sábado, 7 de março de 2015



On the day I die, don’t say he’s gone. Death has nothing to do with going away.
The sun sets, and the moon sets but they’re not gone.
Death is a coming together.
The human seed goes down into the ground like a bucket,
and comes up with some unimagined beauty.
Your mouth closes here, and immediately opens
with a shout of joy there.

Rumi


e agora
que fazer
com esta manhã desabrochada a pássaros?


Manoel de Barros

Insônia

Luiza Gelts



Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente. Mas não durmo.


 Álvaro de Campos
(Heterônimo de Fernando Pessoa)


John Silver, By the Window


A manhã estava em mim
E eu andava pelo parque
À procura da manhã.
Só um menino correndo
Atrás da bolsa, corria
Atrás da sua manhã.

A manhã estava em mim;
Ai de mim que a não sentia
Andando pela manhã.
Havia sol. E eu tão fria!...
Só um cego que pedia
Sentiu no rosto a manhã...

A manhã estava em mim;
Ai, mas eu já desistia
De me encontrar na manhã.
Veio a tarde, foi-se o dia,
Anoiteceu e eu dormia
Sem ter sentido a manhã.

Ai que mim que não sabia
Que estava em mim a manhã!


Natália Correia
 
Delphin-Enjolras--La-lecture


Eu era a tua poesia

- És parecida com a Terra. Essa é a tua beleza.
Era assim que dizias.

E quando nos beijávamos e eu perdia respiração e,
entre suspiros, perguntava: em que dia nasceste?
E me respondias, voz trêmula:
estou nascendo agora.

E a tua mão ascendia

por entre o vão das minhas pernas
e eu voltava a perguntar: onde nasceste?

E tu, quase sem voz, respondias:
estou nascendo em ti, meu amor.

Era assim que dizias.

... tu eras um poeta.
Eu era a tua poesia.

E quando me escrevias,
era tão belo o que me contavas
que me despia para ler as tuas cartas.
Só nua eu te podia ler.
Porque te recebia não em meus olhos,
mas com todo o meu corpo,
linha por linha, poro por poro.


Mia Couto



não beba o que eu chorar
que ainda é cedo.

deixe tudo parar.

espere,
ainda é cedo.

e sem que haja alguém a nos ouvir,
só reste a mim saber dos teus segredos
e tu e mais ninguém por confidente.

claro e transparente,
então hei de saber que te mereço,
ouvindo o coração em descompasso.

no todo e pelo avesso,
de mim sei que me esqueço,
sem ti sei que não passo.


Antoniel Campos