sexta-feira, 14 de outubro de 2016

O Poeta

fabian perez

A vida do poeta tem um ritmo diferente 
É um contínuo de dor angustiante. 
O poeta é o destinado do sofrimento 
Do sofrimento que lhe clareia a visão de beleza 
E a sua alma é uma parcela do infinito distante 
O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende. 

Ele é o etemo errante dos caminhos 
Que vai, pisando a terra e olhando o céu 
Preso pelos extremos intangíveis 
Clareando como um raio de sol a paisagem da vida. 
O poeta tem o coração claro das aves 
E a sensibilidade das crianças. 
O poeta chora. 
Chora de manso, com lágrimas doces, com lágrimas tristes 
Olhando o espaço imenso da sua alma. 
O poeta sorri. 
Sorri à vida e à beleza e à amizade 
Sorri com a sua mocidade a todas as mulheres que passam. 
O poeta é bom. 
Ele ama as mulheres castas e as mulheres impuras 
Sua alma as compreende na luz e na lama 
Ele é cheio de amor para as coisas da vida 
E é cheio de respeito para as coisas da morte. 
O poeta não teme a morte. 
Seu espírito penetra a sua visão silenciosa 
E a sua alma de artista possui-a cheia de um novo mistério. 
A sua poesia é a razão da sua existência 
Ela o faz puro e grande e nobre 
E o consola da dor e o consola da angústia. 

A vida do poeta tem um ritmo diferente 
Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a terra e olhando o céu 
Preso, eternamente preso pelos extremos intangíveis.


Vinícius de Moraes 

A inquietude da roseira




A roseira em seu inquieto modo de florescer 
Vai queimando a seiva que alimenta seu ser. 
Prestai atenção nas rosas que caem no rosal: 
Tantas caem que a planta morrerá deste mal! 
Não é adulta a roseira e sua vida impaciente 
Se consome ao dar flores precipitadamente.


 Alfonsina Storni
lauri blank

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.
Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guia
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.
Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói 
nos cardos deste sol de morte viva.
Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva


José Gomes Ferreira

Christina Nguyen 


Chove?... Nenhuma chuva cai... 
Então onde é que eu sinto um dia 
Em que o ruído da chuva atrai 
A minha inútil agonia? 

Onde é que chove, que eu o ouço? 
Onde é que é triste, ó claro céu? 
Eu quero sorrir-te, e não posso, 
Ó céu azul, chamar-te meu... 

E o escuro ruído da chuva 
É constante em meu pensamento. 
Meu ser é a invisível curva 
Traçada pelo som do vento... 

E eis que ante o sol e o azul do dia, 
Como se a hora me estorvasse, 
Eu sofro... E a luz e a sua alegria 
Cai aos meus pés como um disfarce. 

Ah, na minha alma sempre chove. 
Há sempre escuro dentro em mim. 
Se escuto, alguém dentro em mim ouve 
A chuva, como a voz de um fim ... 

Quando é que eu serei da tua cor, 
Do teu plácido e azul encanto, 
Ó claro dia exterior, 
Ó céu mais útil que o meu pranto? 


Fernando Pessoa

In Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues, 1944 
Ed. Confluência, Lisboa (3.ª ed. Livros Horizonte, Lisboa, 1985)

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Corpo


Belarmino Miranda
 
Corpo corpo
que te seja leve o peso das estrelas
e de tua boca irrompa a inocência nua
dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa

abre a janela debruça-te
deixa que o mar inunde os órgãos do corpo
espalha lume na ponta dos dedos e toca
ao de leve aquilo que deve ser preservado

mas olho para as mãos e leio
o que o vento norte escreveu sobre as dunas

levanto-me do fundo de ti humilde lama
e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo


Al Berto, O Medo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998

A delicada majestade

Helene Beland

Um dia poderás chegar, tu que nunca chegas
porque não és um tu
ou porque chegas sempre em não chegares.
Subi um dia por uma escada silenciosa
e em torno era um pomar branco, tranquila maravilha
e eu senti, eu vi, adivinhei
a divindade amada, a soberana e delicada
majestade. Que suavidade de oriente,
que suave esplendor! Era o fulgor de um sono
límpido, entre olhos verdes, entre mãos verdes.
E num repouso de oiro adormecido era quase um rosto
Antiquíssimo e inicial. Contemplava
a quietude de um imenso nenúfar
e a fragrância era quase visível como um mar entreaberto.
Era um rio detido ou uma tersa nuca ou um braço estendido
que descansa entre ribeiros primaveris
ou era antes a serena felicidade
e era uma boca da terra que não cantava que não dizia
o silêncio ardente que no peito de espuma cintilava.


António Ramos Rosa, em "Acordes". Quetzal Editores, 2ª ed., 1990.

A origem

 
 Brita Seifert


O prazer proibido consumou-se.
Eles se erguem do leito e, sem falar-se,
vestem-se à pressa.
Saem da casa em separado, às escondidas; vão-se
um tanto inquietos pela rua, como se
temessem que algo neles revelasse
em que espécie de leito possuíram-se.

Mas, do artista, como a vida se enriquece!
Amanhã, no outro dia, anos depois, serão escritos
os versos que aqui têm sua origem.


Konstantinos Kaváfis 

"O tempo passa, Virgínia"




O tempo passa, Virgínia,
os dias e as noites
passam tão rapidamente
que só sentimos o voo.
Quando os anos marcam
nosso corpo,
com as dobras, as veias,
as rugas, o saber sobre as coisas enobrece.
Caminhos percorridos
às vezes adiados
nem sempre contados.
Memória do viver.

Vera Casa Nova:
"Versos". In: Restos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.

Os sentimentos vastos não têm nome



 Os sentimentos vastos não têm nome. Perdas, deslumbramentos, catástrofes do espírito, pesadelos da carne, os sentimentos vastos não têm boca, fundo de soturnez, mudo desvario, escuros enigmas habitados de vida mas sem sons, assim eu neste instante diante do teu corpo morto. Inventar palavras, quebrá-las, recompô-las, ajustar-me digno diante de tanta ferida, teria sido preciso, Lucas meu amor, meus 35 anos de vida colados a um indescritível verdugo, alguém Humano, e há tantos indescritíveis Humanos feito de fúria e desesperança, existindo apenas para nos fazer conhecer o nome da torpeza e da agonia. Mas indigno e desesperado me atiro sobre o vidro que recobre a tua cara, e várias mãos, de amigos? de minha filha adolescente? de meu pai? ou quem sabe as mãos de teus jovens amigos repuxam meu imundo blusão e eu colo a minha boca na direção da tua boca e um molhado de espuma embaça aquela cintilância que foi a tua cara. Grito. Gritos finos de marfim de uma cadela abandonada tentando enfiar a cabeça na axila de Deus. De uma cadela sim. Porque as fêmeas conhecem tudo da dor, fendem-se ou são desventradas para dar à luz e eu Lucius Kod neste agora me sei mais uma esquálida cadela, a morte e não a vida escoando de mim, musgos finos pendendo dos abismos, estou caindo e ao meu redor as caras pétreas, quem são? amigos? minha filha adolescente? meu pai? teus jovens amigos? Caras graníticas, ódio mudo e vergonha, palavras que vêm de longe, evanescentes mas tão nítidas como fulgentes estiletes, palavras de supostos éticos Humanos:

 Constrangedor  Louco   Demente
 Absurdo        Intolerável

Ducente Deo começo estes escritos deveria ter dito. Tendo Deus como guia, começo estes escritos deveria ter dito.


 Hilda Hilst in: Rútilo Nada

Via satélite


O aço do seu braço era inox
Dulcíssimo seu whisky on the rocks
E eu te amava assim
Por puro carmesin, dizia ai de mim
Quem somos nós?

Na cama a doce entrega do relax
Nós nos beijamos da cabeça aos pés
Somos essas pessoas desiguais
Querendo sempre mais coisas e tais
Tentando desatar todos os nós

Sua voz me chega através da TV
Te vejo e você não é você
Há entre nós o vidro da notícia
A transmissão transforma sub-reptícia, subfiltragem
Pessoa em personagem
E te reflete mas você não é.

Somos famosos e absolutamente estranhos
E sempre que pensamos que nos damos
Há em nós os que pensam que somos
A estética da reportagem, presídio
Da imagem, ótica do vídeo
Espécie da miragem.

E nós que mal nos conhecemos e gostamos
Pensamos na delícia de uma viagem.


Bruna Lombardi
O perigo do dragão, Rio de janeiro, Record, 1984, p. 41


"Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. Trata-se de jogos; é preciso primeiro responder. E se é verdade, como quer Nietzsche, que um filósofo, para ser estimado, deve pregar com o seu exemplo, percebe-se a importância dessa reposta, porque ela vai anteceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso ir mais fundo até torná-las claras para o espírito. Se eu me pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que tal outra, respondo que é pelas ações a que ela se compromete. Nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com a maior tranqüilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente."

*
"Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. 'Acho que tudo está bem', diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está perdido, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores Inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe".


Albert Camus, in: O Mito de Sísifo.


Adeus às armas



Não concordo com o que dizem por aí. O que fizemos neste verão não foi inútil.
Calei-me. Eu sempre me embaraçava com as palavras sagrado, glorioso, sacrifício e inútil. Nós as
tínhamos escutado muitas vezes, de longe, debaixo da chuva, quando só as palavras mais gritadas
eram ouvidas, e as tínhamos lido em proclamas pregados nas paredes, sobre outros proclamas. Mas
não víamos nada sagrado em torno, e as coisas gloriosas não mostravam glória nenhuma. Os
sacrifícios seriam como os dos matadouros de Chicago, só que lá fazem outra coisa com a carne que,
aqui, enterramos. Havia muitas palavras que já não suportávamos — e por fim só os nomes dos
lugares tinham dignidade. Certos números, nomes e datas eram tudo o que poderíamos pronunciar
com alguma significação. Palavras abstratas, como glória, honra, coragem, sagrado, eram obscenas,
ao lado dos nomes concretos das cidades e rios, dos números dos regimentos e das datas.


Ernest Hemingway, Adeus às armas

Livro do desassossego [31]




O relógio que está lá para trás, na casa deserta, porque todos dormem, deixa cair lentamente o quádruplo som claro das quatro horas de quando é noite. Não dormi ainda, nem espero dormir. Sem que nada me detenha a atenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e por isso não sossegue, jazo na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais desacompanhada, o silêncio amortecido do meu corpo estranho.

Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei sentir, do sono que não consigo ter.
Tudo em meu torno é o universo nu, abstrato, feito de negações noturnas. Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metafísico do mistério das coisas.

Por vezes amolece-se-me a alma, e então os pormenores sem forma da vida quotidiana boiam-se-me à superfície da consciência, e estou fazendo lançamentos à tona de não poder dormir. Outras vezes, acordo de dentro do meio-sono em que estagnei, e imagens vagas, de um colorido poético e involuntário, deixam escorrer pela minha desatenção o seu espetáculo sem ruídos. Não tenho os olhos inteiramente cerrados. Orla-me a vista frouxa uma luz que vem de longe; são os candeeiros públicos acesos lá em baixo, nos confins abandonados da rua.

Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada por melhores coisas melancólicas ditas em segredo ao que me desconhecesse!… Cessar, passar fluido e ribeirinho, fluxo e refluxo de um mar vasto, em costas visíveis na noite em que verdadeiramente se dormisse!… Cessar, ser incógnito e externo, movimento de ramos em áleas afastadas, tênue cair de folhas, conhecido no som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o indefinido dos parques na noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos, labirintos naturais da treva!… Cessar, acabar finalmente, mas com uma sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeixa de um cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem importância no cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do caminho… O absurdo, a confusão, o apagamento — tudo que não fosse a vida… E durmo, a meu modo, sem sono nem repouso, esta vida vegetativa da suposição, e sob as minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma quieta de um mar sujo, o reflexo longínquo dos candeeiros mudos da rua.

Durmo e desdurmo.

Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Ouço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração físico a memória, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que a tenho fazendo vale. A pele da fronha tem com a minha pele um contato de gente na sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece — não é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio da casa, lugar certo lá ao fundo das coisas, soa a meia hora seca e nula. Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é tão negro e tão frio!
Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim.
Subitamente, como uma criança do Mistério, um galo canta sem saber da noite. Posso dormir, porque é manhã em mim. E sinto a minha boca sorrir, deslocando levemente as pregas moles da fronha que me prende o rosto.
Posso deixar-me à vida, posso dormir, posso ignorar-me… E, através do sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou é ele, de veras, que canta segunda vez.


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Livro do desassossego

sábado, 1 de outubro de 2016

Poema de sombra


Cheng Shek


Se perdem gestos, cartas de amor, malas, parentes
Se perdem vozes, cidades, países, amigos
Romances perdidos, objetos perdidos, histórias se perdem.

Se perde o que fomos e o que queríamos ser.
Se perde o momento, mas não existe perda, existe movimento.


Bruna Lombardi

Leitura fria



Um diadema de sílabas
sobre o rosto, e a nua
enunciação das pálpebras. Abro
a página; e um jorro de estames
cobre as sílabas. Mas a dor consome
os dedos que percorrem
o livro. Uma voz
emerge de cada parágrafo,
soletrando o tempo. Assim,
é como se o silêncio se
substituísse às palavras, e
o corpo pousasse num chão
de versos. Por fim,
o vento do ser abranda
num estuário de emoções. E os olhos
avançam até ao fim do poema.

 Nuno Júdice

Viciados em companhia

Paul Kelley

Não confio no amor de quem não consegue ficar sozinho.
Nunca foi ao cinema sozinho, nunca viajou sozinho, perambula pela rua feito um cão que se perdeu do dono. Sentar na lanchonete de uma livraria para tomar um cafezinho assemelha-se a uma catástrofe. Sua solidão lhe parece vergonhosa e indigesta, é evitada com o mesmo afinco com que evitaria a morte.
Para ele, qualquer parceria é melhor que nenhuma. Uma conversa enfadonha é melhor que o silêncio. Um chato é melhor que ninguém. É praticamente um viciado em companhia. E como todo viciado, critério não é o seu forte.
Não confio no amor de quem não suporta a própria presença.
De quem telefona a fim de papo furado, de quem envia mensagens só para ouvir o sinal da chegada da resposta, de quem precisa se iludir de que não está só. Quem de nós não está só?
Uma manhã de frente para o mar, uma tarde com um livro, uma noite com um filme, três dias inteiros numa cidade estranha, uma rua que nunca foi atravessada, um museu com tempo livre à vontade, uma cama vazia – para ele, simulacros do inferno.
Não confio no amor de quem não se entretém.
De quem se desespera em frente ao espelho, de quem não consegue se maravilhar num jardim, de quem não se comove ao ouvir uma música, de quem não gosta de andar de ônibus enquanto aprecia a paisagem, de quem não se sente inteiro num trem.
Sozinho é uma coisa, solitário é outra. Sozinho é com, solitário é sem.
Eu sozinha sou muitas. Sozinha, tem mais sabor minha comida, tem mais foco o meu olhar, tem mais profundezas o meu ser. Sozinha tem mais espaço minha liberdade, tem mais imaginação a minha fantasia, tem mais beleza a minha individualidade. Sozinha tem mais força o meu pensamento, mais inteireza a minha vontade.
Não confio no amor de quem negocia sua autenticidade.
Como amar de verdade outro alguém, se não sabe de onde esse amor vem? Onde foi gerado, por que necessário, que atributos ele contém? Amar é doar, não vem do doer. Amar é saber que aquele que a gente ama, se faltar, vai deixar saudade, mas não nos transformará num cadáver vagando ao léu. Não confio em quem ama para ser um par, não confio em quem quer apenas se enquadrar, não confio em quem ama por não se tolerar.
Amar tem que ser extraordinário. Além do que já se tem.
Se sozinho você não se tem, amar vira tubo de oxigênio, ânsia, invenção e enredo barato, perde a dignidade, o amor vira muleta e trucagem. Confio, sim, no amor de quem não precisa amar por sobrevivência, de quem se basta e mesmo assim é impelido a se dar, porque dar-se é excelência, não é mendicância.
Não confio no amor de quem não se ama em primeira instância.

Martha Medeiros

Confiança



Sexo não é competição, não é se mostrar superior ao outro, mas fazer com que o outro se perceba inesquecível.

Sexo não é gincana, não é quantidade, não é quantas pode aguentar, não é desafiar para cansar, é provocar para atender às expectativas.

Sexo é merecimento, é compreender o prazer da convivência antes mesmo do prazer da transa, é entender o prazer de ouvir as histórias, as safadezas, antes mesmo do orgasmo.

Sexo não é para dizer que o outro não nos satisfaz, é procurar entender como o outro pode nos satisfazer.

Sexo não é cobrança, não é prepotência, não é um duelo.

Sexo é confiança mais do que vaidade.


Fabrício Carpinejar

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Crime e Castigo


"A causa de tudo isso é estar eu doente", decidiu, finalmente, mal-humorado. "Eu próprio me atormento e martirizo, e não sei ao certo o que faço... E ontem, e anteontem, e todo este tempo tenho estado a atormentar-me... Quando me puser bom... deixarei de sofrer... Mas se eu não me ponho bom? Senhor! Como eu já estou farto de tudo isto!"
Caminhava sem parar. Sentia uma ânsia feroz de distrair-se, fosse como fosse; mas não sabia que fazer nem que empreender. Uma sensação nova, invencível, se ia arraigando nele cada vez mais: era uma aversão infinita, quase física, por tudo quanto encontrava e via, uma sensação obstinada, maldosa, inflamada. Todas as pessoas se lhe tornavam odiosas, eram-lhe também odiosas as suas caras, a sua maneira de andar, todos os seus movimentos.
Cuspir-lhes-ia simplesmente, morderia quem quer que tivesse a intenção de lhe falar...

**
- Que pensam as senhoras? - exclamou Razumíkhin, elevando a voz ainda mais. - Julgam que eu me ponho assim porque eles mentem? Tolice! Eu gosto que eles mintam! A mentira é o único privilégio do homem sobre todos os outros animais. Vai mentindo... que depois hás de atingir a verdade! É precisamente por ser homem que eu minto. Nem uma só verdade poderia alcançar se antes não mentisse catorze vezes, e até cento e catorze vezes, o que representa uma honra sui generis; simplesmente, nós nem sequer sabemos mentir com inteligência! Tu me mentes, mas mentes-me de uma maneira especial, e eu ainda por cima te dou um abraço. Mentir com graça, de uma maneira pessoal, é quase melhor que dizer a verdade à maneira de toda a gente; no primeiro caso é-se um homem e, no segundo, não se é mais do que um papagaio! A verdade não anda depressa, mas, à vida, podemos fazê-la correr; há exemplos disso. Ora vejamos: que somos nós presentemente? Todos, todos sem exceção, no campo das ciências, da cultura, do engenho, da invenção, da experiência, em todos os campos, em todos, em todos, não passamos das primeiras letras. Gostamos de nos regalarmos com a inteligência alheia! Da papinha já feita! Não é verdade? Não tenho razão? - exclamou Razumíkhin, exaltando-se e apertando as mãos das duas mulheres. - Não será verdade isso tudo?

**
Todos os criminosos, sejam eles quais forem, experimentam no momento de cometer o seu crime uma espécie de enfraquecimento da vontade e do raciocínio, estado esse que vem depois a ser substituído por um atordoamento extraordinário e pueril, precisamente no momento em que mais necessárias lhe seriam a razão e a prudência. Esse eclipse do raciocínio, esse desfalecimento da vontade, segundo Raskólhnikov, apoderava-se do homem à maneira de uma doença, desenvolvendo-se progressivamente e alcançando o seu máximo de intensidade momentos antes do cometimento do crime: persistia durante a execução deste último e algum tempo depois, conforme os indivíduos, acabando depois por desaparecer como qualquer outra doença. O problema estava em saber se é a doença que engendra o crime, ou se o próprio crime, por sua natureza, é que é sempre acompanhado de um certo gênero de doença; mas isso era uma questão que ele não se sentia capaz de resolver.

Quando chegou a essas deduções, decidiu que, pelo que lhe dizia respeito, pessoalmente e ao seu projeto, não era possível que se produzissem semelhantes colapsos morais, pois nem a sua razão nem a sua vontade haviam de abandoná-lo durante toda a execução da sua empresa, unicamente pela razão de que aquilo que se propunha levar a cabo não era um crime... Prescindimos do processo mediante o qual chegara a essa resolução suprema, pois já nos adiantamos sobre os acontecimentos... Acrescentamos apenas que as dificuldades práticas, de ordem puramente material, do assunto, não assumiam no seu espírito senão uma importância completamente secundária. "Basta que conserve o domínio da minha vontade e da minha razão para que, chegando o momento, fiquem vencidas todas essas dificuldades quando se trata de tocar nos pormenores mais insignificantes do meu plano..." Mas a execução do seu desígnio ia-se adiando. Cada vez tinha menos fé na possibilidade de as suas resoluções assumirem um caráter definitivo e, chegada a hora, os acontecimentos tomarem um rumo completamente diferente, imprevisto, para não dizer inesperado.

**
E os meus pensamentos eram como sonhos, sonhos estranhos e diferentes. Que sonhos! Mas foi então que me comecei a lembrar de que... Não, não foi assim. Já estou outra vez desfigurando a verdade! Olha, eu, por essa altura, não fazia outra coisa senão perguntar a mim próprio: "Pois se eu vejo a estupidez dos outros, por que não procuro ser mais inteligente do que os outros?" Porque eu sabia, Sônia, que, se estivesse à espera de que os outros todos se tornassem inteligentes, tinha muito que esperar... Além disso reconhecia que os homens não mudam e não há quem seja capaz de mudá-los, e que não vale a pena uma pessoa incomodar-se em vão. Sim, é assim mesmo! É essa a lei... é a lei, Sônia! É assim mesmo! E agora sei também, Sônia, que quem é forte de alma e inteligência domina sobre eles. Quem se arrisca a muito é que tem razão, para eles. Quem é capaz de desprezar muitas coisas é que é para eles o legislador, e o que for mais atrevido de todos, é esse o que tem mais razão. Tem sido assim até hoje e assim será para sempre! Só o cego é que não o vê!
 Enquanto dizia isso, embora continuasse olhando para Sônia, Raskólhnikov já não se preocupava com o fato de que ela pudesse ou não compreendê-lo. A febre apoderara-se completamente dele. Parecia tomado de um sombrio entusiasmo. (De fato, havia já muito tempo que não falava com ninguém.) Sônia compreendia que aquela lúgubre catequese era nele sincera, que era a sua verdade.
- Então adivinhei, Sônia - continuou com entusiasmo -, que o poder apenas se entrega a quem se atreve a inclinar-se e a apanhá-lo. Só é preciso uma coisa, só uma coisa: atrevimento para o fazer. Então me ocorreu, pela primeira vez na minha vida, um pensamento que anteriormente nunca me acontecera. Nunca! De repente tornou-se-me claro como a água, surgiu-me em toda a evidência que, até hoje, ninguém se atrevera, nem se atreveria, ao passar junto a toda essa estupidez, a pegar-lhe simplesmente pelo rabo e a atirar com ela para o diabo. Eu... eu queria atrever-me, e matei... a única coisa que eu queria era atrever-me, Sônia: aí tens a verdadeira razão.


Fiódor Dostoiévski, Crime e Castigo

Poema negro


Rocco Caputo – o aconchego da morte

A Santos Neto


Para iludir minha desgraça, estudo. 
Intimamente sei que não me iludo. 
Para onde vou (o mundo inteiro o nota) 
Nos meus olhares fúnebres, carrego 
A indiferença estúpida de um cego 
E o ar indolente de um chinês idiota! 


A passagem dos séculos me assombra. 
Para onde irá correndo minha sombra 
Nesse cavalo de eletricidade?! 
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem: 
— Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem? 
E parece-me um sonho a realidade. 


Em vão com o grito do meu peito impreco! 
Dos brados meus ouvindo apenas o eco, 
Eu torço os braços numa angústia douda 
E muita vez, à meia-noite, rio 
Sinistramente, vendo o verme frio 
Que há de comer a minha carne toda! 


É a Morte — esta carnívora assanhada — 
Serpente má de língua envenenada 
Que tudo que acha no caminho, come... 
— Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro, 
Sai para assassinar o mundo inteiro, 
E o mundo inteiro não lhe mata a fome! 


Nesta sombria análise das cousas, 
Corro. Arranco os cadáveres das lousas 
E as suas partes podres examino. . . 
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo, 
Na podridão daquele embrulho hediondo 
Reconheço assombrado o meu Destino! 


Surpreendo-me, sozinho, numa cova. 
Então meu desvario se renova... 
Como que, abrindo todos os jazigos, 
A Morte, em trajos pretos e amarelos, 
Levanta contra mim grandes cutelos 
E as baionetas dos dragões antigos! 


E quando vi que aquilo vinha vindo 
Eu fui caindo como um sol caindo 
De declínio em declínio; e de declínio 
Em declínio, com a gula de uma fera, 
Quis ver o que era, e quando vi o que era, 
Vi que era pó, vi que era esterquilínio! 


Chegou a tua vez, oh! Natureza! 
Eu desafio agora essa grandeza, 
Perante a qual meus olhos se extasiam... 
Eu desafio, desta cova escura, 
No histerismo danado da tortura 
Todos os monstros que os teus peitos criam. 


Tu não és minha mãe, velha nefasta! 
Com o teu chicote frio de madrasta 
Tu me açoitaste vinte e duas vezes... 
Por tua causa apodreci nas cruzes, 
Em que pregas os filhos que produzes 
Durante os desgraçados nove meses! 


Semeadora terrível de defuntos, 
Contra a agressão dos teus contrastes juntos 
A besta, que em mim dorme, acorda em berros 
Acorda, e após gritar a última injúria, 
Chocalha os dentes com medonha fúria 
Como se fosse o atrito de dois ferros! 


Pois bem! Chegou minha hora de vingança. 
Tu mataste o meu tempo de criança 
E de segunda-feira até domingo, 
Amarrado no horror de tua rede, 
Deste-me fogo quando eu tinha sede... 
Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo! 


Súbito outra visão negra me espanta! 
Estou em Roma. É Sexta-feira Santa. 
A treva invade o obscuro orbe terrestre. 
No Vaticano, em grupos prosternados, 
Com as longas fardas rubras, os soldados 
Guardam o corpo do Divino Mestre. 


Como as estalactites da caverna, 
Cai no silêncio da Cidade Eterna 
A água da chuva em largos fios grossos... 
De Jesus Cristo resta unicamente 
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente 
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos! 


Não há ninguém na estrada da Ripetta. 
Dentro da Igreja de São Pedro, quieta, 
As luzes funerais arquejam fracas... 
O vento entoa cânticos de morte. 
Roma estremece! Além, num rumor forte, 
Recomeça o barulho das matracas. 


A desagregação da minha idéia 
Aumenta. Como as chagas da morféa 
O medo, o desalento e o desconforto 
Paralisam-se os círculos motores. 
Na Eternidade, os ventos gemedores 
Estão dizendo que Jesus é morto! 


Não! Jesus não morreu! Vive na serra 
Da Borborema, no ar de minha terra, 
Na molécula e no átomo... Resume 
A espiritualidade da matéria 
E ele é que embala o corpo da miséria 
E faz da cloaca uma urna de perfume. 


Na agonia de tantos pesadelos 
Uma dor bruta puxa-me os cabelos, 
Desperto. É tão vazia a minha vida! 
No pensamento desconexo e falho 
Trago as cartas confusas de um baralho 
E um pedaço de cera derretida! 


Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme. 
Eu, somente eu, com a minha dor enorme 
Os olhos ensangüento na vigília! 
E observo, enquanto o horror me corta a fala, 
O aspecto sepulcral da austera sala 
E a impassibilidade da mobília. 


Meu coração, como um cristal, se quebre 
O termômetro negue minha febre, 
Torne-se gelo o sangue que me abrasa, 
E eu me converta na cegonha triste 
Que das ruínas duma casa assiste 
Ao desmoronamento de outra casa! 


Ao terminar este sentido poema 
Onde vazei a minha dor suprema 
Tenho os olhos em lágrimas imersos... 
Rola-me na cabeça o cérebro oco. 
Por ventura, meu Deus, estarei louco?! 
Daqui por diante não farei mais versos. 


Augusto dos Anjos

terça-feira, 28 de junho de 2016

O lugar mais perto

Ariel Thilly


O corpo nunca é triste; 
o corpo é o lugar 
mais perto onde o lume canta. 
É na alma que a morte faz a casa. 


Eugénio de Andrade
In Ofício de Paciência, 1994 

A Queda, capítulo 2


Minha profissão satisfazia, felizmente, essa vocação das alturas. Ela me livrava de qualquer amargura em relação ao próximo, a quem eu sempre servia, sem nunca lhe dever nada.
Ela me colocava acima do juiz, que, por minha vez, eu julgava; acima do réu, que eu obrigava ao reconhecimento. Medite bem sobre isso, meu caro senhor: eu vivia impunemente.
Nenhum julgamento me dizia respeito, não me encontrava no palco do tribunal, mas em algum lugar nas galerias, como esses deuses que, de tempos em tempos, se fazem descer por meio de um maquinismo, para transfigurar a ação e dar-lhe sentido. Afinal, viver no alto ainda é a única maneira de ser visto e saudado pela maioria das pessoas.
Aliás, alguns de meus bons criminosos tinham, ao matar, obedecido ao mesmo sentimento.
A leitura dos jornais, na triste situação em que se encontravam, trazia-lhes, sem dúvida, uma espécie de infeliz compensação. Como muitos outros homens, eles já não suportavam o anonimato, e essa impaciência os havia, em parte, levado a lastimáveis extremos.
Em suma, para alguém se tornar conhecido, basta matar a porteira. Trata-se, infelizmente, de uma reputação efêmera, tantas são as porteiras que merecem e recebem uma facada. O crime está incessantemente em cena, mas o criminoso só figura fugazmente, para logo ser substituído.
Enfim, paga-se muito caro por estes breves triunfos. Pelo contrário, defender nossos infelizes aspirantes à fama resultava em ser verdadeiramente reconhecido, ao mesmo tempo e nos mesmos lugares, mas por meios mais econômicos. Isso animava-me também a envidar apreciáveis esforços para que eles sofressem a menor pena possível: a que sofriam, sofriam-na um pouco em meu lugar. A indignação, o talento, a emoção que eu despendia livravam-me, em compensação, de qualquer dívida em relação a eles. Os juízes condenavam, os réus expiavam e eu, livre de qualquer obrigação, isento tanto de julgamento quanto de sanção, eu imperava, livremente, numa luz edênica.
Na realidade, não seria isso o Éden, meu caro senhor: a vida bem engrenada? Foi assim a minha. Nunca tive necessidade de aprender a viver. A esse respeito, já sabia de tudo ao nascer.
Há pessoas cujo problema é resguardar-se dos homens ou, pelo menos, acomodar-se a eles.
Quanto a mim, a acomodação estava feita. Familiar quando era preciso, silencioso se necessário, capaz tanto de desenvoltura quanto de gravidade, estava sempre à altura. Dessa forma, era grande minha popularidade, e meus êxitos no mundo eu nem contava mais. Fazia boa figura, revelava-me simultaneamente incansável dançarino e erudito discreto, chegava a amar ao mesmo tempo, o que não é nada fácil, as mulheres e a justiça, praticava esportes e belas-artes. Em resumo: vou parar para que não me julgue imodesto. Mas imagine, eu lhe peço, um homem na força da idade, com a saúde perfeita, generosamente dotado, hábil tanto nos exercícios do corpo quanto da inteligência, nem pobre nem rico, de sono fácil, e profundamente satisfeito consigo mesmo, sem demonstrá-la, a não ser por uma alegre sociabilidade. Admitirá, então, que eu possa falar, com toda a modéstia, de uma vida bem-sucedida.
Sim, poucos seres terão sido mais integrados à natureza do que eu. Meu entendimento com a vida era total, eu aderia ao que ela era, de alto a baixo, sem nada recusar de suas ironias, de sua grandeza, nem de suas servidões. Particularmente a carne, a matéria, em resumo, o físico, que desconcerta ou desanima tantos homens no amor ou na solidão, dava-me, sem me escravizar, alegrias iguais. Fora feito para ter um corpo. Daí essa harmonia em mim próprio, esse autocontrole sem esforço que as pessoas sentiam e que, segundo confessavam, às vezes, ajudava-as a viver. Buscavam, pois, minha companhia. Muitas vezes, por exemplo, julgavam já me ter encontrado. A vida, seus seres e seus dons vinham ao meu encontro; eu aceitava essas homenagens com orgulho benevolente. Na verdade, à força de ser homem, com tanta plenitude e simplicidade, achava-me um pouco super-homem.
Era de origem honesta, mas obscura (meu pai era militar) e, no entanto, certas manhãs, humildemente o confesso, sentia-me um filho de rei ou uma sarça ardente. Tratava-se, repare bem, de algo bem diferente da certeza em que eu vivia de ser mais inteligente do que todo mundo. Tal certeza, aliás, não tem consequência, pelo fato de ser compartilhada por tantos imbecis. Não, por estar no auge, eu me sentia, hesito em confessá-la, um eleito. Eleito pessoalmente, entre todos, para este longo e constante êxito. Nisso residia, em suma, um efeito de minha modéstia. Negava-me a atribuir este êxito unicamente a meus méritos e não conseguia acreditar que a reunião, numa só pessoa, de qualidades tão diferentes e tão opostas resultasse de mero acaso. Eis por que, vivendo feliz, eu me sentia, de certo modo, autorizado a gozar esta felicidade por algum decreto superior. Se eu lhe disser que não tinha religião alguma, você compreenderá ainda melhor o que havia de extraordinário nessa convicção.
Extraordinária ou não, ela me ergueu durante muito tempo acima do tedioso dia a dia, e fiquei planando literalmente, durante anos, dos quais, para dizer a verdade, ainda tenho saudades. Planei até a noite em que... Mas, não, isso é outro assunto que deve ser esquecido. Aliás, talvez eu esteja exagerando. Sentia-me à vontade em tudo, é bem verdade, mas, ao mesmo tempo, nada me satisfazia. Cada alegria fazia com que desejasse outra. Ia de festa em festa. Chegava a dançar noites inteiras, cada vez mais louco com os seres e com a vida. Às vezes, já bastante tarde, nessas noites em que a dança, o álcool leve, meu modo desenfreado, o violento abandono de todos me lançavam a um arrebatamento ao mesmo tempo lasso e pleno, parecia-me no extremo da exaustão e no espaço de um segundo, compreender, enfim, o segredo dos seres e do mundo. Mas o cansaço desaparecia no dia seguinte e com ele o segredo; e eu me lançava outra vez com todo ímpeto. Assim corria eu, sempre pleno, jamais saciado, sem saber onde parar, até o dia, ou melhor, até a noite em que a música parou e as luzes se apagaram. A festa em que eu fora feliz...

Albert Camus
A Queda (Capítulo 2)

Tenho pena e não respondo

Fabian Perez

Tenho pena e não respondo. 
Mas não tenho culpa enfim 
De que em mim não correspondo 
Ao outro que amaste em mim. 

Cada um é muita gente. 
Para mim sou quem me penso, 
Para outros — cada um sente 
O que julga, e é um erro imenso. 

Ah, deixem-me sossegar 
Não me sonhem nem me outrem. 
Se eu não me quero encontrar, 
Quererei que outros me encontrem? 


Fernando Pessoa 
In Novas Poesias Inéditas, 1973 
Ed. Ática, Lisboa 


James Van Fossan

Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

As Flores

Elegant lady with a bouquet of roses - Emile Vernon

as flores
são mesmo
ingratas

a gente colhe
depois elas morrem
sem mais nem menos
como se entre nós
nunca tivesse
havido vênus


Paulo Leminski
In Caprichos e relaxos, 1983

Primavera

Dorina Costras

Primavera gentil dos meus amores,
- Arca cerúlea de ilusões etéreas,
Chova-te o Céu cintilações sidéreas
E a terra chova no teu seio flores!

Esplende, Primavera, os teus fulgores,
Na auréola azul dos dias teus risonhos,
Tu que sorveste o fel das minhas dores
E me trouxeste o néctar dos teus sonhos!

Cedo virá, porém, o triste outono,
Os dias voltarão a ser tristonhos
E tu hás de dormir o eterno sono,

Num sepulcro de rosas e de flores,
Arca sagrada de cerúleos sonhos,
Primavera gentil dos meus amores!


Augusto dos Anjos

Pelos

zinaida serebriakova

Macia selva que o teu corpo tapeteia.
Fina ramagem onde o toque se aveluda.
Vaivém de vento que penteia e despenteia.
Sensível manta que te cobre e te desnuda.

Pouso de face — a tua face — em minha face,
passando, aos poucos, a carinhos circulares.
Corta o silêncio abafadiço roçar: dá-se
a sinfonia dos murmúrios capilares.

Miro a penugem que recobre a tua orelha,
e os meus ouvidos, feito dedos, passam leves.
Cílio teus cílios, sobrancelho a sobrancelha,
e um humm e um ai e um ai e um humm sussurram breves.

Plumagens raras — tua nuca envolta em rama.
O meu pescoço quer o teu e tu mo encostas.
Tu te declinas à maneira de quem chama.
Nas mãos reversas sei da relva em tuas costas.

O que me é tátil à minha boca ora transfiro,
visto que assim, se sei do toque, sei do gosto.
E mais eu sei se pela boca te respiro,
pois menos sei qual do teu pelo me é posto.

Pelos que eu gosto: os que cercam teus mamilos,
onde em percursos labiais circunavego.
Tal o prazer tê-los assim, assim senti-los,
que a minha boca no teu seio às vezes nego.

Pelos que eu amo: os da barriga, feito seta,
que a boca assanha indo e vindo ao teu umbigo.
Como uma onda, o teu quadril se me projeta,
surfo teu ventre e nos teus pelos eu prossigo.

Pelos que eu quero: os teus pelos inguinais,
onde, bem sei, se me demoro, tu te adias.
Desses eu passo a outros pelos, capitais,
e em tais arranho a minha barba de dois dias.

Antoniel Campos


"— A felicidade não se caça. Pares amorosos voltam às vezes a dado lugar, querendo reproduzir êxtases ou enlevos; encontram é o desrequentado, discórdia e arrufo, aquele caminho não ia dar a Roma nenhuma. Outros recebem o dom em momentos neutros, até no meio dos sofrimentos, há as doces pausas da angústia."

João Guimarães Rosa, no livro “Tutaméia: terceiras estórias”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985
Lynn Sanguedolce 

Nas cartas que se escrevem e não
chegam ao destino, o que ficou dito
tem o eco do que nunca será
esquecido: a voz que se ouviu numa
paragem do tempo, e atravessa
o centro da memória numa inquieta
procissão de sombras.
Pudessem os arcos do horizonte
abrir-se como um lamento de pombas;
ou este sonho fechar-se com o correr
da cortina de um último acto: nunca
os dedos amados irão soletrar
a frase do crepúsculo, soltando
da sua música um enxame de sílabas.
E o azul enche a garrafa do céu
para que as aves se embriaguem
no púlpito do infinito, arrastando
no seu voo uma cinza de imagens.

 Nuno Júdice

Vigiar e Punir


Eis como ainda no início do século XVII se descrevia a figura ideal do soldado. O soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe; que leva os sinais naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho: seu corpo é o brasão de sua força e de sua valentia; e se é verdade que deve aprender aos poucos o ofício das armas - essencialmente lutando - as manobras como a marcha, as atitudes como o porte da cabeça se originam, em boa parte, de uma retórica corporal da honra:

Os sinais para reconhecer os mais idôneos para esse ofício são a atitude viva e alerta, a cabeça direita, o estômago levantado, os ombros largos, os braços longos, os dedos fortes, o ventre pequeno, as coxas grossas, as pernas finas e os pés secos, pois o homem desse tipo não poderia deixar de ser ágil e forte: (tornado lanceiro,o soldado) deverá ao marchar tomar a cadência dos passos para ter o máximo de graça e gravidade que for possível, pois a Lança é uma arma honrada e merece ser  levada com um porte grave e audaz.

Segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi "expulso o camponês" e lhe foi dada a "fisionomia de soldado". Os recrutas são habituados a manter a cabeça ereta e alta; a se manter direito sem curvar as costas, a fazer avançar o ventre, a salientar o peito, e encolher o dorso; e a fim de que se habituem, essa posição lhes será dada apoiando-os contra um muro, de maneira que os calcanhares, a batata da perna, os ombros e a cintura encostem nele, assim como as costas das mãos, virando os braços para fora, sem afastá-los do corpo... ser-lhes-á igualmente ensinado a nunca fixar os olhos na terra, mas a olhar com ousadia aqueles diante de quem eles passam... a ficar imóveis esperando o comando, sem mexer a cabeça, as mãos nem os pés... enfim a marchar com passo firme, com o joelho e a perna esticados, a ponta baixa e para fora...

Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo - ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homem-máquina foi escrito simultaneamente em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas por Descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois tratava-se ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e de explicação: corpo útil, corpo inteligível. E entretanto, de um ao outro, pontos de cruzamento. "O Homem-máquina" de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de "docilidade" que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. Os famosos autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo; eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de poder: obsessão de Frederico II, rei minucioso das pequenas máquinas, dos regimentos bem treinados e dos longos exercícios.

Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que há de tão novo? Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações. Muitas coisas entretanto são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica - movimentos, gestos, atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A modalidade enfim: implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as "disciplinas". Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes. Diferentes também da domesticidade, que é uma relação de dominação, constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do patrão, seu "capricho". Diferentes da vassalidade que é uma relação de submissão altamente codificada, mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais da obediência. Diferentes ainda do ascetismo e das "disciplinas" de tipo monástico, que têm por função realizar renúncias mais do que aumentos de utilidade e que, se implicam em obediência a outrem, têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre seu próprio corpo. O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma "anatomia política", que é também igualmente uma "mecânica do poder", está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos "dóceis". A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma "aptidão", uma "capacidade" que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.

A "invenção" dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral. Encontramo-los em funcionamento nos colégios, muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em algumas dezenas de anos reestruturam a organização militar. Circularam às vezes muito rápido de um ponto a outro (entre o exército e as escolas técnicas ou os colégios e liceus), às vezes lentamente e de maneira mais discreta (militarização insidiosa das grandes oficinas). A cada vez, ou quase, impuseram-se para responder a exigências de conjuntura: aqui uma inovação industrial, lá a recrudescência de certas doenças epidêmicas, acolá a invenção do fuzil ou as vitórias da Prússia. O que não impede que se inscrevam, no total, nas transformações gerais e essenciais que necessariamente serão determinadas.

Não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares, no que podem ter cada uma de singular. Mas de localizar apenas numa série de exemplos algumas das técnicas essenciais que, de uma a outra, se generalizaram mais facilmente. Técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas, mas que têm sua importância: porque definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova "microfísica" do poder; e porque não cessaram, desde o século XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro. Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são eles entretanto que levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da época contemporânea. Descrevê-las implicará na demora sobre o detalhe e na atenção às minúcias: sob as mínimas figuras, procurar não um sentido, mas uma precaução; recolocá-las não apenas na solidariedade de um funcionamento, mas na coerência de uma tática. Astúcias, não tanto de grande razão que trabalha até durante o sono e dá um sentido ao insignificante, quanto da atenta "malevolência" que de tudo se alimenta. A disciplina é uma anatomia política do detalhe.

Para advertir os impacientes, lembremos o marechal de Saxe:

Aqueles que cuidam dos detalhes muitas vezes parecem espíritos tacanhos, entretanto esta parte é essencial, porque ela é o fundamento, e é impossível levantar qualquer edifício ou estabelecer qualquer método sem ter os princípios. Não basta ter o gosto pela arquitetura. É preciso conhecer a arte de talhar pedras.

Dessa "arte de talhar pedras" haveria uma longa história a ser escrita - história da racionalização utilitária do detalhe na contabilidade moral e no controle político. A era clássica não a inaugurou; ela a acelerou, mudou sua escala, deu-lhe instrumentos precisos, e talvez tenha encontrado alguns ecos para ela no cálculo do infinitamente pequeno ou na descrição das características mais tênues dos seres naturais. Em todo caso, o "detalhe" era já há muito tempo uma categoria da teologia e do ascetismo: todo detalhe é importante, pois aos olhos de Deus nenhuma imensidão é maior que um detalhe, e nada há tão pequeno que não seja querido por uma dessas vontades singulares. Nessa grande tradição da eminência do detalhe viriam se localizar, sem dificuldade, todas as meticulosidades da educação cristã, da pedagogia escolar ou militar, de todas as formas, finalmente, de treinamento. Para o homem disciplinado, como para o verdadeiro crente, nenhum detalhe é indiferente, mas menos pelo sentido que nele se esconde que pela entrada que aí encontra o poder que quer apanhá-lo. Característico, esse hino às "pequenas coisas" e à sua eterna importância, cantado por Jean-Baptiste de La Salle, em seu Tratado sobre as Obrigações dos Irmãos das Escolas Cristãs. A mística do cotidiano aí se associa à disciplina do minúsculo.

 Como é perigoso negligenciar as pequenas coisas. É um pensamento bem consolador para uma alma como a minha, pouco indicada para as grandes ações, pensar que a fidelidade às pequenas coisas pode, por um progresso insensível, elevar-nos à mais eminente santidade: porque as pequenas coisas nos dispõem às grandes... Pequenas coisas, meu Deus, infelizmente dirá alguém, que podemos fazer de grande para Vós, criaturas fracas e mortais que somos. Pequenas coisas: se as grandes se apresentassem, praticá-las-íamos? Não as creríamos acima de nossas forças? Pequenas coisas: e se Deus as aceita e quer recebê-las como grandes? Pequenas coisas: acaso já as experimentamos? Acaso as julgamos pela experiência? Pequenas coisas: somos então culpados, se, vendo-as como tais, as recusamos? Pequenas coisas: são elas entretanto que, com o tempo, formaram grandes santos! Sim, pequenas coisas mas grandes móveis, grandes sentimentos, grande fervor, grande ardor, e em conseqüência grandes méritos, grandes tesouros, grandes recompensas.

A minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo darão em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito. E uma História do Detalhe no século XVIII, colocada sob o signo de Jean-Baptiste de La Salle, esbarrando em Leibniz e Buffon, passando por Frederico II, atravessando a pedagogia, a medicina, a tática militar e a economia, deveria chegar ao homem que sonhara no fim do século ser um novo Newton, não mais aquele das imensidões do céu ou das massas planetárias, mas dos "pequenos corpos", dos pequenos movimentos, das pequenas ações; ao homem que respondeu a Monge ("Só havia um mundo a ser descoberto"):
 Que ouvi eu? Mas o mundo dos detalhes, quem jamais pensou neste ou naquele? Desde meus quinze anos, eu acreditava nele. Cuidei disso então, e essa lembrança vive em mim, como uma ideia fixa que nunca me abandonará... Esse outro mundo é o mais importante de todos os que mergulhei de descobrir: de pensar nisso, doi-me a alma.

Ele não o descobriu; mas sabemos que empreendeu organizá-la, e quis distribuir em torno de si um dispositivo de poder que lhe permitisse perceber até o menor acontecimento do Estado que governava; pretendia, com a rigorosa disciplina que fazia reinar, "abraçar o conjunto dessa vasta máquina sem que lhe pudesse escapar o mínimo detalhe".

Uma observação minuciosa do detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas, para controle e utilização dos homens, sobem através da era clássica, levando consigo todo um conjunto de técnicas, todo um corpo de processos e de saber, de descrições, de receitas e dados. E desses esmiuçamentos, sem dúvida, nasceu o homem do humanismo moderno.

FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis. In: ________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 2. ed. Petrópolis: Vozes,1983.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Da música

Rob Hefferan

A musica derrama-se 
no corpo terroso 
da palavra. Inclina-se 
no mundo em mutação 
do poema.
A música traz na bagagem 
a memória do sangue; o caminho 
do sol: Lume e cume 
de palavras polidas.
A música rompe um rio de lava 
por si mesmo criado. Lágrima 
endurecida 
onde cabem o mar 
e a morte.

Casimiro de Brito, em "Canto Adolescente"


Antes que me ame

Renso Castaneda

 Antes que me ame
Eu preciso avisar que bebo em excesso, por vezes até faço tolices. Também tenho toda descompostura de um dama aprendiz de estripulias. Não falo finezas e na maioria das vezes minhas tolices estimulam as gargalhadas. Antes que me ame eu preciso avisar que não sou boa no traquejo erudito. Não adianta argumentar, pois tenho a mania de ficar calada e no dia seguinte rezar uma ladainha na maior simplicidade. Costumo também ter doses generosas de arrependimento, após ter dito o que não devia.
E mesmo assim, se quiser insistir, sou ausente na maioria do tempo. Não me prendo a formalidades e oscilo para dizer não. Antes que me ame em definitivo, preciso avisar que sou avessa ao óbvio. Sou inventiva por natureza, embora minhas experiências são pouco exitosas. Tudo bem, isso é apenas um detalhe.
Tenho outras coisas a oferecer, menos danosas que a rotina, por isso viajo para lugares desconhecidos e às vezes penso que não sou desse mundo, pois adapto-me facilmente no ilusório e minhas ideias não são factíveis. Trago conceitos frágeis como cristal e tortos como quadros mal colocados nas paredes cinzas. Não tenho decisões grandiosas. O máximo que consigo tomar posse é do lápis e papel para descrever minhas melhores loucuras.
Antes que ame eu preciso te avisar que minhas declarações de amor não passam de palavras soltas, mas faço um cafuné como ninguém. Preciso do vento e da tempestade para abalar minha acomodação e em dias agitados assim, não engulo afeto. Declaro, assino e pago pra ver.
Sou normal em dias contados. Atemporal tão logo avisto o amor. Teimosa pela saudade do que desejei. Pão e poesia fazem o meu dia, mas também transito por outras guloseimas, tipo comer esperança, mesmo fragilizada, só para ter o prazer de dizer que sou otimista em relação ao amanhã, mas confesso que não sei bem se haverá chuva grossa ou apenas uma garoa no dia seguinte. Iludo-me acreditando que haverá sol. O futuro para mim sempre germinará como meus canteiros de girassóis. Deixará pelo menos alguns rastros de sua beleza, mesmo com os galhos nus. Tenho o destino na palma de minha mão, contudo ele é traiçoeiro ou sou míope e enxergo linhas fortes e definitivas nas marcas mal ajambradas da minha pele, outrora viçosa. Por falar em pele, não sou feia e nem bonita. Sou para os olhos desnudos de ilusões. Orgulho-me do meu visual descompromissado com o tempo. Agrado ao meu espelho e não dou prejuízos aos detalhes. Descuido dos fiapos da vaidade e nunca, nunquinha tranco a porta da alma. Tenho também o coração escancarado para visitantes noturnos. Logo aviso a quem chegar, se insistir em morar nele sem pagar o prejuízo de enxergar meus silêncios e ocupar meus vazios, sairão no minuto seguinte, endoidecidos pela substancialidade coerente dos meus sentimentos.
Se quiser me amar, precisará saber que não acho boniteza nos sacrifícios. Amar é liberdade.

Ita Portugal