domingo, 23 de julho de 2023

 


"None of us have the promise of tomorrow. God forbid this is my last day on this beautiful earth, it won't be spent listening to some news person telling me how rotten we are, how rotten life is, heck no, I'm going out and seeing how beautiful life is.

As humans, our time on this planet is very limited...

Turn off, tune out, and turn on your life. Peace."

Frank Zappa



 “Eis o que sucede conosco na música: primeiro temos que aprender a ouvir uma figura, uma melodia, a detectá-la, distingui-la, isolando-a e demarcando-a como uma vida em si; então é necessário empenho e boa vontade para suportá-la, não obstante a sua estranheza, usar de paciência com seu olhar e sua expressão, de brandura com o que nela é singular: enfim chega o momento em que estamos habituados a ela, em que a esperamos, em que sentimos que ela nos faria falta, se faltasse: e ela continua a exercer sua coação e magia, incessantemente, até que nos tornamos seus humildes e extasiados amantes, que nada mais querem do mundo senão ela e novamente ela. - Mas eis que isso não nos sucede apenas na música: foi exatamente assim que aprendemos a amar todas as coisas que agora amamos. Afinal, sempre somos recompensados pela nossa boa vontade, nossa paciência equidade, ternura para com que é estranho, na medida em que a estranheza tira lentamente o véu e se apresenta como uma nova e indizível beleza: - é a sua gratidão por nossa hospitalidade. Também quem ama a si mesmo aprendeu-o por esse caminho: não há outro caminho. Também o amor há que ser aprendido.”

Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência


 If you look for a meaning, you’ll miss everything that happens.

Andrei Tarkovsky

domingo, 16 de julho de 2023


 I am not the picture you have painted in your mind of me. No matter how beautiful, or horrible it may be. They are your colors, and your artistry.

Rumi

[51] O livro do Desassossego


O céu negro ao fundo do sul do Tejo era sinistramente negro contra as asas, por contraste, vividamente brancas das gaivotas em voo inquieto. O dia, porém, não estava tempestuoso já. Toda a massa da ameaça da chuva passara para por sobre a outra margem, e a cidade baixa, úmida ainda do pouco que chovera, sorria do chão a um céu cujo Norte se azulava ainda um pouco brancamente. O fresco da Primavera era levemente frio.

Numa hora como esta, vazia e imponderável, apraz-me conduzir voluntariamente o pensamento para uma meditação que nada seja, mas que retenha, na sua limpidez de nula, qualquer coisa da frieza erma do dia esclarecido, com o fundo negro ao longe, e certas intuições, como gaivotas, evocando por contraste o mistério de tudo em grande negrume.

Mas, de repente, em contrário do meu propósito literário íntimo, o fundo negro do céu do Sul evoca-me, por lembrança verdadeira ou falsa, outro céu, talvez visto em outra vida, em um Norte de rio menor, com juncais tristes e sem cidade nenhuma. Sem que eu saiba como, uma paisagem para patos bravos alastra-se-me pela imaginação e é com a nitidez de um sonho raro que me sinto próximo da extensão que imagino.

Terra de juncais à beira de rios, terreno para caçadores e angústias, as margens irregulares entram, como pequenos cabos sujos, nas águas cor de chumbo amarelo, e reentram em baías limosas, para barcos de quase brinquedo, em ribeiras que têm água a luzir à tona de lama oculta entre as hastes verde-negras dos juncos, por onde se não pode andar.

A desolação é de um céu cinzento morto, aqui e ali arrepanhando-se em nuvens mais negras que o tom do céu. Não sinto vento, mas há-o, e a outra margem, afinal, é uma ilha longa, por detrás da qual se divisa — grande e abandonado rio! — a outra margem verdadeira, deitada na distância sem relevo.

Ninguém ali chega, nem chegará. Ainda que, por uma fuga contraditória do tempo e do espaço, eu pudesse evadir-me do mundo para essa paisagem, ninguém ali chegaria nunca. Esperaria em vão o que não saberia que esperava, nem haveria senão, no fim de tudo, um cair lento da noite, tornando-se todo o espaço, lentamente, da cor das nuvens mais negras, que pouco a pouco se mergiam [sic] no conjunto abolido do céu.

E, de repente, sinto aqui o frio de ali. Toca-me no corpo, vindo dos ossos. Respiro alto e desperto. O homem, que cruza comigo sob a Arcada ao pé da Bolsa, olha-me com uma desconfiança de quem não sabe explicar. O céu negro, apertando-se, desceu mais baixo sobre o Sul.


Bernardo Soares Fernando Pessoa

O Livro do Desassossego

domingo, 9 de julho de 2023

 


A solidão concede ao homem intelectualmente superior uma vantagem dupla: primeiro, a de estar só consigo mesmo; segundo, a de não estar com os outros. Esta última será altamente apreciada se pensarmos em quanta coerção, quantos estragos e até mesmo quanto perigo toda a convivência social traz consigo. «Todo o nosso mal provém de não podermos estar a sós», diz La Bruyère. A sociabilidade é uma das inclinações mais perigosas e perversas, pois põe-nos em contato com seres cuja maioria é moralmente ruim e intelectualmente obtusa ou invertida. O insociável é alguém que não precisa deles.

Desse modo, ter em si mesmo o bastante para não precisar da sociedade já é uma grande felicidade, porque quase todo o sofrimento provém justamente da sociedade, e a tranquilidade espiritual, que, depois da saúde, constitui o elemento mais essencial da nossa felicidade, é ameaçada por ela e, portanto, não pode subsistir sem uma dose significativa de solidão. Os filósofos cínicos renunciavam a toda a posse para usufruir a felicidade conferida pela tranquilidade intelectual. Quem renunciar à sociedade com a mesma intenção terá escolhido o mais sábio dos caminhos.


(Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida')

 


Assim se forjam palavras,

assim se engendram culpados;

assim se traça o roteiro

de exilados e enforcados:

a língua a bater nos dentes...

Grandes medos mastigados...


O medo nos incisivos,

nos caninos, nos molares;

o medo a tremer nos queixos,

a descer aos calcanhares;

o medo a abalar a terra;

o medo a toldar os ares;


o medo a entregar amigos

à sanha dos potentados;

a fazer das testemunhas

algozes dos acusados;

a comprar os ouvidores,

os escrivães e os soldados...


Cecília Meireles

Madame Bovary

 


...Às vezes pensava que afinal aqueles eram os mais belos dias da sua vida, a lua de mel, como diziam. Para lhe saborear a doçura teria sido preciso, sem dúvida, viajar-se por países de nomes sonoros, onde as manhãs das noites nupciais são cheias das mais suaves indolências! Em carruagens, sob cortinas de seda azul, sobem-se a passo caminhos íngremes e escarpados, ouvindo o cantarolar do cocheiro repercutindo na montanha com o chocalhar das cabras e o ruído surdo das cascatas. Depois do pôr do sol, respira-se à beira dos golfos o perfume dos limoeiros; e à noite, nos terraços das vilas, sozinhos, e com os dedos entrelaçados, olham para as estrelas, fazendo projetos. E parecia-lhe que certos lugares da terra deviam dar a felicidade, como planta peculiar ao solo que não se dá bem noutra parte. Não poder ela encostar-se ao balcão dos chalés suíços ou encerrar a tristeza num contage escocês, com um marido de casaca de veludo preto com abas grandes, botas, chapéu pontiagudo e com rendas nas mangas!

Desejava talvez fazer a alguém a confidência de todas estas coisas. Mas explicar um inexplicável mal-estar, que muda de aspecto como as nuvens e que se move em turbilhão como o vento? Faltavam-lhe, pois, palavras, ocasião e coragem.
Se, entretanto, Carlos quisesse, se ele suspeitasse de semelhante coisa, se o seu olhar, uma única vez, fosse ao encontro do seu pensamento, talvez que uma súbita riqueza se lhe destacasse do coração como caem os frutos de uma árvore que se sacode. Mas, à proporção que mais se apertava a intimidade de sua vida, mais aumentava essa espécie de desapego interior que a desligava dele.
A conversa de Carlos era plana como o passeio da rua, e as ideias de toda a gente desfilavam nela o seu feitio vulgarsem provocar comoção, riso ou devaneio. Carlos nunca tivera curiosidade, dizia ele, enquanto residira em Ruão, de ir ao teatro ver os atores de Paris. Não sabia nadar, nem esgrimar, nem atirar, e não pôde, um dia explicar-lhe certo termo de equitação que ela encontrara num romance.
Um homem não devia, ao contrário, primar em múltiplas atividades, saber iniciar uma mulher nos embates da paixão, nos requintes da vida, enfim, em todos os mistérios? Mas aquele não ensinava, nada sabia, nada desejavaSupunha-a feliz; e ela não lhe podia perdoar aquela tranquilidade tão bem assente, aquela gravidade serena, nem a própria felicidade que ele lhe dava.
Ela, às vezes desenhava; e era para Carlos uma grande distração permanecer de pé, vendo-a curvada sobre o cartão, piscando os olhos a fim de melhor ver o esboço ou fazendo distraidamente bolinhas de miolo de pão. Com relação ao piano, quanto mais velozes corriam os dedos no teclado, mais ele se maravilhava. Ema batia nas teclas com elegância e percorria o teclado de alto a baixo sem interrupção. Assim sacudido por ela, o velho instrumento, cujas cordas já tinham perdido a elasticidade, era ouvido até no fim da aldeia se a janela estivesse aberta, e muitas vezes o ajudante do oficial de justiça, que passava pela estrada, sem chapéu e de chinelos, parava para ouvi-lo, com a folha de papel na mão.
Por outro lado, Ema sabia governar a casa. Mandava aos doentes as contas das visitas, em cartas muito bem escritas e que não tinham aspecto de fatura. Quando, aos domingos, tinham algum vizinho para jantar, achava sempre meio de apresentar um prato bonito; era exímia em dispor, sobre folhas de parreira, pirâmides de rainhas-cláudias, e servia os potes de doce invertidos, sobre um prato; dizia até que havia de comprar, para a sobremesa, tigelas de lavar a boca. De tudo isto resultava consideração para Bovary.
Carlos sentia crescer a estima de si próprio por ter tal esposa. Mostrava com orgulho, na sala, dois pequenos esboços dela, a lápis, que ele mandara por em molduras muito largas e tinha pendurado na parede com grandes cordões verdes. Ao saírem da missa, viam-no à porta com os seus belos chinelos bordados.
Recolhia-se às 10 horas, às vezes, à meia-noite. Queria então cear, e, como a criada já estava deitada, era Ema quem o servia. Ele despia a sobrecasaca para comer mais à vontade. Enumerava sucessivamente todas as pessoas que encontrara, as aldeias onde fôra, e as receitas que dera; e, satisfeito consigo mesmo, comia o resto do guisado, cortava uma fatia de queijo, trincava uma pêra, esvaziava a garrafa e depois ia para a cama, deitava-se de costas e punha-se a ressonar.
[...]
... segundo teorias que ela tinha por boas, quis entregar-se ao amor. Ao luar, no jardim, recitava em rimas apaixonadas tudo que sabia de cor e cantava-lhe suspirando adágios melancólicos; mas, depois, sentia-se tão tranquila como dantes e Carlos já não lhe parecia mais amoroso nem agitado.
Depois de ter assim batido com o fuzil no coração sem lhe arrancar uma faísca, incapaz afinal de compreender o que não sentia, como de acreditar em tudo que não se manifestasse sob formas convencionais, persuadia-se sem dificuldade de que a paixão de Carlos já nada tinha de excessiva. Suas expansões haviam-se tornado regulares; beijava-a em horas certas. Era um hábito como os outros e como que uma sobremesa prevista com antecipação após a monotonia do jantar.
Um guarda-florestal, curado de um defluxo pelo médico, presenteara Ema com uma galgazinha da Itália; ela levava-a sempre consigo a passeio, pois saía às vezes a fim de estar um pouco sozinha e não ter diante dos olhos o eterno jardim com a sua poeira.
Ia até as faias de Banneville, junto do pavilhão abandonado que fica à esquina do muro, do lado dos campos. Na valeta, ente as ervas, há compridas canas de folhas cortantes.
Ema começava por olhar em torno, verificando se havia alguma mudança desde que fora ali a última vez. Achava no mesmo lugar as digitais, as boninas, as moitas de urtiga em volta dos grandes calhaus e as manchas de musgo ao longo das três janelas, cujas portas, sempre fechadas, caíam de podre sobre barras de ferro enferrujadas. O seu pensamento, primeiro sem ponto fixo, vagabundeava ao acaso, como a sua galgazinha, que dava corridas pelo campo, ladrava para as borboletas amarelas, caçava as aranhas, ou mordia as papoulas à beira dos montes de trigo. Depois suas ideias se fixavam, pouco a pouco, e, sentada na relva, castigava-a com a ponteira da sombrinha, repetindo para consigo: - Mas, meu Deus! Para que me casei? - E perguntava para si mesma se não haveria um meio, por quaisquer combinações do acaso, de encontrar outro homem; e diligenciava em imaginar quais teriam sido os acontecimentos não sobrevindos, a vida diferente, esse marido que ela não conhecia. Com efeito, nem todos se assemelhavam àquele. Podia ter sido belo, inteligente, distinto, atraente, tal como eram, sem dúvida, os que se tinham casado com as suas companheiras de convento. Que fariam elas agora? Na cidade, com o bulício das ruas, o rumor dos teatros e a iluminação dos bailes, levavam a existência que dilata o coração e desabrocha os sentidos. Ela, porém, tinha a vida fria de um celeiro aberto para o norte; e o tédio, aranha silenciosa, ia tecendo a sua teia na sombra de todos os cantos do seu coração. Recordava-se do dia da distribuição dos pêmios, quando subia a um estrado para receber o seu laurel. Com os cabelos em duas tranças, o vestido branco, e os sapatos abertos no peito do pé, tinha um aspecto gentil, e os cavalheiros, quando ela voltava para o seu lugar, inclinavam-se-lhe em reverências; o pátio estava cheio de carruagens, todos lhe atiravam adeus pelas portinholas, e o maestro, que ia passando, acenava-lhe cortesias com a caixa do violino. Tudo aquilo ia já longe, oh! tão longe!...
[...]
Surgiam de vez em quando rajadas de vento, brisas do mar que, rolando num ímpeto sobre o planalto da região de Caux, levava até os campos distantes uma espécie de salgado frescor. Os juncos sibilavam rente ao chão, e as folhas das faias rumorejavam num rápido frêmito, ao passo que os cimos, ondulando sempre, continuavam o seu grande murmúrio. Ema aconchegava o xale aos ombros e levantava-se.
Na avenida, um reflexo esverdeado da folhagem alumiava o gramado, que estalava brandamente sob as suas pisadas. O sol chegara ao ocaso; o céu enrubescido surgia por entre os ramos das árvores, cujos troncos uniformes plantados em linha reta pareciam uma colunata cinzenta destacando-se do fundo de ouro; vinha-lhe um medo súbito, chamava por Djali e voltava apressadamente a Tostes pela estrada principal. Ali chegava, atirava-se a uma poltrona e emudecia para o resto da noite.

Gustave Flaubert, Madame Bovary

Leite Derramado


 Foi a última noite que dormi aqui, e que sonhando com ela melei estes lençóis. Como toda manhã, arrancarei a roupa de cama e farei uma trouxa, que atirarei pela janela dos fundos para a lavadeira apanhar. Mas vai restar visível uma mancha úmida no colchão, que tratarei de virar como faço toda manhã, deixando para cima o lado das manchas secas. Terei a sensação de que o colchão pesa mais um pouco a cada dia, e imaginarei que na palha dentro dele, se impregna a pasta dos meus sonhos e atos solitários.

*
Para o jardineiro do casarão, mamãe era mesmo como a flor, que ao mudar de vaso às vezes fenece.
*
Vai ver que andei delirando, e de bom grado voltarei a falar somente de coisas que você já sabe. Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço da alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar. Não sei se já lhe contei como conheci Matilde na missa de sétimo dia do meu pai, quando ela falou Eulálio de tal jeito, que nem mesmo atrizes sensuais conseguiriam reproduzir na minha cama. Também acho que lhe contei como fui vigiá-la um dia depois, toda serelepe à saída da escola, era a mais moreninha da classe. Passei a buscá-la todo dia, só de de Matilde no saguão da escola juntei recordações em série para o resto da vida.
*
O médico sempre me corta a palavra para narrar suas atividades numas paragens que só ele conhece, nesses matos onde estrangeiros gostam de se enfiar. E toca a falar de paludismo, esquistossomose, mal de Chagas, hanseníase, e entre uma e outra endemia me pego a contemplar o forte de Copacabana, esperando que desponte um transatlântico por trás da pedra. Ao meio-dia Matilde leva a Eulalinha para casa, onde lhe dá de mamar e a embala com a cantiga do boitatá-pega-neném. Volta para sentar comigo, me faz deitar a cabeça no seu colo e diz, abre a boca e fecha os olhos. Enche minha boca de areia e sai em disparada a fim de que eu a persiga mar a fundo, depois me chama para catar tatuís ou jogar peteca.
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É estranho ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram, acabo de lembrar que Matilde vai sumir para sempre.
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Se o leite estanca assim de supetão, dizia à ama, é porque a mãe perdeu um ente querido, ou padeceu grande decepção amorosa. Olhava para o alto quando se referia ao ente querido, e decepção amorosa ela falava olhando para mim, como se eu fosse um mau marido. Logo eu, que sentia falta de Matilde tanto quanto a minha filha, e nem ao menos tinha outros peitos para me consolar.

*

... A orquestra não dava pausa, a música era repetitiva, a dança se revelou vulgar, pela primeira vez julguei meio vulgar a mulher com quem eu tinha me casado. Depois de meia hora eles voltaram se abanando, e escorria suor pelo colo de Matilde decote abaixo. Bravô, eu gritei, bravô, e ainda os estimulei a dançar o próximo tango, mas Dubosc dise que já era tarde, e que eu tinha um ar fatigado. Fatigado estava ele, que pediu carona até seu hotel a duas quadras, e se recolheu sem se despedir direito, nem sequer beijou a mão de Matilde. Talvez tenha concluído, ao longo da noitada, que ela era mulher para dançar maxixe, e não de beijar a mão. E no caminho de casa Matilde pegou a assobiar, assobiava a melodia do tal maxixe. Parecia má-criação, de uma feita assobiou num jantar de minha mãe, que se retirou da mesa. Mas agora deve ter percebido o quanto me exasperava, porque se interrompeu para perguntar o que havia comigo. Nada, azia, eu disse, e não era mentira, meu estômago não suportava cachaça, que agora era moda servir até em locais requintados. Ela saiu do carro antes que eu lhe abrisse a porta, e mal entramos em casa foi para a cozinha, tinha mania de ir para a cozinha. Volta e meia levava a criança à cozinha, dava conversa às empregadas, era vezeira em almoçar ali com a babá. Então me vi tomado de um sentimento obscuro, entre a vergonha e a raiva de gostar de uma mulher que vive na cozinha. Eu seguia Matilde, que falava sozinha, que meio cantarolando perguntava pelo chá de boldo, e de repente não sei o que me deu, agarrei-a com violência pelas costas. Joguei-a contra a parede e ela não entendeu, começou a emitir gemidos nasais, o rosto achatado nos ladrilhos. Prendi seus punhos na parede, ela se debatia, mas eu a controlava com meus joelhos atrás dos seus. E como meu tronco eu a apertava, eu a espremia a valer, eu quase a esmagava na parede, até que Matilde disse, eu vou, Eulálio, e seu corpo tremeu inteiro, levando o meu a tremer junto.

*

Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda ainda não houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você ver televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposentos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. Não sei se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tanta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mulher gostava de sol, voltava sempre afogueada das tardes do areal de Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo, e de qualquer forma eu não moraria com você na casa de outro casamento, moraremos na fazenda da raiz da serra. Vamos nos casar na capela que foi consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro em mil oitocentos e lá vai fumaça. Na fazenda você tratará de mim e de mais ninguém, de maneira que ficarei completamente bom. E plantaremos árvores, e escreveremos livros, e se Deus quiser ainda criaremos filhos nas terras de meu avô.Mas se você não gostar da raiz da serra por causa das pererecas e dos insetos, ou da lonjura ou de outra coisa, poderíamos morar em Botafogo, no casarão construído por meu pai. Ali há quartos enormes, banheiros de mármores com bidês, vários salões com espelhos venezianos, estátuas, pé-direito monumental e telhas de ardósias importadas da França. Há palmeiras, abacateiros e amendoeiras no jardim, que virou estacionamento depois que a embaixada da Dinamarca mudou para Brasília. Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro. Mas se amanhã eu vender a fazenda, que tem duzentos alqueires de lavoura e pastos, cortados por um ribeirão de água potável, talvez possa reaver o casarão de Botafogo e restaurar os móveis de mogno, mandar afinar o piano Pleyel da minha mãe. Terei bricolagens para me ocupar anos a fio, e caso você deseje prosseguir na profissão, irá para o trabalho a pé, visto que o bairro é farto em hospitais e consultórios. Aliás, bem em cima do nosso próprio terreno levantaram um centro médico de dezoito andares, e com isso acabo de me lembrar que o casarão não existe mais. E mesmo a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia. Estou pensando alto para que você me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que você me transcreva sem precisar ser taquígrafa, você está aí? Acabou a novela, o jornal, o filme, não sei por que deixam a televisão ligada, fora do ar. Deve ser para que esse chuvisco me encubra a voz, e eu não moleste os outros pacientes com meu palavratório.

*

... adoro ver seus olhos de rapariga rondando a enfermaria: eu, o relógio, a televisão, o celular, eu, a cama do tetraplégico, o soro, a sonda, o velho do Alzheimer, o celular, a televisão, eu, o relógio de novo, e não deu nem um minuto. Também acho uma delícia quando você esquece os olhos em cima dos meus, para pensar no galã da novela, nas mensagens do celular, na menstruação atrasada."

*

A figurar Matilde trancada num sanatório, era mil vezes preferível perambular pela cidade, adivinhando a silhueta dela em cada janela de arranha-céu. Algum dia eu haveria de topar com ela, mesmo que se passassem anos, mesmo aos beijos com outro. E se algum dia encontrasse Matilde com outro, mais que olhar Matilde eu olharia o outro, eu necessitava saber como era esse homem, para dar substância ao meu ciúme. Eu pensava nesse homem constantemente, muitas noites cheguei a sonhar com ele, mas ao despertar não conseguia lhe conferir forma humana. Nem ódio eu podia ter de um sujeito que não me ultrajou, não entrou na minha casa, não fumou meus charutos, não violentou minha mulher. E pouco a pouco me dispus a aceitá-lo, procurei imaginá-lo como uma alma delicada, como alguém que olharia por Matilde na minha falta. Imaginava um homem que se dirigisse a ela somente com palavras que nunca usei, que tivesse o cuidado de tocar a pele dela onde eu jamais tocava. Um homem que se deitasse com ela sem tomar o meu lugar, um homem que se contentasse em ser o que eu não era. De tal modo que Matilde pensaria em mim sempre que olhasse em torno dele, e em sonhos nos visse os dois ao mesmo tempo, sem compreender quem era a sombra de quem. E ao despertar, talvez só se lembrasse vagamente de ter sonhado com o desenho das ondas em preto-e-branco, no mosaico da calçada de Copacabana. A calçada onde em tempos ela saltitava como se jogasse amarelinha, porque não podia pisar senão nas pedras brancas. E onde eu agora caminhava trôpego, trançando as pernas, pois apenas roçasse um pé nas pretas, cairia no inferno.
Acho que o inferno era a doença de Matilde.

*

O sonífero não tem mais efeito imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio de pensamentos. Ouço ruídos de gente, de vísceras, um sujeito entubado emite sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa. O médico plantonista vai entrar apressado, tomar meu pulso, talvez me diga alguma coisa. Um padre chegará para a visita aos enfermos, falará baixinho palavras em latim, mas não deve ser comigo. Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustém pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco.


Chico Buarque, Leite Derramado