terça-feira, 24 de junho de 2014

Toda mulher


Cayetano De Arguer Buigas

a coisa que mais o preocupava
naquele momento
era estudo de mulher

toda mulher
dos quinze aos dezoito

Não sou mais mulher.
Ela quer o sujeito
Coleciona histórias de amor.


 Ana Cristina César
In  A Teus Pés, 1982

XV - O guardador de rebanhos


As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou…
Escrevi-as estando doente


E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não concordam…
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são.
(Senão não estaria doente)
Devo sentir o contrário do que sinto


Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira…
Devo ser todo doente — ideias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.


Por isso essas canções que me renegam
Não são capazes de me renegar
E são a paisagem da minha alma de noite,
A mesma ao contrário…


Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
Pinturas: Catherine Coren

Cantata vesperal

Irjan Moussin


CERRAI-VOS, OLHOS, que é tarde, e longe,
E acabou-se a festa a festa do mundo:
Começam as saudades hoje.

Longos adeuses pelas varandas
Perdem-se; e vão fugindo em mármore
Cascatas céleres de escadas.

Pelos portões não passam mais sombras,
Nem há mais vozes que se entendam
Nas distâncias que o céu desdobra.

As ruas levam a mares densos.
E pelos mares fogem barcas
Sem esperanças de endereços.


Cecília Meireles
alex alemany 

“Quem escreve deve ter todo o cuidado para a coisa não sair molhada. Quero dizer que da página que foi escrita não deve pingar nenhum palavra, a não ser as desnecessárias. É como pano lavado que se estira no varal. Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício.

Sabe como elas fazem? Elas começam com uma primeira lavada. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois colocam o anil, ensaboam, e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão.

Depois batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.

A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer.”

Graciliano Ramos

Nascer

Christian Schloe 


Nascer
outra e outra vez
indefinidamente
como a planta sempre nascendo
da primeira semente;
pensar o dia bom
até criar a claridade
e nela descobrir
a primeira sílaba
da primeira canção.

Carlos Drummond de Andrade, In: Poesia Errante, 1988

Sete cantos do poeta para o anjo



Nunca fui senão uma coisa híbrida
Metade céu, metade terra,
Com a luz de Mira-Celi das duas órbitas

Jorge de Lima



Canto Primeiro

Se algum irmão de sangue (de poesia)
Mago de duplas cores no seu manto
Testemunhou seu anjo em muitos cantos 
Eu, de alma tão sofrida de inocências
O meu não cantaria?

E antes deste amor
Que passeio entre sombras!
Tantas luas ausentes
E veladas fontes.
Que asperezas de tato descobri
Nas coisas de contexto delicado.
Andei

Em direção oposta aos grande ventos.
Nos pássaros mais altos, meu olhar
De novo incandescia. Ah, fui sempre
A das visões tardias!
Desde sempre caminho entre dois mundos
Mas a tua face é aquela onde me via
Onde me sei agora desdobrada.



Canto segundo

Se te anuncio lágrimas e haveres
É para te encantares do meu canto,
Um tempo me guardei
Tempo de dor aquele
Onde o amor foi mar de muitas águas.

Se te anuncio ainda
É porque sempre em pedra fui talhada.
Em sal me consumi. E perecível
Tem sido a minha forma:
Estes dedos lunares, estas mãos
E tudo o que não foi tocado em ti.

Me queres em renúncia, em humildade
Ou íntegra e sozinha nestes cantos?
Tive ressurreição e anteprantos
E alegrias inteiras.
E muitas madrugadas
A sós me confessei
Àquela irmã soturna e mais amada.
Vi quase tudo. E quase tudo andei.



Canto Terceiro

E largamente amei as criaturas.
Os ouvidos se abriam. Ramas frágeis
Meus ouvidos, aceitando ternuras.

Uns regressos de vida me contavam:
Pactos, adolescências, heroísmos.
(Tessitura franzina
se estendendo sobre a pele mais fina)

Acaso não fui cúmplice dos meus?
Desses vindos da noite e turbados
Com seus próprios destinos?

Que terrível engano antes de ti!
E vigílias inúteis e pobrezas
E punições maiores, tais cilícios
Na carne! Tramas, tramas.

Que era feito de ti? Em mim, não eras.



Canto quarto

E por que me escolheste?
Em direções menores me plasmei.
Entre um pausa e outra fui cantando
Umas reminiscências, uns afetos
E carregava atônita meu gesto
Porque dizia coisas que nem sei.

Ouvi continuamente muitas vozes.
Umas de fogo e água tão intensas 
Outras crepusculares

E entendia
Que era preciso falar de uma ciência 
Uma estranha alquimia:

O homem é só. Mas constelar na essência.
Seu sangue em ouro se transmuta.
Na pedra ressuscita.
No mercúrio se eleva.
E sua verdade é póstuma e secreta.

Ah, vaidade e penumbra no meu canto!
Meu dizer é de bronze
E essa teia de prata
A mim mesma me espanta



Canto quinto

Eu nem soube falar do amor nos homens.
(Amor feito de júbilo aparente)
Nem soube replantar no que era terra
Uma mesma semente.
Tive no peito o mantra mais secreto
E não pude vibrá-lo, alento, lira
Corda divina no seu veio certo.

Elaborei em vão todos meus sonhos.
E súbito me tomas e me ordenas
A solidão mais funda:
Estes cantos agora, alguns poemas
Um amor tão perfeito e indizível
Porque não é tumulto nem tormento.
(E se o homem na carne foi punido
O verbo diz melhor do sofrimento).

Que nome te darei se em mim te fazes?
Se o teu batismo é o meu e eu só te soube
Quando soube de mim?



Canto sexto

A noite em verso  torpe me atingia.
As coisas insofridas
Sofridas se faziam
Se eu repusasse a mão sobre suas vidas.

Umas tardes meus olhos repensaram
Uma alvura de águas pretendida.
Tão leve caminhei sobre essas águas
Que a memória foi quase imerecida.

Onde estavas então? Nem me  sonhavas.

Deitei-ne sobre um tempo que viria 
E um ciclo de visões me revelava
Que no ódio dos deus fui lembrada

Em alto voo de ave , a esquecida.

E porque  paz e voo me faltavam
Eu desejei perder-me mais e tanto
Quanto fossem as perdas destinadas
Àqueles incapazes de algum pranto.

Perenidade e vida: Onde estavas?



Canto sétimo

Te ocultaste. Eu morria
Tinha na fronte a chaga

E o dorso calcinado, em agonia.

Na treva de mim mesma delirava
E as pálpebras em brasa
Não sabiam da tua claridade

Porque minha alma toda se perdia
E uma vida terrena começava
Seu círculo de cinza
Sua casa.

Anjo, asa,
Mão poderosa sobre a minha mão
Que o verso nunca mais transfigurava.
Prisma solarizado
Transcendência primeira
Dulcíssima presença:

Alta noite

O que foi treva em mim

Em ti resplandecia.



Hilda Hilst
Livro Exercícios, Editora Globo, p.119-125

Pinturas: An-He

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Explicar a manhã



Explicar a manhã
é anular-lhe a luz

e apagar todo o silêncio
que existe na poesia.

Sandra Costa

Como Se Estivesse Fora




Me diz como é que faz
Finge que eu cheguei agora
Finge que eu não sei do engano, ah!...
Finge que eu não vi
Me fala sobre mim
Como se eu estivesse fora
Mostra a foto do outro ano,é
Finge que eu não vi
Me roubei da estrela
e é como se eu fosse a luz e ela eu
Vim banhado em cor e a estrela
É o que eu fui e ainda sou em ti
E aí dói tanto vê-la
Como dói hoje olhar pra estrela
Que eu marquei em ti


Oswaldo Montenegro

O ciúme



O apaixonado que desconfia quer manter sob controle até o pensamento do ser amado. Diante de tamanha impossibilidade, ele se tortura e quer o outro cerceado. É a antítese do amor.
...
Ela tinha a beleza tranquila da maturidade. Bastava vê-la para adivinhar como ela teria sido. Ah! Com certeza provocara muitos suspiros de amor. De hábitos domésticos e simples, um dos seus prazeres era assentar-se numa poltrona e entrar na bolha que a leitura cria. Quem lê está num outro mundo, muito longe.

O seu marido a observava de longe. Olhos que observam são olhos que olham quando o outro não está olhando. Olhos que observam são olhos de felino que seguem a presa. Seu olhar era olhar de apaixonado que desconfia, olhar de ciúme. Os olhos do ciumento vigiam. Vigiam gestos, movimentos, horas. Vigiam porque as modulações silenciosas e distraídas no rosto da pessoa amada podem conter revelações sobre aquilo que ela está pensando. O ciumento suspeita que a mulher amada lhe esconde algo. Ele olha na esperança de ver o escondido, de entrar dentro do segredo do outro. O ciumento detesta os pensamentos. Por mais que os vigie, eles estão além da sua vigilância.

Tem aquela modinha de Carlos Gomes, Quem Sabe? É um monólogo de um apaixonado. Ele sofre. Sofre porque a amada está longe e ele não sabe o que ela está pensando. “Tão longe de mim distante, onde irá, onde irá teu pensamento?” O seu desejo era saber se os pensamentos da amada pensavam nele. Ele pergunta porque não sabe e tem medo de saber o que ela estará pensando. Pergunta porque não confia. Minha amada, por favor, me diga “se ainda é meu teu pensamento…”.

Há os ciúmes mansos que todos sentem e só doem um pouquinho. E há os ciúmes que são um tormento e que frequentemente terminam em tragédia. Todo ciúme, manso ou atormentado, gostaria de ser dono da mulher amada, inclusive dos seus pensamentos. Ele quer conhecê-la por dentro e por fora para certificar-se da sua posse. Nos momentos de êxtase amoroso, esse tormento se resolve e o ciumento se acalma. Mas a sua calma é efêmera. Dura o mesmo tempo do ato sexual. Termina com o orgasmo. Passado o êxtase a dúvida volta. E, com ela, o tormento.

Ele a vigiava, silenciosamente o felino a vigiava. E a sua vigilância se exacerbava quando ela sorria ou ria. Como explicar esse sorriso se ele, o seu marido, não estava dentro do livro? Ela não precisava dele para ser feliz. Mergulhada no seu livro, o seu marido não existia. E isso não é o anúncio de uma infidelidade possível? Ter prazer com algo que não era ele, o seu marido… O prazer acontecia na ausência dele. A infidelidade com o livro anunciava a possibilidade de grandes infidelidades. E isso o torturava. Tortura que não o abandonava nem nos momentos de intimidade prazerosa.

Um ciumento não tolera a liberdade.

Mas aí algo aconteceu que o tranquilizou. Sua esposa adoeceu. Uma mulher adoentada é um pássaro de asas quebradas que não sonha e nem poderia jamais voar. Um pássaro de asas quebradas não planeja voos proibidos. Pássaros de asas quebradas são confiáveis.

Isso o acalmou. Ele ficou doce. Até os momentos de intimidade ficaram leves: seu efêmero sentimento de posse se transformou num tranquilo sentimento de eternidade. Agora ela era sua, para sempre.

Suspeito que os crimes por ciúme não têm o propósito primeiro de matar a mulher amada. O seu propósito, ao contrário, é garantir que ela não será de nenhum outro.

Mas há também um ciúme que dói de mansinho, sofrimento no coração de todos os apaixonados.

A cena: o marido e a mulher chegam a uma festa. Muita gente conhecida e desconhecida, música, risos, olhares… Marido e mulher se separam para se socializarem com outras pessoas. Numa roda, o marido conversa e ri, distraído. De repente, ele vira o seu rosto e vê a sua mulher em outro grupo. Ela está de costas, vestido branco, costas nuas. Como ela é bonita! Ele a ama e pensa que outros homens já olharam para ela com olhares de admiração e desejo. Ela se tornou o centro das atenções da sua roda. Todos os homens se esforçam por lançar o seu charme. Ela ri. De costas para o marido é como se ele não existisse. Como aconteceu com a mulher que lia o livro. Ri por causa dos outros que a cercam, grupo do qual o marido está ausente. E ele pensa que, naquele momento, a felicidade da sua mulher acontece sem que ele dela participe. E lhe dói saber que ela pode ser feliz sem ele, ainda que num breve momento.

Sofre em silêncio, sem demonstrar. E nem fará cobranças quando voltarem para a casa. Afinal de contas, ele é um homem educado que compreende os movimentos da alma.

O ciúme nasce quando se toma consciência de que a pessoa amada é livre. Ela é como um pássaro pousado no ombro. Nada o prende. Poderá voar para longe quando quiser.

Alguns ciumentos tolos acham que o casamento é gaiola que garantirá a posse plena do pássaro. Mas nada garante a posse do pássaro. O pássaro voa, o pássaro volta… Mas pode ser mesmo que ele voe e não volte…

RUBEM ALVES


Eras um rosto
Na noite larga
De altas insônias
Iluminada.

Serás um dia
Vago retrato
De quem se diga:
“o antepassado”.

Eras um poema
Cujas palavras
Cresciam dentre
Mistério e lágrimas.

Serás silêncio,
Tempo sem rastro,
De esquecimentos
Atravessados.

Disso é que sofre
A amargurada
Flor da memória
Que ao vento fala

Cecília Meireles
In Retrato Natural

Flutuações


O sonho aprendeu a pairar bem alto,
lá onde o sobressalto nem sequer nasceu,
Namorou a trôpega ilusão,
até que, trêfego e desajeitado,
desprendeu-se de seu reino idealizado,
veio pousar tamborilante em minha mão.
Assim, aquecido e aconchegado,
parece que se esqueceu de ir embora.
Na hora em que ressona distraído,
eu lhe pingo malemolências ao ouvido,
à sua inquietação eu me sujeito.
Eis que o sonho dorme agora aqui comigo,
seu corpo repousando no meu peito.


Flora Figueiredo
In Amor a céu aberto, 1992

When We Two Parted


WHEN we two parted
In silence and tears,
Half broken-hearted
To sever for years,
Pale grew thy cheek and cold,
Colder thy kiss;
Truly that hour foretold
Sorrow to this.

The dew of the morning
Sunk chill on my brow—
It felt like the warning
Of what I feel now.
Thy vows are all broken,
And light is thy fame:
I hear thy name spoken,
And share in its shame.

They name thee before me,
A knell to mine ear;
A shudder comes o'er me—
Why wert thou so dear?
They know not I knew thee,
Who knew thee too well:
Long, long shall I rue thee,
Too deeply to tell.

In secret we met—
In silence I grieve,
That thy heart could forget,
Thy spirit deceive.
If I should meet thee
After long years,
How should I greet thee?
With silence and tears.

 Lord Byron

Sílaba a sílaba



Eis sílaba a sílaba de uma cor perversa
o tempo quase nu para levar à boca.

Como se fora minha a respiração do trevo
alcanço a linha de água.

Habito onde o ar dói
as próprias mãos acesas.


Eugénio de Andrade
In Véspera da Água, 1973

Flor de Obsessão 2



- O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca.

- A morte de um velho amigo é uma catástrofe na memória. Todas nossas relações com o passado ficam alteradas.

- O amigo é um momento de eternidade.

- O asmático é o único que não trai.

- Toda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma.

- O biquíni é uma nudez pior do que a nudez.

- O que atrapalha o brasileiro é o próprio brasileiro. Que Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse do brasileiro.

- Não admito censura nem de Jesus Cristo.

- Nada nos humilha mais do que a coragem alheia.

- Deus só freqüenta as igrejas vazias.

- Copacabana vive, por semana, sete domingos.

- Não ama seu marido? Pois ame alguém, e já. Não perca tempo, minha senhora!

- A fome é mansa e casta. Quem não come não ama, nem odeia.

- Todo ginecologista devia ser casto. O ginecologista devia andar de batina, sandálias e coroinha na cabeça. Como um são Francisco de Assis, com a luva de borracha e um passarinho em cada ombro.

- A verdadeira grã-fina tem a aridez de três desertos.

- No passado, a notícia e o fato eram simultâneos. O atropelado acabava de estrebuchar na página do jornal.

- Não reparem que eu misture os tratamentos de "tu" e "você". Não acredito em brasileiro sem erro de concordância.

- Nossa ficção é cega para o cio nacional. Por exemplo: não há, na obra do Guimarães Rosa, uma só curra.

- Os magros só deviam amar vestidos, e nunca no claro.

- Um filho, numa mulher, é uma transformação. Até uma cretina, quando tem um filho, melhora.

- O cardiologista não tem, como o analista, dez anos para curar o doente. Ou melhor: — dez anos para não curar. Não há no enfarte a paciência das neuroses.

- Não há ninguém mais vago, mais irrelevante, mais contínuo do que o ex-ministro.

- Nunca a mulher foi menos amada do que em nossos dias.

- O Natal já foi festa, já foi um profundo gesto de amor. Hoje, o Natal é um orçamento.

- Enquanto um sábio negro não puder ser nosso embaixador em Paris, nós seremos o pré-Brasil.

- Quem nunca desejou morrer com o ser amado nunca amou, nem sabe o que é amar.

- Se eu tivesse que dar um conselho, diria aos mais jovens: — não façam literatice. O brasileiro é fascinado pelo chocalho da palavra.

- Qualquer menino parece, hoje, um experimentado e perverso anão de 47 anos.

- Eu me nego a acreditar que um político, mesmo o mais doce político, tenha senso moral.

- Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo: — a nossa.

- Sexo é para operário.

- Morder é tara? Tara é não morder.

- Todo tímido é candidato a um crime sexual.

- Só há uma tosse admissível: — a nossa.

- Desconfio muito dos veementes. Via de regra, o sujeito que esbraveja está a um milímetro do erro e da obtusidade.

- Falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida variedade do vigarista.




Nelson Rodrigues
fonte: http://www.releituras.com/
Frases selecionadas e organizadas por Ruy Castro, extraídas do livro "Flor de Obsessão", Cia. das Letras - São Paulo, 1997, págs. diversas.

O BOM LIVRO – uma bíblia laica


O bom livro é uma versão não religiosa da bíblia, inspirada em 2.500 anos de pensamento, ciência e literatura, ocidentais e orientais. O resultado é uma obra moderna, que se aproxima das sagradas escrituras na concepção e na tendência literária, mas que se afasta delas ao abranger uma tradição humanista mais antiga e vasta, de amplo escopo cultural e geográfico.
Textos imortais de Heródoto, Lucrécio, Confúcio, Mêncio, Sêneca, Cícero, Montaigne, Bacon, entre outros, foram editados, adaptados e reescritos por A.C. Grayling de modo a reproduzirem alguns dos livros mais emblemáticos da bíblia, como Gênesis e as Epístolas. Ao modernizar e laicizar a Bíblia, o filósofo britâncio mais lido da atualidade nos desafia a responder a uma das questões centrais de sua obra; num mundo cada vez mais laico, o que significa, hoje, ser Humano?

(...) vivemos em ações, não em anos; nos pensamentos, não na respiração; e devemos contar nosso tempo pelo palpitar do coração quando amamos e ajudamos, aprendemos e lutamos, e com nossos talentos realizamos o que possa aumentar as reservas de bem do mundo.

Gênesis

Capítulo I

9. o medo  domina as pessoas quando pouco entendem e precisam de lendas e contos simplórios que consolem e expliquem;
10. mas as lendas e a ignorância que lhes dá origem são morada de limitações e trevas;
11. o conhecimento é liberdade, liberdade frente à ignorância e seu filho, o medo; o conhecimento é luz e libertação;
12. o conhecimento de que o mundo contém a si mesmo, suas origens e o intelecto do homem,
13. de onde provém mais conhecimento e a esperança de ainda mais conhecimento.
14. ousa saber: tal é o lema do esclarecimento.

Capítulo 7

1. considera também: conhecemos os perfumes variados das coisas, e no entanto nunca vemos o aroma que toca nossas narinas;
2. com olhos não vemos o calor nem o frio, e no entanto os sentimos; não vemos as vozes dos homens, e no entanto as ouvimos; tudo é corpóreo,
3. todas as coisas são matéria ou da matéria surgem; o real é o material, visível e invisível igualmente.

Capítulo 11

26. o grande mandamento da natureza é que, em centenas de milhares de formas e maneiras, os sêmens fluam em abundância e superabundância,
27. que em sua estação flutuem no mar e no ar miríades de vidas possíveis; que homens e animais na estação se acasalem com seus pares, obedientes ao desejo;
28. a primavera vê os recém-nascidos virem à luz ou piarem no ninho pedindo alimento; e ao seio da mãe o infante se amamenta,
29. prova de que nenhuma lei ou loucura humana pode alterar o rio da vida, que sempre há de avançar poderosamente,
30. procurando todos os caminhos para o futuro, sem aceitar obstáculos nem impedimentos.
31. pois seu único monarca é a natureza, seu único guia é a mão da natureza, seu único fim é o cumprimento dos grandes imperativos da natureza.

SABEDORIA

Capítulo1

14. o sábio diz do que não ouviu: “não ouvi”;
15. e do que não viu: “não vi”.
16. o sábio reconhece a verdade.

Capítulo 2

9. o sábio prefere ser o último dos melhores do que o primeiro dos piores.

Capítulo 3

10. o sábio diz que nosso defeito é criar hábitos: pois o hábito é a marca de um mundo estereotipado,
11. e é apenas a imprecisão dos olhos que faz duas coisas parecerem iguais.
20. a filosofia pode nos ajudar a colher o que, não fora ela, poderia passar despercebido, pois a filosofia é o microscópio do pensamento;

Capítlo 11

14. passou por ti? Não detenha.

Capítulo 12

4. És ator num drama cujo autor és tu, mas também o são os assuntos além do teu controle.
11. lembra que o insulto vem não daquele que emprega palavras ruins ou desfere um soco, mas do princípio que representa tais coisas como insultuosas.
12. quando, portanto, alguém te provocar, certifica-te de que é tua própria opinião que te provoca.
13. tenta, portanto, em primeiro lugar, não te deixares levar pela aparência. Pois se ganhares tempo e postergares, mais facilmente terás comando sobre ti mesmo.



O BOM LIVRO – uma bíblia laica – A.C. Grayling, tradução Denise Bottmann, Editora objetiva, Rio de janeiro, 2011
 

Por favor,
respeita o meu silêncio,
o silêncio é a minha melhor arma.

Escutaste as minhas palavras
quando fiquei silenciosa?

Sentiste a beleza do que disse
quando não disse nada?

Nizar Kabanni

O duplo



Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
- que me alimenta a tristeza.

Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
- que perturba quem me ama.

Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
-pensando que eu sou ele.

Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
- e alguém calado que grita.


Affonso Romano de Sant´Anna