino
Nada, nada é maravilhoso
Nada, nada é secreto
Nada, nada é misterioso não.

Belchior

Anúncio da rosa

Alexei Antonov 

Imenso trabalho nos custa a flor.
Por menos de oito contos vendê-la? Nunca.
Primavera não há mais doce, rosa tão meiga
onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis.
Uma só pétala resume auroras e pontilhismos,
sugere estâncias, diz que te amam, beijai a rosa,
ela é sete flores, qual mais fragrante, todas exóticas,
todas históricas, todas catárticas, todas patéticas.
Vede o caule,
traço indeciso.
Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou?
Deus me ajudara, mas ele é neutro, e mesmo duvido
que em outro mundo alguém se curve, filtre a paisagem,
pense uma rosa na pura ausência, no amplo vazio.
Vinde, vinde,
olhai o cálice.
Por preço tão vil mas peça, como direi, aurilavrada,
não, é cruel existir em tempo assim filaucioso.
Injusto padecer exílio, pequenas cólicas cotidianas,
oferecer-vos alta mercância estelar e sofrer vossa irrisão.
Rosa na roda,
rosa na máquina,
apenas rósea.
Selarei, venda murcha, meu comércio incompreendido,
pois jamais virão pedir-me, eu sei, o que de melhor se compôs na noite,
e não há oito contos. Já não vejo amadores de rosa.
Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia apodrece.
Aproveitem. A última
rosa desfolha-se.

Carlos Drummond de Andrade

Desejos

Richard Johnson

Disto eu gostaria:
ver a queda frutífera dos pinhões sobre o gramado
e não a queda do operário dos andaimes
e o sobe-e-desce de ditadores nos palácios.

Disto eu gostaria:
ouvir minha mulher contar:
- Vi naquela árvore um pica-pau em plena ação,
e não:- Os preços do mercado estão um horror!

Disto eu gostaria:
que a filha me narrasse:
- As formigas neste inverno estão dando tempo às flores,
e não:- Me assaltaram outra vez no ônibus do colégio.

Disto eu gostaria:
que os jornais trouxessem notícias das migrações
dos pássaros
que me falassem da constelação de Andrômeda
e da muralha de galáxias que, ansiosas, viajam
a 300 km por segundo ao nosso encontro.

Disto eu gostaria:
saber a floração de cada planta,
as mais silvestres sobretudo,
e não a cotação das bolsas
nem as glórias literárias.

Disto eu gostaria:
ser aquele pequeno inseto de olhos luminosos
que a mulher descobriu à noite no gramado
para quem o escuro é o melhor dos mundos.


Affonso Romano de Sant'Anna
Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa, e há um erro cujo ângulo não sabemos. Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espetáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário. Todo o mundo é confuso, como vozes na noite.
Estas páginas, em que registro com uma clareza que dura para elas, agora mesmo as reli e me interrogo. Que é isto, e para que é isto? Quem sou quando sinto? Que coisa morro quando sou?
Como alguém que, de muito alto, tente distinguir as vidas do vale, eu assim mesmo me contemplo de um cimo, e sou, com tudo, uma paisagem indistinta e confusa.
É nestas horas de um abismo na alma que o mais pequeno pormenor me oprime como uma carta de adeus. Sinto-me constantemente numa véspera de despertar, sofro-me o invólucro de mim mesmo, num abafamento de conclusões. De bom grado gritaria se a minha voz chegasse a qualquer parte. Mas há um grande sono comigo, e desloca-se de umas sensações para outras como uma sucessão de nuvens, das que deixam de diversas cores de sol e verde a relva meio ensombrada dos campos prolongados.
Sou como alguém que procura ao acaso, não sabendo onde foi oculto o objeto que lhe não disseram o que é. Jogamos às escondidas com ninguém.
Há, algures, um subterfúgio transcendente, uma divindade fluida e só ouvida.
Releio, sim, estas páginas que representam horas pobres, pequenos sossegos ou ilusões, grandes esperanças desviadas para a paisagem, mágoas como quartos onde se não entra, certas vozes, um grande cansaço, o evangelho por escrever.
Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas…
Releio? Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está ali é outro. Já não compreendo nada…

Fernando Pessoa, O livro do desassossego

terça-feira, 27 de julho de 2010

Poema à boca fechada





Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça
Calado estou, calado ficarei
Pois que a língua que falo é de outra raça

Palavras consumidas se acumulam
Se represam, cisterna de águas mortas
Ácidas mágoas em limos transformadas
Vaza de fundo em que há raízes tortas

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas
Nem só animais bóiam, mortos, medos
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos

Só direi
Crispadamente recolhido e mudo
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo

José Saramago

Johann Wolfgang Goethe, Werther

A vida humana não passa de um sonho. Mais de uma pessoa já pensou isso. Pois essa impressão também me acompanha por toda parte. Quando vejo os estreitos limites onde se acham encerradas as faculdades ativas e investigadoras do homem, e como todo o nosso labor visa apenas a satisfazer nossas necessidades, as quais, por sua vez, não têm outro objetivo senão prolongar nossa mesquinha existência; quando verifico que o nosso espírito só pode encontrar tranquilidade, quanto a certos pontos das nossas pesquisas, por meio de uma resignação povoada de sonhos, como um presidiário que adornasse de figuras multicoloridas e luminosas perspectivas as paredes da sua célula... tudo isso, Wilhelm, me faz emudecer. Concentro-me e encontro um mundo de mim mesmo! Mas, também aí, é um mundo de pressentimentos e desejos obscuros e não de imagens nítidas e forças vivas. Tudo flutua vagamente nos meus sentidos, e assim, sorrindo e sonhando, prossigo na minha viagem através do mundo.
As crianças - todos os pedagogos eruditos estão de acordo a este respeito - não sabem a razão daquilo que desejam; também os adultos, da mesma forma que as crianças, caminham vacilantes e ao acaso sobre a terra, ignorando, tanto quanto elas, de onde vêem e pra onde vão. Não avançam nunca segundo uma orientação segura; deixam-se governar, como as crianças, por meio de biscoitos, pedaços de bolo e vara. E, como agem por essa forma, inconscientemente, parece-me, portanto, que se acham subordinados à vida dos sentidos.
Concordo com você (porque já sei que você vai contraditar-me) que os mais felizes são aqueles que vivem, dia a dia, como as crianças, passeando, despindo e vestindo as suas bonecas; aqueles que rondam, respeitosos, em torno da gaveta onde a mamãe guardou os bombons, e, quando conseguem agarrar, enfim, as gulodices cobiçadas, devoram-nas com sofreguidão e gritam: "Quero mais!" Eis a gente feliz! Também é ditosa a gente que, emprestando nomes pomposos à suas mesquinhas ocupações, e até às suas paixões, conseguem fazê-las passar por gigantescos empreendimentos destinados à salvação e prosperidade do gênero humano. Tanto melhor para os que são assim!... Mas aquele que humildemente reconhece o resultado final de todas as coisas, vendo de um lado como o burgês facilmente arranja o seu pequeno jardim e dele faz um paraíso, e, de outro, como o miserável, arfando sob o seu fardo, segue o seu caminho sem revoltar-se, mas aspirando todos, do mesmo modo, a enxergar ainda por um minuto a luz do sol... sim, quem isso observa à margem, permanece tranquilo. Também este se representa a seu modo um universo que tira de si mesmo, e também é feliz porque é homem. E, assim, quaisquer que sejam os obstáculos que entravem seus passos, guarda sempre no coração o doce sentimento de que é livre e poderá, quando quiser, sair da sua prisão.

Johann Wolfgang Goethe, Werther

Timidez

Amy Lind 


Eu sei que é sempre assim, - longe dela imagino
mil versos que não fiz mas que ainda hei de compor,
perto dela, - meu Deus!... lembro mais um menino
que esquecesse a lição diante do professor...

Penso, que a minha voz terá sons de violino
enchendo os seus ouvidos de canções de amor,
- e hei de deixá-la tonta ao vinho doce e fino
dos meus beijos, no instante em que minha ela for...

Ao seu lado, no entanto, encabulado, emudeço,
e se os seus lábios frios, trêmulos, se calam,
eu, de tudo, das cousas, de mim mesmo, esqueço...

E ficamos assim, ela em silêncio... eu, mudo...
Mas meus olhos, nem sei... ah! Quantas cousas falam!
e seus olhos, seus olhos!... dizem tudo, tudo!

 J. G. de Araújo Jorge

Transfere de ti para mim essa dor
de cabeça, esse desejo, essa violência
Que careça em ti o meu excesso
e que me falte o que tu tens de sobra

Que em mim perdure o que te morre cedo
e que te permaneça o que tenho perdido.
Que cresça, se desenvolva um teu sentido
que em mim desapareça.

Dá-me o que de possuir tu não te importas
E eu multiplico o que te falta e em mim existe
para que nosso encaixe forme uma unidade - indivisível -
que não se possa subtrair uma metade.

Bruna Lombardi

Brisa Marinha

Hélène Béland

A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.
Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,
Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos.
Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos,
Impede o coração de submergir no mar
Ó noites! nem a luz deserta a iluminar
Este papel vazio com seu branco anseio,
Nem a jovem mulher que preme o filho ao seio.
Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas,
Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas!
Um tédio, desolado por cruéis silêncios,
Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!
E é possível que os mastros, entre as ondas más,
Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem mas-
Tros, sem mastros, sem ilhas férteis, a vogar…
Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!

*

La chair est triste, hélas! et j'ai lu tous les livres.
Fuir! là-bas fuir! Je sens que des oiseaux sont ivres
D'être parmi l'écume inconnue et les cieux!
Rien, ni les vieux jardins reflétés par les yeux
Ne retiendra ce coeur qui dans la mer se trempe
O nuits! ni la clarté déserte de ma lampe
Sur le vide papier que la blancheur défend
Et ni la jeune femme allaitant son enfant.
Je partirai! Steamer balançant ta mâture,
Lève l'ancre pour une exotique nature!

Un Ennui, désolé par les cruels espoirs,
Croit encore à l'adieu suprême des mouchoirs!
Et, peut-être, les mâts, invitant les orages
Sont-ils de ceux qu'un vent penche sur les naufrages
Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots...
Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots!


Stéphane Mallarmé

A Dor

Bec Winnel.

Chama-se a Dor, e quando passa, enluta
E todo mundo que por ela passa
Há de beber a taça da cicuta
E há de beber até o fim da taça!

Há de beber, enxuto o olhar, enxuta
A face, e o travo há de sentir, e a ameaça
Amarga dessa desgraçada fruta
Que é a fruta amargosa da ´desgraça!

E quando o mundo todo paralisa
E quando a multidão toda agoniza,
Ela, inda altiva, ela, inda o olhar sereno

De agonizante multidão rodeada,
Derrama em cada boca envenenada
Mais uma gota do fatal veneno!

Augusto dos Anjos

Deusa

Goyo Dominguez.


O seu pescoço esplêndido e robusto 
Implantado às espáduas fortemente, 
Presta-lhe um ar olímpico e imponente; 
De Vênus dá-lhe gesto altivo e augusto; 

E sustém-lhe a cabeça bela: é justo, 
Porque dos deuses vem; e se presente 
No andar, na voz, no riso negligente: 
Mete em tudo, que a cerca, estranho susto: 

Tão grande e superior ela parece, 
Que não é muito a admiração e o espanto: 
Segue-se ao espanto o amor, ao amor a prece. 

És tu, Helena, a deusa, o enleio, o encanto: 
É de ti, que em mim só, todo um céu desce: 
A ti meus olhos, como a um céu, levanto...


Luís Delfino

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Na Véspera de não Partir Nunca

Kenne Gregoire


Na véspera de não partir nunca 
Ao menos não há que arrumar malas 
Nem que fazer planos em papel, 
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos, 
Para o partir ainda livre do dia seguinte. 
Não há que fazer nada 
Na véspera de não partir nunca. 
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego! 
Grande tranqüilidade a que nem sabe encolher ombros 
Por isto tudo, ter pensado o tudo 
É o ter chegado deliberadamente a nada. 
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre, 
Como uma oportunidade virada do avesso. 
Há quantas vezes vivo 
A vida vegetativa do pensamento! 
Todos os dias sine linea 
Sossego, sim, sossego... 
Grande tranqüilidade... 
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas! 
Que prazer olhar para as malas fítando como para nada! 
Dormita, alma, dormita! 
Aproveita, dormita! 
Dormita! 
É pouco o tempo que tens! Dormita! 
É a véspera de não partir nunca! 


Álvaro de Campos 
(Heterônimo de Fernando Pessoa)

A Beleza


Eu sou bela, ó mortais! Como um sonho de pedra,
E meu seio, onde todos vêm buscar a dor,
É feito para ao poeta inspirar esse amor
Mudo e eterno que no ermo da matéria medra.

No azul, qual uma esfinge, eu reino indecifrada;
Conjugo o alvor do cisne a um coração de neve;
Odeio o movimento e a linha que o descreve,
E nunca choro nem jamais sorrio a nada.

Os poetas, diante de meus gestos de eloqüência,
Aos das estátuas mais altivas semelhantes,
Terminarão seus dias sob o pó da ciência;

Pois que disponho, para tais dóceis amantes,
De um puro espelho que idealiza a realidade:
O olhar, meu largo olhar de eterna claridade!


La beauté

Je suis belle, ô mortels ! comme un rêve de pierre,
Et mon sein, où chacun s'est meurtri tour à tour,
Est fait pour inspirer au poète un amour
Éternel et muet ainsi que la matière.
Je trône dans l'azur comme un sphinx incompris;
J'unis un cœur de neige à la blancheur des cygnes;
Je hais le mouvement qui déplace les lignes,
Et jamais je ne pleure et jamais je ne ris.
Les poètes, devant mes grandes attitudes,
Que j'ai l'air d'emprunter aux plus fiers monuments,
Consumeront leurs jours en d'austères études;
Car j'ai, pour fasciner ces dociles amants,
De purs miroirs qui font toutes choses plus belles:
Mes yeux, mes larges yeux aux clartés éternelles !


Charles Baudelaire

Não identificado

 

Eu vou fazer uma canção pra ela
Uma canção singela, brasileira
Para lançar depois do carnaval

Eu vou fazer um ie-ie-ie romântico
Um anti-computador sentimental
Eu vou fazer uma canção de amor
Para gravar num disco voador

Minha canção dizendo tudo a ela
Que ainda estou sozinho, apaixonado
Para lançar no espaço sideral

Minha paixão há de brilhar na noite
No céu de uma cidade do interior.
Como um objeto não identificado
Eu vou fazer uma canção de amor...

Caetano Veloso

Invasão

CORINNE LEWIS 


Escuta, eu carrego esses pecados capitais, todos
Sou gulosa, passional e nem sempre é santa a minha ira
Mas das palavras não sou eu que faço uso
São elas, as geniosas, as venais
Que se utilizam de mim e se divertem
Com meu desespero de caçá-las
Na minha insônia.
São elas, se mascaram, se camuflam
Insidiosas
Se insinuam, me enlouquecem
Sem nunca ceder.

Peço uma trégua, não aguento mais
E Deus me pede uma paciência sem limite
Deus me pede que eu me sacrifique
Para poder servi-las

Acabo me entregando, cansada, extenuada, exaurida
Veículo de sua vontade
Eu deixo então de lado a minha vida
E a própria vida não tem mais importância
Através de mim elas se manifestam, as palavras
Na plenitude de sua arrogância.

Bruna Lombardi

Sóis Poentes



Uma aurora fria
Pelo campo estende
A melancolia
De sóis no poente.
A melancolia
Canta docemente
Pra quem se extasia
Com sóis no poente.
Sonhos singulares
Como sóis que, velhos,
Se deitam nos mares,
Fantasmas vermelhos,
Desfilam nos ares,
Desfilam, parelhos
A grandes sóis velhos
Morrendo nos mares.

Paul Verlaine

domingo, 25 de julho de 2010

O mar mais longe que eu vejo

Tem piedade, Satã,
desta longa miséria
(Baudelaire: Litanias de Satã)

Meu corpo está morrendo. A cada palavra, meu corpo está morrendo. Cada palavra é um fio de cabelo a menos, um imperceptível milímetro de ruga a mais - uma mínima extensão de tempo num acúmulo cada vez mais insuportável. Esta coisa terrível de não saber a minha idade, de não poder calcular o tempo que me resta, esta coisa terrível de não haver espelhos nem lagos, das águas do mar serem agitadas e não me permitirem ver a minha imagem. Perdi todas as minhas imagens: as das fotografias, dos espelhos, dos lagos. Se meus olhos fossem câmeras cinematográficas eu não veria chuvas nem estrelas nem lua, teria que construir chuvas, inventar luas, arquitetar estrelas. Mas meus olhos são feitos de retinas, não de lentes, e neles cabem todas as chuvas estrelas lua que vejo todos os dias todas as noites.

Chove todos os dias aqui, não tenho relógio nem rádio, mas sei que deve ser por volta das três horas, porque é pouco depois que o sol está no meio do céu e eu senti fome. Então começa a subir um vapor da terra, e as nuvens, há as nuvens que se amontoam e depois explodem em chuva, e depois da chuva são as estrelas e a lua. Não há uma manhã, uma tarde, uma noite: há o sol abrasador queimando a terra e a terra queimando meus pés, depois a chuva, depois as estrelas e a lua. No começo eu achava que não havia tempo. Só aos poucos fui percebendo que se formavam lentos sulcos nas minhas mãos, e que esses sulcos, pouco mais que linhas no princípio imperceptíveis, eram rugas. E que meus cabelos caíam. Meus dentes também caíam. E que minhas pernas já não eram suficientemente fortes para me levar até aquela elevação, de onde eu podia ver o mar e o mar que fica mais além do mar que eu via da praia. Antes, eu ia e voltava da elevação no sol abrasador depois eu só conseguia sair daqui no sol abrasador e voltar na chuva e, depois ainda só nas estrelas e na lua. Agora são necessárias muitas chuvas, muitas estrelas, muitas luas e muitos sóis para ir e voltar. E isso é o tempo, muito mais tarde descobri que isso era o tempo. Fico aqui o dia inteiro, não há ninguém, não há nada. Fico aqui na gruta o dia inteiro, sem saber mais quando é sol abrasador, quando é chuva ou lua e estrelas, eu não sei mais.

No começo eu pensei também que houvesse outros, índios talvez, animais, formigas, baratas. Não havia ninguém, nada. Da elevação eu podia ver o todo, e o todo era só a areia e os coqueiros que me alimentam. O todo não tinha ninguém, não tinha nada. Eu chorava, no começo eu chorava e não entendia, apenas não entendia, e não entender dói, e a dor fazia com que eu chorasse, no começo. Eu sentia saudade, no começo, uma saudade apertada de gente, principalmente de gente. Não me lembro mais qual era o meu sexo, agora olho no meio das minhas pernas e não vejo nada além de uma superfície lisa e áspera, mas no começo eu sabia, eu tinha um sexo determinado, e a saudade que eu tinha de gente fazia com que eu rolasse horas na areia do sol abrasador, abraçando meu próprio corpo, inventando um prazer que eu precisava para me sentir vivendo talvez, porque eu não tinha medos nem preocupações nem mágoas nem nada concreto nem expectativas, as minhas células amorteciam, eu sentia que ia acabar virando uma palmeira, os meus pés agora parecem raízes, mas ainda tenho mãos, então eu rolava na areia quente enquanto meus dentes faziam marcas fundas roxas nos meus braços, nas minhas pernas e de repente todas as minhas células explodiam em vida, exatamente isso, em vida, eu tinha dentro de mim todo aquele sol todo aquele mar tudo aquilo que eu conhecera antes, que conheceria depois, se não estivesse aqui. Eu ficava amplo, na areia, abraçado a mim mesmo.

Talvez, sim, talvez eu fosse mulher, porque pensava no príncipe, a minha mão direita era a minha mão e a minha mão esquerda era a mão do príncipe, e a minha mão direita e a minha mão esquerda juntas eram as nossas mãos. Apertava a mão do príncipe sem cavalo branco, sem castelo, sem espada, sem nada. O príncipe tinha uns olhos fundos, escuros, um pouco caídos nos cantos e caminhava devagar, afundando a areia com seus passos. O príncipe tinha essa coisa que eu esqueci como é o jeito e que se chama angústia. Eu chorava olhando para ele porque eu só tinha ele e ele não falava nunca, nada, e só me tocava com a minha mão esquerda, e eu cantava para ele umas cantigas de ninar que eu tinha aprendido antes, muito antes, quando era menina, talvez tenha sido uma menina daquelas de tranças, saia plissê azul-marinho, meias soquete, laço no cabelo, talvez. Sabe, às vezes eu me lembro de coisas assim, de muitas coisas, como essa da menina - como se houvesse uma parte de mim que não envelheceu e que guardou. Guardou tudo, até o príncipe que um dia não veio mais. Não, não foi um dia que ele não veio mais, foram muitos dias, em muitos dias ele não veio mais, a água do mar salgava a minha boca, o sol queimava a minha pele, eu tinha a impressão de ser de couro, um couro ressecado, sujo, mal curtido. E havia essa coisa que também esqueci o jeito e que se chamava ódio. De vez em quando eu pensava eu vou sentir essa coisa que se chama ódio. E sentia. Crescia uma coisa vermelha dentro de mim, os meus dentes rasgavam coisas. Devia ser bom, porque depois eu deitava na areia e ria, ria muito, era um riso que fazia doer a boca, os músculos todos, e fazia as minhas unhas enterrarem na areia, com força.

Tenho um livro comigo, não é um livro, era um livro, mas depois ficou só um pedaço de livro, depois só uma folha, e agora só um farrapo de folha, nesse farrapo de folha eu leio todos os dias uma coisa assim: "Tem piedade, Satã, desta longa miséria". Só isso. Fico repetindo: "tempiedadesatãdestalongamisériatempiedadesatãdestalongamisériatempiedade" tempo, tempo. Aí sinto essa coisa que ainda não esqueci o jeito e que se chama desespero.

Havia outras pessoas, sim. Não aqui, mas lá, bem para lá do mar que eu avistava de cima da elevação e que é o mar mais longe que eu vejo. Mais longe ainda tinha gente, a gente que me trouxe para cá. Só não lembro mais por quê. Verdade, eu tinha qualquer coisa assim como andar de costas, quando todos andam de frente. Qualquer coisa como gritar quando todos calam. Qualquer coisa que ofendia os outros, que não era a mesma deles e fazia com que me olhassem vermelhos, os dentes rasgando as coisas, eu doía neles como se fosse ácido, espinho, caco de vidro. Então eles me trouxeram. Por isso, me trouxeram. Lembro, sim, eu lembro que havia coisas escuras que eles faziam e que eu não fazia, correntes, sim, sim, eu lembro: havia correntes e fardas verdes e douraduras e cruzes, havia cruzes, cercas de arame farpado, chicotes e sangue, havia sangue, um sangue que eles deixavam escorrer sem gritar enquanto eu gritava, eu gritava bem alto, eu mordia defendendo meu sangue.

A gruta é úmida escura fria. Não tenho roupa, não tenho fome, não tenho sede. Só tenho tempo, muito tempo, um tempo inútil, enorme, e este farrapo de folha de livro. Não sei, até hoje não sei se o príncipe era um deles. Eu não podia saber, ele não falava. E, depois, ele não veio mais. Eu dava um cavalo branco para ele, uma espada, dava um castelo e bruxas para ele matar, dava todas essas coisas e mais as que ele pedisse, fazia com a areia, com o sal, com as folhas dos coqueiros, com as cascas dos cocos, até com a minha carne eu construía um cavalo branco para aquele príncipe. Mas ele não queria, acho que ele não queria, e eu não tive tempo de dizer que quando a gente precisa que alguém fique a gente constrói qualquer coisa, até um castelo.

Acho que não passo da lua desta noite, talvez não passe nem da chuva ou do sol abrasador que está lá fora. São muitas palavras, tantas quanto os fios de cabelo que caíram, quanto as rugas que ganhei, muito mais que os dentes que perdi. Esta coisa terrível de não ter ninguém para ouvir o meu grito. Esta coisa terrível de estar nesta ilha desde não sei quando. No começo eu esperava, que viesse alguém, um dia. Um avião, um navio, uma nave espacial. Não veio nada, não veio ninguém. Só este céu limpo, às vezes escuro, às vezes claro, mas sempre limpo, uma limpeza que continua além de qualquer coisa que esteja nele. Talvez tudo já tenha terminado e não exista ninguém mais para lá do mar mais longe que eu vejo. O mar que com este sol abrasador fica vermelho, o mar fica vermelho como aquela coisa que eu esqueci o nome, faz muito tempo. Aquela coisa que se eu lembrasse o jeito poderia ser minha matéria de salvação. Talvez olhando mais o vermelho eu lembre, o mar dilacera coisas com os dentes, enterra as unhas na areia, o mar tem aquela coisa que o príncipe também tinha, o mar de repente parece que. Não, não adianta, o vapor está subindo. Pela entrada da gruta vejo as primeiras nuvens se formando, não adianta, o mar está escurecendo, as nuvens aumentam, aumentam, é muito tarde, tarde demais. Daqui a pouco vai começar a chover .

Caio Fernando Abreu

Tal é a nostalgia: habitar sobre as ondas
e jamais ter abrigo no tempo.
E tais são os desejos: diálogo em surdina
da hora cotidiana com a eternidade.

Tal é a vida. Até o dia em que de ontem
se eleva a mais solitária dentre todas essas horas,
e, sorrindo diferentemente das irmãs,
em silêncio se oferece ao eterno.
Cala-se, como uma oferta ao eterno.

Rainer Maria Rilke