domingo, 29 de abril de 2012

Ser que nunca fui

imagem: Federica Erra


Começo a chorar
do que não finjo
porque me enamorei
de caminhos
por onde não fui
e regressei
sem nunca ter partido
para o norte aceso
no arremesso da esperança

Nessas noites
em que de sombra
me disfarcei
e incitei os objetos
na procura de outra cor
encorajei-me
a um luar sem pausa
e vencendo o tempo que se fez tarde
disse: o meu corpo começa aqui
e apontei para nada
porque me havia convertido ao sonho
de ser igual
aos que nunca são iguais

Faltou-me viver onde estava
mas ensinei-me
a não estar completamente onde estive
e a cidade dormindo em mim
não me vi entrar
na cidade em que em mim despertava

Houve lágrimas que não matei
porque me fiz
de gestos que não prometi
e na noite abrindo-se
como toalha generosa
servi-me do meu desassossego
e assim me acrescentei
aos que sendo toda a gente
não foram nunca como toda a gente


Mia Couto, In "Raiz de Orvalho e Outos Poemas"

Poema só para Jaime Ovalle

imagem: MaXu



Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contrastes e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.



Manuel Bandeira

Processo Poético

imagem: Carlos Fabrizio


Quando pensei em
substituir tu por ele
denunciei-te ao papel

Quando disse tu
porque ele soava pior
tornei-te invisível

Quando escrevi aquele
nem tu nem ele se aperceberam
do que realmente estava a acontecer.



Ulla Hahn

Biografía

imagem: Haleh Bryan


Seguí el camino al que me echaron
dormí en la cama que me dieron
me lavé la cara en las lluvias
de las tormentas que vinieron
comí un pan hecho con la harina
que mis propios huesos molieron
y bebí el agua de azul frío
del pozo vuelto que es el cielo.

Siguiendo el croquis del tesoro
En el baúl del bucanero
llegué al jardín de la ceniza
para saber que soy correo
de algún secreto ya borrado
de no sé cuál caduco pliego
polvoso mensajero errado
sin otra opción que su regreso.


*****

BIOGRAFIA

Segui o caminho em que me lançaram
dormi na cama que me deram
lavei o rosto nas chuvas
das tormentas que vieram
comi um pão feito com a farinha
que meus próprios ossos moeram
e bebi água do azul frio
do poço inverso que é o céu.

Seguindo o croquis do tesouro
No baú do bucaneiro
cheguei ao jardim das cinzas
para saber que sou correio
de algum segredo já extinto
de não sei qual caduca folha
poeirento mensageiro errado
sem outra opção que seu retorno.


Josefina Plá

sexta-feira, 27 de abril de 2012



À noite deita-se comigo na fenda do tempo
Os dedos do luar penteando os cabelos do sonho 
Oh, meu amor podes passar pelo meu sonho 
podes ficar no meu sonho 
mas não me acorde


Yao Jingming




— Que horas são? — Sim, estou feliz
e só me falta um guizo no pescoço
para enquanto tu dormes ele retinir sobre ti.
— Não ouviste então a tempestade? O vento assolou as muralhas,
a torre urrou como um leão pelo portão
a ranger nas dobradiças. — Como é que podes não te lembrar?
Eu trazia um vestido cinzento muito simples
de abotoar nos ombros. — E logo a seguir
o céu explodiu em mil clarões. — Como é que eu podia entrar
se tu não estavas sozinho! — E vi de súbito
as cores de antes de haver olhar. — É pena
que não possas perdoar-me. — Tens toda a razão,
foi um sonho de certeza. — Por que é que mentes?
Por que me tratas pelo nome dela?
Amá-la ainda? — Sim! Queria muito
que ficasses comigo. — Não estou triste,
eu devia ter adivinhado.
— Ainda pensar nele? — Não estou a chorar!
— E é tudo? — De ninguém como de ti.
— Pelo menos és sincera. — Fica tranquilo,
vou-me embora da cidade. — Fica tranquilo,
eu vou-me embora daqui. — Tens umas mãos tão bonitas.
— É uma velha história. Foi duro
mas passou sem deixar mossas. — Não tem de quê,
meu caro, não tem de quê. — Não sei
que horas são e nem quero saber.


Wislawa Szymborska

Ausência

Annick Bouvattier



A mulher deitada, a mulher que se perdeu,
durante o sonho, e não sabe que o caminho
estava indicado nos seus olhos, procura o vazio
com a mão segura entre lençol e cobertor,
como se nesse intervalo houvesse ainda
uma saída para o desejo. No sono em que
a maré da noite se desfez num impulso
de névoa, os seus lábios murmuraram
o nome que não tem corpo; e em vão
esperaram o beijo que os iria selar,
os dedos que se afundariam no oceano
dos cabelos, a respiração que
lhe daria o ritmo da manhã. Por isso,
a mulher que acorda pede à noite que não
a deixe sozinha, como se o abraço antigo
se pudesse prolongar, ou o sol
não trouxesse o dia para junto dela.


 Nuno Júdice

Drama

 antonio matias


Antonio me deixou por uma mulher que considero ordinária
E eu para não sofrer rasgo todos os papéis da casa
Com a letra de Antonio
O rosto dele nos retratos
Rasgo todas as manhãs a ideia de Antonio
Mas confesso que me dói profundamente
O lado dele intacto na cama
A desordem que não há.
Me vingo de formas subjetivas. Imagino
Antonio doente. Mulher nenhuma faria por ele
Metade do que fiz.
Antonio me deixou e não sei direito o que vai ser
Da minha vida.

Antonio usa máscaras, ela não vai lhe compreender a alma
Ele é completamente diferente do seu signo no zodíaco chinês
E eu que nunca fui uma pessoa violenta
Mataria os dois a sangue-frio e com cuidado
E peço a Deus que me permita ser cruel
Escandalosa
Odiar gritar enlouquecer
Acusar Antonio de me arrancar o sentido
A esperança
Ah, eu queria ser trágica
Ah, eu queria
Que o meu drama refletisse o de todas as mulheres
Que se escondem quietas
Atrás das janelas dos apartamentos.


Bruna Lombardi

Quando

paulo césar (olhares)


Quando repousarás em mim como a poesia
nos grandes poetas
Como a pureza na alma dos santos
Como os pássaros nas torres das igrejas?
Quando repousará o teu amor no meu amor?
Quando penetrará tua luz nos meus olhos
vazios,
Como o sol nos pântanos
Como o sorriso nos tristes


Como o Cristo no mundo em pecado?



Augusto Frederico Schmidt

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Tempo - Morte




I


Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas?
Tempo.

Vívida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas?
Tempo.

Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento.
Como te chamas?
Tempo.

Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.


II


Passará
Tem passado
Passa com a sua fina faca.


Tem nome de ninguém.
Não faz ruído. Não fala.
Mas passa com a sua fina faca.


Fecha feridas, é unguento.
Mas pode abrir a tua mágoa
Com a sua fina faca.


Estanca ventura e voz 
Silêncio e desventura.
Imóvel
Garrote
Algoz.


No corpo da tua água passará
Tem passado
Passa com a sua fina faca.




III


Calmoso, longal e rês
Tu não o sentes
Nem vês.


Atravessa lerdo
O adro do teu desgosto.


Na jubilância escorrega
Mas depois passa
Furioso. Passou. Assovio? Seta?


Teus dentes. Teu sapato novo.
O branco da tua casa.
Tua voz adolescente.
Ele carrega memória e concretude.


Vasto atravessa.




IV


Desde que nasci, comigo:
Tempo-Morte.
procurar-te
É estar montado sobre um leopardo
E tentar caçá-lo.


Minha tua garra.
Teu matiz de dentro.
Tua lanhada.
Nossa companhia.
Passo de luz e negro.
Dentes. Arcada.


Dois nítidos
À caça de um Nada.




V


Fatia, tonsura, pinça
Nunca te sei inteiro
Tempo-Morte.
Jamais teu todo, teu pelo
A intrincada cabeça do teu nojo.
Sempre a rasura no texto seco


Ou a gorda eloquência
Sobre a tua figura.


Opaca detenho-me
No vazio do cesto.
Tateio debruçada
Fiapos de palha, sobras
coagulada retorno
Aos arrozais da página.


Ponta dos dedos, pulsão
Até quando teu capuz
Diante de um cego?




Hilda Hilst
do livro: Da morte. Odes Mínimas, p. 71 a 75
pinturas: Alex-Alemany
John Scholz 


Tenho um decote pousado no vestido e não sei se voltas,
mas as palavras estão prontas sobre os lábios como
segredos imperfeitos ou gomos de água guardados para o verão.
E, se de noite as repito em surdina, no silêncio
do quarto, antes de adormecer, é como se de repente
as aves tivessem chegado já ao sul e tu voltasses
em busca desses antigos recados levados pelo tempo:

Vamos para casa? O sol adormece nos telhados ao domingo
e há um intenso cheiro a linho derramado nas camas.
Podemos virar os sonhos do avesso, dormir dentro da tarde
e deixar que o tempo se ocupe dos gestos mais pequenos.

Vamos para casa. Deixei um livro partido ao meio no chão
do quarto, estão sozinhos na caixa os retratos antigos
do avô, havia as tuas mãos apertadas com força, aquela
música que costumávamos ouvir no inverno. E eu quero rever
as nuvens recortadas nas janelas vermelhas do crepúsculo;
e quero ir outra vez para casa. Como das outras vezes.

Assim me faço ao sono, noite após noite, desfiando a lenta
meada dos dias para descontar a espera. E, quando as crias
afastarem finalmente as asas da quilha no seu primeiro voo,
por certo estarei ainda aqui, mas poderei dizer que, pelo
menos uma ou outra vez, já mandei os recados, já da minha
boca ouvi estas palavras, voltes ou não voltes.


Maria do Rosário Pedreira
in 366 Poemas que falam de amor




Carta


Bem quisera escrevê-la 
com palavras sabidas, 
as mesmas, triviais, 
embora estremecessem 
a um toque de paixão. 
Perfurando os obscuros 
canais de argila e sombra, 
ela iria contando 
que vou bem, e amo sempre 
e amo cada vez mais 
a essa minha maneira 
torcida e reticente, 
e espero uma resposta 
mas que não tarde: e peço 
um objeto minúsculo 
só para dar prazer 
e quem pode ofertá-lo; 
diria ela do tempo 
que faz do nosso lado; 
as chuvas já secaram, 
as crianças estudam,
 uma última invenção 
(inda não é perfeita) 
faz ler nos corações, 
mas todos esperamos 
rever-nos bem depressa. 


Muito depressa, não. 
Vai-se tornando o tempo 
estranhamente longo 
à medida que encurta. 
O que ontem disparava, 
desbordado alazão, 
hoje se paralisa 
em esfinge de mármore, 
e até o sono, o sono 
que era grato e era absurdo 
é um dormir acordado 
numa planície grave. 
Rápido é o sono, apenas, 
que se vai, de mandar 
notícias amorosas 
quando não há amor 
a dar ou receber; 
quando só há lembrança, 
ainda menos, pó, 
menos ainda, nada,
nada de nada em tudo, 
em mim mais do que em tudo, 
e não vale acordar 
quem acaso repousa 
na colina sem árvores. 
Contudo, está é uma carta.


Carlos Drummond de Andrade 
In Claro enigma, 1951 In Poesia Completa, pag. 290 
imagens: Boris Geer


Ao descascar a palavra esperança encontrei polpa de maçã
e caroço de pedra.
Ao descascar a palavra amor achei pele de pêssego
e carne de cinza.
Ao descascar a palavra verdade, encheu as minhas mãos
e ao chegar à minha boca não existia


Josefina Plá

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Despojamento

MaXu



Eliminei o excesso de paisagem
simplifiquei toda a decoração
retirei quadros flores ornamentos
apaguei velas copos guardanapos
e a música

Bani a inutilidade do discurso

Na mesa de madeira
nua
apenas dois pratos
brancos
sem talheres

O banquete será tua presença



Ivo Barroso

Ajedrez



I

En su grave rincón, los jugadores
rigen las lentas piezas. El tablero
los demora hasta el alba en su severo
ámbito en que se odian dos colores.

Adentro irradian mágicos rigores
las formas: torre homérica, ligero
caballo, armada reina, rey postrero,
oblicuo alfil y peones agresores.

Cuando los jugadores se hayan ido,
cuando el tiempo los haya consumido,
ciertamente no habrá cesado el rito.

En el Oriente se encendió esta guerra
cuyo anfiteatro es hoy toda la tierra.
Como el otro, este juego es infinito.

II

Tenue rey, sesgo alfil, encarnizada
reina, torre directa y peón ladino
sobre lo negro y blanco del camino
buscan y libran su batalla armada.

No saben que la mano señalada
del jugador gobierna su destino,
no saben que un rigor adamantino
sujeta su albedrío y su jornada.

También el jugador es prisionero
(la sentencia es de Omar) de otro tablero
de negras noches y blancos días.

Dios mueve al jugador, y éste, la pieza.
¿Qué Dios detrás de Dios la trama empieza
de polvo y tiempo y sueño y agonías?


Jorge Luís Borges 

Para uma nova gramática:

jaroslav monchak


imagine um sentimento água. um sentimento árvore. uma agonia vidro. uma emoção céu. uma espera pedra. um amor manga. um colorido vento sul. um jeito casa de ser. uma forma líquida de pensar. uma vida paredes. uma existência mar. uma solidão cordilheira. uma alegria pássaro em chuva fina. uma perda corpo.

acho que hoje acordei semente. tenho andado muito temporal. minha irmã vive um momento tudo. a vida às vezes transborda pelos poros. me atinge um estado livro. aurora em meus joelhos. tem pessoas ponte. algumas carregam a gravidade nas costas. já conheci gente buraco negro. eu amo o instante limo. tem um branco em mim. a vida me urca. sofro de saudade anônima. palavras me beijam a boca.


Viviane Mosé
fabrizio r.


Rain has fallen all the day.
O come among the laden trees:
The leaves lie thick upon the way
Of memories.

Staying a little by the way
Of memories shall we depart.
Come, my beloved, where I may
Speak to your heart.


James Joyce

terça-feira, 24 de abril de 2012

Irene



Depois de rodopiar casa adentro sem paz nem descanso, há dias espremendo cravos no rosto, não escrevo desde o ano passado. O estado de represa não é exatamente um estado de repouso mas de cheia e pressão. Estado de menstruação em atraso e amor contido. Alguma farpa no pé doendo, os peitos inchando e enchendo sem que haja filho. Estorvo e não escrevo. Não escrevo desde o ano passado. Se bem que o ano passou há pouco, pensei: palavras como filhos. Como eu queria escrever a história de um homem sentado na janela de um trem de minas, de terno escuro de linho e óculos, olhando a menina moça que vende doce de leite em forminhas de empada. Ele olha pra ela e depois o foguista ganha uns peixes do rapaz que um dia vai enamorar dela e casar. O rio corre ao largo sempre ralo e barrento. O homem de terno escuro olha como eu gostaria de ter olhado, a estação e a menina, que nem percebe o rapaz que deu os peixes e mora na pensão. Marília talvez fosse o nome dela. Marília de vestido amarelo amaria na relva o rapaz, somente pra que eu pudesse compor o amarelo em marília, ou o amor dos dois na relva. Caso pudesse suportar. Caso não fosse eu essa represa de poros por onde tudo vaza aos pouquinhos. Escorreria entre as mãos da mãe de Marília em casa, ao redor das crianças menores e limpas, tão limpas como o paninho bordado que forra a bandeja de doces. E o rapaz dos peixes eu o faria filho mais velho de uma mulher miúda e forte. Eles se amariam. aquela mulher e seu filho mais velho. Quando ela morresse ele choraria enrolado no chão como uma cobra. E a ternura dos olhos da mãe fincando morada nos olhos dele. O homem de terno escuro me pergunta e agora? ele quer saber pra onde eu vou levar essa gente e eu digo que essa gente me leva. A doçura do rapaz dos peixes me leva. O paninho bordado da bandeja de doces me leva, às tardes silenciosas quando bordávamos, minha avó e eu, na varanda que via o santuário. Me lembro do vento fresco e das agulhas furando o pano. Nossos planos miúdos e as roscas com café entre uma pausa e outra. A água molhando as rosas do jardim, a terra vermelha, e o silêncio, marcando tudo a ferro. Caladas, bordamos uma eternidade. Nos sabíamos irmãs, mesmo com o fosso do tempo entre nós. Nos sabíamos em silêncio a bordar. Foi quando aprendi a pegar o silêncio com as mãos, enfiar no buraco da agulha, e escrever. Tudo que escrevo desfio dessas tardes. Desvio dessas tardes. Escrevo a saudade dessas tardes. E um nó na garganta. amém.


Viviane Mosé, in  Pensamento do Chão, poemas em prosa e verso.


Por Enquanto (A Via Crucis do Corpo)



Trabalhei o dia inteiro, são dez para as seis. O telefone não toca. Estou sozinha.
Sozinha no mundo e no espaço. E quando telefono, o telefone chama e ninguém atende. Ou dizem: está dormindo. A questão é saber agüentar. Pois a coisa é assim mesmo. Às vezes não se tem nada a fazer e então se faz pipi.
Mas se Deus nos fez assim, que assim sejamos. De mãos abanando. Sem assunto. Sexta-feira de noite fui a uma festa, eu nem sabia que era o aniversário do meu amigo, sua mulher não me dissera.
Tinha muita gente. Notei que muitas pessoas se sentiam pouco à vontade.
Que faço? Telefono a mim mesma? Vai dar um triste sinal de ocupado, eu sei, uma vez já liguei distraída para o meu próprio número. Como acordo quem está dormindo? Como chamo quem eu quero chamar? O que fazer? Nada: porque é domingo e até Deus descansou. Mas eu trabalhei sozinha o dia inteiro.
Mas agora quem estava dormindo já acordou e vem me ver às oito horas. São seis e cinco.
Estamos no chamado "veranico de maio": grande calor. Meus dedos doem de tanto eu bater à máquina. Com a ponta dos dedos não se brinca. É pela ponta dos dedos que se recebem os fluidos.
Eu devia ter me oferecido para ir ao enterro do pai da moça? A morte seria hoje demais para mim. Já sei o que vou fazer: vou comer. Depois eu volto. Fui à cozinha, a cozinheira por acaso não está de folga e vai esquentar comida para mim. Minha cozinheira é enorme de gorda: pesa noventa quilos. Noventa quilos de insegurança, noventa quilos de medo. Tenho vontade de beijar seu rosto preto e liso mas ela não entenderia. Voltei à máquina enquanto ela esquentava a comida. Descobri que estou morrendo de fome. Mal posso esperar que ela me chame.
Ah, já sei o que vou fazer: vou mudar de roupa. Depois eu como, e depois volto à máquina. Até já.
Já comi. Estava ótimo. Tomei um pouco de rosé. Agora vou tomar um café. E refrigerar a sala: no Brasil ar refrigerado não é um luxo, é uma necessidade. Sobretudo para pessoa que, como eu, sofre demais com o calor. São seis e meia. Liguei meu rádio de pilha. Para a Ministério de Educação. Mas que música triste! não é preciso ser triste para ser bem-educado. Vou convidar Chico Buarque, Tom Jobim e Caetano Veloso e que cada um traga a sua viola. Quero alegria, a melancolia me mata aos poucos.
Quando a gente começa a se perguntar: para quê? então as coisas não vão bem. E eu estou me perguntando para quê. Mas bem sei que é apenas "por enquanto". São vinte para as sete. E para que é que são vinte para as sete? Nesse intervalo dei um telefonema e, para o meu gáudio, já são dez para as sete. Nunca na vida eu disse essa coisa de "para o meu gáudio". É muito esquisito. De vez em quando eu fico meio machadiana. Por falar em Machado de Assis, estou com saudade dele. Parece mentira mas não tenho nenhum livro dele em minha estante. José de Alencar, eu nem me lembro se li alguma vez.
Estou com saudade. Saudade de meus filhos, sim, carne de minha carne. Carne fraca e eu não li todos os livros. La chair est triste. Mas a gente fuma e melhora logo. São cinco para as sete. Se me descuido, morro. É muito fácil. É uma questão do relógio parar. Faltam três minutos para as sete. Ligo ou não ligo a televisão? Mas é que é tão chato ver televisão sozinha. Mas finalmente resolvi e vou ligar a televisão. A gente morre às vezes.

Clarice Lispector

George Orwell, A revolução dos bichos

Os bichos tomaram o café da manhã e foram outra vez convocados por Bola-de-Neve e Napoleão.
"Camaradas", disse Bola-de-Neve, "são seis e quinze, e temos um longo dia pela frente. Iniciaremos hoje a colheita do feno. Mas antes, há outro assunto de que devemos tratar."
Os porcos revelaram que, nos últimos três meses, haviam aprendido  a ler e a escrever, num velho livro de ortografia que pertencera aos filhos de Jones e fora jogado no lixo. Napoleão mandou buscar latas de tinta preta e tinta branca e marchou à frente até a porteira das cinco barras, que dava para a estrada principal. Então, Bola-de-Neve (que escrevia melhor) pegou o pincel entre as juntas da pata, cobriu de tinta o nome GRANJA DO SOLAR do travessão superior e, em seu lugar, escreveu GRANJA DOS BICHOS. Seria esse o nome da granja dali em diante. Depois disso, voltaram para as casas da granja; Bola-de-Neve e Napoleão mandaram buscar escada e fizeram-na encostar a parede do fundo do celeiro grande. Explicaram que, segundo os estudos que haviam feito nos últimos três meses, era possível resumir os princípios do Animalismo em sete Mandamentos. Esses sete mandamentos seriam agora escritos na parede, constituindo a lei inalterável pela qual a Granja dos bichos deveria reger sua vida sempre.
Com alguma dificuldade (pois não é fácil para um porco equilibrar-se numa escada de mão), Bola-de-Neve subiu e começou a trabalhar, enquanto Garganta, alguns degraus abaixo, segurava a lata de tinta. Os Mandamentos foram escritos na parede alcatroada em grandes letras brancas que podiam ser lidas a muitos metros de distância.

Eram os seguintes:

OS SETE MANDAMENTOS

1.Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
2. O que andar sobre quatro pernas, ou tiver asas, é amigo.
3. Nenhum animal usará roupa.
4. Nenhum animal dormirá em cama.
5. Nenhum animal beberá álcool.
6. Nenhum animal matará outro animal.
7. Todos os animais são iguais.


George Orwell, A revolução dos bichos
tradução: Heitor Aquino Ferreira
Companhia das Letras, p. 24,25

Pintura




Eu sei que se tocasse 
com a mão aquele canto do quadro
onde um amarelo arde 
me queimaria nele
ou teria manchado para sempre de delírio 
a ponta dos dedos. 


 Ferreira Gullar

Desencontro 1

yan Mcline photographer



Não ter morada
 Habitar
 Como um beijo
 Entre os lábios
 Fingir-se ausente
 E suspirar 
(o meu corpo 
não se reconhece na espera)
 percorrer com um só gesto 
o teu corpo 
e beber
 toda a ternura 
para refazer 
o rosto 
em que desapareces 
o abraço 
em que desobedeces


Mia Couto, in Raiz de Orvalho e Outros Poemas

domingo, 22 de abril de 2012

Livro do desassossego [21]



Haja ou não deuses, deles somos servos.


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Livro do desassossego

XLII - O guardador de rebanhos



Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.
Assim é a ação humana pelo mundo fora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;
E o sol é sempre pontual todos os dias.


Alberto Caeiro
(heterônimo de Fernando Pessoa)

XLI - O guardador de rebanhos



No entardecer dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa…
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria…
Ah, os sentidos, os doentes que veem e ouvem!
Fôssemos nós como devíamos ser
E não haveria em nós necessidade de ilusão…
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos…
Mas graças a Deus que há imperfeição no Mundo
Porque a imperfeição é uma cousa,
E haver gente que erra é original,
E haver gente doente torna o Mundo engraçado.
Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos,
E deve haver muita cousa
Para termos muito que ver e ouvir…

 
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
07/05/1914

Intolerância religiosa



Sou ateu e mereço o mesmo respeito que tenho pelos religiosos.

A humanidade inteira segue uma religião ou crê em algum ser ou fenômeno transcendental que dê sentido à existência. Os que não sentem necessidade de teorias para explicar a que viemos e para onde iremos são tão poucos que parecem extraterrestres.

Dono de um cérebro com capacidade de processamento de dados incomparável na escala animal, ao que tudo indica só o homem faz conjecturas sobre o destino depois da morte. A possibilidade de que a última batida do coração decrete o fim do espetáculo é aterradora. Do medo e do inconformismo gerado por ela, nasce a tendência a acreditar que somos eternos, caso único entre os seres vivos.

Todos os povos que deixaram registros manifestaram a crença de que sobreviveriam à decomposição de seus corpos. Para atender esse desejo, o imaginário humano criou uma infinidade de deuses e paraísos celestiais. Jamais faltaram, entretanto, mulheres e homens avessos a interferências mágicas em assuntos terrenos. Perseguidos e assassinados no passado, para eles a vida eterna não faz sentido.

Não se trata de opção ideológica: o ateu não acredita simplesmente porque não consegue. O mesmo mecanismo intelectual que leva alguém a crer leva outro a desacreditar.

Os religiosos que têm dificuldade para entender como alguém pode discordar de sua cosmovisão devem pensar que eles também são ateus quando confrontados com crenças alheias.

Que sentido tem para um protestante a reverência que o hindu faz diante da estátua de uma vaca dourada? Ou a oração do muçulmano voltado para Meca? Ou o espírita que afirma ser a reencarnação de Alexandre, o Grande? Para hindus, muçulmanos e espíritas esse cristão não seria ateu?

Na realidade, a religião do próximo não passa de um amontoado de falsidades e superstições. Não é o que pensa o evangélico na encruzilhada quando vê as velas e o galo preto? Ou o judeu quando encontra um católico ajoelhado aos pés da virgem imaculada que teria dado à luz ao filho do Senhor? Ou o politeísta ao ouvir que não há milhares, mas um único Deus?

Quantas tragédias foram desencadeadas pela intolerância dos que não admitem princípios religiosos diferentes dos seus? Quantos acusados de hereges ou infiéis perderam a vida?

O ateu desperta a ira dos fanáticos, porque aceitá-lo como ser pensante obriga-os a questionar suas próprias convicções. Não é outra a razão que os fez apropriar-se indevidamente das melhores qualidades humanas e atribuir as demais às tentações do Diabo. Generosidade, solidariedade, compaixão e amor ao próximo constituem reserva de mercado dos tementes a Deus, embora em nome Dele sejam cometidas as piores atrocidades.

Os pastores milagreiros da TV que tomam dinheiro dos pobres são tolerados porque o fazem em nome de Cristo. O menino que explode com a bomba no supermercado desperta admiração entre seus pares porque obedeceria aos desígnios do Profeta. Fossem ateus, seriam considerados mensageiros de Satanás. 

Ajudamos um estranho caído na rua, damos gorjetas em restaurantes aos quais nunca voltaremos e fazemos doações para crianças desconhecidas, não para agradar a Deus, mas porque cooperação mútua e altruísmo recíproco fazem parte do repertório comportamental não apenas do homem, mas de gorilas, hienas, leoas, formigas e muitos outros, como demonstraram os etologistas.

O fervor religioso é uma arma assustadora, sempre disposta a disparar contra os que pensam de modo diverso. Em vez de unir, ele divide a sociedade - quando não semeia o ódio que leva às perseguições e aos massacres.

Para o crente, os ateus são desprezíveis, desprovidos de princípios morais, materialistas, incapazes de um gesto de compaixão, preconceito que explica por que tantos fingem crer no que julgam absurdo.

Fui educado para respeitar as crenças de todos, por mais bizarras que a mim pareçam. Se a religião ajuda uma pessoa a enfrentar suas contradições existenciais, seja bem-vinda, desde que não a torne intolerante, autoritária ou violenta.

Quanto aos religiosos, leitor, não os considero iluminados nem crédulos, superiores ou inferiores, os anos me ensinaram a julgar os homens por suas ações, não pelas convicções que apregoam.

Drauzio Varella
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo

* grata, dr. Drauzio

sábado, 21 de abril de 2012

Go vegetarian




Night



THE sun descending in the west,
The evening star does shine;
The birds are silent in their nest.
And I must seek for mine.
The moon, like a flower
In heaven's high bower,
With silent delight
Sits and smiles on the night.

Farewell, green fields and happy grove,
Where flocks have took delight:
Where lambs have nibbled, silent move
The feet of angels bright;
Unseen they pour blessing
And joy without ceasing
On each bud and blossom,
And each sleeping bosom.

They look in every thoughtless nest
Where birds are cover'd warm;
They visit caves of every beast,
To keep them all from harm:
If they see any weeping
That should have been sleeping,
They pour sleep on their head,
And sit down by their bed.

When wolves and tigers howl for prey,
They pitying stand and weep,
Seeking to drive their thirst away
And keep them from the sheep.
But, if they rush dreadful,
The angels, most heedful,
Receive each mild spirit,
New worlds to inherit.

And there the lion's ruddy eyes
Shall flow with tears of gold:
And pitying the tender cries,
And walking round the fold:
Saying, 'Wrath, by His meekness,
And, by His health, sickness,
Are driven away
From our immortal day.

'And now beside thee, bleating lamb,
I can lie down and sleep,
Or think on Him who bore thy name,
Graze after thee, and weep.
For, wash'd in life's river,
My bright mane for ever
Shall shine like the gold
As I guard o'er the fold.'


 William Blake, in Songs of Innocence

Antepassado

                                                             Joanna Krust


Só te conheço de retrato,
não te conheço de verdade,
mas teu sangue bole em meu sangue
e sem saber te vivo em mim
e sem saber vou copiando
tuas imprevistas maneiras,
mais do que isso: teu fremente
modo de ser, enclausurado
entre ferros de conveniência
ou aranhóis de burguesia,
vou descobrindo o que me deste
sem saber que o davas, na líquida
transmissão de taras e dons,
vou te compreendendo, somente
de esmerilar em teu retrato
o que a pacatez de um retrato
ou o seu vago negativo,
nele implícito e reticente,
filtra de um homem; sua face
oculta de si mesmo; impulso
primitivo; paixão insone
e mais trevosas intenções
que jamais assumiram ato
nem mesmo sombra de palavra,
mas ficaram dentro de ti
cozinhadas em lenha surda.
Acabei descobrindo tudo
que teus papéis não confessaram
nem a memória de família
transmitiu como fato histórico
e agora te conheço mais
do que a mim próprio me conheço,
pois sou teu vaso e transcendência,
teu duende mal encarnado.
Refaço os gestos que o retrato
não pode ter, aqueles gestos
que ficaram em ti à espera
de tardia repetição,
e tão meus eles se tornaram,
tão aderentes ao meu ser
que suponho tu os copiaste
de mim antes que eu os fizesse,
e furtando-me a iniciativa,
meu ladrão, roubaste-me o espírito.


Carlos Drummond de Andrade

Estio

 Sophie Thouvenin


Vem,
deixa a marca dos teus pés sobre a
nudez do mármore,
abre o decote azul sobre os teus
frutos amadurecidos,
diz que são maçãs sem sombra de pecado,
lembra-te que nestas noites de Agosto
a lua te veste de branco
e sobre as suas pedras de luz passeiam
estranhos animais do verão,
gargantas que entoam uma melodia
saem palavras, sem sentido,
vem,
ouve esse rumor cálido na raiz dos teus
cabelos,
solta-os, deita-te, esquece tudo,
procura apenas o meu nome entre as cinzas.


José Agostinho Baptista

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Voa, Liberdade

bru pognali


Voa, voa minha liberdade
Entra se eu servir como morada
Deixa eu voar na sua altura
Agarrado na cintura
Da eterna namorada

Voa, feito um sonho desvairado
Desses que a gente sonha acordado
Voa, coração esvoaçante
Feito um pássaro gigante
Contra os ventos do pecado

Voa, nas manhãs ensolaradas
Entra, faz verdade essa ilusão
Voa, no estalo do meu grito
Quero ver teu infinito
Nesse azul sem dimensão

Voa, no estalo do meu grito
Quero ver teu infinito
Nesse azul sem dimensão
Voa, voa minha liberdade

Voa, coração esvoaçante
Feito um pássaro gigante
Contra os ventos do pecado
Voa, nas manhãs ensolaradas
Entra, faz verdade essa ilusão

Voa, no estalo do meu grito
Quero ver teu infinito
Nesse azul sem dimensão

Voa, no estalo do meu grito
Quero ver teu infinito
Nesse azul sem dimensão

Voa...



Composição: Jessé

Idealismo

Dimitar VOINOV JUNIOR


Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaira,
De Messalina e de Sardanapalo!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro —

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro!


Augusto dos Anjos
carsten-witte


Álamos.
Música
de matutina cal.

Doces vogais
de sombra e água
num verão de fulvos
lentos animais.

Calhandra matinal
no ar
feliz de junho.

Acidulada
música de cardos.

Música do fogo
em redor dos lábios.

Desatada,
à roda da cintura.

Entre as pernas
junta.

Música
das primeiras chuvas
sobre o feno.

Só aroma.
Abelha de água.

Regaço
onde o lume breve
duma romã brilha.

Música, levai-me:

Onde estão as barcas?
Onde são as ilhas?


Eugénio de Andrade

terça-feira, 17 de abril de 2012



maggie and milly and molly and may
went down to the beach (to play one day)

and maggie discovered a shell that sang
so sweetly she couldn't remember her troubles, and

milly befriended a stranded star
whose rays five languid fingers were;

and molly was chased by a horrible thing
which raced sideways while blowing bubbles: and

may came home with a smooth round stone
as small as a world and as large as alone.

For whatever we lose (like a you or a me)
it's always ourselves we find in the sea


e. e. cummings

Pedaço de mim

Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu






Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Leva os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus



Chico Buarque
imagens: Sergey Karpenko

segunda-feira, 16 de abril de 2012

O Idílio suave





Chegas. Vens tão ligeira
e és tão ansiosamente esperada, que enfim,
nem te sentindo o passo e já te tendo inteira,
completamente em mim,
quando, toda Watteau, silenciosa, apareces,
é como se não viesses.

Vens... E ficas tão perto
de mim, e tão diluída em minha solidão,
que eu me sinto sozinho e acho imenso e deserto
e vazio o salão...
E, sem te ouvir nem ver, arde-me em febre a face,
como se eu te esperasse!

Partes. Mas é tão pouco
o que de ti se vai que ainda te vejo o arfar
do seio, e o teu cabelo, e o teu vestido louco,
e a carícia do olhar,
e a tua boca em flor a dizer-me doidices,
como se não partisses!


Guilherme de Almeida

Envelhecer



Antes, todos os caminhos iam,
hoje, todos os caminhos vêm...
A casa é acolhedora, os livros poucos
E eu mesmo sirvo o chá para os fantasmas...

Silêncio, Solidão, Serenidade.

Quero morrer na selva de um país distante...
Quero morrer sozinho como um bicho!

Adeus, Cidade maldita.
Que lá se vai o Teu Poeta.

Adeus para sempre, Amigos...
Vou Sepultar-me no Céu!

E todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,

Eles passarão...
Eu Passarinho!


Mário Quintana

Consideração do poema

 Catalin Parpalea


Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporam
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.

Estes poemas são meus. É minha terra
e é ainda mais do que ela. É qualquer homem
ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.
– Há mortos? há mercados? há doenças?
É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas.
O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio,
boiando em tempos sujos.

Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
últimos! esperança do mar negro.
Essa viagem é mortal, e começa-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.

Ele é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão. Mas é tão alto
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te envolvendo.

Como fugir ao mínimo objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa,
como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.

Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.


Carlos Drummond de Andrade

Os espelhos

Francine van  hove


Eu, que senti o medo dos espelhos
Não é frente ao cristal impenetrável
Onde acaba e começa, inabitável,
Um espaço impossível de reflexos.

Mas frente à àgua especular que imita
O outro azul em seu profundo céu
Que risca às vezes o ilusório voo
Da ave inversa ou que um tremor agita

E frente à superficie silenciosa
Do ébano sutil cuja pureza
Repete como um sonho toda a alvura
De vago mármore ou de vaga rosa,

Hoje, ao cabo de tantos e perplexos
Anos de errar sob a mudável lua,
Me pergunto que acaso da fortuna
Fez que eu temor sentisse dos espelhos.

Espelhos de metal, emascarado
Espelho de caoba que, na bruma
De eu rubro crepúsculo, esfuma
Esse rosto que mira e que é mirado.

Infinitos os vejo, elementais
Executores de um antigo pacto.
Multiplicar o mundo como o ato
Generativo, insone e fatais.

Prolongam este vão e incerto mundo
Em sua tão veloz teia de aranha:
à tarde muitas vezes os empana
o hálito de um homem morimbundo.

O cristal nos espreita. Se entre as quatro
Paredes do aposento há um espelho.
Não estou só. Há outro. Há o reflexo
Que erege na alba um sigiloso teatro.

Tudo acontece e nada se recorda
Naqueles gabinetes cristalinos
Onde, como fantásticos rabinos,
Lemos os livros da direita à esquerda.

Cláudio, rei de uma tarde, rei sonhado,
Não sentiu que era um sonho até o dia
Em que um ator mimou-lhe a felonia
Com arte silenciosa, num tablado.

Que haja sonhos é raro, que haja espelhos,
Que o costumeiro e gasto repertório
De cada dia inclua o ilusório
Orbe profundo que urdem os reflexos.

Deus (pus-me a imaginar) põe um empenho
Em toda essa irreal arquitetura.
A qual constrói a luz com a polidura
Do vidro e faz a sombra com o sonho

Deus inventou as noites que se armam
De sonhos e as imagens dos espelhos
Para que o homem sinta que é reflexo
E vaidade. Por isso nos alarmam.


 Jorge Luis Borges
O Fazedor, tradução de Rolando Roque da Silva