quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Teu nome


Teu nome foi um sonho do passado;
Foi um murmúrio eterno em meus ouvidos;
Foi som de uma harpa que embalou-me a vida
Foi um sorriso d'alma entre gemidos!

Teu nome foi um eco de soluços
Entre as minhas canções, entre os meus prantos;
Foi tudo que eu amei, que eu resumia:
Dores...prazer...ventura...amor...encantos!

Escrevi-o nos troncos do arvoredo,
Nas alvas praias, onde bate o mar;
Das estrelas fiz letras - soletrei-o,
Por noite bela, ao mórbido luar!

Escrevi-o nos prados verdejantes
Com as folhas da rosa ou da açucena!
Oh! quantas vezes na asa perfumada
Correu das brisas em manhã serena!

Mas na estrela morreu: caiu nos troncos;
Nas praias se apagou; murchou nas flores;
Só guardado ficou-me, aqui, no peito
- Saudade ou maldição por teus amores.


José Bonifácio de Andrada e Silva

A mocidade


A mocidade é como a PRIMAVERA!
A alma cheia de flores, resplandece,
Crê no bem, ama a vida, sonha e espera,
E a desventura facilmente esquece.


É a idade da força e da beleza:
Olha o futuro e inda não tem passado;
E, encarando de frente a Natureza,
Não tem receio do trabalho ousado.


Ama a vigília, aborrecendo o sono;
Tem projetos de glória, ama a Quimera;
E ainda não dá frutos como o outono,
Pois só dá flores como a PRIMAVERA!


Olavo Bilac

Das cátedras da virtude



Elogiaram a Zaratustra um sábio que falava doutamente do sono e da virtude; por isso se via cumulado de honrarias e recompensas, e todos os mancebos acorriam à sua cátedra. Zaratustra foi ter com ele, e, como todos os mancebos, sentou-se diante da sua cátedra. E o sábio falou assim:

“Honrai o sono e respeitai-o! É isso o principal. E fugi de todos os que dormem mal e estão acordados de noite.

O próprio ladrão se envergonha em presença do sono. Sempre vagueia silencioso durante a noite: mas o relento é insolente.

Não é pouco saber dormir; para isso é preciso aprontar-se durante o dia.

Dez vezes ao dia deves saber vencer-te a ti mesmo; isto cria uma fadiga considerável, e esta é a dormideira da alma.

Dez vezes deves reconciliar-te contigo mesmo, porque é amargo, vencermo-nos, e o que não está reconciliado dorme mal.

Dez verdades hás de encontrar durante o dia; se assim não for, ainda procurarás verdades durante a noite e a tua alma estará faminta.

Dez vezes ao dia precisas rir e estar alegre, senão incomodar-te-á de noite o estômago, esse pai da aflição.

Ainda que poucas pessoas o saibam, é preciso ter todas as virtudes para dormir bem.

Levanto falsos testemunhos? Cometi adultério?

Cobiço a serva do próximo? Tudo isto se combina mal com um bom sono.

E se se tivessem as virtudes, seria preciso saber fazer coisa: adormecer a tempo todas as virtudes.

É mister que estas lindas mulheres se não desavenham! E por tua causa, infeliz!

Paz com Deus e com o próximo: assim o quer o bom sono. E também paz com o diabo do próximo, senão, atormentar-te-á de noite.

Honra e obediência à autoridade, mesmo à autoridade que claudique! Assim o exige o bom sono! Acaso tem uma pessoa culpa do poder gostar de andar com pernas coxas?

Aquele que conduz as suas ovelhas ao prado mais viçoso, para mim será melhor pastor: isto é conveniente ao bom sono.

Não quero muitas honras nem grandes tesouros; isto exacerba a bilis. Dorme-se mal, porém, sem uma boa reputação e um pequeno tesouro.

Prefiro pouca ou má companhia; mas é mister que venha e se vá embora no momento oportuno. É isto o que convém ao bom sono.

Também me agradam muito os pobres de espírito: apressam o sono. São bem-aventurados, mormente quando se lhes dá sempre razão.

Assim passam o dia os virtuosos. Quando chega a noite, livro-me bem de chamar o sono. O sono, que é o rei das virtudes, não quer ser chamado.

Somente penso no que fiz e pensei durante o dia. Ruminando, interrogo-me pacientemente como uma vaca. Então, quais foram as tuas dez vitórias sobre ti mesmo?

E quais foram as dez reconciliações, e as dez verdades, e os dez risos, com que se alegrou o meu coração?

Maquinando nestas coisas e acalentado por quarenta pensamentos, o sono, que eu não chamei, logo me surpreende.

O sono dá-me nos olhos, e sinto-os pesados. O sono aflora à minha boca, e a boca fica aberta.

Sutilmente se introduz em mim o ladrão predileto e rouba-me os pensamentos. Estou de pé, feito um tronco; mas ainda há pouco de pé, logo me estendo”.

Ouvindo falar o sábio, Zaratustra riu-se consigo mesmo.

“Parece-me doido este sábio com os seus quarenta pensamentos, mas creio que compreende bem o sono.

Bem-aventurado o que habite ao pé deste sábio! Um sono assim é contagioso, mesmo através de uma parede espessa.

Na sua cátedra mesmo há um feitiço. E não era debalde que os mancebos estavam sentados ao pé do pregador da virtude.

Diz a sua sabedoria: 'Velar para dormir bem'. E, na verdade, se a vida faltasse senso e eu tivesse que eleger um contra-senso, esse contra-senso parecer-me-ia o mais digno de eleição.

Agora compreendo o que se procurava primeiro que tudo em nossos dias, quando se procurava mestres de virtude. O que se procurava era um bom sono, e para isso virtudes coroadas de dormideiras.

Para todos estes sábios catedráticos, tão ponderados, a sabedoria era dormir sem sonhar: não conheciam melhor sentido da vida.

Hoje ainda há alguns como este pregador da virtude, e nem sempre tão honestos como ele; mas o seu tempo já passou.

E ainda bem não estão em pé, já se estendem.

Bem-aventurados tais dormentes porque não tardarão a dormir de todo”.

Assim falava Zaratustra.


Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. 
O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. 
O amor comeu meus cartões de visita. 
O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. 
O amor comeu metros e metros de gravatas. 
O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. 
O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas.
Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. 
Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. 
Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. 
Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. 
Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, 
o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. 
Bebeu a água dos copos e das quartinhas. 
Comeu o pão de propósito escondido.
Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. 
O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua
chutando pedras. 
Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. 
Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. 
Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. 
Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia.

Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. 
Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minhamão asseguravam. 
Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta.
Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. 
Meu inverno e meu verão. 
Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte. 


João Cabral de Melo Neto

Biografia


Escreverás meu nome com todas as letras,
com todas as datas,
— e não serei eu.

Repetirás o que me ouviste,
o que leste de mim, e mostrarás meu retrato,
—- e nada disso serei eu

Dirás coisas imaginárias,
invenções sutis, engenhosas teorias,
— e continuarei ausente,

Somos uma difícil unidade,
de muitos instantes mínimos,
— isso serei eu

Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,
aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente,
— Como me poderão encontrar?

Novos e antigos todos os dias,
transparentes e opacos, segundo o giro da luz,
nós mesmos nos procuramos.

E por entre as circunstâncias fluímos,
leves e livres corno a cascata pelas pedras.
— Que mortal nos poderia prender?


Cecília Meireles

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Anaïs Nin, Henry & June - (2)


Acredito realmente que, se não fosse escritora, nem criadora, nem experimentadora, talvez tivesse sido uma esposa muito fiel. Tenho a fidelidade em alta conta. Mas meu temperamento pertence à escritora, não à mulher. Tal separação pode parecer infantil, mas é possível. Subtraia a superintensidade, o chiado de idéias, e você tem uma mulher que ama a perfeição. E fidelidade é uma das perfeições. Parece-me estúpido e pouco inteligente agora porque tenho planos maiores em mente. A perfeição é estática, e estou em pleno progresso. A esposa fiel é apenas uma fase, um momento, uma metamorfose, uma condição.

Anaïs Nin, Henry & June

Claro, como se ama um amigo
Eu te amo, vida enigmática –
Que me tenhas feito exultar ou chorar,
Que me tenhas trazido felicidade ou sofrimento,
Amo-te com toda a tua crueldade,
E se deves me aniquilar,
Eu me arrancarei de teus braços
Como alguém se arranca do seio de um amigo.
Com todas as minhas forças te aperto!
Que tuas chamas me devorem,
No fogo do combate, permite-me
Sondar mais longe teu mistério.
Ser, pensar durante milênios!
Encerra-me em teus dois braços:
Se não tens mais alegria a me ofertar
Pois bem – restam-te teus tormentos.

Lou Salomé
(texto musicado por Nietzsche)

Dono do abandono e da tristeza
Comunico oficialmente que há um lugar na minha mesa
Pode ser que você venha por mero favor, ou venha coberta de amor
Seja lá como for, venha sorrindo
Ah, benvinda, benvinda, benvinda
Que o luar está chamando, que os jardins estão florindo
Que eu estou sozinho
Cheio de anseio e de esperança, comunico a toda gente
Que há lugar na minha dança
Pode ser que você venha morar por aqui, ou venha pra se despedir
Não faz mal pode vir até mentindo
Ah, benvinda, benvinda, benvinda
Que o meu pinho está chorando, que o meu samba está pedindo
Que eu estou sozinho
Vem iluminar meu quarto escuro, vem entrando com o ar puro
Todo novo da manhã
Oh vem a minha estrela madrugada, vem a minha namorada
Vem amada, vem urgente, vem irmã
Benvinda, benvinda, benvinda
Que essa aurora está custando, que a cidade está dormindo
Que eu estou sozinho
Certo de estar perto da alegria, comunico finalmente
Que há lugar na poesia
Pode ser que você tenha um carinho para dar, ou venha pra se consolar
Mesmo assim pode entrar que é tempo ainda
Ah, benvinda, benvinda, benvinda
Ah, que bom que você veio, e você chegou tão linda
Eu não cantei em vão
Benvinda, benvinda, benvinda. benvinda, benvinda


Chico Buarque
Fabian Perez

 Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
E' estar ao lado da escala social,
E' não ser adaptável às normas da vida,
'As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela?
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
E' ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
E' ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
Tudo o mais é estúpido como um Dostoiéwski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lagrimas (autênticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha olhos tristes por profissão
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.


Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray (7)


 A beleza é uma forma do gênio... mais elevada, na verdade,  que o gênio, pois não precisa ser definida. É uma das realidades absolutas do mundo, como o sol, a primavera, ou o reflexo nas águas sombrias, dessa concha de prata a que chamamos lua. Isso não pode ser discutido. É uma soberania de direito divino. Tornam-se príncipes os que a possuem. Sorri? Ah! Não sorrirá quando a tiver perdido... Costuma-se dizer que a beleza é somente superficial. Pode ser que seja. Mas não tão superficial, pelo menos, como o pensamento. Para mim, a beleza é a maravilha das maravilhas. Só o medíocre não julga pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível... Sim, Senhor Gray, os deuses  foram generosos para com o senhor. Mas o que os deuses dão, tiram logo em seguida. O senhor não tem senão uns poucos anos para viver verdadeiramente, perfeitamente, plenamente. Quando a sua juventude se desvanecer, a sua beleza ir-se-á com ela, e então  descobrirá que nada ficou dos teus triunfos, ou terá de se conformar com esses êxitos insignificantes, que a lembrança do passado torna mais amargos que derrotas.  Cada mês, à medida que  passa, aproxima o senhor cada vez mais de algo terrível.  O tempo tem ciúmes do senhor e luta contra os seus lírios e as suas rosas. O Senhor empalidecerá, vincar-se-ão as suas faces e apagar-se-ão os seus olhos. Sofrerá horrivelmente... Ah! Aproveite a sua juventude enquanto a tem. Não esbanje o ouro dos seus dias dando ouvidos aos tediosos, tentando melhorar o fracasso sem esperança ou desperdiçando a sua vida com o ignorante, com o fútil, com o vulgar. São estes os objetivos doentios, os falsos ideais da nossa época. Viva! viva a maravilhosa vida sua! Não perca coisa alguma dela . Busque sempre novas sensações. Que nada o atemorize...

Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

“Tome partido dos animais. Eles não votam, mas você sim!”


Os bichos, claro, não podem ir às urnas, mas na hora de decidir o voto os eleitores podem muito bem levar em conta o interesse de seus candidatos pelo bem-estar animal (entre outras questões, claro!). A WSPA – Sociedade Mundial de Proteção Animal mapeou os candidatos das cinco regiões brasileiras que, ao longo da vida política, mostraram alguma preocupação com o bem-estar dos animais – seja por meio da criação de projetos de lei ou, até mesmo, a partir da participação em algum programa oficial que defenda a causa.

candidatos

Não eleja gato por lebre nessas eleições
Se você escolher errado, aí é que a vaca vai pro brejo
Votar nulo? Pode ir tirando o cavalinho da chuva!

Moins je la vois



Moins je la vois, certes plus je la hais:
Plus je la hais, et moins elle me fâche.
Plus je l'estime, et moins compte j'en fais:
Plus je la fuis, plus veux qu'elle me sache.

En un moment deux divers traits me lâche
Amour et haine, ennui avec plaisir.

Forte est l'amour, qui lors me vient saisir,
Quand haine vient et vengeance me crie:
Ainsi me fait haïr mon vain désir
Celle pour qui mon coeur toujours me prie

Maurice Scève

**

Se a vejo pouco…

Se a vejo pouco, odeio-a muito mais;
Se a odeio mais, dá-me pouco enfado.
Se a estimo muito, pouco a mim me faz;
Se lhe fujo, mais quero ser achado.
Sou sempre por opostos torturado.
Amor e ódio, tormento com prazer.
Forte é o amor se só me quer prender
Então, vem o ódio e grita-me vingança;
Assim, faz-me ela odiar meu vão querer,
Por quem meu peito implora e não se cansa.

Josie Bliss



Cor azul de exterminadas fotografias,
cor azul com pétalas e passeios ao mar,
nome definitivo que cai nas semanas
com um golpe de aço que as mata.

Que vestido, que primavera cruza,
que mão sem cessar busca seios, cabeças?
O evidente fumo do tempo cai em vão,
em vão as estações,
as despedidas onde cai o fumo,
os precipitados acontecimentos que esperam com espada:
de repente há algo,
como um confuso ataque de peles-vermelhas,
o horizonte do sangue tremula, há algo,
algo sem dúvida agita as roseiras.

Cor azul de pálpebras que a noite lambeu,
estrelas de cristal desengonçado, fragmentos
de pele e trepadeiras soluçantes,
cor que o rio cava batendo-se na areia,
azul que preparou as grandes gotas.

Talvez continuo existindo numa rua que a aragem faz chorar
com um determinado lamento lúgubre de tal maneira
que todas as mulheres se vestem de surdo azul:
eu existo nesse dia repartido,
existo aí como uma pedra pisada por um boi,
como testemunha sem dúvida esquecida.

Cor azul de asa de pássaro de esquecimento,
o mar completamente empapou as plumas,
seu ácido degradado, sua onda de peso pálido
persegue as coisas amontoadas nos rincões da alma,
e em vão a fumaça golpeia as portas.

Aí estão, aí estão
os beijos arratados pelo pó junto a um triste navio,
aí estão os sorrisos desaparecidos,as roupas que a mão
sacode chamando a aurora:
parece que a boca da morte não quer morder rostos,
dedos,palavras,olhos
aí estão outra vez como grandes peixes que completam o céu
com seu azul material vagamente invencível.

Pablo Neruda

Beatitude


Corta-me o espírito de chagas!
Põe-me aflições em toda a vida:
Não me ouvirás queixas nem pragas …

Eu já nasci desiludida,
De alma votada ao sofrimento
E com renúncias de suicida …

Sobre o meu grande desalento,
Tudo, mas tudo, passa breve,
Breve, alto e longe como o vento …

Tudo, mas tudo, passa leve,
Numa sombra muito fugace,
- Sombra de neve sobre neve … –

Não deixando na minha face
Nem mais surpresas nem mais sustos:
- É como, até, se não passasse …

Todos os fins são bons e justos …
Alma desfeita, corpo exausto,
Olho as coisas de olhos augustos …

Dou-lhes nimbos irreais de fausto,
Numa grande benevolência
De quem nascei u para o holocausto!

Empresto ao mundo outra aparência
E às palavras outra pronúncia,
Na suprema benevolência

De quem nasceu para a Renúncia!…

Cecília Meireles

Sogra


 Minhas mãos estão geladas e tremem no volante enquanto eu espero. Não quero tocar a buzina de novo, apesar da demora deles em sair de casa. Tenho que ser nada menos que perfeito esta noite. Afinal, mais difícil que conquistar Henrique para além daquela noite até me tornar seu namorado será conquistar dona Mariana, a mãe dele. Toda a novidade do momento me aterroriza e também, de certa forma, me alegra. Nunca antes nenhum de meus namorados me apresentou à mãe oficialmente. Tudo parece estar ficando mais sério agora, de uma maneira muito boa.
A naturalidade desaparece no instante em que dona Mariana entra no meu carro. Não sei se devo cumprimentar Henrique com um beijo, como de costume – opto por apenas abraçá-lo. Um denso silencio ocupa todo o espaço do carro, então, e eu sinto o suor brotando em minha testa. É indecifrável o rosto de dona Mariana, e sinto vergonha de procurar algum amparo nos olhos de Henrique. Não digo nada, com medo das palavras saírem erradas ou de gaguejar e denunciar todo o meu nervosismo. E se ela não gostar de mim? O que ela pode falar para Henrique? Qual deve ser o tamanho da influência dela sobre o filho? O suficiente para abalar ou acabar com a nossa história? Começo a achar que não foi uma boa idéia preparar este encontro agora.
Música? Henrique pergunta e não espera a resposta para ligar o rádio. Ele abre o porta-luvas e procura um dos CDs que ele gosta, tentando se desligar daquele momento constrangedor. Eu sei que ele quer a perfeição deste dia também quando ele finge indiferença ao passar pelos discos de música pop. Certamente, não quer que sua mãe pense que somos aquele tipo óbvio de homossexual. Ouvimos, então, um rock nacional, e Henrique se segura com força na melodia. Eu não consigo. Procuro, através do espelho retrovisor, a atual expressão de dona Mariana. Ela está me olhando. Eu congelo, e passo cada segundo do restante do trajeto até o restaurante tentando decifrar, em vão, qualquer sinal de aprovação ou reprovação na falta de atos dela.
Poucas palavras são trocadas no restaurante, antes da chegada do garçom. Para evitar o risco de errar, deixo que ela e Henrique escolham o prato e o vinho. Lanço, finalmente, um primeiro olhar para meu namorado, perguntando em silêncio Ela é sempre assim?, e recebendo um olhar de resposta que tenta dizer Fique tranqüilo, tudo vai dar certo., mas acaba dizendo Estou mais nervoso que você. Dona Mariana só fala quando o garçom serve o vinho tinto e deixa a mesa.
E então... A cada letra dita eu me sinto recebendo uma forte corrente de ar glacial. Como vocês se conheceram? Impossível sentir qualquer tom de simpatia ou de desprezo naquela voz. A neutralidade me tira o norte.
Por acaso. Consigo não gaguejar. Ótimo. Decido não mentir. Numa boate. Trocamos telefones, e-mail, conversamos...
E é sério? Ela me corta para expulsar a pergunta entalada em sua garganta. O que eu quero saber com isso é se você realmente gosta do meu filho.
Eu fico corado e não consigo tirar os olhos das minhas mãos, com medo do que eu possa encontrar além delas. A resposta, tímida, sai. Gosto. Mais leve por ter dito aquilo, consigo levantar o olhar e encarar dona Mariana. Muito. Sinto a palma da mão de Henrique carinhosamente repousando em meu braço.
Dona Mariana me olha de volta. Desta vez eu não desvio o meu olhar e acarinho a mão de Henrique com a minha. Ela olha para o filho e vê seu sorriso. Ela, enfim, sorri. Eu sorrio. Sei, afinal, que sou o que dona Mariana queria. Ela coloca sua mão leve sobre as nossas. Sua voz agora tem o calor de um abraço.
Que bom.

Renan Wilbert Mendes

sábado, 25 de setembro de 2010

Chico Buarque, Leite derramado (2)


Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família.Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda ainda não houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você ver televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposentos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. Não sei se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tanta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mulher gostava de sol, voltava sempre afogueada das tardes do areal de Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo, e de qualquer forma eu não moraria com você na casa de outro casamento, moraremos na fazenda da raiz da serra. Vamos nos casar na capela que foi consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro em mil oitocentos e lá vai fumaça. Na fazenda você tratará de mim e de mais ninguém, de maneira que ficarei completamente bom. E plantaremos árvores, e escreveremos livros, e se Deus quiser ainda criaremos filhos nas terras de meu avô.Mas se você não gostar da raiz da serra por causa das pererecas e dos insetos, ou da lonjura ou de outra coisa, poderíamos morar em Botafogo, no casarão construído por meu pai. Ali há quartos enormes, banheiros de mármores com bidês, vários salões com espelhos venezianos, estátuas, pé-direito monumental e telhas de ardósias importadas da França. Há palmeiras, abacateiros e amendoeiras no jardim, que virou estacionamento depois que a embaixada da Dinamarca mudou para Brasília. Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro. Mas se amanhã eu vender a fazenda, que tem duzentos alqueires de lavoura e pastos, cortados por um ribeirão de água potável, talvez possa reaver o casarão de Botafogo e restaurar os móveis de mogno, mandar afinar o piano Pleyel da minha mãe. Terei bricolagens para me ocupar anos a fio, e caso você deseje prosseguir na profissão, irá para o trabalho a pé, visto que o bairro é farto em hospitais e consultórios. Aliás, bem em cima do nosso próprio terreno levantaram um centro médico de dezoito andares, e com isso acabo de me lembrar que o casarão não existe mais. E mesmo a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia. Estou pensando alto para que você me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que você me transcreva sem precisar ser taquígrafa, você está aí? Acabou a novela, o jornal, o filme, não sei por que deixam a televisão ligada, fora do ar. Deve ser para que esse chuvisco me encubra a voz, e eu não moleste os outros pacientes com meu palavratório.

Chico Buarque, Leite derramado

A Ordem do Discurso


* "A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras".

- A Ordem do Discurso, p.36"

* "A heresia e a ortodoxia não derivam de um exagero fanático dos mecanismos doutrinários, elas lhes pertencem fundamentalmente".

- A Ordem do Discurso, p.42"

* "O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar".

- A Ordem do Discurso, p.10"

* "Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo".

- A Ordem do Discurso, p.44"

* "O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta".

- A Ordem do Discurso, p.26"

Michel Foucault

Meu anjo

gaston_casimir_saintpierre


Meu anjo tem o encanto, a maravilha,
Da espontânea canção dos passarinhos…
Tem os seios tão alvos, tão macios
Como o pêlo sedoso dos arminhos.

Triste de noite na janela a vejo
E de seus lábios o gemido escuto.,,
É leve a criatura vaporosa
Como a frouxa fumaça de um charuto.

Parece até que sobre a fronte angélica
Um anjo lhe depôs coroa e nimbo…
Formosa a vejo assim entre meus sonhos
Mais bela no vapor do meu cachimbo.

Como o vinho espanhol, um beijo dela
Entorna ao sangue a luz do paraíso…
Dá morte num desdém, num beijo vida
E celestes desmaios num sorriso!

Mas quis a minha sina que seu peito
Não batesse por mim nem um minuto,…
E que ela fosse leviana e bela
Como a leve fumaça de um charuto!

Álvares de Azevedo

Primavera



Ah! quem nos dera que isso, como outrora,
inda nos comovesse! Ah! quem nos dera
que inda juntos pudéssemos agora
ver o desabrochar da primavera!

Saíamos com os pássaros e a aurora,
e, no chão, sobre os troncos cheios de hera,
sentavas-te sorrindo, de hora em hora:
"Beijemo-nos! amemo-nos! espera!"

E esse corpo de rosa recendia,
e aos meus beijos de fogo palpitava,
alquebrado de amor e de cansaço...

A alma da terra gorjeava e ria...
Nascia a primavera...E eu te levava,
primavera de carne, pelo braço!

Olavo Bilac

Ao leitor


A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez,
Habitam nosso espírito e o corpo viciam,
E adoráveis remorsos sempre nos saciam
Como o mendigo exibe a sua sordidez.
Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça;
Impomos alto preço à infâmia confessada,
E alegres retornamos à lodosa estrada,
Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça.
Na almofada do mal é Satã Trismegisto
Quem docemente o nosso espírito consola,
E o metal puro da vontade então se evola
Por obra deste sábio que age sem ser visto.
É o Diabo que nos move e até nos manuseia!
Em tudo o que repugna uma jóia encontramos,
Dia após dia, para o Inferno caminhamos,
Sem medo algum dentro da treva que nauseia.
Assim como um voraz devasso beija e suga
O seio murcho que lhe oferta uma vadia,
Furtamos ao acaso uma carícia esguia
Para expremê-la qual laranja que se enruga.
Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos,
Em nosso crânio um povo de demônios cresce,
E ao respirarmos aos pulmões a morte desce,
Rio invisível, com lamentos indistintos.
Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada
Não bordaram ainda com desenhos finos
A trama vã de nossos míseros destinos,
É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada.
Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais,
Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,
Aos monstros ululantes e às viscosas feras,
No lodaçal de nossos vícios imortais
Um há mais feio, mais iníquo, mais imundo
Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,
Da Terra por prazer faria um só detrito
E num bocejo imenso engoliria o mundo;
É o Tédio! – O olhar esquivo à mínima emoção
Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu conheces leitor, o monstro delicado,
— Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!


Charles Baudelaire
(tradução de Ivan Junqueira)

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Primavera


A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.
Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.

Cecília Meireles

William Blake

Mulher dos meus primeiros sonhos




Mulher que em meu caminho à minha dor te igualas
por este amor estranho que nasceu ao vibrar
aquela mágoa antiga que me rompeu as asas
e que pôs doloridas rosas no meu cantar.

Sempre te levei toda minha vida aos soluços
em meu cansado sangue de inútil bem-querer,
tão-somente neste algo que se fez doloroso
pela inútil lenda, tua voz de mulher.

Sempre, sempre na vida, como a irmãzinha triste,
a quem nunca falei porém sei que ela existe
por este amor estranho que se estancou em dor.

Por estas rosas tristes de meu canto mofino,
porque me perfumaste com aromas do ninho
de todas as minhas dores e deste estranho amor.


Pablo Neruda

As torres de dentro


... Já tive torres internas que foram ao chão. Torres altas demais para mim, torres que nem chegaram a ficar concluídas (as de dentro nunca se concluem), torres que me exigiram esforço e que me deram prazer, até que alguém, com uma frase, ou com um gesto, as fez virem abaixo. Tinha gente dentro, tinha eu.
Torres são visíveis, monumentais: viram alvo. Um projeto empolgante demais, uma paixão incontrolável demais, um desejo ardente demais, ideias ameaçadoras demais: tudo isso sai da linha plana da existência, coloca-nos em evidência, a gente acha que os outros não percebem, mas percebem, e que ninguém se assusta, mas se assustam. Quem nos derruba? A nossa vulnerabilidade.
Tem gente que perde um grande amor. Perde mais de um, até. E perde filhos, pais e irmãos. Tem gente que perde a chance de mudar de vida. E há os que perdem tempo. Os anos passam cada vez mais corrido, os aniversários se repetem. Tem gente que viu sua empresa desmoronar, sua saúde ruir, seu casamento ser atingido em cheio por um petardo altamente explosivo. Tem gente que achava que iria ter chance de estudar mais tarde e não estudou. E tem os que acharam que iriam ganhar uma medalha por bom comportamento e não receberam nem um tapinha nas costas.
E no entanto ainda estamos de pé, porque não ficamos apenas contando os meses e os anos em que tudo se passou. Constuimos outras torres no lugar. Não ficamos velando eternamente os atentados contra nossa pureza original. As novas torres que erguemos dentro serão sempre homenagens póstumas às nossas pequenas mortes e uma prova de confiança em nossas futuras glórias.

Martha Medeiros

Hamlet’s Monologue
(Hamlet, Act II, Sc 1)

To be, or not to be – that is the question.
Wheter ’tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune
Or to take arms against a sea of troubles
And by oppossing end them? To die, to sleep;
No more? And by a sleep, to say we end
The heart-ache and the thousand natural shocks
That flesh is heir to. ‘Tis a consumation
Devoutly to be wished. To die, to sleep.
To sleep – perchance to dream. Ay, there’s the rub.
For in that sleep of death, what dreams may come
When we have shuffled off this mortal coil
Must give us pause. There’s the respect
That makes calamity of so long life.
For who would bear the whips and scorns of time,
Th’ opressor’s wrong, the proud man’s contumely,
The pangs of despised love, the law’s delay,
The insolen of office, and the spurns
That patient merit of th’unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin?
Who would these fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death -
The undiscovered country, form whose bourn
No traveller returns – puzzles the will,
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all.
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o’er with the pale cast of thought,
And enterprises of great pitch and moment
With this regard their currents turn awry
And lose the name of action.

William Shakespeare

*

(Hamlet, Ato II, Cena 1)

Ser, ou não ser – eis a questão.
O que é mais nobre para a mente sofrer
Os dardos e setas de destino cruel
Ou pegar em armas contra um mar de desgraças
E pela resistência pôr-lhes fim? Morrer, dormir;
Nada mais? E com o sono, dizem, terminamos
O pesar do coração e os inúmeros naturais conflitos
Da carne herdados. Eis um epílogo
Devotamente desejado. Morrer, dormir.
Dormir – sonhar talvez. Eis a dificuldade.
Nesse sono da morte, que sonhos virão
Quando nos libertarmos do invólucro mortal
Devemos nos deter. Aí está a reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.
Pois quem suportaria os insultos e desdéns do tempo,
A injúria do opressor, a afronta do soberbo,
As angústias do amor desprezado, a morosidade da lei,
As insolências do poder, e as humilhações
Que o mérito paciente tem do indigno,
Quando ele próprio pudesse encontrar repouso
Com uma lâmina nua?
Quem suportaria tão duras cargas,
Gemendo e suando sob uma vida penosa,
Se não fosse o temor de algo após a morte -
Região misteriosa, fronteira de onde
Nenhum viajante retornou – confundindo a vontade,
E impelindo-nos a suportar os males que nos afligem
Em vez de nos lançarmos a outras que não sabemos?
Assim nossa consciência nos faz covardes em tudo.
E assim a cor nativa de nossas resoluções
Se debilita na pálida sombra do pensamento,
E as empreitadas de maior alento e importância
Com semelhantes reflexões desviam seu curso
E perdem o nome de ação.

William Shakespeare

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Af. 57 – Aos Realistas


Vós, homens sóbrios, que vos sentis tão protegidos contra a paixão e as quimeras e que tanto gostaríeis de fazer da vossa doutrina um orgulho e um ornamento de seu vazio, dai-vos, a vós próprios, o nome de realistas e dais a entender que o mundo é verdadeiramente tal como vos aparece; que sois os únicos a ver a verdade isenta de véus e que sois vós talvez a melhor parte dessa verdade... Ó queridas imagens de Sais! Mas não sereis ainda vós próprios, mesmo o vosso estado sem véu, seres obscuros e altamente apaixonados se vos compararmos aos peixes, e ainda demasiado parecidos com artistas apaixonados?... E o que seria a “realidade” aos olhos de um artista apaixonado? Ainda não deixaste de julgar as coisas como fórmulas que têm a sua origem nas paixões e nos complexos amorosos dos séculos passados! A vossa frieza está ainda cheia de uma secreta e inextinguível embriaguez! O vosso amor pela “realidade”, se for necessário escolher-vos um exemplo, que coisa antiga! Antiquíssima! Não há sentimento, sensação, que não contenham uma certa dose desse velho amor, que não tenham sido também, trabalhados e alimentados por qualquer exagero da imaginação, por um preconceito, uma falta de razão, uma incerteza, um receio, e alguma coisa a mais que contribuiu para tecê-la! Vede esta montanha e aquela nuvem? O que é deveras “real” nelas? Tirai-vos os aspectos fantasmagóricos, homens sóbrios, e também todo o acréscimo humano! Sim, se puderdes fazê-lo! Caso pudésseis esquecer seu passado, sua procedência, sua pré-escola – toda sua animalidade e humanidade! Para nós, não existe “realidade” e muito menos para vós, homens sóbrios ! Não existem diferenças entre nós, como pensais. E, talvez, a vossa crença de que seríeis incapazes de embriaguez, seja tão respeitável quanto a nossa vontade honesta em ultrapassá-la.


Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência

Segredo


Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas terras do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projetou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.


Fernando Pinto do Amaral

Purificação






Coarar as emoções,
junto às camisas e lenços,
secando tudo isto,
para os poder usar
no serviço.

Coarar as emoções
febris e as elevadas
na grama ou laje de viver,
no quintal,
lavando estas peças
do bem e do mal,
amontoando-as
na bacia, ao fundo.




Talvez o sol.
Antes que tal suceda,
que as paixões sequem
e o medo e os pressentimentos
vindos, amiúde,
no tecido que fomos e somos,
as Parcas entrarão
para dentro do inverno
e nós esperaremos,
a depender do tempo,
do barro, dos elementos,
a depender de fios, atavios,
céu, inferno,
a depender da sorte
que nos recolhe
ao balde.

A alma! Que ferro de engomar
a desenrugue dos erros
e ela se limpe, ao menos!




Que o ferro alise
suas ênfases, tropeços.
E trace as imagens
nas emoções mais velhas,
nas que foram pisadas.
Esquecê-las!

O ferro de passar
no mundo inapreendido.
Depois,
coser botões caídos
ou quem sabe,
coser os símbolos
e a jubilação do dia.

Que a alma, ao menos,
saia sem vincos!

 Carlos Nejar
artista: Annick Bouvattier

Mais uma vez o tempo me assusta.
Passa afobado pelo meu dia,
Atropela minha hora,
Despreza minha agenda.
Corre prepotente,
A disputar lugar com a ventania.
O tempo envelhece, não se emenda.

Deveria haver algum decreto
Que obrigasse o tempo a desacelerar
E a respeitar meu projeto.
Só assim, eu daria conta
Dos livros que vão se empilhando,
Das melodias que estão me aguardando,
Das saudades que venho sentindo,
Das verdades que ando mentindo,
Das promessas que venho esquecendo,
Dos impulsos que sigo contendo,
Dos prazeres que chegam partindo,
Dos receios que partem voltando.

Agora, que redijo a página final,
Percebo o tanto de caminho percorrido
Ao impulso da hora que vai me acelerando.
Apesar do tempo, e sua pressa desleal,
Agradeço a Deus por ter vivido,
Amanhecer e continuar teimando ... 

Flora Figueiredo


O amor é o murmúrio da terra
quando as estrelas se apagam
e os ventos da aurora vagam
no nascimento do dia...
O ridente abandono,
a rútila alegria
dos lábios, da fonte
e da onda que arremete
do mar...

O amor é a memória
que o tempo não mata,
a canção bem-amada
feliz e absurda...

E a música inaudível...

O silêncio que treme
e parece ocupar
o coração que freme
quando a melodia
do canto de um pássaro
parece ficar...

O amor é Deus em plenitude
a infinita medida
das dádivas que vêm
com o sol e com a chuva
seja na montanha
seja na planura
a chuva que corre
e o tesouro armazenado
no fim do arco-íris.

Vinicius de Moraes

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Molière, O Avarento


Cena IV
La Flèche, Frosina

La Flèche (sem ver Frosina) – Que estúpida aventura!... Mas para que o Sr. Harpagon tenha oferecido tantas quinquilharias é preciso que possua, em qualquer lugar, um armazém secreto. Nenhum dos objetos oferecidos é conhecido meu...
Frosina – És tu, La Flèche?
La Flèche – Olá Frosina... Que vens fazer aqui?
Frosina – O que faço sempre: tratar de negócios, ser prestativa e aproveitar, o mais possível, o meu talento. Neste mundo é preciso, antes de mais nada, saber viver, meu caro... E as pessoas como eu têm apenas, como rendimento, a intriga e a astúcia...
La Flèche – E tens algum negócio com o Sr. Harpagon?
Frosina – Tenho... Estou tratando de um caso para ele e espero uma recompensa...
La Flèche – Recompensa?!... Olha que serás bem astuciosa se conseguires tirar qualquer coisa do celerado. Devo prevenir-te de que o dinheiro por aqui é muito caro... e muito caro...
Frosina – Mas há certos serviços que alargam os condões das bolsas, meu amigo.
La Flèche – Eu conheço o teu talento, mas tu não pareces conhecer o Sr. Harpagon. O Sr. Harpagon é, de todos os humanos, o humano menos humano; de todos os mortais, o mortal mais duro. Não existe serviço algum que possa levar o seu reconhecimento ao ponto de fazê-lo abrir as mãos... O elogio, a estima, a benevolência de palavras, isso é à vontade... Mas dinheiro, absolutamente nada!...E mesmo as suas gentilezas são tudo a que existe de mais seco e de mais árido. Tem tanta aversão ao verbo dar que nunca na sua vida chegou a dar um bom dia... ele empresta um bom dia.
Frosina – Qual!... eu conheço a arte de cativar os homens... Possuo o segredo de conquistar-lhes as simpatias, de acariciar-lhes o coração e de achar os seus pontos fracos...
La FlècheCom ele tudo falha. Duvido que alguém consiga enternecer o Sr. Harpagon em matéria de dinheiro!... Ele é genial na resistência. A gente arrebenta e ele nem se move. O Sr. Harpagon ama o dinheiro mais do que a honra, a reputação e a virtude. A simples vista de um pedinte dá-lhe convulsões. Pedir é feri-lo no seu ponto vulnerável, atingi-lo no coração, arrancar-lhe as entranhas... e se tu... mas ei-lo de volta!... Adeus! (sai pelo fundo, à direita)

Molière, O Avarento

Carta de Paris


I

Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia, tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido e é apenas um delírio que vejo

Campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas; apenas em delírio vejo Anaïs de capa negra bebendo com Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean Paul nos Elysées, Gene dançando à meia-luz com Leslie fazendo de francesa e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio de manhã e pensa na Força de trabalho que desperta, na fuga da gaiola, na sede do deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada, talvez bichos que falam, ou exilados com sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio.

II

Paris muda! Mas a minha melancolia não se move. Beaubourg. Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra. Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você, minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem de disc-jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta teus sonhos de noiva protegida, e penso em você, amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trémulas dos trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que gorjeiam e penso enfim, do nevoeiro, em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!

Ana Cristina César

Canção do vento e da minha vida



O vento varria as folhas,
o vento varria os frutos,
o vento varria as flores...

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,
o vento varria as músicas,
o vento varria os aromas...

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos
e varria as amizades...
o vento varria as mulheres.

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de afetos e de mulheres.

O vento varria os meses
e varria os teus sorrisos...
o vento varria tudo!

E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de tudo.

 Manuel Bandeira

Navegar

Christina Nguyen 

Ó, partir para o mar, navegar num navio!
Deixar este chão, terra firme, tediosa,
Deixar a enfadonha mesmice das ruas,
Das calçadas e casas,
Deixar-te, ó sólida terra, ó terra imóvel,
E embarcar num navio.
Navegar, navegar, navegar!

Ó ser-me a vida agora um poema de júbilos novos!
E dançar, bater palmas, saltar, exultar,
E pular, e rolar, flutuar!
Ser marujo do mundo inteiro,
A caminho de todos os portos,
Ser o próprio navio - (vedes as velas que eu iço
Ao sol e ao ar) -
Ser um ágil navio, enfunado, ligeiro,
Cheio de ricas palavras, de júbilos cheio!

Walt whitman

Trapezista



A vida chega em silêncio;
desenvolve reflexos,
interroga esfinge
que responde ou nega
num espelho baço.
(A resposta nunca é clara
nem é pequena.)

Não é a mim que vejo:
é o outro, num misto de incerteza
e esperança de que não seja
mais um rosto virado,
uma boca cerrada
- mais um desgosto
a cada passo.

Desejo, sonho e medo,
o amor é salto em rede
entre a razão e a magia,
(E só assim vale a pena.)


Lya Luft
In Para Não Dizer Adeus, 2005