segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Jacqueline Susann, o Vale das Bonecas



Você terá que escalar o Monte Everest para alcançar o Vale das Bonecas. A escalada é brutal e poucas pessoas viram esse pico. Você jamais soube o que exatamente encontraria lá, mas a última coisa que esperaria era o Vale das Bonecas. Você fica ali parado, esperando pela felicidade que esperava sentir – mas ela não vem. Você está muito longe para ouvir os aplausos e para agradecê-los. E não há mais para onde subir. Você está sozinho e esse sentimento é mais forte que tudo. O ar é tão rarefeito que fica quase impossível respirar. Você conseguiu e o mundo o chama de herói. Foi mais divertido, porém, no começo da escalada,, quando havia apenas a esperança e o sonho de realizá-la. Tudo o que você podia ver então era o cume da montanha, ninguém que informasse sobre o Vale das Bonecas. Quando você alcança o píncaro tudo é diferente. A jornada o deixou arrasado, surdo, cego e cansado demais para que possa apreciar a vitória. Anne Welles nunca pretendeu fazer a escalada. Ainda assim, deu o primeiro passo no dia em que olhou à sua volta e disse: - Não, isso não me basta. Quero alguma coisa mais. – quando encontrou Lyon Burke era muito tarde para voltar atrás.

********

Fazia um calor de 40 graus no dia em que Anne chegou. Nova Iorque ardia – era um animal de concreto apanhado por uma onda de calor fora da estação. Ela, porém, não se incomodava com o calor nem com a confusão de uma praça chamada Times Square. Achava Nova Iorque a cidade mais excitante do mundo...


Jacqueline Susann, o Vale das Bonecas

João e Maria


Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava o rock para as matinês

Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país

Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Vem, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido

Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim?

Composição: Chico Buarque/ Sivuca

Silêncio


Alivia a minha alma, faze com que eu sinta que tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma, pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém.

A tentação


Diante do crucifixo
Eu paro pálido tremendo:

“ Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz”.

Murilo Mendes

domingo, 27 de fevereiro de 2011

O grande momento


A varanda era batida pelos ventos do mar
As árvores tinham flores que desciam para a
morte, com a lentidão das lágrimas.
Veleiros seguiam para crepúsculos com as
asas cansadas e brancas se despedindo,
O tempo fugia com uma doçura jamais de
novo experimentada
Mas o grande momento era quando os meus
olhos conseguiam
entrar pela noite fresca dos seus olhos...


Augusto Frederico Schmidt

Fuga

by Elena Dudina
 
A mulher que vive no poço emprestou-me
o seu corpo noturno no espelho do sonho. Tem
os traços pálidos da água negra, e os olhos
transparentes de uma ausência de luz.
As suas mãos são frias quando as toco;
e os cabelos derramam-se pelo peito,
escondendo os ombros onde murcharam
as flores da manhã. A sua voz, porém,
tem a frescura de um desejo de sol;
e o seu rosto liberta-se da solidão
dos abismos, com a dureza do âmbar
que dá cor aos seus lábios.


Nuno Júdice

Milágrimas



Em caso de dor ponha gelo
Mude o corte de cabelo
Mude como modelo
Vá ao cinema dê um sorriso
Ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo
Se amargo foi já ter sido
Troque já esse vestido
Troque o padrão do tecido
Saia do sério deixe os critérios
Siga todos os sentidos
Faça fazer sentido
A cada mil lágrimas sai um milagre

Caso de tristeza vire a mesa
Coma só a sobremesa coma somente a cereja
Jogue para cima faça cena
Cante as rimas de um poema
Sofra penas viva apenas
Sendo só fissura ou loucura
Quem sabe casando cura
Ninguém sabe o que procura
Faça uma novena reze um terço
Caia fora do contexto invente seu endereço
A cada mil lágrimas sai um milagre

Mas se apesar de banal
Chorar for inevitável
Sinta o gosto do sal do sal do sal
Sinta o gosto do sal
Gota a gota, uma a uma
Duas três dez cem mil lágrimas sinta o milagre
A cada mil lágrimas sai um milagre

Alice Ruiz

Poema



Esperamos assim. Por esperança, a espera
vai-se tornando sonho afável; mas descubro
no olhar que te procura uma névoa de orvalho.
Qualquer palavra que te diga é sem sentido.

Eu estou sonhando, eu nada escuto, eu nada alcanço.
Quem me vê não me vê, que estou fora do mundo.
Lá, constante presença em memória guardada,
percebo a tua essência – e não sei nem teu nome.

E à tentação de tantas máscaras felizes
Há mil rostos na terra: e agora não consigo
Recordar um sequer. Onde estás? Inventei-te?
Só vejo o que não vejo e que não sei se existe.
se opõe meu leal, nítido sangue.


Cecília Meireles.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A outra


Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um a outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.

Teus beijos são de mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora e minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem é a boca?
Da Outra.

Os remos já caíram na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço que enfim podem ter.
Quem abraço?
A Outra.

Bem sei, és bela, és quem desejei…
Não deixe a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.

Os remos vão perdidos já,
O barco vai não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso
Da Outra?

Ah, talvez, mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Possamos nos recomeçar
Que talvez sejas
A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais que alguém na viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.

Ah, por ora, idos remo e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, o ter ser.
Façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra.


Fernando Pessoa

Balada aos teus encantos


Há no teu corpo coleios
de serpente pelo chão...
Quem sabe, pois, se os teus seios
são serpentes enroscadas,
em sensuais emboscadas,
- escondidos como estão?

São tão belos os teus seios,
redondos, vivos e cheios,
cheios, como luas cheias
e brancos como as areias,
- irrequietos como o mar...
As vezes, quando te agitas,
palpitam trêmulos no ar,
- são duas aves aflitas
presas de ânsias infinitas
mas que não podem voar...

São duas aves esquivas
irrequietas e lascivas
que quando escapam do ninho
erguem seus bicos ao céu;
- aves sem asas, cativas,
em posições agressivas
crescendo em tua nudez,
- nos bicos cor de uva e mel
têm duas gotas de vinho,
de um doce vinho, de um vinho
de uma infinita embriaguez.

Sentinelas avançadas
de tuas formas ousadas,
não se rendem com certeza
guardando a tua beleza,
e embora caia o teu corpo
e entregues tua alma até,
- teus seios, esses teus seios,
redondos, belos e cheios,
erguem-se mais, sem receios!
- ainda estão vivos, de pé!

Quando se atiram no ataque
enfrento-os com o meu desejo!
- não há forca que os aplaque,
não há carícia, nem beijo,
se os tento em vão dominar...
Que eles assim me entontecem:
- sou como o vento! E eles crescem:
- são como as ondas do mar!

Roubaste ao mar duas ondas
são duas ondas redondas.
que ostentam pérolas raras,
pérolas cor de cereja
que o meu desejo deseja
no teu corpo de águas claras...

- são duas ondas redondas
que espraiam contra o meu peito
quando em teu corpo perfeito
- no oceano - que é o nosso leito,
sou como um barco no mar...

Roubaste ao mar duas ondas
são duas ondas redondas
onde me vou naufragar...


J.G. de Araújo Jorge

Flores sem nome

by  Isabel Gomes da Silva


Estou amando essas flores, sem lhes saber o nome.
Isto não é justo, nem suficiente.
Sei-lhes o perfume,
vejo pequenas abelhas que as circundam
e delas se alimentam
sem lhes indagar sequer o nome.
Inominadas,
como aprendê-las no poema?
Delas guardarei no tempo
certa cor, certo poema, certa forma,
como certas pessoas que por mim passam
- inalcançáveis -
embora deixassem nos meus olhos
o mesmo inominado aroma.


Affonso Romano de Sant'Anna

Sacrilégio

by Brita Seifert

Como a alma pura, que teu corpo encerra,
Podes, tão bela e sensual, conter?
Pura demais para viver na terra,
Bela demais para no céu viver.

Amo-te assim! - exulta, meu desejo!
É teu grande ideal que te aparece,
Oferecendo loucamente o beijo,
E castamente murmurando a prece!

Amo-te assim, à fronte conservando
A parra e o acanto, sob o alvor do véu,
E para a terra os olhos abaixando,
E levantando os braços para o céu.

Ainda quando, abraçados, nos enleva
O amor em que me abraso e em que te abrasas,
Vejo o teu resplendor arder na treva
E ouço a palpitação das tuas asas.

Em vão sorrindo, plácidos, brilhantes,
Os céus se estendem pelo teu olhar,
E, dentro dele, os serafins errantes
Passam nos raios claros do luar:

Em vão! - descerras úmidos, e cheios
De promessas, os lábios sensuais,
E, à flor do peito, empinam-se-te os seios,
Ameaçadores como dois punhais.

Como é cheirosa a tua carne ardente!
Toco-a, e sinto-a ofegar, ansiosa e louca.
Beijo-a, aspiro-a... Mas sinto, de repente,
As mãos geladas e gelada a boca:

Parece que uma santa imaculada
Desce do altar pela primeira vez,
E pela vez primeira profanada
Tem por olhos humanos a nudez...

Embora! hei de adorar-te nesta vida,
Já que, fraco demais para perdê-la,
Não posso um dia, deusa foragida,
Ir amar-te no seio de uma estrela.

Beija-me! Ficarei purificado
Com o que de puro no teu beijo houver;
Ficarei anjo, tendo-te ao meu lado:
Tu, ao meu lado, ficarás mulher.

Que me fulmine o horror desta impiedade!
Serás minha! Sacrílego e profano,
Hei de manchar a tua castidade
E dar-te aos lábios um gemido humano!

E à sombria mudez do santuário
Preferirás o cálido fulgor
De um cantinho da terra, solitário,
Iluminado pelo meu amor...


Olavo Bilac

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Tenho frio e ardo em febre

by Brita Seifert

Tenho frio e ardo em febre!
O amor me acalma e endouda! O amor me eleva e abate!
Quem há que os laços, que me prendem, quebre?
Que singular, que desigual combate!


Não sei que ervada flecha
Mão certeira e falaz me cravou com tal jeito,
Que, sem que eu a sentisse, a estreita brecha
Abriu, por onde o amor entrou meu peito.

O amor me entrou tão cauto
O incauto coração, que eu nem cuidei que estava,
Ao recebê-lo, recebendo o arauto
Desta loucura desvairada e brava.

Entrou. E, apenas dentro,
Deu-me a calma do céu e a agitação do inferno...
E hoje... ai de mim!, que dentro em mim concentro
Dores e gostos num lutar eterno!

O amor, Senhora, vede:
Prendeu-me. Em vão me estorço, e me debato, e grito;
Em vão me agito na apertada rede...
Mais me embaraço quanto mais me agito!

Falta-me o senso: a esmo,
Como um cego, a tatear, busco nem sei que porto:
E ando tão diferente de mim mesmo,
Que nem sei se estou vivo ou se estou morto.

Sei que entre as nuvens paira
Minha fronte, e meus pés andam pisando a terra;
Sei que tudo me alegra e me desvaira,
E a paz desfruto, suportando a guerra.

E assim peno e assim vivo:
Que diverso querer! Que diversa vontade!
Se estou livre, desejo estar cativo;
Se cativo, desejo a liberdade!

E assim vivo, e assim peno:
Tenho a boca a sorrir e os olhos cheios de água;
E acho o néctar num cálix de veneno,
A chorar de prazer e a rir de mágoa.

Infinda mágoa! Infindo
Prazer! Pranto gostoso e sorrisos convulsos!
Ah! Como dói assim viver, sentindo
Asas nos ombros e grilhões nos pulsos!

Olavo Bilac

Fazer Versos


Fazer versos
Muitos nunca entenderão
o fazer versos. Acham um passatempo
e insensatez perversa.
Contemplo-os à noite, do terraço
que dá para a solidão de seus quartos.
Dormem todos. Mas há luzes acesas.
Devem ser poetas que desconheço
e me desconhecem, e alta noite reconstroem,
mudos, um diálogo de muitos,
como se nunca fossem morrer.

Os outros dormem. Dormem
imaginando, às vezes, como o artista há de ser.
O artista, apenas, arde o ser.


Affonso Romano de Sant'Anna

Por mim?


Teus negros olhos uma vez fitando
Senti que luz mais branda os acendia,
Pálida de langor, eu vi, te olhando,
Mulher do meu amor, meu serafim,
Esse amor que em teus olhos refletia...
Talvez! - era por mim?

Pendeste, suspirando, a face pura,
Morreu nos lábios teus um ai perdido...
Tão ébrio de paixão e de ventura!
Mulher de meu amor, meu serafim,
Por quem era o suspiro amortecido?
Suspiravas por mim?...

Mas... eu sei!... ai de mim? Eu vi na dança
Um olhar que em teus olhos se fitava...
Ouvi outro suspiro... d'esperança!
Mulher do meu amor, meu serafim,
Teu olhar, teu suspiro que matava...
Oh! não eram por mim.


Álvares de Azevedo

Desses scripts que a gente inventa e quer



"uma pergunta (desde sempre pululando) me assalta: é possível viver isso com alguém que não saiba sentir assim? Ou: as pessoas que não escrevem/não percebem assim o mundo e os sentimentos poderão ser astros principais desses scripts que a gente inventa e quer?" (Nálu Nogueira)
  

um medo me assalta na resposta e eu paro um pouco.
se lhe digo: não é possível / não podem
minto pra mim e pra você.

pra todos nós, pra você e pra mim,
a resposta que tenho e sinto: sim.

amamos no outro o que nos falta e nos completa?
quem quiser que pense assim.

amamos no outro o buscar da mesma meta?
menos ruim.

amamos o outro porque nele nos outramos
e ao mesmo tempo nos fundimos. nele somos.

o outro, que não sente como sentimos,
sente o que sentimos.
e não pergunta se sentimos menos
só porque não sentimos como ele.

ele sente e basta.
a gente sente e escreve.

em que o escrever sente mais do que o bastar?

pensemos: eu amo e preciso dizer,
o outro ama e não precisa falar.

: amamos o outro porque amamos.

e o outro, que nos ama, ama ouvir,
pois é como se dissesse,
esses scripts que a gente inventa e quer.


Antoniel Campos

A flor do sonho

 Irene Sheri


A Flor do Sonho, alvíssima, divina,
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína.

Pende em meu seio a haste branda e fina
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim!…
Milagre… fantasia… ou, talvez, sina…

Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!…

Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa de minh’alma
E nunca, nunca mais eu me entendi…



Florbela Espanca

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Notas do Subsolo


Sou um homem doente... Sou mau. Não tenho atrativos. Acho que sofro do fígado. Aliás, não entendo bulhufas da minha doença e não sei com certeza o que é que me dói. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite os médicos e a medicina. Além de tudo, sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para respeitar a medicina. (Tenho instrução suficiente para não ser supersticioso, mas sou.) Não, senhores, se não quero me tratar é de raiva. Isso os senhores provavelmente não compreendem. Que assim seja, mas eu compreendo. Certamente, não poderia explicar a quem exatamente eu atinjo, nesse caso, com a minha raiva; sei perfeitamente que, não me tratando, não posso prejudicar os médicos; sei perfeitamente bem que, com isso, prejudico somente a mim e a mais ninguém. Mesmo assim, se não me trato, é de raiva. Se o fígado dói, que doa ainda mais.

Faz muito tempo que vivo assim - uns vinte anos. Agora estou com quarenta. Antes eu trabalhava no serviço público, mas agora não trabalho mais. Fui um funcionário cruel. Era grosseiro e encontrava prazer nisso. Já que não aceitava propinas, devia me recompensar ao menos dessa maneira. (Isso foi um gracejo infeliz, mas não vou apagá-lo. Eu o escrevi pensando que ia sair algo muito espirituoso, mas agora, quando constatei que, de maneira infame, estava apenas querendo me vangloriar, de propósito não vou apagar.) Quando os solicitantes se aproximavam da minha mesa para pedir uma informação, eu rangia os dentes para eles e sentia um prazer infinito quando conseguia contrariar alguém. Quase sempre conseguia. Na maior parte, era gente tímida, como são de hábito os solicitantes. Mas, entre os almofadinhas, particularmente eu não podia suportar um certo oficial. Ele não queria de modo algum submeter-se e fazia tinir seu sabre de maneira asquerosa. Por causa desse sabre, nós estivemos em guerra durante um ano e meio. Ganhei, finalmente. Ele parou com os tinidos. Aliás, isso se passou ainda na minha mocidade. Mas sabem os senhores em que consistia o ponto principal da minha raiva? A questão toda, a minha maior canalhice, se resumia a que a todo momento, até no instante do ódio mais intenso, eu percebia, envergonhado, que não só não era mau, como não era nem mesmo uma pessoa enfurecida, apenas assustava pardais sem nenhum propósito e com isso me divertia. Minha boca espumava, mas se me trouxessem um brinquedinho ou um chazinho com açúcar, na certa eu me acalmaria. Ficaria até enternecido, embora depois, provavelmente, rangeria os dentes para mim mesmo e, de vergonha, passaria alguns meses com insônia. Esse é o meu jeito de ser.

Eu menti antes, quando disse que era um funcionário cruel. Menti de raiva. Apenas me divertia com os solicitantes e o oficial, mas no fundo nunca me tornei mau. Constantemente observava em mim uma enorme quantidade de elementos contrários a isso. Sentia-os fervilhar dentro de mim. Sabia que em toda a minha vida eles fervilharam dentro de mim e ansiavam por sair, mas eu não deixava. Não deixava, de propósito não os soltava. Eles me torturavam ao ponto de me dar vergonha; até convulsões eu tinha por causa deles - e finalmente fiquei farto. Como fiquei farto! Não lhes parece que agora estou me arrependendo de alguma coisa diante dos senhores, que estou a lhes pedir perdão? Estou certo de que parece... Aliás, asseguro-lhes que para mim tanto faz, se isso assim lhes parece...

Não apenas não consegui tornar-me cruel, como também não consegui me tornar nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem honrado, nem herói, nem inseto. Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz. Sim, senhores, o homem do século XIX que possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem caráter; já um homem com caráter, um homem de ação, é de preferência um ser limitado. Essa é a minha convicção aos quarenta anos. Tenho agora quarenta. E quarenta anos é toda uma vida, é a velhice mais avançada. Depois dos quarenta é indecoroso viver, é vulgar, imoral! Quem vive além dos quarenta? Respondam-me sincera e honestamente. Pois vou lhes dizer quem vive: os tolos e os canalhas. Direi isso na cara de todos os anciãos, dos anciãos respeitáveis, perfumados e de cabelos brancos! Direi isso na cara de todo mundo! Tenho direito de dizer isso porque eu mesmo vou viver até os sessenta. Até os setenta! Até os oitenta! Esperem! Deixem-me tomar fôlego!

*

Tenho, senhores, algumas questões que me atormentam; resolvam-nas para mim. Por exemplo, os senhores querem fazer com que o homem desaprenda hábitos antigos e desejam corrigir sua vontade, de acordo com as exigências da ciência e do bom senso. Mas como os senhores sabem que não só é possível como também necessário mudar assim o homem? De onde os senhores tiraram essa conclusão de que é tão necessário corrigir a vontade humana? Em suma, por que os senhores sabem que tal correção será benéfica ao homem? E, se é para dizer tudo, por que os senhores têm tanta certeza de que realmente é sempre vantajoso para o homem e constitui uma lei para toda a humanidade não contradizer as vantagens verdadeiras, normais, aquelas garantidas por argumentos da razão e da aritmética? Pois, por enquanto, isso é apenas uma suposição dos senhores. Admitamos que isso seja uma lei da lógica, mas é possível que não seja absolutamente uma lei da humanidade. Os senhores pensam, talvez, que estou louco? Permitam-me explicar-me. Admito: o homem é, acima de tudo, um animal que constrói, condenado a buscar conscientemente um objetivo e exercer a arte da engenharia, ou seja, a abrir caminho para si mesmo incessante e eternamente, não importando aonde esse caminho o leve. Mas eis que, vez por outra, ele tem vontade de se desviar para um lado, talvez precisamente porque ele esteja condenado a abrir esse caminho, e também talvez porque, por mais idiota que geralmente seja o homem direto, de ação, às vezes ele pensa que aquele caminho, na realidade, quase sempre leva não importa aonde, o mais importante não é para onde ele leva, e sim que ele continue a levar, a fim de que a criança bem-comportada, fazendo pouco caso da arte da engenharia, não se entregue à ociosidade destrutiva, que, como é sabido, é a mãe de todos os vícios. O homem gosta de criar e de abrir caminhos, isto é indiscutível. Mas por que ele também ama com paixão a destruição e o caos? Digam-me, por favor! Entretanto, eu mesmo quero dizer duas palavras à parte sobre isso. Não poderia ser, talvez, que ele ame tanto a destruição e o caos (bem, é indiscutível que ele às vezes gosta muito, não há dúvida) porque ele mesmo, instintivamente, teme atingir o objetivo e concluir o edifício que estava construindo? Como os senhores podem saber? Talvez ele ame o edifício somente de longe e não o ame de perto; talvez ele ame apenas o ato de construí-lo, e não viver nele.

*

E por que os senhores estão assim tão firme e solenemente convencidos de que apenas o que é normal e positivo, ou seja, o bem-estar, é vantajoso para o homem? A razão não estará cometendo um erro quanto às vantagens? Quem sabe o homem ame não apenas o bem-estar? Quem sabe ele ame igualmente o sofrimento? Quem sabe o sofrimento é para ele tão vantajoso quanto o bem-estar? O homem, às vezes, ama o sofrimento de maneira terrível, apaixonada; isso é um fato. Para isso não há necessidade de consultar a história universal. Perguntem a si mesmos, se é que os senhores são homens e viveram nem que seja um pouco. Quanto à minha opinião pessoal, penso que amar apenas o bem-estar é, de certo modo, até indecente. Seja isso bom ou não, o fato é que, às vezes, quebrar alguma coisa é também muito agradável. Não estou propriamente defendendo o sofrimento e nem o bem-estar. Estou defendendo... o meu capricho, e que ele me seja garantido, quando necessário.

*

Destruam meus desejos, apaguem meus ideais, mostrem-me alguma coisa melhor, e serei seu seguidor. Talvez os senhores digam que não vale a pena meter-se comigo; nesse caso, posso responder-lhes da mesma forma. Estamos argumentando seriamente, mas, se não quiserem conceder-me sua atenção, não hei de me humilhar. Tenho meu subsolo.

*
Entre as recordações de cada pessoa, há coisas que ela não conta para qualquer um, somente para os amigos. Há também aquelas que ela não conta nem para os amigos, somente para si mesma, e isso secretamente. Mas, finalmente, há também aquelas que o indivíduo tem medo de revelar até para si mesmo, e um homem respeitável tem tais coisas acumuladas em grande quantidade. E pode ser até mesmo assim: quanto mais respeitável ele é, mais coisas desse tipo ele tem acumuladas. Eu, pelo menos, só recentemente tomei coragem para recordar algumas das minhas aventuras passadas, as quais até agora tinha evitado com uma certa inquietação. E agora, quando não só recordei, como até me decidi a escrevê-las, agora exatamente quero tirar a prova: é possível alguém ser inteiramente sincero consigo mesmo e não temer toda a verdade?

*

Perdoem-me por ter filosofado dessa maneira, mas foram quarenta anos de subsolo! Permitam-me fantasiar um pouco. Vejam os senhores: a razão é uma coisa boa, sem dúvida, mas razão é apenas razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem; já a vontade, esta é a manifestação da vida como um todo, ou melhor, de toda a vida humana, aí incluindo-se a razão e todas as formas de se coçar. E, mesmo que a nossa vida pareça às vezes bem ruinzinha do ponto de vista acima, ela é vida, apesar de tudo, e não apenas a extração de uma raiz quadrada. Eu, por exemplo, naturalmente quero viver para satisfazer toda a minha capacidade de vida, e não para satisfazer apenas minha capacidade racional, ou seja, talvez a vigésima parte de toda a minha capacidade de viver. Que sabe a razão? Ela sabe apenas aquilo que conseguiu conhecer (outras coisas, provavelmente, nunca saberá; isso pode não consolar, mas por que não dizê-lo?); já a natureza humana, esta age como um todo, com tudo o que possui, seja consciente, seja inconsciente – e, mesmo mentindo, está vivendo.

*
(..)tente abraçar com paixão e cegamente o seu sentimento, sem reflexão, sem buscar o motivo original, afastando a consciência pelo menos temporariamente; sinta ódio ou amor, nem que seja para não ficar sentado de braços cruzados. No mais tardar, depois de amanhã você começará a sentir desprezo por si mesmo, por ter-se enganado conscientemente. O resultado disso: uma bolha de sabão e a inércia. Ah, senhores, pode ser que eu me considere um homem inteligente simplesmente porque em toda a minha vida nada consegui começar nem terminar. Está bem, está bem. Eu sou um tagarela, um tagarela inofensivo e enfadonho, como todos nós. Mas que se há de fazer se o único e evidente destino de todo homem inteligente é tagarelar, ou seja, dedicar-se propositalmente a conversas para boi dormir?

*

Está ansiando pela vida, mas resolve os problemas da existência com um emaranhado lógico. E como são importunas, como são insolentes as suas saídas, e, ao mesmo tempo, como o senhor tem medo! Afirma absurdos e se satisfaz com eles; diz insolências, mas sempre se assusta com elas e pede desculpas. Assegura não temer nada e, ao mesmo tempo, busca nosso aplauso. Garante estar rangendo os dentes e, simultaneamente, graceja, para nos fazer rir. Sabe que seu gracejo não têm espírito, mas, ao que parece, está muito satisfeito com a sua qualidade literária. É possível que tenha sofrido realmente; todavia, não respeita um pouco sequer o próprio sofrimento. No senhor há verdade, mas não há pureza; por motivo da mais mesquinha vaidade, traz a sua verdade à mostra, conduzindo-a para a ignomínia, para a feira... Realmente, quer dizer algo, no entanto, por temor, oculta a palavra derradeira, porque não tem suficiente decisão para dizê-la, mas apenas uma assustada impertinência. Vangloria-se da sua consciência, mas, na realidade, apenas vacila, pois, embora o seu cérebro funcione, o seu coração está obscurecido pela perversão, e, sem um coração puro, não pode haver consciência plena, correta. E que capacidade de importunar, que insistência, como careteia! Mentira, mentira, mentira!

*

Um homem honrado e evoluído não pode ser vaidoso sem possuir uma exigência infinita para consigo mesmo e sem, em certos momentos, se desprezar até o ponto de se odiar. Mas, seja desprezando o outro, seja julgando-me inferior, eu baixava os olhos diante de quase todas as pessoas com quem cruzava. Cheguei a fazer experiências para ver se aguentaria o olhar de alguém sobre mim. Sempre era eu o primeiro a baixar os olhos. Isso me torturava a ponto de me deixar furioso.

*

Havia ainda naquela época outra circunstância que me torturava: precisamente o fato de que ninguém se parecia comigo e eu não era parecido com ninguém. “Eu sou único e eles são todos”, pensava eu.

*

(Permitam-me usar essa palavra: “romântico” – palavrinha antiga, respeitável, digna e conhecida de todos.) As características do nosso romântico são: compreender tudo, ver tudo e, freqüentemente, enxergar muito mais claramente do que as nossas inteligências mais positivas; não se resignar diante de nada ou de ninguém, mas, ao mesmo tempo, nada menosprezar, tudo contornar, ceder a tudo, comportar-se com todos de maneira política; nunca perder de vista um objetivo prático, útil (como algum apartamentinho do governo, uma pensãozinha, uma condecoraçãozinha), e ter em mira esse objetivo em todo entusiasmo e em todos os volumezinhos de versinhos líricos e, ao mesmo tempo, conservar incólume em si o “belo e sublime”, até o túmulo, e, a propósito, conservar a si mesmo embrulhado em algodão, como uma joiazinha, nem que seja, por exemplo, em prol do mesmo “belo e sublime”. Vive à larga o nosso romântico, e é o maior dos espertalhões, asseguro-lhes... até mesmo por experiência própria. Isso, é claro, se o romântico for inteligente. Mas que estou dizendo? O romântico é sempre inteligente.

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Uma noite, ao passar diante de uma pequena taverna, vi pela janela iluminada uns senhores brigando perto do bilhar, batendo-se com os tacos, e depois vi um deles ser atirado pela janela. Se fosse em outra hora, teria sentido asco, mas estava num momento tal, que comecei a invejar o senhor que foi atirado pela janela, a tal ponto que entrei na taverna, na sala de bilhar. “Quem sabe não me envolvo numa briga e também me atiram pela janela?”. Não estava bêbado, mas os senhores querem o quê? A angústia pode levar a esse grau de histeria! Mas não deu em nada. Resultou que eu não era capaz nem de pular pela janela, e fui embora sem ter brigado.

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Numa certa época, cheguei a ter um amigo. Mas, no íntimo, eu já era um déspota; queria ter poder absoluto sobre sua alma. Procurei inculcar nele desprezo pelo ambiente que o rodeava; arrogantemente exigi dele um rompimento total e definitivo com esse ambiente. Assustei-o com minha amizade cheia de paixão; levei-o muitas vezes às lágrimas e às convulsões. Era uma alma ingênua, que se entregava com facilidade, mas, quando ele se entregou totalmente a mim, imediatamente passei a odiá-lo e afastei-o de mim – como se eu precisasse dele apenas para triunfar sobre ele e subjugá-lo.

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De vez em quando, com uma dor profunda e venenosa, um pensamento perpassava meu coração: de que vão se passar dez, vinte, quarenta anos, e eu ainda me lembrarei com humilhação e asco desses momentos, os mais sórdidos, ridículos e terríveis de toda a minha vida. Era impossível humilhar-me de maneira ainda mais vergonhosa e voluntária. Eu entendia total e plenamente isso; no entanto continuava a caminhar da mesa para a lareira e vice-versa. “Ah, se vocês ao menos soubessem os sentimentos e as ideias de que sou capaz e como sou culto!”, pensava por alguns instantes, dirigindo-me mentalmente ao divã onde meus inimigos estavam sentados. Mas meus inimigos comportavam-se como se eu não estivesse na sala. Uma vez, somente uma única vez, eles se voltaram para mim, exatamente quando Zverkov falou sobre Shakespeare e eu repentinamente soltei uma gargalhada cheia de desdém. Soltei uma risada tão falsa e porca, que todos interromperam ao mesmo tempo a conversa e por alguns minutos ficaram observando sérios, sem rir, a minha caminhada ao longo da parede, entre a mesa e a lareira, e como eu não estava prestando a mínima atenção neles. Mas não deu em nada: eles não falaram comigo e dois minutos depois tornaram a me abandonar.

*

Daqui a quinze anos, quando me libertarem, irei me arrastar no encalço dele, em farrapos, na miséria. Hei de procurar até encontrá-lo em alguma cidade de província. Ele estará casado e feliz. Terá uma filha já adulta. Eu lhe direi: “Olhe, monstro, veja minhas faces fundas e meus farrapos! Perdi tudo – carreira, felicidade, arte, ciência, a mulher amada, e tudo por sua causa. Aqui estão as pistolas. Eu vou descarregar a minha pistola e... e eu o perdoo”. Então atiro para o ar e desapareço para sempre...

*

Ah, se eu não fizesse nada unicamente por preguiça! Meu Deus, como eu me respeitaria! E me respeitaria precisamente porque teria a capacidade de possuir ao menos a preguiça; pelo menos eu teria uma característica quase positiva, que eu mesmo teria a certeza de possuir. Pergunta: quem é ele? Resposta: um preguiçoso. Seria mais do que agradável ouvir tal coisa a meu respeito. Mostraria que fui definido positivamente, que há o que dizer sobre mim. “Um preguiçoso!” – isto é de fato um título, uma função, é uma carreira, senhores. Não brinquem com isso, é a pura verdade. Eu seria, então, por direito, membro do clube mais importante, e minha única ocupação seria passar todo o tempo me respeitando. Conheci um senhor que toda a sua vida se orgulhou de ser entendido em Laffittes. Para ele, isso era uma vantagem e uma qualidade positiva, e nunca duvidava de si mesmo. Morreu com a consciência não apenas tranquila, mas até mesmo triunfante, e com toda razão. Eu poderia escolher uma carreira: preguiçoso e comilão, mas não um comilão qualquer, e sim um que tivesse sensibilidade para tudo que é belo e sublime. Que lhes parece? Sonho com isso há muito tempo. O tal “belo e sublime” pesa muito na minha nuca agora, aos quarenta anos, mas naquela época seria diferente! Eu teria encontrado imediatamente uma atividade correspondente, como brindar a tudo que é belo e sublime. Não perderia nenhuma oportunidade de começar por verter uma lágrima dentro da minha taça e depois bebê-la à saúde de tudo que é belo e sublime. Eu transformaria tudo que há no mundo em belo e sublime, encontraria o belo e o sublime até mesmo nas coisas mais horríveis, nas piores e mais indiscutíveis porcarias. Ficaria lacrimoso como uma esponja molhada. Um pintor, por exemplo, pintou um quadro de Gay. Imediatamente eu beberia à saúde do pintor que pintou o quadro de Gay , porque amaria tudo que é belo e sublime. Um autor escreveu “como apraz a cada um” e imediatamente eu beberia à saúde de “cada um”, porque amaria tudo que é belo e sublime. Exigiria respeito por isso, perseguiria quem não me respeitasse. Viveria tranquilo, morreria solenemente – ah!, como seria formidável, uma verdadeira maravilha! Arrumaria uma bela pança, um queixo triplo, um nariz vermelho, e todos os que cruzassem comigo diriam: “Eis um homem de mérito! Isto é que é um homem de verdade!”. Digam os senhores o que quiserem, mas é super agradável ouvir coisas assim neste nosso século tão negativo.

*

Eu sabia que meu discurso era pesado, artificial, livresco mesmo. Em suma: de outra forma eu não sabia me expressar, a não ser “como num livro”. Mas não estava preocupado com isso, pois sabia, tinha o pressentimento de que seria compreendido e de que o próprio estilo livresco iria ajudar-me ainda mais.

*
Em casa, o que mais fazia era ler. Tinha vontade de abafar com impressões exteriores, só me era possível recorrer à leitura. Naturalmente, ela me ajudava muito: perturbava-me, deliciava-me, torturava. Mas, por vezes, tornava-se terrivelmente enfadonha. Apesar de tudo, tinha vontade de me movimentar, e me afundava de súbito numa escura, subterrânea e repelente... não digo devassidão, mas devassidãozinha. Tinha paixõezinhas agudas, ardentes, em virtude de minha contínua e doentia irritabilidade. Vinham-me impulsos histéricos, com lágrimas e convulsões. Além da leitura, não tinha para onde me voltar, isto é, não havia nada no meu ambiente que eu pudesse respeitar e que me atraísse. Além de tudo, a angústia fervilhava dentro de mim; surgia-me um anseio histérico de contradições, de contrastes, e eu me lançava então na libertinagem. Não foi propriamente para me justificar que, ainda há pouco disse tudo isso... Aliás, não! Estou mentindo! Eu quis, precisamente, justificar-me. Faço agora, meus senhores, uma anotaçãozinha para mim mesmo. Não quero mentir. Empenhei a palavra.

*

 Mesmo agora, quando já se passaram tantos anos, isso tudo me vem à memória de maneira excessivamente ruim. Tenho tido muitas lembranças ruins agora, mas... não será melhor terminar aqui estas notas? Parece-me que cometi um erro ao começar a escrevê-las. Pelo menos fiquei envergonhado durante todo o tempo que levei para escrever esta narrativa: conseqüentemente, isto já não é literatura, e sim um castigo correcional. Pois fazer longos relatos de como estraguei minha vida apodrecendo moralmente num canto, com as deficiências do ambiente, desabituando-me da vida e com meu ódio vaidoso no subsolo – por Deus que não é interessante. Um romance precisa de um herói, e aqui foram reunidos intencionalmente todos os traços para um anti-herói, e, o que é mais importante, tudo isso vai produzir uma impressão muito desagradável, porque nós todos nos desacostumamos da vida, uns mais, outros menos, e nos desacostumamos ao ponto de sentirmos às vezes uma certa repugnância pela verdadeira “vida viva”, e por isso não podemos suportar que nos façam lembrar dela. Pois chegamos ao ponto de quase achar que a verdadeira “vida viva” é um trabalho, quase um emprego, e todos nós no íntimo pensamos que nos livros é melhor. E por que às vezes ficamos irrequietos, inventamos caprichos? E o que pedimos? Nós mesmos não sabemos. Nós mesmos nos sentiremos pior se nossos pedidos delirantes forem atendidos. Pois bem, façam uma experiência, deem-nos, por exemplo, mais independência, desamarrem as mãos de qualquer um de nós, ampliem nossa esfera de ação, relaxem a tutela e nós... eu lhes asseguro: nós imediatamente pediremos a volta da tutela. Sei que os senhores talvez fiquem bravos comigo, comecem a gritar e a bater com os pés: “Fale somente sobre si mesmo e sobre suas misérias no subsolo, mas não ouse dizer todos nós”. Permitam-me, senhores, eu não estou me justificando quando digo todos. E no que me diz respeito, eu apenas levei às últimas conseqüências na minha vida aquilo que os senhores não tiveram coragem de levar nem à metade, e ainda por cima acharam que sua covardia era bom senso, consolando-se e enganando a si próprios com isso. De modo que talvez eu esteja mais “vivo” que os senhores. Olhem com mais atenção! Nós nem sabemos onde vive essa coisa viva, o que ela é, como chamá-la! Deixem-nos sós, sem livros, e imediatamente ficaremos confusos, perdidos – não saberemos a quem nos unir, o que devemos apoiar; o que amar e o que odiar; o que respeitar e o que desprezar. Até mesmo nos é difícil ser gente – gente com seu próprio e verdadeiro corpo e sangue; sentimos vergonha disso, achamos que é um demérito e nos esforçamos para ser uma espécie inexistente de homens em geral. Somos natimortos, e há muito tempo nascemos não de pais vivos, e isso nos agrada cada vez mais. Estamos tomando gosto. Em breve vamos querer nascer da ideia, de algum modo. Mas basta, não quero mais escrever “do subsolo”

Fiódor Dostoiévski, Notas do Subsolo

Jack Kerouac, Viajante Solitário

“Na verdade, não sou um beat, mas sim um estranho e solitário católico, louco e místico... Planos finais: solidão eremítica nas florestas, escrever tranquilamente na velhice, vaga esperança do Paraíso (como, de resto, todo mundo)...
Queixa favorita sobre o mundo contemporâneo: o desprezo jocoso das pessoas “respeitáveis”.... que, por não levarem nada a sério, estão destruindo velhos sentimentos humanos, mais antigos do que a Time Magazine... Dave Garroways rindo-se de pombas brancas...
(...)
Viajante Solitário é uma coleção de textos publicados e inéditos conectados por um tema comum: viagens.
As viagens percorrem os Estados Unidos do sul para a costa leste, costa oeste, o noroeste distante, México, Marrocos, Paris, Londres, os oceanos Atlântico e o Pacífico a bordo de navios, e as várias pessoas e cidades interessantes encontradas nesses lugares.
Trabalhos em ferrovias, no mar, misticismo, trabalho na montanha, lascívia, solipsismo, auto-indulgência, drogas, igrejas, museus de artes, ruas urbanas, um apanhado geral da vida vivida por um vagabundo sem grana e educado de forma independente, indo a lugar algum.
Seu objetivo e propósito é simplesmente poesia, ou descrição natural.

- “O mundo pode ser louco, até que finalmente a gente possa compreender que, “oh, bem, na verdade tudo é tão repetitivo”

- “Ah, América, tão imensa, tão triste, tão negra, você é como as filhas de um verão seco que se tornaram quebradiças antes do final de agosto, você não tem conserto, todos que você vê, não há nada além da desesperança seca e soturna, o conhecimento da morte iminente, o sofrimento da vida presente, luzes natalinas não vão salvá-lo nem a ninguém, de nada adianta acender enfeites de natal em um arbusto, morto em agosto à noite, e lhe dar o aspecto de outra coisa qualquer, que espécie de Natal é esse que você celebra no vazio?... nessa nuvem nebulosa?”


-" O próximo touro! – Primeiro os velhos garotos juntam o sangue com pás, jogam em um carrinho de mão e saem de cena. O alisador da arena retorna calmamente com seu ancinho. – 'Olé', garotas jogam flores para o assassino de animais de colete bordado. E eu vi como todo mundo morre e ninguém vai se importar, senti como é horrível viver apenas para morrer, como um touro encurralado em uma arena humana estridente.


Jack Kerouac, Viajante Solitário

Recordarás aquela quebrada caprichosa
onde os aromas palpitantes subiram,
de quando em quando um pássaro vestido
com água e lentidão: traje de inverno.

Recordarás os dons da terra:
irascível fragrância,barro de ouro,
ervas do mato ,loucas raízes,
sorrílegos espinhos como espadas

Recordarás o ramo que trouxeste,
ramo de sombra e água com silêncio,
ramo como uma pedra com espuma.

E aquela vez foi como nunca e sempre:
vamos ali onde não espera nada
e achamos tudo o que está esperando.

Pablo Neruda
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E isenta ficarei dos antigos amados
Que, pela Lua cheia, em rápidas sortidas
Ainda vêm me atirar flechas envenenadas
Para depois beber-me o sangue das feridas.

E assim serei intacta, e assim serei tranquila
E assim não sofrerei da angústia de revê-los
Quando, tristes e fiéis como lobos no cio
Se puserem a rondar meu castelo de estrelas.

Farta de saber ler, saberei ver nos astros
A brilharam no azul da abóboda no Oriente
E beijarei a terra , a caminhar de rastros
Quando a Lua no céu contar teu rosto ausente.

Eu te protegerei contra o Íncubo
Que te espreita por trás da Aurora acorrentada
E contra a legião dos monstros de Poente
Que te querem matar, ó impossível amado!



Vinícius de Moraes

Reflexo

by  Miguel Avataneo

Sem nada para fazer, olha-se no espelho
do quadro, procurando uma resposta. Ou
será o contrário, sendo ela uma projeção
da sua própria imagem? No fundo, é o movimento
do olhar que vai de uma para outra que
impede uma certeza: se é no horizonte do quadro, de cuja
perspectiva ela faz parte, que se encontra a realidade,
ou se é no pensamento da mulher
que vê o seu reflexo que o mundo se descobre,
para que ambas se reconheçam a mesma? Olho-as:
e também eu não sei a que espaço pertenço,
quando a janela está aberta, e a luz que entra
me empurra para fora, onde uma primavera
é possível. Elas, no entanto, não querem saber
disto; e é como se a mulher que se ajoelha,
na cadeira, esperasse o milagre que a faça
sair do quadro, e avançar pelo dia,
como a luz avança pela sala onde nada acontece,
a não ser este olhar que as prende uma
à outra, e me deixa de fora.


 Nuno Júdice

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Arte by Elena Dudina

camaleones

El_gatito

Manos_tiernas

A Pátria


Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! não verás nenhum país como este!
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha...
Quem com seu suor a fecunda e umedece,
Vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece!
Criança! não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste!


Olavo Bilac

Soneto antigo

by Miguel Avataneo 
 
Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.

Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.

O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.

Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.


Cecília Meireles
by Alejandro Rosemberg

Depois de tudo, fica a lembrança dos lugares e
dos seus nomes; dos quartos virados a poente
onde as imagens do rio nunca se repetem nas janelas
e todos os enredos são consentidos sobre as camas.

Ao fundo, havia um armário de madeira com espelho
onde as nossas roupas trocavam de perfume
para que os dias se vestissem sempre melhor.
E, sobre a cômoda, num espelho mais antigo,
a tarde refletia algumas das alegrias da infância.

Não era o quarto de nenhum de nós,
mas a ele regressávamos sempre com a pressa
de quem anseia os cheiros quentes e antigos
da casa conhecida; como quem espera ser aguardado.

Pressenti, porém, que não era eu quem aguardavas:
uma noite, pedi-te mais um cobertor em vez de um abraço.



Maria do Rosário Pedreira

sábado, 19 de fevereiro de 2011


"The word god is for me nothing more than the expression and product of human weaknesses, the Bible a collection of honourable, but still primitive legends which are nevertheless pretty childish. No interpretation no matter how subtle can (for me) change this. … For me the Jewish religion like all others is an incarnation of the most childish superstitions. And the Jewish people to whom I gladly belong and with whose mentality I have a deep affinity have no different quality for me than all other people. As far as my experience goes, they are no better than other human groups, although they are protected from the worst cancers by a lack of power. Otherwise I cannot see anything 'chosen' about them."

***
The most beautiful experience we can have is the mysterious. It is the fundamental emotion that stands at the cradle of true art and true science. Whoever does not know it and can no longer wonder, no longer marvel, is as good as dead, and his eyes are dimmed. It was the experience of mystery — even if mixed with fear — that engendered religion. A knowledge of the existence of something we cannot penetrate, our perceptions of the profoundest reason and the most radiant beauty, which only in their most primitive forms are accessible to our minds: it is this knowledge and this emotion that constitute true religiosity. In this sense, and only this sense, I am a deeply religious man.


Albert Einstein

Flor da mocidade

Anila Ciccone

Eu conheço a mais bela flor;
És tu, rosa da mocidade,
Nascida aberta para o amor.
Eu conheço a mais bela flor.
Tem do céu a serena cor,
E o perfume da virgindade.
Eu conheço a mais bela flor,
És tu, rosa da mocidade.

Vive às vezes na solidão,
Como filha da brisa agreste.
Teme acaso indiscreta mão;
Vive às vezes na solidão.
Poupa a raiva do furacão
Suas folhas de azul celeste.
Vive às vezes na solidão,
Como filha da brisa agreste.

Colhe-se antes que venha o mal,
Colhe-se antes que chegue o inverno;
Que a flor morta já nada val.
Colhe-se antes que venha o mal.
Quando a terra é mais jovial
Todo o bem nos parece eterno.
Colhe-se antes que venha o mal,
Colhe-se antes que chegue o inverno.


Machado de Assis
by Alexander Marchenko

Bati com o pé no deserto
e não nasceu uma fonte…
Toquei numa rocha
e não se cobriu de açucenas…
Beijei uma árvore
e o enforcado não ressuscitou…
Amaldiçoei a paisagem
e não secaram as raízes…

Digam-me lá: para que diabo serve ser poeta?
(Os santos são mais felizes.)



José Gomes Ferreira

Explicação

anny maddock

O pensamento é triste; o amor, insuficiente;
e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.
Deixo que a terra me sustente:
guardo o resto para mais tarde.

Deus não fala comigo - e eu sei que me conhece.
A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.
A estrela sobe, a estrela desce...
- espero a minha própria vinda.

(Navego pela memória
sem margens.

Alguém conta a minha história
e alguém mata os personagens.)


Cecília Meireles

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Me encontro



 Em nenhum dos lados,
nem sob, nem sobre,
mas entre.

No mínimo imaginado
e em cada folículo
dos teus pêlos.

Nos meridianos dos cabelos,
no Equador do teu pescoço,
nos sulcos digitais das mãos e dedos,
na derme e epiderme do teu dorso
eu me encontro.

Eu me encontro em cada gota exsudada.
No teu sangue,
nas tuas vísceras,
nas tuas tripas,
na tua baba.

Em cada gesto contorcido do teu gozo,
onde te emprenho
e, fecundando-te de mim,
me encontro assim
e não mais me tenho.

Esporo de mim mesmo no teu ventre germinado,
absorvendo-te o cálcio,
carbono do teu carbono,
no líquido amniótico naufragado.

Ora pai, ora rebento,
osmoso-me de ti, me desplacento
e qual fêmea parida,
vou lambendo-te por cria
e a própria cria sendo.

Em cada som do teu espectro
e nas cores dos teus gritos e silêncios.

Na lágrima de todos os motivos
e em todos os motivos de tua vestimenta
eu me encontro.

Na tua saia,
no teu seio,
no teu cio.

E quando grito ou silencio inda me encontro
aos escombros, por inteiro,
janeiro após janeiro,
no abraço onde seguro o teu ombro
com meu queixo,
me encontro e não te deixo.

Na fala altissonante dos papiros,
em que deixei meus versos mais sagrados,
embalados
na paz do cantochão dos teus suspiros.

em ti todo me encontro.


Antoniel Campos

Autopsicografia

by Elena Dudina

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.



Fernando Pessoa