sábado, 26 de junho de 2021

tríptico

leonid afremov

 I


Transforma-se o amador na coisa amada com seu

feroz sorriso, os dentes,

as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído

e silêncio. Traz o barulho das ondas frias

e das ardentes pedras que tem dentro de si.

E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado

silêncio da sua última vida.

O amador transforma-se de instante para instante,

e sente-se o espírito imortal do amor

criando a carne em extremas atmosferas, acima

de todas as coisas mortas.


Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.

E a coisa amada é uma baía estanque.

É o espaço de um castiçal,

a coluna vertebral e o espírito

das mulheres sentadas.

Transforma-se em noite extintora.

Porque o amador é tudo, e a coisa amada

é uma cortina

onde o vento do amador bate no alto da janela

aberta. O amador entra

por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.

O amador é um martelo que esmaga.

Que transforma a coisa amada.


Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher

que escuta

fica com aquele grito para sempre na cabeça

a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve

e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito

do amador.

Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,

dá-lhe o grito dele.

E o amador e a coisa amada são um único grito

anterior de amor.


E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito

de amador. E ela é batida, e bate-lhe

com o seu espírito de amada.

Então o mundo transforma-se neste ruído áspero

do amor. Enquanto em cima

o silêncio do amador e da amada alimentam

o imprevisto silêncio do mundo

e do amor.


II


Não sei como dizer-te que minha voz te procura

e a atenção começa a florir, quando sucede a noite

esplêndida e vasta.

Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos

se enchem de um brilho precioso

e estremeces como um pensamento chegado. Quando,

iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado

pelo pressentir de um tempo distante,

e na terra crescida os homens entoam a vindima

– eu não sei como dizer-te que cem ideias,

dentro de mim, te procuram.


Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros

ao lado do espaço

e o coração é uma semente inventada

em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,

tu arrebatas os caminhos da minha solidão

como se toda a casa ardesse pousada na noite.

– E então não sei o que dizer

junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.

Quando as crianças acordam nas luas espantadas

que às vezes se despenham no meio do tempo

– não sei como dizer-te que a pureza,

dentro de mim, te procura.


Durante a primavera inteira aprendo

os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto

correr do espaço –

e penso que vou dizer algo cheio de razão,

mas quando a sombra cai da curva sôfrega

dos meus lábios, sinto que me faltam

um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer

coisa extraordinária.

Porque não sei como dizer-te sem milagres

que dentro de mim é o sol, o fruto,

a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,

o amor,

que te procuram.


III


Todas as coisas são mesa para os pensamentos

onde faço minha vida de paz

num peso íntimo de alegria como um existir de mão

fechada puramente sobre o ombro.

– Junto a coisas magnânimas de água

e espíritos,

a casas e achas de manso consumindo-se,

ervas e barcos altos – meus pensamentos criam-se

com um outrora lento, um sabor

de terra velha e pão diurno.


E em cada minuto a criatura

feliz do amor, a nua criatura

da minha história de desejo,

inteiramente se abre em mim como um tempo,

uma pedra simples,

ou um nascer de bichos num lugar de maio.


Ela explica tudo, e o vir para mim –

como se levantam paredes brancas

ou se dão festas nos dedos espantados das crianças

– é a vida ser redonda

com seus ritmos sobressaltados e antigos.

Tudo é trigo que se coma e ela

é o trigo das coisas,

o último sentido do que acontece pelos dias dentro.

Espero cada momento seu

como se espera o rebentar das amoras

e a suave loucura das uvas sobre o mundo.

– E o resto é uma altura oculta,

um leite e uma vontade de cantar.


– Herberto Helder, no livro “A colher na boca”. 1961.