sábado, 26 de novembro de 2022



 “ainda dá tempo pra tudo, basta a gente querer”

Ainda dá tempo pra tudo.

Pode o céu estar fechado neste instante, mas uma hora abre, não falha. Pouco importa sua idade: você está vivo. Então ainda dá tempo para você reatar, dá tempo para você terminar uma relação ruim e começar outra, dá tempo de pedir perdão ou de colocar uma pedra sobre o assunto que incomoda, dá tempo de ter um relacionamento mais leve e prazeroso, e indo além das questões amorosas: dá tempo de conhecer a Ásia, de escrever suas memórias, de mergulhar no mar à noite, de aprender a cozinhar, de falar italiano, de fazer diferença, de começar uma coleção. Se me permite uma sugestão: colecione inúmeras ”primeiras vezes”. Todas as primeiras vezes que você tem evitado porque não simpatiza com mudanças.

Aqui entra a segunda parte da frase: basta a gente querer.

É a parte mais difícil: querer. Porque querer dá trabalho. Querer convoca à ação. Te arranca debaixo das cobertas. Querer pressupõe suor, planejamento, esforço, risco. O querer te cobra, te aponta o dedo, e aí, criatura? Quis tanto e não batalhou? Querer te chama para o combate. E lá vai você.

Queira. Não se contente com o que já tem. Ou com o que nunca teve. Queira mais, queira melhor, queira o impossível, queira sem garantia de ser bem sucedido, simplesmente queira tanto, mas tanto, a ponto de emitir sinais – alguém há de captá-los.

Recado para os cansados: ainda dá tempo. Para os desiludidos: ainda dá tempo. Para os frustrados: ainda dá tempo. Para os desistentes: tente um pouco mais. Você respira? Então ainda dá.

Martha Medeiros



 já matei alguns sentimentos

mas foi em legítima defesa


Zack Magiezi


Às vezes não basta

Em noites como essa

Os barulhos da cidade incomodam

É sábado

Algo borbulha dentro de você

Como se a vida e as funções biológicas

Estivessem lhe cobrando movimento

Uma vida plena

Yoga ou sei lá o que

Melhor procurar o conselho da galera que ensina a gente a viver

Nada basta

Vejo dancinhas, vejo adultos dublando vozes de crianças

O foda é saber que boa parte dessa galera também é triste em uma noite como essa

Todos somos

Há noites que sabem bater pesado

Aquilo ainda está em você

O sentimento de vazio e autoengano

E você só pensa em que não pensa mais em ti

Sente aquela vontade de atravessar uma maldita tela

E dizer o que deveria ser dito

Mas você ia ficar mais fodido porque veria que seu esforço não deu em nada

Às vezes você só quer alguém que realmente aprecie a sua companhia

É como se elas nos devolvessem para o nosso corpo

Saca

Sentar em uma mesa de bar, falar da vida

Mas algumas vezes estamos em um não lugar, um limbo

E vemos as pessoas que escolhemos para sempre

Amores, amigos, afetos

Vivendo a vida, seguindo em frente e sem você

Hoje conversando com um amigo eu disse

O bom de envelhecer é que você aprende a ver quem são as pessoas que estão realmente com você até o fim

Pena que ainda existe afeto pelas pessoas que decidiram ir

Não passamos mais nem pelo pensamento ou lembrança delas

Mas sobrevivemos

Mesmo amputando pessoas, dores fantasmas

Essa é uma verdade

Em noites como essa

Mesmo se você estiver em uma festa cercado de gente

Ou no bar mais instagramável

Nos apps buscando um match

Na Timeline

Ou no quarto olhando pela janela

Tentando tirar esse vazio

Você chega a uma conclusão censurável

Às vezes o amor-próprio não basta

Ninguém gosta de admitir isso

Às vezes você queria que uns olhos atentos olhassem para você

Mas só há uma cidade com um silêncio insuportavelmente barulhento.


Zack Magiezi

sexta-feira, 25 de novembro de 2022


Os tristes dizem que os ventos gemem; Os alegres acham que cantam.

Zalkind Piatigorsky , O caminhante

Um contributo à estatística


De cada cem indivíduos


os que sabem tudo melhor

— cinquenta e dois;


inseguros de cada passo

— quase todo o resto;


prontos para ajudar

desde que não demore muito

— até quarenta e nove;


sempre bons,

porque não sabem ser de outro jeito

— quatro, bem, talvez cinco;


dispostos a admirar sem inveja

— dezoito;


vivendo em constante medo

de alguém ou de algo

— setenta e sete;


com aptidão para a felicidade

— vinte e poucos no máximo;


inofensivos individualmente,

ferozes na multidão

— por certo mais que a metade;


cruéis

quando as circunstâncias exigem

— melhor não saber

nem por aproximação;


gatos escaldados

— não muitos mais

do que os não escaldados;


os que não levam nada da vida além de coisas

— quarenta,

embora eu quisesse estar enganada;


encolhidos, doloridos

e sem lanterna na escuridão

— oitenta e três,

mais cedo ou mais tarde;


dignos de compaixão

— noventa e nove;


mortais

— cem de cem.

Número que até aqui segue inalterado.


Wislawa Szymborska

terça-feira, 22 de novembro de 2022

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

VIAGEM NO TEMPO




Percorro a casa. Os claros

espaços dos antepassados.


As vigas. Os caibros. As telhas.

As vértebras das teias


de aranha. Por aqui

as serpentes dos pântanos


deixaram fragmentos

de astúcia e morfina.


Vestígios de borboletas

mortas vivem nas gavetas.


Dos ponteiros do relógio

pingam as gotas das horas.


Por todos os cantos

da casa a memória sangra.


Francisco Carvalho

 



Não busques a paixão.

Ela, que não sabes onde está,

te encontrará


Casimiro de Brito

 


A crítica é um contrassenso: é preciso ler, não para compreender outrem, mas para compreender a si mesmo.

Emil Cioran (In: "Confissões e Anátemas")

 



Secreto como um seixo, e oferecido

Com a branda ternura que o envolve.

É este o corpo de luz anunciada .

Quantos anos viveste, em sombra ausente,

Geraram longamente a hora, o gesto

Que da noite do seixo, alma da pedra

Lança o grito solar como um protesto 


José Saramago, Provavelmente alegria



 The home is the center of life. It is a refuge from the grind of work, the pressure of school, and the menace of the streets. We say that at home, we can “be ourselves.” Everywhere else, we are someone else. At home, we remove our masks.

The home is the wellspring of personhood. It is where our identity takes root and blossoms, where as children, we imagine, play, and question, and as adolescents, we retreat and try. As we grow older, we hope to settle into a place to raise a family or pursue work. When we try to understand ourselves, we often begin by considering the kind of home in which we were raised. 


~Matthew Desmond (Book: Evicted) 

VUELTA


ah, esse tempo e essa distância.

tu a quantos passos dos meus dedos,

do meu alcance,

dos meus segredos e da minha sanha.

tu que me tens fácil

e me ganhas em palavras comezinhas,

amiúde em tua voz e nela envoltas

que nem percebo-as minhas.

traídas no teu timbre

e de mim subtraídas,

o teu chamado eu ouço

no teu chamado eu fico.

 

e assim o ambiente tu preparas,

trazendo, a cada instante,

somente o que a ele é necessário;

já eu, pelo contrário,

ou trago tudo ou nada trago:

ou te como de beijos

ou te devoro de ausências.

 

mas sabes o meu preço:

declinas o teu colo,

solfejas um bolero,

e dizes o que eu quero

na espera que ofereço

(e mais esperaria,

 que esse tempo não se conta),

e tu, num faz-de-conta,

nos lábios que a custo movimentas,

lançando-me palavras

castas e sedentas,

certeiras e fugidias,

com as quais, sabes, me adias

e com elas me demoro

porque tanto me inebria.

 

mas, é pouco. pensas.

 

não sei como,

mas, aos poucos,

lentamente,

todo o ambiente olorizas.

um cheiro não guardado nos perfumes

e às flores, certamente, ocultado;

e eu, embriagado,

sabendo-te culpada da fragrância,

mais me aproximo

e inútil escondo a ânsia

de vestir-me do teu corpo,

de beber a tua pele,

cada pêlo e cada poro,

cada curva, toda parte,

eu inteiro, tu completa.

 

e como não convém dizer segredos

a olhos que não sejam teus e meus,

deixemos que adivinhem o percurso

da vuelta e reencontro

do meu toque, meu olhar,

no presente derradeiro que me deste:

tu inteira,

epicentro desse cheiro.

 

 

Antoniel Campos



Todo lo que de vos quisiera

es tan poco en el fondo

porque en el fondo es todo,


como un perro que pasa, una colina,

esas cosas de nada, cotidianas,

espiga y cabellera y dos terrones,

el olor de tu cuerpo,

lo que decís de cualquier cosa,

conmigo o contra mía,


todo eso es tan poco,

yo lo quiero de vos porque te quiero.


Que mires más allá de mí,

que me ames con violenta prescindencia

del mañana, que el grito

de tu entrega se estrelle

en la cara de un jefe de oficina,


y que el placer que juntos inventamos

sea otro signo de la libertad.


Julio Cortázar 

A rota



O mundo pulveriza-nos sem revelar

Seus intuitos secretos.

A vida é contemplá-los nos seus gestos mais sutis

E sentir nas águas profundas

O que de cada destino foi escrito

Nos penhascos dos mares agitados.

No vácuo do espírito

Anda a forma sem direção

Por caminhos já pisados

E inseguros são os passos repetidos.

Nem sempre o olhar mais aberto

À procura da estrada de nós mesmos

Torna o espírito mais desperto.

Vivemos nos penhascos dos mares agitados.


 Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.


 I just sat there burbling inarticulately into my coffee.

Sylvia Plath



Coisas, Pequenas Coisas

Fazer das coisas fracas um poema.

Uma árvore está quieta,

murcha, desprezada.

Mas se o poeta a levanta pelos cabelos

e lhe sopra os dedos,

ela volta a empertigar-se, renovada.

E tu, que não sabias o segredo,

perdes a vaidade.

Fora de ti há o mundo

e nele há tudo

que em ti não cabe.

Homem, até o barro tem poesia!

Olha as coisas com humildade.


 Fernando Namora

 


Desiguais as contas:

para cada anjo, dois demónios.

Para um só Sol, quatro Luas.

Para a tua boca, todas as vidas. 


Mia Couto



o gesto é a voz do amor.

 zack magiezi

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

 


"Have you ever been in love? Horrible isn’t it? It makes you so vulnerable. It opens your chest and it opens up your heart and it means that someone can get inside you and mess you up." 

— Neil Gaiman

'Mourning' by Charles Cottet


 [45]

Viver uma vida desapaixonada e culta, ao relento das ideias, lendo, sonhando, e pensando em escrever, uma vida suficientemente lenta para estar sempre à beira do tédio, bastante meditada para se nunca encontrar nele. Viver essa vida longe das emoções e dos pensamentos, só no pensamento das emoções e na emoção dos pensamentos. Estagnar ao sol, douradamente, como um lago obscuro rodeado de flores. Ter, na sombra, aquela fidalguia da individualidade que consiste em não insistir para nada com a vida. Ser no volteio dos mundos como uma poeira de flores, que um vento incógnito ergue pelo ar da tarde, e o torpor do anoitecer deixa baixar no lugar de acaso, indistinta entre coisas maiores. Ser isto com um conhecimento seguro, nem alegre nem triste, reconhecido ao sol do seu brilho e às estrelas do seu afastamento. Não ser mais, não ter mais, não querer mais… A música do faminto, a canção do cego, a relíquia do viandante incógnito, as passadas no deserto do camelo vazio sem destino…

Bernardo Soares, O livro do Desassossego

 Irjan Moussin

Quando nosso corpo inteiro está saudável e intacto, exceto por uma parte insignificante ferida ou dolorida, a consciência cessa de perceber a saúde do conjunto, e a atenção se dirige constantemente à dor da parte lesionada, e todo o conforto e prazer da vida desvanecem. Do mesmo modo, quando todos os nossos negócios andam bem, a não ser um só que vá mal, esse nos persegue constantemente o cérebro, ainda que seja de mínima importância. Pensamos sobre ele constantemente e damos pouca atenção às demais coisas mais importantes que andam a nosso gosto. Em ambos os casos, a vontade está lesionada, no primeiro, tal como se objetiva no organismo, no segundo, tal como se objetiva nos esforços e aspirações do homem. Vemos em ambos os casos que a satisfação da vontade sempre se produz negativamente e que, em consequência, não é sentida diretamente de modo algum; no máximo, chegamos a ter consciência disso através da reflexão. Por outro lado, o que obstrui a vontade é algo positivo e, portanto, sua presença faz-se sentir. Todo prazer consiste apenas em suprimir essa obstrução, em libertar-se dela e, por conseguinte, não pode ser senão de curta duração.

 Aforismos para a Sabedoria de Vida 

Arthur Schopenhauer

domingo, 6 de novembro de 2022

bruno di maia

 

Há braços que são lares.

Zack Magiezi





 


A moralidade não é outra coisa (e, portanto, não mais!) do que obediência a costumes, não importa quais sejam; mas costumes são a maneira tradicional de agir e de avaliar. Em coisas nas quais nenhuma tradição manda não existe moralidade; e quanto menos a vida é determinada pela tradição, tanto menor é o círculo da moral”

Friedrich Nietzsche, Aurora, §9

 


Depois de amada, estendeu seu corpo ainda tremendo. Quase chorava de tanto que expulsou. Quase chorava de tanto que se recebeu de volta. Não me aproximei. Não podia interferir em sua solidão. Dizer o quê? Seus músculos ainda estalavam, o sangue ainda aquecia  os ouvidos. Dizer o quê?  Qualquer palavra é intrusa. A boca eram seus cabelos boiando. Dizer o quê?  O homem deveria distanciar depois que a mulher goza. Não tomar para si a glória ou o prazer. Não reivindicar autoria. Não sujar a parede com a sua letra. Não cobrar o que não nasceu dele. Deveria ter pudor de pálpebras que se fecham para imaginar.

É ela e seu corpo redimidos.

É ela e seu corpo abraçados.

É ela e seu corpo alinhados como joelhos.

É ela devolvida a si, devolvida às alegrias proibidas, as alegrias quando se tocava em segredo.

É ela e os medos superados, a culpa liquidada, os seios observando as janelas.

A rua da cintura, e a chuva, para não andar, para ficar debaixo das marquises esperando passar.

O homem deveria sentar numa cadeira ao longe, como se fosse um milagre e lhe faltasse fé para  reconstituir os detalhes.

O homem não deveria estragar com a sua presença aquele momento, mas silenciar, esquecer os  comentários, jejuar os dentes, reprimir o ímpeto.

Nenhuma brincadeira, nenhuma certeza, nenhuma crença.

É difícil desaparecer, sei que é difícil.

Homem, não lhe resta outra opção!

Desapareça estando ali. Nenhum movimento brusco, não procurar água, a sede, o casaco.

Desapareça aos poucos para que ela, enfim, se veja dançando para Deus.


Fabrício Carpinejar – Do livro –“ O amor esquece de começar”

 


Encostas-te ao meu corpo. E ardo.

Casimiro de Brito

 


Original é o poeta

que se origina a si mesmo

que numa sílaba é seta

noutro pasmo ou cataclismo

o que se atira ao poema

como se fosse um abismo

e faz um filho ás palavras

na cama do romantismo.

Original é o poeta

capaz de escrever um sismo.


Original é o poeta

de origem clara e comum

que sendo de toda a parte

não é de lugar algum.

O que gera a própria arte

na força de ser só um

por todos a quem a sorte faz

devorar um jejum.

Original é o poeta

que de todos for só um.


Original é o poeta

expulso do paraíso

por saber compreender

o que é o choro e o riso;

aquele que desce á rua

bebe copos quebra nozes

e ferra em quem tem juízo

versos brancos e ferozes.

Original é o poeta

que é gato de sete vozes.


Original é o poeta

que chega ao despudor

de escrever todos os dias

como se fizesse amor.

Esse que despe a poesia

como se fosse uma mulher

e nela emprenha a alegria

de ser um homem qualquer.


Ary dos Santos

Amores proibidos



Onde está quem amamos quando amamos

outro corpo de fogo em movimento?

Pra que abismo corremos, pra que enganos,

quando as promessas são poeira ao vento?


De que matéria alheia mal tentamos

fugir quando a verdade mora dentro

de alguém a cujo céu nos entregamos

numa noite de sonho e de tormento?


Ainda somos humanos se traímos

por instinto um amor de tantos anos

e só àquele instante obedecemos?


Ainda somos humanos? Ou seremos

a febre que há no sangue quando vimos

de súbito morrer num corpo e vamos

em busca do inferno que merecemos?


Talvez por um momento então sejamos

sonâmbulos fantasmas do que fomos

reflectidos num espelho que não vemos


Ou talvez nesse corpo descubramos

a memória da alma que perdemos

pra sempre no momento em que transpomos

a fronteira dos gestos quotidianos

e ao sabor de um desejo destruímos

todas as intenções, todos os planos,

em nome dos prazeres mais supremos

na noite em que deixamos de ser donos

do nosso próprio corpo e abandonamos

angústias e remorsos e partimos

em busca da manhã que não sabemos


Onde está quem amamos quando somos

mais do que humanos? Mais? Ou muito menos?


Fernando Pinto do Amaral 

Realização da vida

 

Alessandro-Granata


Não me peças que cante,

pois ando longe,

pois ando agora

muito esquecida.

Vou mirando no bosque

o arroio claro

e a provisória

flor escondida.

E procuro minha alma

e o corpo, mesmo,

e a voz outrora

em mim sentida.

E me vejo somente

pequena sombra

sem tempo e nome,

nisto perdida,

– nisto que se buscara

pelas estrelas,

com febre e lágrimas,

e que era a vida.


Cecília Meireles: "Realização da vida"

I have no power


I have no power to change you

or explain your ways

Never believe a man can change a woman

Those men are pretenders

who think

that they created woman

from one of their ribs

Woman does not emerge from a man's rib's, not ever,

it's he who emerges from her womb

like a fish rising from depths of water

and like streams that branch away from a river

It's he who circles the sun of her eyes

and imagines he is fixed in place


I have no power to tame you

or domesticate you

or mitigate your first instincts

This task is impossible

I've tested my intelligence on you

also my dumbness

Nothing worked with you, neither guidance

nor temptation

Stay primitive as you are


I have no power to break your habits

for thirty years you have been like this

for three hundred years

a storm trapping in a bottle

a body by nature sensing the scent of a man

assaults it by nature

triumphs over it by nature


Never believe what a man says about himself

that he is the one who makes the poems

and makes the children

It is the woman who writes the poems

and the man who signs his name to them

It is the woman who bears the children

and the man who signs at the maternity hospital

that he is the father


I have no power to change your nature

my books are of no use to you

and my convictions do not convince you

nor does my fatherly council do you any good

you are the queen of anarchy, of madness, of belonging

to no one

Stay that way

You are the tree of femininity that grows in the dark

needs no sun or water

you the sea princess who has loved all men

and loved no one

slept with all men ... and slept with no one

you are the Bedouin woman who went with all the tribes

and returned a virgin

Stay that way.


Nizar Qabbani,



Eu já te amava pelas fotografias.

Pelo teu ar triste e decadente dos vencidos,

Pelo teu olhar vago e incerto

Como o dos que não pararam no riso e na alegria.

Te amava por todos os teus complexos de derrota,

Pelo teu jeito contrastando com a glória dos atletas

E até pela indecisão dos teus gestos sem pressa.

Te falei um dia fora da fotografia

Te amei com a mesma ternura

Que há num carinho rodeado de silêncio

E não sentiste quantas vezes

Minhas mãos usaram meu pensamento,

Afagando teus cabelos num êxtase imenso.

E assim te amo, vendo em tua forma e teu olhar

Toda uma existência trabalhada pela força e pela angústia

Que a verdade da vida sempre pede

E que interminavelmente tens que dar!...


 Adalgisa Nery

Se alguém estiver chorando que seja para lavar



Se alguém estiver chorando ou não

É como aquela chuva, é como a porta se abrindo

É como a dor da virgem, do parto é a luta da nuvem

O sol alucinado penetra a nuvem que chora

O sol alucinado penetra a nuvem que brilha

Se alguém estiver chorando ou não

Que seja por motivo inspirado ou seja por brilho

Que seja pra lavar e que seja simples, preciso

Como a arquitetura da gaivota que voa

Supremo compromisso de voar leve, à toa


Oswaldo Montenegro

 


As pessoas nunca entenderam a razão dela escrever tanto. Seus pais dizem que é moça estudiosa. Seus colegas, que é perfeccionista. Os amigos, que trama uma revolução. Ontem, ela estava triste e não escreveu. E, por isso, o sol nem se levantou e o dia não existiu. Descobri, então, por que escreve: para nos tirar da escuridão.

Leonardo Sakamoto

 


O labirinto como o amor, como o amor para algo ou para alguém, o amor para o labirinto. O amor que inicia sua longa viagem desde qualquer ponto para nenhum lugar; o amor que é o vaivém, a tempestade, o tremor água embaixo, o inoportuno das pontes , o regresso para nós mesmos, o impossível juramento do esquecimento. O amor e a sua morte: por isso estamos presos e as dimensões de nossos cárceres – como escreve Gasparini – “são equivalentes à desmesura interior que nos encandeia.”

Existem tantos labirintos que é impossível supor a exemplificação contrária: pintores, poetas, músicos, filósofos, amantes, errantes, piedosos, deuses , arquitetos. Todas as vidas se movem entre labirintos: o labirinto das almas que mal se reconfortam com suas indecisões e sofrem; o labirinto da língua que escreve, e escava e morde e não conclui jamais o poema; o labirinto das paixões que se desencandeiam para o vazio; o labirinto da voz que não acaba por expressar-se; o labirinto da memória que lembra e esquece ao mesmo tempo.

Algumas coisas começam pela palavra e continuam o caminho da sensação, da percepção, do conhecimento. Outras coisas nunca são palavras e mesmo assim exibem a dupla forma de seu desassossego e de seu encantamento. O labirinto é tudo, porque é detenção e é movimento: trata-se de olhar-nos nos olhos; não de conhecer-nos; trata-se de dar-nos palavras, não de negociar o espanto; trata-se de cruzar os olhos, não de cruzar os braços.

As linhas que nos sulcam - pelo dever, pelo cumprimento, pela necessidade,  pela vida que passou – nos deixam rugas. Mas não só. Também nos oferecem a possibilidade da narrativa, do relato, de contar o que nos acontece. (...)

Entrar ou sair do labirinto não é a questão. Trata-se, isso sim, de sustentar – sem a grandiloquência dos heróis, nem a forçada apatia das vítimas – esse estranho relato de uma vida que permanece no meio do labirinto. Um labirinto que é , então, a forma disforme que assume nossa vida e nossa língua para poder ser narrada.


Desobedecer a linguagem: Educar

Por Carlos Skliar

Cuidar

  

Leslie Allen 



Vontade de cuidar

juntar as mãos e os dias

satisfazer-se em estar

 

a permanência ser tudo

vontade de ficar mudo

e só vontade de ficar

 

cuidar de você. cuidar.

 

só nós dois e o que vier

juntar a voz no travesseiro

dizer: sou seu por inteiro

enquanto você quiser.

 

enquanto você quiser.

 

enquanto você quiser.

  

Antoniel Campos

 


A razão pela qual ninguém vê seus defeitos, e sobretudo um escritor, é esta: quando escrevemos, mesmo sobre coisas insípidas, encontramo-nos forçosamente numa excitação que tomamos facilmente como inspiração; mesmo para redigir um cartão-postal é necessário um mínimo de "calor", em todo o caso uma ausência de indiferença, uma pitada de ritmo. Como nada se faz a frio, assim que executamos qualquer coisa, pensamos que temos... talento. Ninguém se persuade do nada que faz. Toda forma de "criação" exige uma participação do nosso ser. E não podemos conceber que o que emana de nós não valha absolutamente nada.


Emil Cioran (In: “Cadernos: 1957–1972”)

Anatomia do nada

 

Rob Gonsalves 

O nada é branco, suave, agudo?

começo ou fim de tudo?

o nada é alfa ou ômega?

punhal amolado ou faca cega?

o nada é macio ou áspero?

incolor ou escuro?

de que se faz o nada?

de que se urde a sua teia?

dos fios do novelo do absurdo?

que coisa é o nada?

o nada é coisa sem pluma?

tudo que se desintegra

no vazio? ou a cisma

do cisne que nada no rio?

o nada flui do nada

ou jorra do avesso de tudo?

o nada é matéria ao

quadrado da velocidade

da luz? energia que congrega

os fragmentos do cosmos?

pólen do salto do puma

o nada é eterno ou

não passa de coisa alguma?


Francisco Carvalho

Tomasz Rut


te tranca

barra a passagem. Espanta

a última solidão que te ameaça

- que o ritual aconteça -

(ah se eu fosse se eu pudesse)

que este tal amor se faça.

Vem pra cá cavalo doido

que eu vou te fazer a festa

que eu vou conhecer tua raça.

Cigano. Mestiço.

Teu pulo arisco

e o risco do teu jugo

o perigo da tua caça

eu arrisco.

Me laça que eu fico contigo

me cobre no dia da graça.


Bruna Lombardi

Abraão e Isaque

 


Deus mandou Abraão imolar seu único filho, Isaac, e oferecê-lo em holocausto a Ele sobre uma das montanhas de Moriá. E tomou Abraão a lenha do holocausto e um cutelo e levou seu filho ao lugar que Deus lhe dissera. E edificou Abraão ali um altar e amarrou Isaac e deitou-o em cima da lenha. E estendeu Abraão sua mão com o cutelo para imolar seu único filho.

Mas um anjo do Senhor lhe bradou desde os céus: “Abraão, Abraão, não estendas tua mão sobre Isaac e não lhe faças mal. Agora sei que temes a Deus, pois não lhe negaste teu único filho em holocausto.” E Abraão levantou os olhos e viu um cordeiro que Deus provera para oferecer em holocausto em lugar do seu filho, e assim fez. E o anjo do Senhor bradou que a semente de Abraão se multiplicaria como as estrelas do céu, e subiria à porta dos seus inimigos, e abençoaria todas as nações da Terra, porque Abraão obedecera à voz de Deus.

Muitos anos depois:

- Eu ainda sonho com aquele dia e acordo tremendo.

- Você era um menino...

- Vejo o cutelo na sua mão, vejo o seu rosto contorcido pela dor, vejo os seus olhos cheios de água...

- Você era um menino...

- Lembro de tudo. Lembro dos trovões.

- Era a voz do anjo me falando dos céus.

- Não ouvi a voz do anjo. Ouvi os trovões. Só você ouviu a voz do anjo.

- Meu filho...

- Eu sei. Faz muito tempo. É melhor esquecer. Mas não consigo esquecer. Sonho com aquele dia todas as noites e acordo tremendo.

- Você era um menino...

- Me lembro das nuvens escuras. De uma revoada de pássaros negros. Pássaros atônitos  chocando-se no ar. O céu parecendo recuar com o horror da cena: um pai imolando um filho!

- Um sacrifício. Um ritual necessário de sangue. A cerimônia inaugural da nossa tribo, com os favores do céu.

- Um horror.

- Uma história muito maior do que a nossa. Muito maior do que a de um filho imolado. Hoje sou o pai de nações, o patriarca do mundo, porque obedeci ao Senhor e minha semente foi abençoada.

- Você ficou com o poder, eu fiquei com os pesadelos.

- Nossa tribo foi abençoada. Da minha semente nasceu a nossa glória.

- Você ficou com a glória, eu fiquei com as marcas das cordas.

- Você viu o meu rosto contorcido de dor, filho. Viu os meus olhos cheios de água. Viu que eu estava sofrendo por ter que matá-lo.

- O fio do cutelo encostou na minha garganta.

- Mas eu não o matei!

- Porque Deus não deixou. Porque Deus mudou de ideia.

- Meu filho...

- Eu sei. Faz muito tempo. É melhor esquecer. Vou conseguir sobreviver às minhas memórias e aos meus pesadelos. Como você sobreviveu ao que sabe.

- O que é que eu sei?

- Que deve tudo o que tem, seu poder e sua glória, a um Deus volúvel. A um Deus incerto do que faz. A um Deus que volta atrás. A um Deus inconfiável.

- Ele estava me testando.

- Então é pior. Um Deus frívolo e cruel.

- Você era apenas um menino...

- Me lembro das nuvens escuras e dos pássaros atônitos  E do céu recuando diante daquela abominação: um pai matando um filho. E me lembro dos trovões.

- Era o anjo do Senhor falando comigo.

- Eram trovões.

- Obedeci à voz dos céus porque temo a Deus.

- Mais razão para temê-lo tenho eu, pai, que senti o fio do cutelo na garganta.

- Na origem de todos os povos há uma cerimônia de sangue.

- Então na origem de todos os povos há uma abominação.

- Esta conversa se repete, filho. Por quanto tempo ainda a teremos?

- Por todos os tempos, pai.


Luis Fernando Veríssimo. Diálogos impossíveis. 

 


O senhor definiu muito bem um fator incontestavelmente moral na natureza da música; a

saber, que ela mede o curso do tempo de uma forma especial e cheia de vida, e assim lhe

empresta vigilância, espírito e preciosidade. A música desperta o tempo; desperta a nós, para

tirarmos do tempo um gozo mais refinado; desperta... e portanto é moral. A arte é moral na

medida em que desperta. Mas que sucede quando ela faz o contrário? Quando entorpece,

adormenta, estorva a atividade e o progresso? Também disso a música é capaz; sabe

perfeitamente agir como ópio. Uma influência diabólica, meus senhores! O ópio é uma obra do

Diabo, porque causa apatia, estagnação, passividade, inatividade servil... Há na música um

elemento perigoso, senhores. Insisto no fato da sua natureza ambígua. Não exagero ao declarar

que ela é politicamente suspeita. 


Thomas Mann, A montanha Mágica

sábado, 5 de novembro de 2022

O corpo utópico




Basta eu acordar, que não posso escapar deste lugar que Proust, docemente, ansiosamente, ocupa uma vez mais em cada despertar. Não que me prenda ao lugar – porque depois de tudo eu posso não apenas mexer, andar por aí, mas posso movimentá-lo, removê-lo, mudá-lo de lugar –, mas somente por isso: não posso me deslocar sem ele. Não posso deixá-lo onde está para ir a outro lugar.

Posso ir até o fim do mundo, posso me esconder, de manhã, debaixo das cobertas, encolher o máximo possível, posso deixar-me queimar ao sol na praia, mas o corpo sempre estará onde eu estou. Ele está aqui, irreparavelmente, nunca em outro lugar. Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que nunca está sob outro céu, é o lugar absoluto, o pequeno fragmento de espaço com o qual, em sentido estrito, eu me corporizo.

Meu corpo, utopia desapiedada. E se, por ventura, eu vivesse com ele em uma espécie de familiaridade gastada, como com uma sombra, como com essas coisas de todos os dias que finalmente deixei de ver e que a vida passou para segundo plano, como essas chaminés, esses telhados que se amontoam cada tarde diante da minha janela? Mas, todas as manhãs, a mesma ferida; sob os meus olhos se desenha a inevitável imagem que o espelho impõe: rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, careca, nada lindo, na verdade. Meu corpo é uma jaula desagradável, na qual terei que me mostrar e passear. É através de suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. Meu corpo é o lugar irremediável a que estou condenado.

Depois de tudo, creio que é contra ele e como que para apagá-lo, que nasceram todas as utopias. A que se devem o prestígio da utopia, da beleza, da maravilha da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas é um lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que será belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal em sua potência, infinito em sua duração, desligado, invisível, protegido, sempre transfigurado; e é bem possível que a utopia primeira, aquela que é a mais inextirpável no coração dos homens, seja precisamente a utopia de um corpo incorpóreo. O país das fadas, dos duendes, dos gênios, dos magos, e bem, é o país onde os corpos se transportam à  velocidade da luz, onde as feridas se curam imediatamente, onde caímos de uma montanha sem nos machucar, onde se é visível quando se quer e invisível quando se deseja. Se há um país mágico é realmente para que nele eu seja um príncipe encantado e todos os lindos peraltas se tornem peludos e feios como ursos.

Mas há ainda outra utopia dedicada a desfazer os corpos. Essa utopia é o país dos mortos, são as grandes cidades utópicas deixadas pela civilização egípcia.

Mas, o que são as múmias? São a utopia do corpo negado e transfigurado. As múmias são o grande corpo utópico que persiste através do tempo. Há as pinturas e esculturas dos túmulos; as estátuas, que, desde a Idade Média, prolongam uma juventude que não terá fim. Atualmente, existem esses simples cubos de mármore, corpos geometrizados pela pedra, figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemitérios. E nessa cidade de utopia dos mortos, eis aqui que meu corpo se torna sólido como uma coisa, eterno como um deus.

Mas, talvez, a mais obstinada, a mais poderosa dessas utopias através das quais apagamos a triste topologia do corpo nos seja administrada pelo grande mito da alma, fornecido desde o fundo da história ocidental. A alma funciona maravilhosamente dentro do meu corpo. Nele se aloja, evidentemente, mas sabe escapar dele: escapa para ver as coisas, através das janelas dos meus olhos, escapa para sonhar quando durmo, para sobreviver quando morro. A minha alma é bela, pura, branca. E se meu corpo barroso – em todo o caso não muito limpo – vem a se sujar, é certo que haverá uma virtude, um poder, mil gestos sagrados que a restabelecerão em sua pureza primeira. A minha alma durará muito tempo, e mais que muito tempo, quando o meu velho corpo apodrecer. Viva a minha alma! É o meu corpo luminoso, purificado, virtuoso, ágil, móvel, tíbio, fresco; é o meu corpo liso, castrado, arredondado como uma bolha de sabão.

E eis que o meu corpo, pela virtude de todas essas utopias, desapareceu. Desapareceu como a chama de uma vela que alguém sopra. A alma, as tumbas, os gênios e as fadas se apropriaram pela força dele, o fizeram desaparecer em  um piscar de olhos, sopraram sobre seu peso, sobre sua feiura, e me restituíram um corpo fulgurante e perpétuo.

Mas meu corpo, para dizer a verdade, não se deixa submeter com tanta facilidade. Depois de tudo, ele mesmo tem seus recursos próprios e fantásticos.

Também ele possui lugares sem-lugar e lugares mais profundos, mais obstinados ainda que a alma, que a tumba, que o encanto dos magos. Tem suas bodegas e seus celeiros, seus lugares obscuros e praias luminosas. Minha cabeça, por exemplo, é uma estranha caverna aberta ao mundo exterior através de duas janelas, de duas aberturas – estou seguro disso, posto que as vejo no espelho. E, além disso, posso fechar um e outro separadamente. E, no entanto, não há mais que uma só dessas aberturas, porque diante de mim não vejo mais que uma única paisagem, contínua, sem tabiques nem cortes. E nessa cabeça, como acontecem as coisas? E, se as coisas entram na minha cabeça – e disso estou muito seguro, de que as coisas entram na minha cabeça quando olho, porque o sol, quando é muito forte e me deslumbra, vai a desgarrar até o fundo do meu cérebro –, e, no entanto, essas coisas ficam fora dela, posto que as vejo diante de mim e, para alcançá-las, devo me adiantar.

Corpo incompreensível, penetrável e opaco, aberto e fechado: corpo utópico.

Corpo absolutamente visível – porque sei muito bem o que é ser visto por alguém de alto a baixo, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreendido quando menos espero, sei o que é estar nu. Entretanto, esse mesmo corpo é também tomado por uma certa invisibilidade da qual jamais posso separá-lo. A minha nuca, por exemplo, posso tocá-la, mas jamais vê-la; as costas, que posso ver apenas no espelho; e o que é esse ombro, cujos movimentos e posições conheço com precisão, mas que jamais poderei ver sem retorcer-me espantosamente. O corpo, fantasma que não aparece senão na miragem de um espelho e, mesmo assim, de maneira fragmentada. Necessito realmente dos gênios e das fadas, e da morte e da alma, para ser ao mesmo tempo indissociavelmente visível e invisível? E, além disso, esse corpo é ligeiro, transparente, imponderável; não é uma coisa: anda, mexe, vive, deseja, se deixa atravessar sem resistências por todas as minhas intenções. Sim. Mas até o dia  em que fico doente, sinto dor de estômago e febre. Até o dia em que estala no fundo da minha boca a dor de dentes. Então, então deixo de ser ligeiro, imponderável, etc.: me torno coisa, arquitetura fantástica e arruinada.

Não, realmente, não se necessita de magia, não se necessita de uma alma nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa. Para que eu seja utopia, basta que seja um corpo. Todas essas utopias pelas quais esquivava o meu corpo, simplesmente tinham seu modelo e seu ponto primeiro de aplicação, tinham seu lugar de origem em meu corpo. Estava muito equivocado há pouco ao dizer que as utopias estavam voltadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo: elas nasceram do próprio corpo e depois, talvez, se voltarão contra ele.

Uma coisa, entretanto, é certa: o corpo humano é o ator principal de todas as utopias. Depois de tudo, uma das utopias mais velhas que os homens contaram a si mesmos, não é o sonho de corpos imensos, sem medidas, que devorariam o espaço e dominariam o mundo? É a velha utopia dos gigantes, que se encontra no coração de tantas lendas, na Europa, na África, na Oceania, na Ásia. Essa velha lenda que durante tanto tempo alimentou a imaginação ocidental, de Prometeu a Gulliver.

O corpo é também um grande ator utópico quando se pensa nas máscaras, na maquiagem e na tatuagem. Usar máscaras, maquiar-se, tatuar-se, não é exatamente, como se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível. Tatuar-se, maquiar-se, usar máscaras, é, sem dúvida, algo muito diferente; é fazer entrar o corpo em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. A máscara, o sinal tatuado, o enfeite colocado no corpo é toda uma linguagem: uma linguagem enigmática, cifrada, secreta, sagrada, que se deposita sobre esse mesmo corpo, chamando sobre ele a força de um deus, o poder surdo do sagrado ou a vivacidade do desejo. A máscara, a tatuagem, o enfeite coloca o corpo em outro espaço, o fazem entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem desse corpo um fragmento de um espaço imaginário, que entra em comunicação com o universo das divindades ou com o universo do outro. Alguém  será possuído pelos deuses ou pela pessoa que acaba de seduzir. Em todo o caso, a máscara, a tatuagem, o enfeite são operações pelas quais o corpo é arrancado do seu espaço próprio e projetado a outro espaço.

Escutem, por exemplo, este conto japonês e a maneira como um tatuador faz passar a um universo que não é o nosso o corpo da jovem que ele deseja: “O sol lançava seus raios sobre o rio e incendiava o quarto das sete esteiras. Seus raios refletidos sobre a superfície da água formavam um desenho de ondas douradas sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem em sono profundo.

Seikichi, depois de ter corrido os tabiques, tomou entre as suas mãos suas ferramentas de tatuagem. Durante alguns instantes permaneceu imerso numa espécie de êxtase. Precisamente agora saboreava plenamente a estranha beleza da jovem. Parecia-lhe que podia permanecer sentado diante desse rosto imóvel durante dezenas ou centenas de anos sem jamais experimentar nem cansaço nem aborrecimento. Assim como o povo de Mênfis embelezava outrora a terra magnífica do Egito de pirâmides e de esfinges, assim Seikichi, com todo o seu amor, quis embelezar com seu desenho a pele fresca da jovem. Aplicoulhe de imediato a ponta de seus pincéis de cor segurando-os entre o polegar, e os dedos anular e pequeno da mão esquerda, e à medida que as linhas eram desenhadas, picava-as com sua agulha que segurava na mão direita”.

E quando se pensa que as vestimentas sagradas ou profanas, religiosas ou civis fazem o indivíduo entrar no espaço fechado do religioso ou na rede invisível da sociedade, então se vê que tudo quanto toca o corpo – desenhos, cores, diademas, tiaras, vestimentas, uniformes – faz alcançar seu pleno desenvolvimento, sob uma forma sensível e abigarrada, as utopias seladas no corpo.

Mas, se fosse preciso descer mais uma vez abaixo das vestimentas, se fosse preciso alcançar a própria carne, e então se veria que em alguns casos, em seu ponto limite, é o próprio corpo que volta contra si seu poder utópico e faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do contra-mundo, no interior mesmo do espaço que lhe está reservado.

Então, o corpo, em sua materialidade, em sua carne, seria como o produto de suas próprias fantasias. Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo? E também os drogados, e os possuídos; os possuídos, cujo corpo se torna um inferno; os estigmatizados, cujo corpo se torna sofrimento, redenção e salvação, paraíso sangrante.

Bobagem dizer, portanto, como fiz no início, que meu corpo nunca está em outro lugar, quer era um aqui irremediável e que se opunha a toda utopia. 

Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar. Está ligado a todos os outros lugares do mundo, e, para dizer a verdade, está num outro lugar que é o além do mundo. É em referência ao corpo que as coisas estão dispostas, é em relação ao corpo que existe uma esquerda e uma direita, um atrás e um na frente, um próximo e um distante. O corpo está no centro do mundo, ali onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo não está em nenhuma parte: o coração do mundo é esse pequeno núcleo utópico a partir do qual sonho, falo, me expresso, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino. O meu corpo é como a Cidade de Deus, não tem lugar, mas é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos.

Depois de tudo, as crianças demoram muito tempo para descobrir que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, não têm mais que um corpo disperso, membros, cavidades, orifícios, e tudo isto não se organiza, tudo isto não se corporiza literalmente, senão na imagem do espelho. De uma maneira mais estranha ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por mais paradoxal que possa parecer, diante de Tróia, sob os muros defendidos por Heitor e seus companheiros, não havia corpo, havia braços levantados, havia peitos valorosos, pernas ágeis, cascos brilhantes acima das cabeças: não havia um corpo. A palavra grega que significa corpo só aparece em Homero para designar o cadáver. É esse cadáver, por conseguinte, é o cadáver e é o espelho que nos ensinam (enfim, que ensinaram os gregos e que ensinam agora as crianças) que temos um corpo, que esse corpo tem uma forma, que essa forma tem um contorno, que nesse contorno há uma espessura, um peso, numa palavra, que o corpo ocupa um lugar. O espelho e o cadáver assinalam um espaço à experiência profunda e originariamente utópica do corpo; o espelho e o cadáver fazem calar e apaziguam e fecham sobre um fecho – que agora está para nós selado – essa grande raiva utópica que deteriora e volatiliza a cada instante o nosso corpo. É graças a eles, ao espelho e ao cadáver, que o nosso corpo não é pura e simples utopia. Ora, se se pensa que a imagem do espelho está alojada para nós em um espaço inacessível, e que jamais poderemos estar ali onde estará o nosso cadáver, se pensamos que o espelho e o cadáver estão eles mesmos em um invencível outro lugar, então se descobre que só utopias podem encerrar-se sobre elas mesmas e ocultar um instante a utopia profunda e soberana de nosso corpo.

Talvez seria preciso dizer também que fazer o amor é sentir seu corpo se fechar sobre si, é finalmente existir fora de toda utopia, com toda a sua densidade, entre as mãos do outro. Sob os dedos do outro que te percorrem, todas as partes invisíveis do teu corpo se põem a existir, contra os lábios do outro os teus se tornam sensíveis, diante de seus olhos semi-abertos teu rosto adquire uma certeza, há um olhar finalmente par ver tuas pálpebras fechadas. Também o amor, assim como o espelho e como a morte, acalma a utopia do teu corpo, a cala, a acalma, a fecha como numa caixa, a fecha e a sela. É por isso que é um parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o rodeiam, se gosta tanto de fazer o amor é porque, no amor, o corpo está aqui.


Michel Foucault, O Corpo Utópico 

 


“Todas as fotos são memento mori. Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Precisamente por cortar uma fatia deste momento e congelá-lo, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo (…). A fotografia é simultaneamente uma pseudo-presença e um sinal de ausência.” 

Susan Sontag


 

Não deixes que termine o dia sem teres crescido um pouco,

sem teres sido feliz, sem teres aumentado os teus sonhos.

Não te deixes vencer pelo desalento.

Não permitas que alguém retire o direito de te expressares,

que é quase um dever.

Não abandones as ânsias de fazer da tua vida algo extraordinário.

Não deixes de acreditar que as palavras e a poesia podem mudar o mundo.

Aconteça o que acontecer a nossa essência ficará intacta.

Somos seres cheios de paixão.

A vida é deserto e oásis.

Derruba-nos, ensina-nos, converte-nos em protagonistas de nossa própria história.

Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua:

tu podes tocar uma estrofe.

Não deixes nunca de sonhar, porque os sonhos tornam o homem livre.


Walt Whitman


sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Trudy Good

Tinha no bolso esquerdo guardado uma cicatriz. Ali levava outros pormenores que havia acumulado durante a vida. Um brinco esquecido em meu travesseiro. Um apontador de amanhãs. Pequenos objetos, quase todos invisíveis a olho nu. Restos daquilo que a respiração, ao resfolegar, levantou como poeira cósmica. Pequenas anotações feitas a lápis num bloco amarelado pelo por de sol. Rascunhos do tempo. Quase todos apagados da memória. Mas os conservo assim com uma única finalidade. Ando com estas preciosas inutilidades no bolso caso um dia eu te reencontre.

 Carlos Eduardo Leal

 



Era uma vez um menino que era apaixonado pelas palavras. Certo dia ele começou a escrever a história do mundo. Era arriscado, mas mesmo assim ousou saber o que não podia: aonde o sol dormia depois do dia? Quantas nuvens cabiam no céu? Que cor tinha o ontem? Quantas folhas caem numa floresta tropical ao fim do outono? Por que os pássaros não caem do céu quando morrem? Por que o oceano no hemisfério sul não transborda para o espaço? Como o azul podia ser mais melancólico do que uma lembrança apagada? 

Por que uma baleia tinha chafariz se não era uma praça? 

E foram tantas perguntas e tantos porquês escritos em fina caligrafia, que o menino, homem se tornou e o que eram algumas páginas, se tornou uma pilha infindável de livros. Era sua Babel. Agora tinha certeza. Quanto mais escrevia, mais próximo do céu ele ficava. Já podia esticar o braço e alcançar os anéis de Saturno. 

Da última vez que soube dele, foi por um incidente intergaláctico. 

As palavras eram inventadas numa novilíngua.

Os livros já não tinham mais numeração. Não havia início, mas inícios. E, claro, fim era uma palavra indizível. 


Carlos Eduardo Leal



 

An He


Poesia, s. f.

Raiz de água larga no rosto da noite

Produto de uma pessoa inclinada a antro

Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã

Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de um homem

Designa também a armação de objetos lúdicos com empregos de palavras imagens cores

sons etc. geralmente feitos por crianças pessoas esquisitas loucos e bêbados


Manoel de Barros

 



Aprendi a viver com simplicidade, com juízo, a olhar o céu, a fazer as minhas orações, até ter esgotado esta angústia inútil.

Enquanto no penhasco murmuram as bardanas e declina o alaranjado cacho da sorveira, componho versos bem alegres, sobre a vida caduca, caduca e belíssima. Volto para casa. Vem lamber a minha mão o gato peludo, que ronrona docemente e um fogo resplandecente brilha no topo da serraria, à beira do lago.

Só de vez em quando o silêncio é interrompido pelo grito da cegonha batendo no telhado

Se vieres bater à minha porta

é bem possível que eu sequer te ouça.


Anna Akhmatova

Setembro



Entristece o jardim.

Fria nas flores a chuva cai.

O verão se arrepia

em silêncio diante do seu fim.


Pétala a pétala goteja em ouro

do alto pé de acácia.

O verão ri abatido e perplexo

no sonho do jardim em agonia.


A prolongar-se ainda junto às rosas,

ele espera, de pé, pelo repouso,

e os grandes olhos fatigados vai

entrecerrando aos poucos.


Herman Hesse

À melancolia

William Bouguereau 


No vinho ou entre amigos, de ti eu fugia,

pois do teu olho escuro eu sentia pavor:

ingrato filho teu, assim eu te esquecia

ao toque do alaúde e nos braços do amor.


Com toda a discrição, no entanto, me seguias:

sempre estavas no vinho que eu tonto bebia

e no mormaço das minhas noites de amor

e no desdém com que eu a ti me referia.


Agora me refrescas os membros cansados

e tens minha cabeça em teu colo macio,

para o regresso das minhas longas viagens

— pois a ti me traziam todos os meus desvios.


Hermann Hesse

A outra visão

Zoltan-Hornyik-Balatoni-lany


O paraíso sempre foi perdido.

Minha paz é um pássaro sem sentido

voando sob a dúvida maior.


Apareço ante mim no dia turvo

com a foto de deus num álbum sujo

e eu de costas na foto vendo o sol.


Sem nenhum ritual exponho a foto.

Dentro dela me posto lá no fundo,

e às costas de deus, espelho dúbio,


me desnudo e declamo: somos pó.



               Roberval Pereyr

De O Súbito Cenário (1996)