sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Crime e Castigo


"A causa de tudo isso é estar eu doente", decidiu, finalmente, mal-humorado. "Eu próprio me atormento e martirizo, e não sei ao certo o que faço... E ontem, e anteontem, e todo este tempo tenho estado a atormentar-me... Quando me puser bom... deixarei de sofrer... Mas se eu não me ponho bom? Senhor! Como eu já estou farto de tudo isto!"
Caminhava sem parar. Sentia uma ânsia feroz de distrair-se, fosse como fosse; mas não sabia que fazer nem que empreender. Uma sensação nova, invencível, se ia arraigando nele cada vez mais: era uma aversão infinita, quase física, por tudo quanto encontrava e via, uma sensação obstinada, maldosa, inflamada. Todas as pessoas se lhe tornavam odiosas, eram-lhe também odiosas as suas caras, a sua maneira de andar, todos os seus movimentos.
Cuspir-lhes-ia simplesmente, morderia quem quer que tivesse a intenção de lhe falar...

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- Que pensam as senhoras? - exclamou Razumíkhin, elevando a voz ainda mais. - Julgam que eu me ponho assim porque eles mentem? Tolice! Eu gosto que eles mintam! A mentira é o único privilégio do homem sobre todos os outros animais. Vai mentindo... que depois hás de atingir a verdade! É precisamente por ser homem que eu minto. Nem uma só verdade poderia alcançar se antes não mentisse catorze vezes, e até cento e catorze vezes, o que representa uma honra sui generis; simplesmente, nós nem sequer sabemos mentir com inteligência! Tu me mentes, mas mentes-me de uma maneira especial, e eu ainda por cima te dou um abraço. Mentir com graça, de uma maneira pessoal, é quase melhor que dizer a verdade à maneira de toda a gente; no primeiro caso é-se um homem e, no segundo, não se é mais do que um papagaio! A verdade não anda depressa, mas, à vida, podemos fazê-la correr; há exemplos disso. Ora vejamos: que somos nós presentemente? Todos, todos sem exceção, no campo das ciências, da cultura, do engenho, da invenção, da experiência, em todos os campos, em todos, em todos, não passamos das primeiras letras. Gostamos de nos regalarmos com a inteligência alheia! Da papinha já feita! Não é verdade? Não tenho razão? - exclamou Razumíkhin, exaltando-se e apertando as mãos das duas mulheres. - Não será verdade isso tudo?

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Todos os criminosos, sejam eles quais forem, experimentam no momento de cometer o seu crime uma espécie de enfraquecimento da vontade e do raciocínio, estado esse que vem depois a ser substituído por um atordoamento extraordinário e pueril, precisamente no momento em que mais necessárias lhe seriam a razão e a prudência. Esse eclipse do raciocínio, esse desfalecimento da vontade, segundo Raskólhnikov, apoderava-se do homem à maneira de uma doença, desenvolvendo-se progressivamente e alcançando o seu máximo de intensidade momentos antes do cometimento do crime: persistia durante a execução deste último e algum tempo depois, conforme os indivíduos, acabando depois por desaparecer como qualquer outra doença. O problema estava em saber se é a doença que engendra o crime, ou se o próprio crime, por sua natureza, é que é sempre acompanhado de um certo gênero de doença; mas isso era uma questão que ele não se sentia capaz de resolver.

Quando chegou a essas deduções, decidiu que, pelo que lhe dizia respeito, pessoalmente e ao seu projeto, não era possível que se produzissem semelhantes colapsos morais, pois nem a sua razão nem a sua vontade haviam de abandoná-lo durante toda a execução da sua empresa, unicamente pela razão de que aquilo que se propunha levar a cabo não era um crime... Prescindimos do processo mediante o qual chegara a essa resolução suprema, pois já nos adiantamos sobre os acontecimentos... Acrescentamos apenas que as dificuldades práticas, de ordem puramente material, do assunto, não assumiam no seu espírito senão uma importância completamente secundária. "Basta que conserve o domínio da minha vontade e da minha razão para que, chegando o momento, fiquem vencidas todas essas dificuldades quando se trata de tocar nos pormenores mais insignificantes do meu plano..." Mas a execução do seu desígnio ia-se adiando. Cada vez tinha menos fé na possibilidade de as suas resoluções assumirem um caráter definitivo e, chegada a hora, os acontecimentos tomarem um rumo completamente diferente, imprevisto, para não dizer inesperado.

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E os meus pensamentos eram como sonhos, sonhos estranhos e diferentes. Que sonhos! Mas foi então que me comecei a lembrar de que... Não, não foi assim. Já estou outra vez desfigurando a verdade! Olha, eu, por essa altura, não fazia outra coisa senão perguntar a mim próprio: "Pois se eu vejo a estupidez dos outros, por que não procuro ser mais inteligente do que os outros?" Porque eu sabia, Sônia, que, se estivesse à espera de que os outros todos se tornassem inteligentes, tinha muito que esperar... Além disso reconhecia que os homens não mudam e não há quem seja capaz de mudá-los, e que não vale a pena uma pessoa incomodar-se em vão. Sim, é assim mesmo! É essa a lei... é a lei, Sônia! É assim mesmo! E agora sei também, Sônia, que quem é forte de alma e inteligência domina sobre eles. Quem se arrisca a muito é que tem razão, para eles. Quem é capaz de desprezar muitas coisas é que é para eles o legislador, e o que for mais atrevido de todos, é esse o que tem mais razão. Tem sido assim até hoje e assim será para sempre! Só o cego é que não o vê!
 Enquanto dizia isso, embora continuasse olhando para Sônia, Raskólhnikov já não se preocupava com o fato de que ela pudesse ou não compreendê-lo. A febre apoderara-se completamente dele. Parecia tomado de um sombrio entusiasmo. (De fato, havia já muito tempo que não falava com ninguém.) Sônia compreendia que aquela lúgubre catequese era nele sincera, que era a sua verdade.
- Então adivinhei, Sônia - continuou com entusiasmo -, que o poder apenas se entrega a quem se atreve a inclinar-se e a apanhá-lo. Só é preciso uma coisa, só uma coisa: atrevimento para o fazer. Então me ocorreu, pela primeira vez na minha vida, um pensamento que anteriormente nunca me acontecera. Nunca! De repente tornou-se-me claro como a água, surgiu-me em toda a evidência que, até hoje, ninguém se atrevera, nem se atreveria, ao passar junto a toda essa estupidez, a pegar-lhe simplesmente pelo rabo e a atirar com ela para o diabo. Eu... eu queria atrever-me, e matei... a única coisa que eu queria era atrever-me, Sônia: aí tens a verdadeira razão.


Fiódor Dostoiévski, Crime e Castigo

Poema negro


Rocco Caputo – o aconchego da morte

A Santos Neto


Para iludir minha desgraça, estudo. 
Intimamente sei que não me iludo. 
Para onde vou (o mundo inteiro o nota) 
Nos meus olhares fúnebres, carrego 
A indiferença estúpida de um cego 
E o ar indolente de um chinês idiota! 


A passagem dos séculos me assombra. 
Para onde irá correndo minha sombra 
Nesse cavalo de eletricidade?! 
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem: 
— Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem? 
E parece-me um sonho a realidade. 


Em vão com o grito do meu peito impreco! 
Dos brados meus ouvindo apenas o eco, 
Eu torço os braços numa angústia douda 
E muita vez, à meia-noite, rio 
Sinistramente, vendo o verme frio 
Que há de comer a minha carne toda! 


É a Morte — esta carnívora assanhada — 
Serpente má de língua envenenada 
Que tudo que acha no caminho, come... 
— Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro, 
Sai para assassinar o mundo inteiro, 
E o mundo inteiro não lhe mata a fome! 


Nesta sombria análise das cousas, 
Corro. Arranco os cadáveres das lousas 
E as suas partes podres examino. . . 
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo, 
Na podridão daquele embrulho hediondo 
Reconheço assombrado o meu Destino! 


Surpreendo-me, sozinho, numa cova. 
Então meu desvario se renova... 
Como que, abrindo todos os jazigos, 
A Morte, em trajos pretos e amarelos, 
Levanta contra mim grandes cutelos 
E as baionetas dos dragões antigos! 


E quando vi que aquilo vinha vindo 
Eu fui caindo como um sol caindo 
De declínio em declínio; e de declínio 
Em declínio, com a gula de uma fera, 
Quis ver o que era, e quando vi o que era, 
Vi que era pó, vi que era esterquilínio! 


Chegou a tua vez, oh! Natureza! 
Eu desafio agora essa grandeza, 
Perante a qual meus olhos se extasiam... 
Eu desafio, desta cova escura, 
No histerismo danado da tortura 
Todos os monstros que os teus peitos criam. 


Tu não és minha mãe, velha nefasta! 
Com o teu chicote frio de madrasta 
Tu me açoitaste vinte e duas vezes... 
Por tua causa apodreci nas cruzes, 
Em que pregas os filhos que produzes 
Durante os desgraçados nove meses! 


Semeadora terrível de defuntos, 
Contra a agressão dos teus contrastes juntos 
A besta, que em mim dorme, acorda em berros 
Acorda, e após gritar a última injúria, 
Chocalha os dentes com medonha fúria 
Como se fosse o atrito de dois ferros! 


Pois bem! Chegou minha hora de vingança. 
Tu mataste o meu tempo de criança 
E de segunda-feira até domingo, 
Amarrado no horror de tua rede, 
Deste-me fogo quando eu tinha sede... 
Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo! 


Súbito outra visão negra me espanta! 
Estou em Roma. É Sexta-feira Santa. 
A treva invade o obscuro orbe terrestre. 
No Vaticano, em grupos prosternados, 
Com as longas fardas rubras, os soldados 
Guardam o corpo do Divino Mestre. 


Como as estalactites da caverna, 
Cai no silêncio da Cidade Eterna 
A água da chuva em largos fios grossos... 
De Jesus Cristo resta unicamente 
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente 
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos! 


Não há ninguém na estrada da Ripetta. 
Dentro da Igreja de São Pedro, quieta, 
As luzes funerais arquejam fracas... 
O vento entoa cânticos de morte. 
Roma estremece! Além, num rumor forte, 
Recomeça o barulho das matracas. 


A desagregação da minha idéia 
Aumenta. Como as chagas da morféa 
O medo, o desalento e o desconforto 
Paralisam-se os círculos motores. 
Na Eternidade, os ventos gemedores 
Estão dizendo que Jesus é morto! 


Não! Jesus não morreu! Vive na serra 
Da Borborema, no ar de minha terra, 
Na molécula e no átomo... Resume 
A espiritualidade da matéria 
E ele é que embala o corpo da miséria 
E faz da cloaca uma urna de perfume. 


Na agonia de tantos pesadelos 
Uma dor bruta puxa-me os cabelos, 
Desperto. É tão vazia a minha vida! 
No pensamento desconexo e falho 
Trago as cartas confusas de um baralho 
E um pedaço de cera derretida! 


Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme. 
Eu, somente eu, com a minha dor enorme 
Os olhos ensangüento na vigília! 
E observo, enquanto o horror me corta a fala, 
O aspecto sepulcral da austera sala 
E a impassibilidade da mobília. 


Meu coração, como um cristal, se quebre 
O termômetro negue minha febre, 
Torne-se gelo o sangue que me abrasa, 
E eu me converta na cegonha triste 
Que das ruínas duma casa assiste 
Ao desmoronamento de outra casa! 


Ao terminar este sentido poema 
Onde vazei a minha dor suprema 
Tenho os olhos em lágrimas imersos... 
Rola-me na cabeça o cérebro oco. 
Por ventura, meu Deus, estarei louco?! 
Daqui por diante não farei mais versos. 


Augusto dos Anjos