quinta-feira, 28 de abril de 2022

 



Luz orgíaca — a do teu corpo amante.

Casimiro de Brito

Emilia Wilk

 

Sonhei-te lentamente,

em plena consciência do disfarce.

Sabia-te irreal,

mas o sonho restava devagar.

Com pormenores tão lentos


que o tempo me sobrava de pensar.

Sentei-me ao pé de ti,

junto ao meu sonho, e pude ler indícios,

os símbolos que queria

estavam lá. Sonhei-te porque sim:


a confusão existe no real.


Ana Luísa Amaral

Emile Vernon

 

A tua nudez inquieta-me. 

Há dias em que a tua nudez

é como um barco subitamente entrado pela barra. 

Como um temporal. Ou como 

certas palavras ainda não inventadas, 

certas posições na guitarra 

que o tocador não conhecia.


A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo 

para um lado misterioso e frágil. 

Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe 

contorno, peso. Destrói o meu corpo. 


A tua nudez é uma violência 

suave, um campo batido pela brisa 

no mês de Janeiro quando sobem as flores 

pelo ventre da terra fecundada. 

Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas 

com o vocabulário da tua nudez. 


Tenho «um pensamento despido»; 

maturação; altas combustões. 

De mão dada contigo entro por mim dentro 

como em outros tempos na piscina 

os leprosos cheios de esperança. 


E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete 

que lanço com mão tremente desastrada 

para rebentar e encher a minha carne 

de transparência. 


Sete dias ao longo da semana, 

trinta dias enquanto dura um mês 

eu ando corajoso e sem disfarce, 

iluminado, certo, harmonioso. 

E outras vezes sucede que estou: inquieto. 

Frágil. 

Violentado. 

Para que eu me construa de novo 

a tua nudez bascula-me os alicerces. 


Fernando Assis Pacheco 

in A Musa Irregular

 

Diego Dayer 


Do amor fica sempre uma canção.

Fica um sinal na pele. Fica um sinal.

Do amor fica um sim e fica um não.

Fica o sol e a sombra. Fica o sal.


Do amor fica sempre um coração

a pulsar na memória o tempo breve

de sua chama a arder um só Verão.

Do amor fica amor que se não teve.


Fica uma réstia e um rasto de navio.

Do amor o que fica é um passar

que do amor como o tempo é ser um rio

como um rio fluir e assim ficar.


E por isso de amor este arrepio

de se morrer (de se viver) de amar.



Manuel Alegre, in “Coisa Amar (Coisas do Mar)"

David Palumbo


Habita-me tua jovem natureza

Teu corpo um poema, espantada luz,

Onde sinais inquietos se revelam,

De minhas mãos punhais te sulcam

Numa febre intermitente.


Vejo-te na forçada ausência

Numa angústia que não se dissipa

Imagino-te nas palavras sussurradas,

No olhar de uma distância indefinida,

O espaço entre a clareira e o beco

Entre teu ventre e a boca ardente.


Água aberta a todas as nascentes,

As verdes copas de alegria fremem,

Na tua simples e clara nudez,

E no meu corpo exultam raízes.


Dos pinheiros a seiva chama-me

Caldeirinha orvalhada, luares gestos,

Mãos de barro te adornam,

Nesta natura forma de querer,

Saber teu corpo respirando,

Pelas altas madrugadas do desejo.


Em minhas mãos grita teu corpo,

Línguas de fogo contra dançam,

Sinais indeléveis, fulgor intenso.


Na sombra de teus ombros, caio,

Adormeço no mar de teus olhos.


E a ausência, é só uma palavra

Recortada na maré...


Joaquim Monteiro


Damian Lechoszest

Apaixonar-se é individualizar alguém pelos signos que traz consigo ou emite. É tornar-se sensível a esses signos, aprendê-los (como a lenta individualização de Albertine no grupo das jovens). É possível que a amizade se nutra de observação e de conversa, mas o amor nasce e se alimenta de interpretação silenciosa. O ser amado aparece como um signo, uma "alma": exprime um mundo possível, desconhecido de nós. O amado implica, envolve, aprisiona um mundo, que é preciso decifrar, isto é, interpretar. Trata-se mesmo de uma pluralidade de mundos; o pluralismo do amor não diz respeito apenas à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das almas ou dos mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos que permanecem envolvidos no amado. É por essa razão que é tão comum nos apaixonarmos por mulheres que não são do nosso "mundo", nem mesmo do nosso tipo. Por isso, também as mulheres amadas estão muitas vezes ligadas a paisagens que conhecemos tanto a ponto de desejarmos vê-las refletidas nos olhos de uma mulher, mas que se refletem, então, de um ponto de vista tão misterioso que constituem para nós como que países inacessíveis, desconhecidos: Albertine envolve, incorpora, amalgama "a praia e a impetuosidade das ondas". Como poderíamos ter acesso a uma paisagem que não é mais aquela que vemos, mas, ao contrário, aquela em que somos vistos? "Se me vira que lhe poderia eu significar? Do seio de que universo ela me distingue?" Aprender diz respeito essencialmente aos signos. A vocação é sempre uma predestinação com relação a signos. Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos. “Tempo que se perde”, “tempo perdido”, mas também tempo que se redescobre e tempo redescoberto. Graças à inteligência, acabamos por descobrir o que não podíamos saber no início: que, quando pensávamos perder tempo, já fazíamos o aprendizado dos signos. Apercebemo-nos de que nossa vida preguiçosa se identificava com nossa obra: "toda minha vida... uma vocação."

Gilles Deleuze

Psicologia do Inconsciente


Muitas vezes me perguntam: Por que o conflito erótico é a principal causa das neuroses? A isso só podemos responder: Ninguém afirma que deve ser assim, mas que simplesmente é assim. Apesar de todos os protestos indignados em contrário, o fato é que o amor, seus problemas e conflitos, se mostra de uma importância fundamental na vida humana e, como revela uma pesquisa cuidadosa, tem um significado muito maior do o indivíduo imagina. [...] 

Os dramas mais impressionantes, e os mais excêntricos, não são desempenhados no teatro, mas no coração dos homens comuns, pelos quais passamos sem prestar atenção e que, no máximo, mostram ao mundo, através de um colapso nervoso, as batalhas que se desferem em seu íntimo. 

Além disso, o que é mais difícil para a compreensão dos leigos é que, em geral, os doentes não têm qualquer pressentimento da batalha que se trava em seu inconsciente. Se considerarmos, no entanto, o número de homens que nada sabem acerca de si mesmos, não devemos nos admirar de que também haja os que nada pressintam acerca de seus verdadeiros conflitos. Se leitor estiver inclinado a admitir a possível resistência de conflitos patogênicos, eventualmente oriundos do inconsciente, então protestará contra o fato de que se trata de um conflito erótico. E se for propenso ao nervosismo, poderá irritar-se contra este absurdo aparente; pois fomos acostumados pela educação recebida em casa e na escola a persignar-nos três vezes diante de palavras tais como "erótico" e "sexual". Consequentemente pensamos que não há nada disso ou que, pelo menos, se trata de algo raro ou longínquo. E no entanto os conflitos neuróticos daí procedem, em primeiro lugar. 

 Carl Gustav Jung

Charles James Lewis


O primeiro olhar pela janela de manhã.

O velho livro redescoberto. 

Rostos entusiasmados. 

Neve, o câmbio das estações. 

O jornal. 

O cão. 

A dialética.

Duchas, nadar. 

Música antiga. 

Sapatos cômodos. 

Compreender. 

Música nova. 

Escrever, plantar. 

Viajar, cantar. 

Ser cordial.


Bertolt Brecht, “Prazeres”

A de Sempre, Toda Ela


CARO GUARINOS


Se eu vos disser: «tudo abandonei» 

É porque ela não é a do meu corpo, 

Eu nunca me gabei, 

Não é verdade 

E a bruma de fundo em que me movo 

Não sabe nunca se eu passei. 


O leque da sua boca, o reflexo dos seus olhos 

Sou eu o único a falar deles, 

O único a ser cingido 

Por esse espelho tão nulo em que o ar circula através de mim 

E o ar tem um rosto, um rosto amado, 

Um rosto amante, o teu rosto, 

A ti que não tens nome e que os outros ignoram, 

O mar diz-te: sobre mim, o céu diz-te: sobre mim, 

Os astros adivinham-te, as nuvens imaginam-te 

E o sangue espalhado nos melhores momentos, 

O sangue da generosidade 

Transporta-te com delícias. 


Canto a grande alegria de te cantar, 

A grande alegria de te ter ou te não ter, 

A candura de te esperar, a inocência de te conhecer, 

Ó tu que suprimes o esquecimento, a esperança e a ignorância, 

Que suprimes a ausência e que me pões no mundo, 

Eu canto por cantar, amo-te para cantar 

O mistério em que o amor me cria e se liberta. 


Tu és pura, tu és ainda mais pura do que eu próprio. 


Paul Eluard, in "Algumas das Palavras" 


Bruno Di Maio


A palavra primavera floresce em nossa boca.

E a palavra mar faz de quem a pronuncia uma ilha encantada.

Quando parto sem palavras, uma tristeza vai comigo

a doer-me no sangue, na raiz da fala e do afecto.

Só elas podem explicar o mistério do amor.

Delas retiro o ouro, o trigo, a fala e a esperança. Nelas 

vivem o tigre e a esmeralda. Delas sopra o vento.

São curandeiras. Feiticeiras. Mensageiras. Deusas.

São o canto da alma e a voz que falta às andorinhas.

E o sorriso do anjo. E a única coisa que Deus não inventou. 

São essas palavras que ficam mudas no coração da gente

para que os beijos possam dizer tudo o que elas não dizem.


 Joaquim Pessoa

 



Gosto das palavras frágeis

como gosto de ti

e a verdade é que é também frágil

a minha forma de gostar-te.

Por vezes gostava 

de ser como tu. Ser frágil e usar anéis

com as pedras raras da esperança,

as insondáveis pedras dos dias

que hão-de vir. Mas vivo

o exílio destes dias repetidos

sobre a efemeridade da pele, vogando

como cisnes moribundos

em busca de uma última revelação,

talvez uma melodia tão pura que

possa transformar em pão

não só as nossas rosas mas também

a própria liberdade. E é por isso

que amo as palavras frágeis,

essas palavras que me ofereces

e que são, assim, de tão frágeis,

a minha imensa força

e o meu fatal deslumbramento.

*

Joaquim Pessoa, 

in "O Poeta Enamorado".

Es tan poco

Aydemir Saidov


Lo que conoces

es tan poco

lo que conoces

de mí

lo que conoces

son mis nubes

son mis silencios

son mis gestos

lo que conoces

de mí

lo que conoces

es la tristeza

de mi casa vista de afuera

son los postigos de mi tristeza

el llamador de mi tristeza.


Pero no sabes

nada

a lo sumo

piensas a veces

que es tan poco

lo que conozco

lo que conozco

de ti

lo que conozco

o sea tus nubes

 o tus silencios

o tus gestos

lo que conozco

es la tristeza

de tu casa vista de afuera

son los postigos de tu tristeza

el llamador de tu tristeza.

Pero no llamas.

Pero no llamo.


Mario Benedetti -  El amor, las mujeres y la vida

Mulheres-sol

 Pasquale Picazio


Como seria estranho se algumas mulheres tomassem a frente e dissessem:

Nós somos mulheres-sol!

Não pertencemos nem aos homens, às nossas crianças ou mesmo à nós mesmas,

mas apenas ao sol.

E como é delicioso sentir a luz do sol sobre uma delas!

E como é delicioso! abrir como uma calêndula

quando um homem examina uma delas

com o sol em sua face, de modo que uma mulher não pode mais que abrir

como uma calêndula para o sol,

e excitar-se com seus raios brilhantes.


Lawrence



Últimos dias de aula. Eduardo, Mauro e Eugênio (um rapaz franzino, pálido e de olhar vivo, que viera transferido de outro colégio) conversavam no corredor sobre a vida que iam enfrentar lá fora, o destino que os esperava. Resolveram, os três, assumir um compromisso: qualquer que fosse o caminho que eles tomassem, vinte anos depois voltariam a reunir-se ali, naquele lugar. 

— Vinte, não: quinze — objetou Eduardo: — Vou morrer antes disso. 

— Então quinze — concordaram os outros dois, sem se importar que ele morresse. Onde estivessem, acontecesse o que acontecesse. 

— Neste mesmo lugar. 

— Mesmo que tenham derrubado o Ginásio, nos encontraremos no lugar onde havia o Ginásio. 

Marcaram data certa, dia e hora, cada qual escreveu num papelzinho. 

— Quem faltar, é porque morreu. 

— Ou então está preso... 

— Só não pode esquecer... 

Calaram-se, e ficaram pensando... 

— Que será de nós? — perguntou um deles, distraído. 

Que seria deles? Não sabiam, e não se incomodavam. 


Fernando Sabino, O Encontro marcado

Os mestres

Alex Alemany


Tentou várias poções 

Alguns deles sabiam como se descobre

O fogo dos dragões

Sussurraram seu segredo através dos tempos

Escondidos nos porões

As químicas, as senhas, as sabedorias

O livro das constelações

O centro, o dentro, o magma da terra

E a ira dos vulcões 

Como manter intacto o estudo dessa ciência

Através das religiões

Que queimam livros, ensinos, manuscritos

A era das perseguições

Buda, Cristo, Hermes Trismegisto

Os homens e suas noções

A luz, o grande conhecimento

As substâncias, os materiais, os elementos 

Tudo que existe e todas as mutações


Bruna Lombardi

Tramas

 



Não adianta se enroscar nos meus vestidos

se afundar nas mangas do casaco

se enfiar nas dobras das minhas costas

se esconder no meu sapato.

Não adianta escorregar como bandido

querer fugir pra dentro dos espelhos

distanciar o mais possível os ponteiros

se intrigar na trama dos meus pelos.

Não adianta se enfeitar com tatuagens

cantarolar baixinho nas emendas

se fantasiar de verde azul furtado

pra se mimetizar com as minhas coisas.

Não adianta se envolver com bailarinas

nem me implicar nos seus casos oblíquos

argumentar as manhas do seu signo

me convencer dessa maneira abstrata.

Não adianta se enrolar nas minhas franjas

usar o diabólico perfume de alfazema

nem me tentar com as frutas do momento

nessa insaciável luxúria de unicórnio.

Não adianta falar sozinho pelos quartos

me enfrentar com atitudes complicadas

ousar seus truques, simular suas quedas

pra confundir as peças do meu jogo.

Dance sozinho.

meu dragões e minhas bruxas me protegem.

Nenhuma das chaves que você roubou abre caminho.


Bruna Lombardi

Transgressão

Peter Seminck



oceanos onde possamos navegar, partir, tornar a voltar

muitas fronteiras, novos horizontes

em que nada se limite aos poucos sentidos

nem se restrinja a moralidades, a códigos

a crenças e princípios

nem se submeta a leis, homens, governos

lugares comuns, discursos e ismos

nem se afogue em mitos, lendas, ideologias.

Nada dessa raça de indivíduos com pés, hábitos, lágrimas, valores

e mãos vazias tentando agarrar um inatingível deus

tentando se esconder nas suas vestes

se desculpar na sua misericórdia

com oferendas, rituais, e sacrifícios e toda essa farsa.

Um lugar onde fosse ao fim das coisas

se penetrasse em cada uma delas até sugar-lhe o bagaço

até chupar-lhe as vísceras

sem medo algum, sem bloqueio, sem barreiras

construídas pelas seitas e tabus.

Continentes onde a fúria natural jorrasse livre

sem que se paralise o pensamento

onde se ouse a ação, o grito, a loucura, o drama,

a gargalhada exploda em milhões de átomos e estrelas e uivos

de animais e agonias de angústia medonha e longa

como a noite dos tempos,

a paixão desenfreada, a dança.

Que desmorone nas pessoas esse comportamento adquirido

condicionado, esses costumes de cultos formais

a obrigação, a disciplina

essa pontualidade com a vida

essas mentiras todas herdadas,

impostas, aceitas.

Que se dissolva tudo. Que tudo escorra

nos canais de irrigação.

Que sejam os desejos insensatos e os voos sublimes.

Que sejam as cores, luzes, o som, o cheiro, o gosto, os poros sexuados.

Que fluam o sêmem, o sangue, os rios, a urina, e as palavras.

Que se restaure toda a verdade

tudo o que carrega o tempo e a gênese.

Que tudo se purifique até alcançar

o significado obsceno do êxtase.


Bruna Lombardi

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Psicologia do Inconsciente

As pessoas mais lúcidas sabem que atualmente se propõe uma questão sexual. O desenvolvimento rápido das cidades, com a especialização da mão-de-obra, acarretou uma extraordinária divisão de trabalho; a industrialização crescente da região rural, o sentimento cada vez maior de insegurança, privam os homens de «muitas oportunidades de descarregar suas energias afetivas. A atividade periódica e rítmica do camponês lhe proporciona satisfações inconscientes, por causa de seu conteúdo simbólico; o operário fabril e o empregado de escritório não conhecem e jamais poderão desfrutar de tais satisfações; a vida mergulhada na natureza, os belos momentos em que o camponês, como o senhor que faz frutificar a terra, mergulha o arado no solo e com um gesto de rei espalha as sementes para a futura colheita; o medo legítimo do poder destrutivo dos elementos, a alegria pela fecundidade de sua esposa, gerando filhos e filhas que também significam um acréscimo da força de trabalho e um bem-estar maior, de tudo isto fomos privados, nós, homens da cidade, trabalhadores mecanizados. Não começa a faltar-nos a mais natural e bela das satisfações: a colheita de nossa própria semeadura e a "bênção" dos filhos, que olhamos com uma alegria simples? [Os casamentos onde não florescem todas as artes da alcova podem ser contados nos dedos. Não representará isto uma primeira despedida das alegrias que a Mãe Natureza ofereceu a seus filhos primogênitos?]. Onde poderá prosperar a alegria? E os homens se esgueiram rumo ao trabalho (observe-se os rostos dos homens no ônibus às sete e trinta da manhã. Um fabrica a sua rodinha, outro escreve coisas que não o interessam. Não admira que quase todos pertençam a tantos clubes quantos são os dias da semana, ou que haja pequenas sociedades para mulheres, onde elas podem dedicar-se ao herói do momento; há também aquela vaga nostalgia que os homens afogam no restaurante "Zum Frohsinn", com muito palavrório e uns goles de cerveja). A estas fontes de descontentamento acrescenta-se uma dificuldade interior e mais grave). A natureza abasteceu os homens indefesos e desarmados com uma grande reserva de energia, a fim de torná-los capazes não só de suportar passivamente os perigos da existência, mas também de vencê-los. A Mãe-Natureza equipou seu filho para enfrentar tremendas privações (e estabeleceu o delicioso prêmio para os vencedores, prêmio ao qual Schopenhauer se refere ao afirmar que a felicidade não é mais do que a extinção da infelicidade). Via de regra, somos protegidos eventualmente contra essas necessidades vitais imediatas que nos afligem e por isso somos tentados todos os dias; o animal humano sempre viceja quando não é premido pela dura necessidade. Seremos realmente atrevidos? Em que festas orgiásticas gastamos o superávit de nossa força vital? Nossas concepções morais não permitem uma tal escapatória

Psicologia do Inconsciente - Carl Gustav Jung 


Mãe,

Você me pergunta se eu acredito em Deus e eu te pergunto, quê Deus? Tem sido minha missão te mostrar Deus dentro do homem pois somente no homem ele pode existir. Não há homem pobre ou insignificante que pareça ser, que não tenha uma missão. Todo homem por si só influência a natureza do futuro. Através de nossas vidas nós criamos ações que resultam na multiplicação de reações. Esse poder, que todos nós possuímos, esse poder de mudar o curso da história, é o poder de Deus. Confrontado com essa responsabilidade divina eu me curvo diante do Deus dentro de mim.


Stuart Edgar Angel Jone

terça-feira, 26 de abril de 2022

 

Richard Macneil 


O que a gente quer é a intimidade dos gostos em comum, um momento de conexão total, longe de tudo, mesmo estando dentro do caos da cidade, um momento longe de todos, mesmo estando rodeado por milhares de pessoas, a sensação de que você é a única opção que possível, mesmo que hoje as pessoas gostam de ter inúmeras possibilidades. O amor é criar um lugar dentro dos lugares, uma solidão acolhedora, um refúgio secreto, é reduzir o tamanho do mundo, o tamanho das dores e abandonar a esperança, pois já não se espera nada, tudo está aqui vestido de momento. 

Há um interesse genuíno, vontade de saber quais são os seus poemas favoritos, conhecer as suas paredes e entender os seus muros sem querer invadir tua região escura, descobrir onde ficam as suas cicatrizes e saber o motivo das suas fugas quando tudo parece estar bem, quero te ouvir falando sobre o seu mundo de dentro, sobre o quintal da sua infância, percebe? Percebe que o amor não é virar as costas para o mundo, mas estar em um mundo novo. 

Ignorar as páginas do Tempo enquanto lemos os ponteiros dos livros, ver filmes, andar pela sua calçada favorita, ver você perder o controle do riso é algo que irá me deslumbrar, receber uma ligação sem motivo, pois as letras na tela de um celular não bastam para a saudade, intimidade, essas pequenas coisas que ninguém vê, coisas que não são publicadas para o mundo, coisas nossas e há uma certa honra neste “egoísmo”, venha, vamos fugir para ficar, vamos ler todas as páginas do livro que ainda não foi escrito, vamos compartilhar a alegria da lágrima e a tristeza da impossibilidade do riso, eu te amo, saiba bem disso. 


Zack Magiezi

Franz Kafka - Portrait of  Milton Glaser. 
 Em novembro de 1919 Franz Kafka escreveu uma longa carta a seu pai.

“querido pai,

Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você.  Como de costume, eu não soube responder. Em parte, justamente por causa desse medo. Eu era uma criança medrosa, é claro que apesar disso também era teimoso como o são todas as crianças. Certamente minha mãe mimou-me. Mas eu não posso crer que era uma criança difícil de lidar. Nem que uma palavra amável, um silencioso levar pela mão, um olhar bondoso não pudessem conseguir de mim tudo o que quisessem. O que eu teria necessitado a qualquer tempo e em qualquer lugar era o incentivo. Eu já estava esmagado pela simples materialidade do seu corpo. Você havia subido tão alto contando apenas com a própria força, que eu tinha confiança ilimitada na sua opinião pessoal. Da poltrona você regia o mundo. Sua opinião era a certa, todas as outras disparatadas, extravagantes, absurdas, anormais.

Você assumia pra mim o que há de enigmático em todos os tiranos, cujo direito está fundado não no pensamento, mas na própria pessoa. Logo cedo você me interditou a palavra. Sua ameaça: “nenhuma palavra de contestação!” e a mão erguida no ato me acompanharam desde sempre, na sua presença eu adquiri um modo de falar entrecortado  e finalmente eu silenciei, porque na sua presença já não podia falar e nem pensar. Se eu queria fugir de você tinha que fugir também da família, até de minha mãe. Sempre era possível encontrar nela proteção, mas só em relação a você. Ela lhe amava demais e lhe dedicava demasiada fidelidade para que, numa luta contra o filho, pudesse ter por muito tempo um poder espiritual autônomo. Eu estava continuamente em desgraça. Ou eu obedecia-lhe os comandos, o que era uma desgraça, ou desafiava, o que também era uma desgraça. Eu já perdi minha autoconfiança diante de você e substitui por um ilimitado sentimento de culpa.


Franz Kafka

 


O valor da filosofia, na realidade, deve ser buscado, em grande medida, na sua própria incerteza. O homem que não tem umas tintas de filosofia caminha pela vida afora preso a preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais de sua época e do seu país, e das convicções que cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada. Para tal homem o mundo tende a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele os objetos habituais não levantam problemas e as possibilidades não familiares são desdenhosamente rejeitadas. Quando começamos a filosofar, pelo contrário, imediatamente nos damos conta (como vimos nos primeiros capítulos deste livro) de que até as coisas mais ordinárias conduzem a problemas para os quais somente respostas muito incompletas podem ser dadas. A filosofia, apesar de incapaz de nos dizer com certeza qual é a verdadeira resposta para as dúvidas que ela própria levanta, é capaz de sugerir numerosas possibilidades que ampliam nossos pensamentos, livrando-os da tirania do hábito. Desta maneira, embora diminua nosso sentimento de certeza com relação ao que as coisas são, aumenta em muito nosso conhecimento a respeito do que as coisas podem ser; ela remove o dogmatismo um tanto arrogante daqueles que nunca chegaram a empreender viagens nas regiões da dúvida libertadora; e vivifica nosso sentimento de admiração, ao mostrar as coisas familiares num determinado aspecto não familiar.


Bertrand Russell

 

Kasia Domanska


Sol, s. m.

Quem tira a roupa da manhã e acende o mar

Quem assanha as formigas e os touros

Diz-se que:

se a mulher espiar o seu corpo num ribeiro florescido de sol, sazona

Estar sol: o que a invenção de um verso contém


Manoel de Barros 

 

Victor Frimu

Já se disse que o silêncio era uma força; num sentido completamente diferente, ele é uma força, e terrível, à disposição daqueles que são amados. Uma força que aumenta a ansiedade de quem espera. Nada convida tanto alguém a aproximar-se de um ser como o que dele o separa, e que barreira existe mais intransponível que o silêncio? Já se disse também que o silêncio era um suplício, e capaz de enlouquecer aquele que nas prisões a ele estava obrigado. Mas que suplício – maior que o de guardar silêncio – é o de sofrer o silêncio de quem se ama! Robert dizia de si para si: «Que estará ela a fazer para estar assim calada? Estará por certo a enganar-me com outros…» Dizia ainda: «Que fiz para ela estar assim calada? Provavelmente odeia-me, e para sempre.» E acusava-se a si mesmo. Assim, com efeito, o silêncio o punha louco de ciúme e de remorso. De resto, mais cruel que o das prisões, tal silêncio é ele mesmo uma prisão. Uma clausura imaterial, sem dúvida, mas impenetrável, aquela fatia interposta de atmosfera vazia, mas que os raios visuais do abandonado não podem atravessar. Haverá luz mais terrível que o silêncio, que não nos mostra uma ausente, mas mil, e cada uma delas entregando-se a alguma outra traição? Às vezes, numa brusca distensão, Robert acreditava que esse silêncio iria cessar daí a pouco, que a esperada carta iria chegar. Via-a a chegar, espiava cada ruído, a sua sede estava já saciada, murmurava: «A carta! A carta!» Depois de ter assim entrevisto um oásis imaginário de ternura tornava a dar consigo patinhando no deserto real do silêncio sem fim.

Sofria adiantadamente todas as dores, sem esquecer nenhuma, de um rompimento que em outras ocasiões julgava poder evitar, como aquelas pessoas que liquidam todos os seus assuntos na mira de uma expatriação que não irá efetuar-se, e cujo pensamento, que já não sabe onde deverá situar-se no dia seguinte se agita momentaneamente, despegado delas, semelhante a um coração que se arranca a um doente e que continua a bater, separado do resto do corpo. Em todo o caso, esta esperança de que a amante regressaria dava-lhe coragem para perseverar no rompimento, tal como a crença de poder regressar vivo do combate ajuda a enfrentar a morte. E como o hábito é, de todas as plantas humanas, aquela que menos necessidade tem para viver de um solo rico de alimento, e a primeira a aparecer no aparentemente mais desolado dos rochedos, talvez começando por praticar o rompimento a fingir acabasse por se lhe acostumar sinceramente. Mas a incerteza alimentava nele um estado que, ligado à recordação daquela mulher, se assemelhava ao amor.


Marcel Proust

Em busca do tempo perdido

Soneto do Desmantelo Azul

Victoria Stoyanova


Então, pintei de azul os meus sapatos

por não poder de azul pintar as ruas,

depois, vesti meus gestos insensatos 

e colori as minhas mãos e as tuas,


Para extinguir em nós o azul ausente

e aprisionar no azul as coisas gratas,

enfim, nós derramamos simplesmente

azul sobre os vestidos e as gravatas.


E afogados em nós, nem nos lembramos

que no excesso que havia em nosso espaço

pudesse haver de azul também cansaço.


E perdidos de azul nos contemplamos

e vimos que entre nós nascia um sul

vertiginosamente azul. Azul.


Carlos Pena Filho

 

Vittorio Vidan Dangelico


Proust, al analizar los deseos, dice que los deseos no quieren analizarse sino satisfacerse, esto es: no quiero hablar del jardín, quiero verlo. Claro es que lo que digo no deja de ser pueril, pues en esta vida nunca hacemos lo que queremos. Lo cual es un motivo más para querer ver el jardín, aun si es imposible, sobre todo si es imposible...


Alejandra Pizarnik

Leon Comerre


 "Toquem-me agora, 

ainda que eu esteja muito longe."


Tocar é a mais pessoal de todas experiências. Vibra através de todas as máscaras que a cultura e a civilização fizeram a fim de nos esconder e separar. Podemos aprender que as cores do toque são muitas e variadas - que as tramas harmônica ou dissonante das formas de toque são surpreendes e confusas. mas, não importa de que forma eu toco, ou sou tocado, e não importa qual o desenho e a forma dos modelos de toque, acharei que estou sendo somente tocado agora e somente posso tocá-lo agora. 

Isso significa que o toque é a porta de entrada para a experiência do agora - e através desta porta passam os que estão no caminho da terra da percepção progressiva - tanto de si mesmo como dos outros.(...)

A sensação é um acontecimento - alguma coisa que está acontecendo - e a pessoa focaliza sua atenção no que está acontecendo. Está consciente. E esta consciência coloca-o no Agora. É como se um contato passasse a existir em seu corpo. As coisas estão se juntando - estão tocando - e é este toque a a atenção dada a ele que constituem a consciência. É preciso haver um toque - um contato - para se estar atento. É preciso estar atento a este toque se quero estar consciente. Só posso tocar você agora - Ronald B. Levy.


Só posso tocar você agora - Ronald B. Levy

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Alessandro-Granata

 

Ela tinha a beleza tranquila da maturidade. Bastava vê-la para adivinhar como ela teria sido. Ah! Com certeza provocara muitos suspiros de amor. De hábitos domésticos e simples, um dos seus prazeres era assentar-se numa poltrona e entrar na bolha que a leitura cria. Quem lê está num outro mundo, muito longe.

O seu marido a observava de longe. Olhos que observam são olhos que olham quando o outro não está olhando. Olhos que observam são olhos de felino que seguem a presa. Seu olhar era olhar de apaixonado que desconfia, olhar de ciúme. Os olhos do ciumento vigiam. Vigiam gestos, movimentos, horas. Vigiam porque as modulações silenciosas e distraídas no rosto da pessoa amada podem conter revelações sobre aquilo que ela está pensando. O ciumento suspeita que a mulher amada lhe esconde algo. Ele olha na esperança de ver o escondido, de entrar dentro do segredo do outro. O ciumento detesta os pensamentos. Por mais que os vigie, eles estão além da sua vigilância.

Tem aquela modinha de Carlos Gomes, Quem Sabe? É um monólogo de um apaixonado. Ele sofre. Sofre porque a amada está longe e ele não sabe o que ela está pensando. “Tão longe de mim distante, onde irá, onde irá teu pensamento?” O seu desejo era saber se os pensamentos da amada pensavam nele. Ele pergunta porque não sabe e tem medo de saber o que ela estará pensando. Pergunta porque não confia. Minha amada, por favor, me diga “se ainda é meu teu pensamento…”.

Há os ciúmes mansos que todos sentem e só doem um pouquinho. E há os ciúmes que são um tormento e que frequentemente terminam em tragédia. Todo ciúme, manso ou atormentado, gostaria de ser dono da mulher amada, inclusive dos seus pensamentos. Ele quer conhecê-la por dentro e por fora para certificar-se da sua posse. Nos momentos de êxtase amoroso, esse tormento se resolve e o ciumento se acalma. Mas a sua calma é efêmera. Dura o mesmo tempo do ato sexual. Termina com o orgasmo. Passado o êxtase a dúvida volta. E, com ela, o tormento.

Ele a vigiava, silenciosamente o felino a vigiava. E a sua vigilância se exacerbava quando ela sorria ou ria. Como explicar esse sorriso se ele, o seu marido, não estava dentro do livro? Ela não precisava dele para ser feliz. Mergulhada no seu livro, o seu marido não existia. E isso não é o anúncio de uma infidelidade possível? Ter prazer com algo que não era ele, o seu marido… O prazer acontecia na ausência dele. A infidelidade com o livro anunciava a possibilidade de grandes infidelidades. E isso o torturava. Tortura que não o abandonava nem nos momentos de intimidade prazerosa.

Um ciumento não tolera a liberdade.

Mas aí algo aconteceu que o tranquilizou. Sua esposa adoeceu. Uma mulher adoentada é um pássaro de asas quebradas que não sonha e nem poderia jamais voar. Um pássaro de asas quebradas não planeja voos proibidos. Pássaros de asas quebradas são confiáveis.

Isso o acalmou. Ele ficou doce. Até os momentos de intimidade ficaram leves: seu efêmero sentimento de posse se transformou num tranquilo sentimento de eternidade. Agora ela era sua, para sempre.

Suspeito que os crimes por ciúme não têm o propósito primeiro de matar a mulher amada. O seu propósito, ao contrário, é garantir que ela não será de nenhum outro.

Mas há também um ciúme que dói de mansinho, sofrimento no coração de todos os apaixonados.

A cena: o marido e a mulher chegam a uma festa. Muita gente conhecida e desconhecida, música, risos, olhares… Marido e mulher se separam para se socializarem com outras pessoas. Numa roda, o marido conversa e ri, distraído. De repente, ele vira o seu rosto e vê a sua mulher em outro grupo. Ela está de costas, vestido branco, costas nuas. Como ela é bonita! Ele a ama e pensa que outros homens já olharam para ela com olhares de admiração e desejo. Ela se tornou o centro das atenções da sua roda. Todos os homens se esforçam por lançar o seu charme. Ela ri. De costas para o marido é como se ele não existisse. Como aconteceu com a mulher que lia o livro. Ri por causa dos outros que a cercam, grupo do qual o marido está ausente. E ele pensa que, naquele momento, a felicidade da sua mulher acontece sem que ele dela participe. E lhe dói saber que ela pode ser feliz sem ele, ainda que num breve momento.

Sofre em silêncio, sem demonstrar. E nem fará cobranças quando voltarem para a casa. Afinal de contas, ele é um homem educado que compreende os movimentos da alma.

O ciúme nasce quando se toma consciência de que a pessoa amada é livre. Ela é como um pássaro pousado no ombro. Nada o prende. Poderá voar para longe quando quiser.

Alguns ciumentos tolos acham que o casamento é gaiola que garantirá a posse plena do pássaro. Mas nada garante a posse do pássaro. O pássaro voa, o pássaro volta… Mas pode ser mesmo que ele voe e não volte…


Rubem Alves

O Amor não se Promete


O Amor não se Promete 

Há uma distância fundamental entre as palavras e os gestos de cada homem. As palavras prometem mundos, os gestos constroem-nos. As palavras esclarecem pouco, os gestos definem quase tudo. 

O amor é um projeto, uma construção que necessita de ser realizada a cada dia. Sem grandes discursos. Qualquer hora é tempo de amar. Se o amor é verdadeiro, não há tempos de descanso, porque o silêncio no coração dos que buscam lutar contra as trevas dos egoísmos é a paz mais profunda e o maior descanso... ainda que se cravem espinhos na carne, ainda que não sarem as feridas antigas, ainda que a esperança tenha pouco mais onde se apoiar do que nela própria. 

Cada um de nós é aquilo que for capaz de ir construindo de firme e duradouro a cada dia por entre todas as tempestades da vida. 

O Amor não se Promete 

Há muito quem sonhe e passe o tempo a desejar o que não é... esperam e desesperam por algo que lhes há de chegar de fora... rejeitando quase tudo quanto são, quando, na verdade, é com o que temos e somos que devemos ser felizes, por pouco e por pior que seja... somos nós. Mas nós não somos quem somos só para nós mesmos. Eu sou quem sou, mas só o serei se for capaz de me encontrar com os outros. Ser humano é ser relacional. Ser é sempre ser com o outro. Ninguém se vê só a si quando se olha por um espelho. Ser é amar. Dar-se... sem grandes sonhos ou promessas, com pequenos gestos, na heroica coragem de acreditar que não são nem as palavras nem os desejos que nos devolvem ao céu. 

Encarcerados nunca seremos autênticos, devemos pois libertar-nos de tudo quanto nos pesa, de forma especial das coisas materiais, romper com as teias dos sonhos que nos inebriam e incapacitam de sair de nós mesmos para o mundo, de criar mundo... sem esperar nada, a não ser conseguirmos chegar ao melhor de nós mesmos... 

Este desprendimento não será prudente aos olhos do mundo, mas é essencial confiar e seguir adiante, até porque as coisas e as pessoas são o que são, independentemente da forma como os olhos do mundo as veem, sentem ou pensam... 

Aos sonhos falta existirem de facto, realizarem-se, ou melhor, serem realizados por alguém. A existência é um dos mais belos e decisivos atributos para que algo se faça determinante da nossa felicidade. Por isso a realidade mais pobre é, ainda assim, mais bela que o sonho mais magnífico... 

Quase todos os egoísmos têm nome de amor. Conscientes do que são, escondem-se. Normalmente juntam-se aos pares... fazem pouco, falam muito, prometem tudo.... entrelaçam as suas necessidades de ter mais, de estar melhor, sem cuidarem que cada homem é muito mais do que aquilo que tem ou do que forma como está... nós, humanos, não somos deste mundo... somos do lugar de onde chegámos quando nascemos e do lugar para onde havemos de ir depois da morte... um mundo de onde este faz parte, mas muito maior, muito melhor... muito mais profundo. 

É pois importante procurar a vontade do outro, e encontrarmo-nos nela, sermos o melhor que ele pode receber e merecer... 

Amar é arriscar tudo, sem garantia alguma. Apenas com a fé de que, no amor, nos cumprimos... Amar é desprender-se e perder-se... abrir-se e abandonar-se à vontade de ser feliz. 

Só o amor permite que se cumpra a mais essencial de todas as promessas da existência: Uma vida com valor e verdade. 

Quem ama não promete... dá. 


José Luís Nunes Martins, in 'Amor, Silêncios e Tempestades'

RABISCOS


Uma vez, duas vezes, três vezes…

Escreves e riscam, escreves e riscam… Molhas a caneta, a mão abandonada a meia altura, titubeante. O cérebro não transmite à mão, aos dedos, o impulso para se moverem. A mão desce sobre o papel e a ponta de aço passeia sobre a brancura descrevendo complicadíssimos rabiscos, labirintos sem saída. Procura-se fatigosamente a saída. O pensamento aguça-se na angústia, choca-se contra as paredes para ver se elas se abrem numa passagem possível. Começa-se. Apaga-se. Recomeça-se. A expressão flui, o trabalho de aglutinação das frases e dos períodos repousa, afrouxa o esforço inicial. Convencemo-nos de ter encontrado o equilíbrio necessário entre as necessidades da própria sinceridade e as agressões irracionais da censura.

Aguardamos vacilantes. Claro, vacilantes, porque amamos tudo o que nos exigiu um esforço para nascer, para exteriorizar-se. Sentimos as mesmas impressões de outrora, diante dos professores, com esta diferença: com os professores estávamos convencidos de estar diante de indivíduos absolutamente superiores que tinham verdadeiramente a capacidade de julgar nossos esforços, os nossos méritos. Agora sentimos, pelo contrário, a incapacidade absoluta, o despreparo absoluto em quem armado de lápis, como então, julga e ordena. Mas há uma igualdade entre uns e outros, sentimos que uma igualdade existe.

Encontramo-nos agora, como então, diante de italianos, de velhos italianos (ainda quando jovens em idade), que não dão nenhuma importância aos outros, ao trabalho, ao esforço dos outros, à personalidade moral dos outros. Detentores, por um momento, de um poder (embora pequeno), querem deixar um vestígio dele, um vestígio o maior possível. O velho italiano não está habituado à liberdade: e não se fala de liberdade com L maiúsculo, abstração ideológica, mas da pequena, concreta liberdade, que se exprime no respeito aos outros, ao trabalho, aos esforços, à personalidade e às necessidades morais dos outros; que vence as pequenas, exasperantes, inúteis irritações; que impõe a quem tem o poder (mesmo que seja um pequeno poder) o ato de evitar até a aparência de uma injustiça, de um abuso.

Quem tem confiança nas boas energias dos homens e não ceifa um campo de trigo para destruir quatro papoulas e meia dúzia de tenras hastes de joio. Que acredita, antes, natural que assim seja, que ao trigo se misture joio e papoulas, porque uma vida coletiva só é saudável quando há luta, atrito, choque de sentimentos e paixões, e só na luta se revelam os fortes, os indispensáveis, os homens de fé e de ação, que tapam a boca à crítica agindo fortemente. Mas o velho italiano não compreende um poder sem repressões: se na Itália houvesse a pena de morte e ninguém sofresse esta sanção, o carrasco, para não estar sem fazer nada, tornar-se-ia mandatário de assassínio e de estupros, para poder trabalhar os seus cúmplices.

Assim como acontece em muitos vilarejos da Itália meridional, onde os guardas rurais danificam, eles próprios, a propriedade privada, para fazer sentir que são indispensáveis. Assim também o censor, para fazer sentir quanto é fatigante e árduo o seu ofício, apaga, anula, risca tudo, tudo, tudo, trigo e papoulas, trabalho e tédio, bem e mal. E a caneta continua a traçar rabiscos, esperando, porque sente que esta barbárie (a confusão nos critérios, o arbítrio e o abuso são barbáries), se esgotará na própria raiva…


GRAMSCI, A. Sotto la Mole (1916-1920). Torino: Einaudi, 1975. 

Corpo

 



O corpo, 

Esta ilusão, 

A transparência

Onde o tempo se inscreve, 

A esculpida

Relembrança 

— o não vivido. 


O corpo,

Este completo desfrutar-se,

Onda, peixe, sereia, 

De barbatanas selvagens 

Como facas. 


Corpo — o corpo, 

Território do nunca,

Inigualável 

País do meu espanto. 

De todos os espantos. 

(des)encontros, naufrágios,

Precipícios. 

Pássaro-fêmea, carne

Colada em moldura,

Pele, poro.


Myriam Fraga 

Os cinco sentidos

Robert Auer 

Sinto e louvo em ti todas as mulheres

e em cada uma delas os cinco sentidos

e mais um que só eu sei ler: o dom da natureza.

Por isso te peço que me bebas e vejas e ouças

e palpes e aspires e sintas em mim a terra toda.

E contigo farei o mesmo, e todo eu irei em busca

da primavera e de todas as outras estações

do corpo onde em cada uma delas morrer eu queria

devastando o teu corpo de mulher menina.

Resumir eu queria numa cerimónia derradeira 

os prazeres que vivi contigo e mais e mais.

Mas como poderei matar-te, minha amada

se depois da morte a carne fica separada?

Por isso desejo que me mates ao mesmo tempo.


Casimiro de Brito

 


O valor da filosofia, na realidade, deve ser buscado, em grande medida, na sua própria incerteza. O homem que não tem umas tintas de filosofia caminha pela vida afora preso a preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais de sua época e do seu país, e das convicções que cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada. Para tal homem o mundo tende a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele os objetos habituais não levantam problemas e as possibilidades não familiares são desdenhosamente rejeitadas. Quando começamos a filosofar, pelo contrário, imediatamente nos damos conta (como vimos nos primeiros capítulos deste livro) de que até as coisas mais ordinárias conduzem a problemas para os quais somente respostas muito incompletas podem ser dadas. A filosofia, apesar de incapaz de nos dizer com certeza qual é a verdadeira resposta para as dúvidas que ela própria levanta, é capaz de sugerir numerosas possibilidades que ampliam nossos pensamentos, livrando-os da tirania do hábito. Desta maneira, embora diminua nosso sentimento de certeza com relação ao que as coisas são, aumenta em muito nosso conhecimento a respeito do que as coisas podem ser; ela remove o dogmatismo um tanto arrogante daqueles que nunca chegaram a empreender viagens nas regiões da dúvida libertadora; e vivifica nosso sentimento de admiração, ao mostrar as coisas familiares num determinado aspecto não familiar.


                                                                                         Bertrand Russell, O Valor da Filosofia

Ai daqueles que nos amam

Painting by Timothy Rees

XX


Nós, poetas e amantes

o que sabemos do amor?

Temos o espanto na retina

diante da morte e da beleza.

Somos humanos e frágeis

mas antes de tudo, sós.


Somos inimigos.

Inimigos com muralhas

de sombra sobre os ombros.

E sonhamos. Às vezes

damos as mãos àqueles

que estão chorando.

(os que nunca choraram por nós)


Ah, meus irmãos e irmãs...

Ai daqueles que nos amam

e que por amor de nós se perdem.

Ah, pudéssemos amar um homem

ou uma mulher ou uma coisa...

Mas diante de nós, o tempo

se consome, desaparece e não para.


Ouvi: que vossos olhos se inundem

de pranto e água de todo o mundo!

Somos humanos e frágeis

mas antes de tudo, sós.


  Hilda Hilst

De Balada do Festival (1955)

Meu Credo



É uma bênção especial pertencer entre aqueles que podem dedicar suas melhores energias para a contemplação e exploração de coisas objetivas e atemporais. Quão feliz e grato eu sou por ter recebido essa bênção, que dá um grande grau de independência em relação ao destino pessoal de alguém e a atitude de seus contemporâneos. No entanto, essa independência não deve nos habituar à consciência dos deveres que constantemente nos prendem ao passado, presente e futuro da humanidade em geral.

Nossa situação na terra parece estranha. Cada um de nós aparece aqui, involuntariamente e sem ser convidado, para uma estadia curta, sem saber o porquê e para quê. Em nossa vida diária sentimos apenas que o homem está aqui para o bem dos outros, para aqueles a quem amamos e por muitos outros seres cujo destino está ligado com o nosso. Muitas vezes me perturba a ideia de que a minha vida é baseada em grande parte no trabalho dos meus companheiros seres humanos, e estou ciente da minha grande dívida para com eles.

Eu não acredito no livre-arbítrio. Palavras de Schopenhauer: “O homem pode fazer o que quer, mas não pode querer o que quer”, me acompanham em todas as situações ao longo de minha vida e me reconciliam com as ações dos outros, mesmo que elas sejam bastante dolorosas para mim. Esta consciência da falta de livre arbítrio me impede de levar a mim mesmo e aos meus colegas muito a sério como indivíduos de ação e decisão, e de perder o meu temperamento.

Eu nunca cobicei riqueza e luxo e até mesmo os desprezo de certa forma. Minha paixão pela justiça social muitas vezes me levou a um conflito com as pessoas, assim como a minha aversão a qualquer obrigação e dependência que eu não considero absolutamente necessárias. Eu tenho um grande respeito pelo indivíduo e uma aversão insuperável pela violência e o fanatismo. Todos estes motivos me fizeram um pacifista apaixonado e antimilitarista. Sou contra qualquer chauvinismo, mesmo sob o disfarce de mero patriotismo.

Privilégios com base na posição e propriedade sempre me pareceram injustos e perniciosos, assim como qualquer culto exagerado à personalidade. Eu sou um adepto do ideal da democracia, embora eu saiba bem as fraquezas da forma democrática de governo. A igualdade social e a proteção econômica do indivíduo sempre me pareceram os objetivos comuns importantes do estado.

Embora eu seja um solitário típico na vida diária, a minha consciência de pertencer à comunidade invisível daqueles que lutam pela verdade, beleza e justiça me impede de me sentir isolado.

A experiência mais bela e mais profunda que um homem pode ter é o sentido do mistério. É o princípio fundamental da religião, bem como de todo esforço sério na arte e na ciência. Aquele que nunca teve essa experiência parece-me que, se não está morto, então, está pelo menos cego.

Perceber que por trás de tudo o que pode ser experimentado há uma coisa que a nossa mente não pode compreender, cuja beleza e magnificência nos alcança apenas indiretamente: isso é religiosidade. Neste sentido, sou religioso. Para mim, basta questionar estes segredos e tentar humildemente entender com a minha mente uma mera imagem da estrutura elevada de tudo que existe.


Albert Einstein

Minha universidade



Vocês sabem francês.

Dividem,

multiplicam,

declinam perfeitamente.

Pois declinem!

Me digam: vocês

com os edifícios

sabem cantar?

A língua dos trens vocês compreendem?

Os discípulos

estendem as mãos

somente nos livros

e cadernos da tabuada.

Eu

aprendi o alfabeto nas placas

folheando páginas de ferro e alumínio.

Os mestres

apertam em suas mãos

a terra

arrancando-lhe cascas,

gomos,

mas toda ela não passa

de um globo

em escala.

Eu

de bruços aprendi geografia ─ 

não por acaso: dormia no chão

deitado nas tábuas

de meu mais regular declínio.

A Ilovaiski tortura uma questão:

─ Seria mesmo ruiva a barba do Barba-Ruiva?

Não me importa essa burrice de holofotes.

Qualquer história das ruas

para mim é mais digna de nota.

Pagam Boaventuras (para odiar

desventurados)

e fazem patíbulo de sobrenomes

do prestigioso pódio.

Eu

aos gordos

desde a infância aprendi a sentir ódio.

Eu era pobre

e me vendia pelo almoço.

Depois retinirão ideiazinhas

como tostões de cobre

para levar também as moças.

Eu somente com os edifícios me entretinha.

Só me respondiam os encanamentos.

À espera do que eu lhes lançasse na orelha

as calhas se esticavam dos telhados.

Depois, uns contra os outros

e todos contra as estrelas,

em línguas que eu lhes tenha alumiado,

estalavam cata-ventos.


Vladimir Maiakóvski

domingo, 24 de abril de 2022

Aforismos para a sabedoria de vida

 



Na juventude, predomina a percepção intuitiva; na idade madura, a reflexão; por isso a primeira é a época da poesia, enquanto a segunda é a da filosofia. Em questões práticas sucede o mesmo: durante a juventude as resoluções são formadas principalmente por impressões externas provenientes do mundo; enquanto que, mais tarde, as ações são determinadas pela reflexão. Isso se deve parcialmente ao fato de que apenas na idade madura os casos de percepção intuitiva se apresentam em número suficiente para permitir que sejam classificados segundo as ideias que representam — um processo que, por sua vez, faz com que tais ideias sejam compreendidas mais completamente em toda a sua significância, sendo fixada e determinada sua quantidade exata de valor e crédito; enquanto, ao mesmo tempo, acostumou-se às impressões produzidas pelos vários fenômenos da vida, e seus efeitos sobre si já não são os mesmos. Pelo contrário, na juventude a impressão da percepção intuitiva, o aspecto exterior das coisas, especialmente nos cérebros vivos e imaginativos, é tão poderosa que consideram o mundo como um quadro. Desse modo, preocupam-se com a espécie de figura que esculpem nele muito mais que com a disposição interior que desperta, moral e intelectualmente. Isso já se revela na vaidade pessoal e no gosto por roupas finas, que são características dos indivíduos jovens.


Arthur Schopenhauer, Aforismos para a sabedoria de vida

sábado, 23 de abril de 2022

Michael Taylor


De vez em quando visita-te 

o vazio. 


Nunca se faz anunciar, ignoras 

por onde e como entra, sabes apenas que entrou 

quando o vês passear pela tua casa 

com o à vontade de quem inspeciona um lugar 

onde planeia 

alojar-se longos dias. 


Vasculha tudo, revira todos os avessos 

retira tuas parcas certezas e sonhos 

dos lugares onde os guardas

enrodilha-se nos lençóis

cerca, com seu hálito azedo

a suave cova das almofadas.

onde tua nuca 

já não encontra repouso 


Em todo o lado paira 

como fino pó negro que não se refugia 

nos recantos, antes te empurra para eles

não se instala na capa dos livros 

mas no interior 

das tuas mais amadas páginas. 


E não tens forma de o aspirar

porque é ele quem te aspira...


 António Gil in « Por estas alturas »

(...)Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.

Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. A realidade, Maria, é louca.

Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: “Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?”

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?” Essa indagação perplexa é lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!” O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada ou vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon” Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gato se fosses eu?”

Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste.

Disse o ratinho: “A minha história é longa e triste!” Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance”. Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance só é o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energeticamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: “Minha vida daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo” Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.

E escuta a parábola perfeita: Alice tinha diminuido tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor. Toda a pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.


Paulo Mendes Campos. Do livro “O amor acaba”.