domingo, 29 de maio de 2022

O livro do desassossego [42]

 


Não compreendo senão como uma espécie de falta de asseio esta inerte permanência em que jazo da minha mesma e igual vida, ficada como pó ou porcaria na superfície de nunca mudar.

Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa — não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.

Há muitos em quem o desasseio não é uma disposição da vontade, mas um encolher de ombros da inteligência. E há muitos em quem o apagado e o mesmo da vida não é uma forma de a quererem, ou uma natural conformação com o não tê-la querido, mas um apagamento da inteligência de si mesmos, uma ironia automática do conhecimento.

Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento, pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. Há porcos de destino, como eu, que se não afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atração da própria impotência.

São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão.

Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente, no meu tronco de árvore do usual. Assim passeio o meu destino que anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue, pois eu não sigo. Nem me salva da monotonia senão estes breves comentários que faço a propósito dela.

Contento-me com a minha cela ter vidraças por dentro das grades, e escrevo nos vidros, no pó do necessário, o meu nome em letras grandes, assinatura quotidiana da minha escritura com a morte.

Com a morte? Não, nem com a morte. Quem vive como eu não morre: acaba, murcha, desvegeta-se. O lugar onde esteve fica sem ele ali estar, a rua por onde andava fica sem ele lá ser visto, a casa onde morava é habitada por não-ele. É tudo, e chamamos-lhe o nada; mas nem essa tragédia da negação podemos representar com aplauso, pois nem ao certo sabemos se é nada, vegetais da verdade como da vida, pó que tanto está por dentro como por fora das vidraças, netos do Destino e enteados de Deus, que casou com a Noite Eterna quando ela enviuvou do Caos que nos procriou.

Partir da Rua dos Douradores para o Impossível… Erguer-me da carteira para o Ignoto… Mas isto intersecionado com a Razão — o Grande Livro que diz que fomos.


Bernardo Soares. Fernando Pessoa

O livro do desassossego

DA ÁRVORE DA MONTANHA.


Os olhos de Zaratustra tinham visto um mancebo que evitava a sua presença. E, uma tarde, ao atravessar sozinho as montanhas que rodeiam a cidade denominada “Vaca Malhada”, encontrou esse mancebo sentado ao pé de uma árvore, dirigindo ao vale um olhar fatigado. Zaratustra agarrou a árvore a que o mancebo se encostava e disse:

“Se eu quisesse sacudir esta árvore com as minhas mãos não poderia; mas o vento, que não vemos, açoita-a e dobra-a como lhe apraz. Também a nós outros, mãos invisíveis nos açoitam e dobram rudemente.”

A tais palavras, o mancebo ergueu-se assustado, dizendo: “Ouço Zaratustra, e positivamente estava a pensar nele”

“Por que te assustas? O que sucede à árvore, sucede ao homem.

Quanto mais se quer erguer para as alturas e para a luz, mais vigorosamente enterra as suas raízes para baixo, para o tenebroso e profundo: para o mal.”

“Sim; para o mal! — exclamou o mancebo — Como é possível teres descoberto a minha alma?”

Zaratustra sorriu e disse: “Há almas que nunca se descobrirão, a não ser que se principie por inventá-las”.

“Sim; para o mal! — exclamou outra vez o mancebo.

Dizias a verdade, Zaratustra. Já não tenho confiança em mim desde que quero subir às alturas, e já nada tem confiança em mim. A que se deve isto?

Eu transformo-me depressa demais: o meu hoje contradiz o meu ontem. Com frequência salto degraus quando subo, coisa que os degraus me não perdoam.

Quando chego em cima, sempre me encontro só. Ninguém me fala; o frio da soledade faz-me tiritar. Que é que quero, então, nas alturas?

O meu desprezo e o meu desejo crescem a par; quanto mais me elevo mais desprezo o que se eleva?

Como me envergonho da minha ascensão e das minha quedas! Como me rio de tanto anelar! Como odeio o que voa! Como me sinto cansado nas alturas!”

O mancebo calou-se. Zaratustra olhou atento a árvore a cujo pé se encontravam e falou assim:

“Esta árvore está solitária na montanha. Cresce muito sobranceira aos homens e aos animais.

E se quisesse falar ninguém haveria que a pudesse compreender: tanto cresceu.

Agora espera, e continua esperando. Que esperará, então? Habita perto demais das nuvens: acaso esperará o primeiro raio?”

Quando Zaratustra acabava de dizer isto, o mancebo exclamou com gestos veementes:

“É verdade, Zaratustra: dizes bem. Eu desejei a minha queda ao querer chegar às alturas, e tu eras o raio que esperava. Olha: que sou eu, desde que tu nos apareceste? A inveja aniquilou-me!” Assim falou o mancebo, e chorou amargamente. Zaratustra cingiu-lhe a cintura com o braço e levou-o consigo.

Depois de andarem juntos durante algum tempo, Zaratustra começou a falar assim:

“Tenho o coração desfibrado. Melhor do que as tuas palavras, dizem-me os teus olhos todo o perigo que corres.

Ainda não és livre, ainda procuras a liberdade. As tuas buscas desvelaram-te e envaideceram-te demasiadamente.

Queres escalar a altura livre; a tua alma está sedenta de estrelas; mas também os teus maus instintos têm sede de liberdade.

Os teus cães selvagens querem ser livres; ladram de alegria no seu covil quando o teu espírito tende a abrir todas as prisões.

Para mim, és ainda um preso que sonha com a liberdade. Ai! a alma de presos assim torna-se prudente, mas também astuta e má.

O que libertou o seu espírito necessita ainda purificar-se. Ainda lhe restam muitos vestígios de prisão e de lodo: é preciso, todavia, que a sua vista se purifique.

Sim; conheço o teu perigo; mas, por amor de mim te exorto a não afastares para longe de ti o teu amor e a tua esperança!

Ainda te reconheces nobre, assim como nobre te reconhecem os outros, os que estão mal contigo e te olham com maus olhos. Fica sabendo que todos tropeçam com algum nobre no seu caminho.

Também os bons tropeçam com algum nobre no seu caminho, e se lhe chamam bom é tão somente para o pôr de parte.

O nobre quer criar alguma coisa nobre e uma nova virtude. O bom deseja o velho e que o velho se conserve.

O perigo do nobre, porém, não é tornar-se bom, mas insolente, zombeteiro e destruidor.

Ah! eu conheci nobres que perderam a sua mais elevada esperança. E depois caluniaram todas as elevadas esperanças.

Agora têm vivido abertamente com minguadas aspirações, e apenas planearam um fim de um dia para outro.

“O espírito é também voluptuosidade” — diziam. E então o seu espírito partiu as asas; arrastar-se-á agora de trás para diante, maculando tudo quanto consome.

Noutro tempo pensavam fazer-se heróis; agora são folgazões. O herói é para ele aflição e espanto.

Mas, por amor de mim e da minha esperança te digo: não expulses para longe de ti o herói que há na tua alma! Santifica a tua mais elevada esperança!”


Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra

Espiral dos Caminhos




Haveria um santo dos caminhos

que fizesse reto o que Deus gosta de entortar.

Deus deveria ter um caderno

de caligrafia para melhorar a letra.

Os caminhos que são linhas tortas

corrompem a emoção.

O peso dos outros é sempre

desigual, inumano e cheira a culpa.

Os caminhos emanam cheiro de futuro.

O ódio, o amor, o riso.

Tudo tem seu cheiro e sua medida.

Um metro de ódio,

uma dose de amor,

uma talagada de riso.

Aqui estão os caminhos espiralados,

os caminhos sem chão,

as retas que não levam à lucidez.


Ronaldo Costa Fernandes


Sobre organizar e ser organizado

Alicia Brizzio 

Portanto somos todos artistas de nossas vidas - conscientemente ou não, de boa vontade ou não, gostemos ou não. Ser artistas significa dar forma e condição àquilo que de outro modo seria sem forma ou aparência. Manipular probabilidades. Impor uma "ordem" no que, de outro jeito, seria o "caos": "organizar" uma coleção de coisas e eventos que, não fosse isso, seria caótica - aleatória, fortuita e imprevisível -, tornando a ocorrência de alguns desses eventos mais provável que a de todos os outros." 

Zygmunt Bauman, A arte da vida


 (...) Onde é que eu li aquilo de um condenado à morte que no momento de morrer dizia ou pensava que se o deixassem viver num alto, numa rocha e num espaço tão reduzido que mal tivesse onde pousar os pés; e se à volta não houvesse mais que o abismo, o mar, trevas eternas, eterna solidão e tempestade perene, e tivesse de ficar assim, em todo esse espaço de um archin, a sua vida toda, mil anos, a eternidade... preferiria viver assim do que morrer imediatamente? O que interessa é viver, viver, viver! Viver, seja como for, mas viver! O homem é covarde! O homem é um covarde!


 Fiódor Dostoiévski, in "Crime e Castigo"

O espião



 A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.

Agora são só treze e dezesseis.

Alguns ainda terão tempo de entrar;

alguns de sair.


O terrorista já passou para o outro lado da rua.

A distância o livra de todo mal

e a vista, bom, é como no cinema:


Uma mulher de jaqueta amarela, ela entra.

Um homem de óculos escuros, ele sai.

Uns jovens de jeans, eles conversam.


Treze e dezessete e quatro segundos.

Aquele mais baixo tem sorte, sai de lambreta,

e aquele mais alto entra.


Treze e dezessete e quarenta segundos.

Uma moça, ela passa de fita verde no cabelo.

Só que aquele ônibus a encobre de repente.


Treze e dezoito.

A moça sumiu.

Se ela foi tola de entrar ou não

vai se saber quando os carregarem para fora.


Treze e dezenove.

Parece que ninguém mais entra.

Aliás, um gordo careca sai.

Mas remexe os bolsos como se procurasse algo

e às treze e vinte menos dez segundos

ele volta para buscar a droga das luvas.


São treze e vinte.

O tempo, como ele se arrasta.

Deve ser agora.

Ainda não.

É agora.

A bomba, ela explode.


Wislawa Szymborska


Do poema

 

Charles Courtney Curran


O problema não é

meter o mundo no poema; alimentá-lo

de luz, planetas, vegetação. Nem

tão-pouco

enriquecê-lo, ornamentá-lo

com palavras delicadas, abertas

ao amor e à morte, ao sol, ao vício,

aos corpos nus dos amantes —

.

o problema é torná-lo habitável, indispensável

a quem seja mais pobre, a quem esteja

mais só

do que as palavras

acompanhadas

no poema.

.

 Casimiro de Brito,

in "Canto Adolescente"

Hino



É para ti

que crio os hinos 

e os oceanos

a persistência opaca

da noite

o vício das árvores


Os cabelos pretos 

que desprendo

são para ti que invento

o extinto 

roxo

dos teus lábios


É para ti que crio

o orvalho branco

dos meus espasmos

onde tu és deus 

e eu apenas nua

a dar-te o líquido instinto 

das gargantas


Como os meus seios arqueados 

lua


Maria Teresa Horta, 

In As Palavras do Corpo, 2012

sábado, 28 de maio de 2022

Alex Alemany


Se não fosse pianista era ladrão porque tem umas mãos

fantásticas. Quando toca, tudo o que toca floresce, o pró-

prio piano é como uma macieira florida, quase comoven-

te. E útil.

Alimento-me frequentemente daquela música, fruto de

um piano excitado, excitante, servida por aquelas mãos

que o provocam, mãos que valem, vazias, mais do que 

valeriam cheias de diamantes.

Se não fosse nem pianista nem ladrão, seria o quê?

Talvez mago. Talvez cirurgião. Ou talvez padre.

Mas é pianista. Pastor de sons numa montanha de emo-

ções encavalitadas. Quando toca, estremeço como as 

manhãs carregadas de orvalho e o peito é como um com-

bóio parado. A pele manifesta-se fazendo repicar todos 

os seus sinos, num movimento que os menos sensíveis 

chamam de arrepio.

É esta música que desperta os pássaros celestes quan-

do a madrugada faz abrir as cortinas da noite e podemos 

sentir o orgulho azul, azul, ainda mais azul, em triunfo, 

no céu.

E o céu a seu dono.


*

 Joaquim Pessoa

in ANO COMUM

 


Há quase dois dois meses, menos, vi a morte – e isso mudou muita coisa em mim. Está mudando. Teria que te contar devagar, com calma, como foi a história toda de ter que vestir o cadáver da mãe morta do Reinaldinho Moraes, quando eu nunca tinha visto aquilo de perto. Eu descobri que a gente morre. Eu sei agora que a gente morre. E achei feio, achei tristésimo, achei o corpo humano tão frágil, tão perecível. Fiquei doente, estou fraco, frágil, choro pelos cantos. Voltei à terapia, estou remexendo coisas fundas. Dolorosas, meio perdido, com uns problemas difíceis, materiais, de grana, de saúde, de solidão. E escolhendo não morrer, escolhendo continuar, de uma forma ainda meio cega, tortuosa, não-racional.

Ontem também fazia exatamente um ano que Ana Cristina se jogou pela janela. Eu tinha pensado nela o dia inteiro.

 

De Braços Abertos, a peça*

Porque chega uma hora em que você tem que escolher a vida. Eu talvez não saiba bem ainda o que isso significa, mas é claro para mim que a hora dessa escolha é agora, está acontecendo. Então ver De Braços Abertos foi outra peça que encaixou nesse quebra-cabeças cujo desenho real mal começo a intuir. Porque ela te puxa para o lado da vida, e que não é um lado facilmente ensolarado, luminoso, leve & solto. Vou falar o óbvio de Eros e Thanatos, mas o impulso para amar, para encontrar e conhecer e mergulhar no outro, é o que nos traz para perto da vida. E é por isso que quando se está de braços abertos, se está dando as costas para a morte. Ou deixando, calmamente, tão calmamente quanto possível, que ela venha a seu tempo – porque fatalmente virá.

O que acontece comigo é que eu tinha andado de braços fechados. Sem perceber. Analisando meus sonhos, ultimamente, isso tem ficado tão claro. E eu não quero mais. Ainda não sei como chegar lá, mas você me ajudou muito ontem à noite. Eu quase não conseguia falar, depois. E nem era preciso.

Acho que você está dando coisas lindas para as pessoas. Lindas com todos os componentes de dificuldades, e dores, e procuras, e tentativas e perdições. Lindas-fortes, não lindas-fáceis. Sinto uma grande admiração por você e um grande orgulho de poder me considerar seu amigo. Obrigado. Um beijo muito grande e com muito carinho. Seu


                                                                                                                   Caio Fernando Abreu


ennio montarello


Faz-me ouvir o teu canto, o eco

dos passos sob a negrura das abóbadas, e

o perfume de uma rosa de pele no fundo

dos tapumes. Envolve, ó deusa da tarde,

com a seda do teu corpo os corpos

que a noite deixou exaustos, e abraça

com um rumor de ausência os solitários

inquietos, como se tivessem perdido

o rumo do inverno nas linhas interrompidas

das suas mãos.


Nuno Júdice

Vácuo



Restam-nos destroços de lutas e de símbolos,

Escuridão, surpresas,

Ausências do querer no pensamento,

Fundo hiato na vida e na pré-morte

E a nascente vivência transformando

Instantes claros em sombras do eterno.

Restam-nos distância em tudo que existe

E mais distâncias ainda no obscuro imaginado

Quando em sons e gestos somos transformados

Em destinos que se unem nos extremos.

Restam-nos na preamar do tempo

O salitre de memórias reversíveis,

O cansaço dos nossos próprios cansaços,

Secreta neblina, abstrato manto

Agasalhando sustos no restante caminho neblinoso.

Restam-nos dúvidas na luz das manhãs recomeçadas,

Desalentos na oração intencional,

Fome na fome satisfeita,

Secura na umidade do suor,

E fadiga no vício do vulgar viver.

Restam-nos depois os ventos

Nas regiões do silêncio milenar.

As chuvas escorrendo sobre nós,

As pedras ferindo nossas mãos.


Adalgisa Nery

In Erosão (1973)

 

François Batet 


“Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.

“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais”.


A Descoberta do Mundo, Clarice Lispector, editora Rocco

 

Fulvio de Marinis


Só esta liberdade nos concedem

Os deuses: submetermo-nos

Ao seu domínio por vontade nossa.

Mais vale assim fazermos

Porque só na ilusão da liberdade

A liberdade existe.


Nem outro jeito os deuses, sobre quem

O eterno fado pesa,

Usam para seu calmo e possuído

Convencimento antigo

De que é divina e livre a sua vida.

Nós, imitando os deuses,

Tão pouco livres como eles no Olimpo,

Como quem pela areia

Ergue castelos para encher os olhos,

Ergamos nossa vida

E os deuses saberão agradecer-nos

O sermos tão como eles.


Ricardo Reis. Fernando Pessoa

Os dias



Naquele tempo, viver era a melhor coisa do mundo.

Quando nascia o sol as pessoas viam

e os homens eram crianças para além dos montes.

Era uma planície, grande como convém a todas as planícies

e plana porque tudo estava certo.

Naquele tempo tínhamos sido criados e éramos iguais às

ervas e às flores.


Tu,


tão perfeita que impossível não seres,

tão erguida como um riso de andorinha,

tu estavas ao meu lado, naturalmente fresca,

e não havia motivos nem razões porque sabíamos tudo.

A nossa teologia era o beijo da criança mais próxima

e o deitarmo-nos na terra como folhas da mesma planta,

gratos, reduzidos, conscientes.


Olhando para cima, o céu abria-se e todos os Anjos

vinham sentar-se no rebordo

e riam como nós pequenas gargalhadas.

Eu cantava canções mais belas do que não tendo palavras

e ouvias-me em silêncio e de olhos abertos, exactamente

como a todos os sons.


Pedro Tamen

 

Jean Pierre Monange 


Amanhã, ou enquanto dormes

- agora mesmo -, vou pensar em ti.

Intensamente: até que as horas me doam sobre a pele,

e o movimento dos dias passe como aves

que perdem o sentido do voo - até que tudo

o que me rodeia tome a forma do teu corpo.

E em mim circules - quando estendo a mão

por dentro da noite e te acordo,

no fogo dos meus olhos.


Al Berto

 

Jon PAUL  


“O amor tem a virtude de desnudar os dois amantes,

não um em frente do outro mas cada um deles

perante si próprio.” 

Pavese, Il Mestiete di Vivere


Enquanto leio Pavese

penso nas coisas mais pequeninas

da vida: por exemplo na virtude maior

do amor: desnudar os amantes perante os outros 

e perante si próprios. 

É a primeira descoberta do mundo.

O mundo é relevo e fenda, o mundo

é uma sucessão infinita de pequenos cumes

e grutas. E mais o desejo de ver

pousar tocar beijar beber degustar

essas falésias essas feridas

amantes: o botão que freme

e as fontes vivas, a cabeça que se levanta

e o vaso de terracota, o desejo que na língua cresce 

e já se agita. 

No cérebro. No joelho. Nas raízes

do coração. O mundo que por vezes se resume

num corpo. Um relevo uma fenda

que se entrega e tu caminhas nas nuvens

ainda que estejas deitada.


Casimiro de Brito

Um poema do livro em preparação "Sonata do Coração":

Inútil sou

 

Kari-Lise Alexander 


Por seguir das coisas o compasso, 

às vezes, quis neste século ativo, 

pensar, lutar, viver com o que vivo, 

ser no mundo algum parafuso a mais. 


Mas, atada ao sonho sedutor, 

do meu instinto voltei ao escuro poço, 

pois, como algum inseto preguiçoso 

e voraz, eu nasci para o amor. 


Inútil sou, pesada, torpe, lenta, 

meu corpo, ao sol estendido, se alimenta 

e só vivo bem no verão, 


quando a selva cheira e a enroscada 

serpente dorme em terra calcinada; 

a fruta se abaixa até minha mão. 


© ALFONSINA STORNI 

 

kathrin-longhurst


Vela sobre minha vida, meu grande amor imenso. 

Quando cheguei à vida trazia em suspense, 

na alma e na carne, a loucura inimiga, 

o capricho elegante e o desejo que açoita. 


Encantavam-me as viagens pelas almas humanas, 

a luz, os estrangeiros, as abelhas leves, 

o ócio, as palavras que iniciam o idílio, 

os corpos harmoniosos, os versos de Virgílio. 



Quando sobre teu peito minha alma foi tranquilizada, 

e a doce criatura, tua e minha, desejada, 

eu pus entre tuas mãos toda minha fantasia 


e te disse humilhada por estes pensamentos: 

-Vigiai-me os olhos! Quando mudam os ventos 

a alma feminina se transtorna e varia… 


© ALFONSINA STORNI 

Teus Olhos

Ken Hamilton.


Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima,

silêncio que fala,

tempestades sem vento, mar sem ondas,

pássaros presos, douradas feras adormecidas,

topázios ímpios como a verdade,

outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro

duma árvore e são pássaros todas as folhas,

praia que a manhã encontra constelada de olhos,

cesta de frutos de fogo,

mentira que alimenta,

espelhos deste mundo, portas do além,

pulsação tranquila do mar ao meio-dia,

universo que estremece,

paisagem solitária.


Octavio Paz, in: Liberdade sob Palavra

 

Lujan Gallardo


taquicardia


cem badaladas por minuto

:

é muito diz o doutor

é pouco o amor retruca


Líria Porto

Só a sede

Ly Hoang Long


apenas a sede

o silêncio

nenhum encontro

te cuida comigo, meu amor

cuidado com a silenciosa no deserto

a viajante de copo vazio

e a sombra de sua sombra

.:.

solo la sed

el silencio

ningún encuentro

cuídate de mí amor mío

cuídate de la silenciosa en el desierto

de la viejera con el vaso vacío

y de la sombra de su sombra


Alejandra Pizarnik

nada duas vezes

maria kreyn


Duas vezes nada acontece

nem acontecerá. E assim sendo,

nascemos sem prática

e sem rotina vamos morrendo.


Nesta escola que é o mundo,

mesmo os piores

nunca repetirão

nenhum inverno, nenhum verão.


Os dias não podem ser repetidos,

não há duas noites iguais,

não há beijos parecidos,

não se troca o mesmo olhar.


Ontem, o teu nome

em voz alta pronunciado

foi como se uma rosa

me tivessem atirado.


Hoje, ao teu lado,

voltei a cara para a parede.

Rosa? O que é uma rosa?

Será flor? Talvez rocha?


Porque tu, ó má hora,

me trazes a vã tristeza?

Se és, tens de passar.

Passarás - e daí a tua beleza.


Abraçados, enlevados,

tentaremos vencer a mágoa,

mesmo sendo diferentes

como duas gotas de água.


WISLAWA SZYMBORSKA, 

in ALGUNS GOSTAM DE POESIA


Não sonhas. Morres um pouco de manhã e ao meio do dia quando o sol mais queima. Tens de continuar. Tens de esquecer. Não aguentas mais. Tens de acabar, matar, recomeçar a viver. Só que ela está presa por dentro e tu agarrado a ela por um nó da garganta e não sabes o que deves deitar fora, arrancar, vomitar para que ela te saia de dentro. Sais à noite com definitivos propósitos de não voltares sozinho. Compões dentro da cabeça uma mulher com um bocadinho disto e um bocadinho daquilo e esperas que bata certo. Levas um bocado do tecido rasgado e queres encontrar o todo. Mas não encontras ninguém. Pior, encontras alguém que te vem provar sem remissão que não a vais poder substituir tão facilmente porque não há mais nada no mundo inteiro depois dela senão um deserto de tempo que se estende à tua frente onde tudo se torna insignificante e pequenino. Começas a beber, a fazeres-te mal, porque estás triste e não acreditas em nada senão na dor. Queres morrer e não podes e nem sequer coragem tens para te matar. E quando ainda pensas poder voltar atrás, também sabes que não é possível voltar atrás porque tu estás num mundo e ela noutro, os dois que tão depressa se afastam, encerrados em planas fotografias em que estão abraçados e nus e já não somos nós.

 

Pedro Paixão

— Porque se matam as saudades, Nos teus braços morreríamos

Michael and Inessa Garmash


De amor nada mais resta que um Outubro 

e quanto mais amada mais desisto: 

quanto mais tu me despes mais me cubro 

e quanto mais me escondo mais me avisto. 


E sei que mais te enleio e te deslumbro 

porque se mais me ofusco mais existo. 

Por dentro me ilumino, sol oculto, 

por fora te ajoelho, corpo místico. 


Não me acordes. Estou morta na quermesse 

dos teus beijos. Etérea, a minha espécie 

nem teus zelos amantes a demovem. 


Mas quanto mais em nuvem me desfaço 

mais de terra e de fogo é o abraço 

com que na carne queres reter-me jovem. 


Natália Correia *

In “Poesia Completa”

Soneto da Saudade

Miklós Földi 


Quando sentires a saudade retroar

Fecha os teus olhos e verás o meu sorriso.

E ternamente te direi a sussurrar:

O nosso amor a cada instante está mais vivo!


Quem sabe ainda vibrará em teus ouvidos

Uma voz macia a recitar muitos poemas...

E a te expressar que este amor em nós ungindo

Suportará toda distância sem problemas...


Quiçá, teus lábios sentirão um beijo leve

Como uma pluma a flutuar por sobre a neve,

Como uma gota de orvalho indo ao chão.


Lembrar-te-ás toda ternura que expressamos,

Sempre que juntos, a emoção que partilhamos...

Nem a distância apaga a chama da paixão.


Guimarães Rosa


sexta-feira, 27 de maio de 2022

Da vã tentativa de que um beijo te resuma

Serge Galanter

 

Um beijo, dois, três, quatro... eu te dou,

e em cada eu por mil me multiplico.

No beijo é aonde vou

buscar-me em tua boca — e nela fico.

 

Em vão tanto beijar: não abdico

do tanto a te beijar no que restou:

teu corpo codifico

se beijos em teu corpo nele sou.

 

Então te beijo tudo e todo em beijo,

me cai a ficha (Rá!): são vinho e queijo

os únicos sabores que me dás?

 

Que nada. Beijo é bom mas não resume

o gosto que me és e nem presume

o tanto de sabor se em mim estás.

 

Antoniel Campos

Entre o queixo e o coração

Pino - Giuseppe Dangelico 

o ponto é esse e a distância, exata.

nem um milímetro acima, abaixo.

o ponto onde me encaixo

é o que me ata.


feito pingente, mina no rebaixo

lá do pescoço, em tom quase escarlata,

que faz do ouro e a prata

um mero facho.


ali onde me quero e nem me peça

"assim, amor, vai mais pra baixo..."

já te adianto que a resposta é não.


— depois sabes que eu vou, mas pra que pressa? —

enquanto não, tal ponto enfaixo

com beijos, entre o queixo e o coração.


Antoniel Campos

 



dentro de mil anos não restará nada

de tudo que se escreveu neste século.

vão ler frases soltas, rastros

de mulheres perdidas,

fragmentos de crianças imóveis,

seus olhos lentos e verdes

simplesmente não existirão.

será como a antologia grega,

ainda mais distante,

como uma praia no inverno

para outro assombro e outra indiferença.


Roberto Bolãno, a universidade desconhecida

Soledad Fernandez

 

Tenho os sintomas todos:

navegam-me fluidos

e o devaneio em barcos de desejo

Os sons de trovoada

mesmo tapando ouvidos:

esclerótica paixão que não domino

Tenho os sintomas todos

e assim me reconheço

acamada, incurável: na parede do fundo

navegantes os barcos.


Ana Luísa Amaral

Navegações doentes.

O último brinde



Bebo à casa arruinada,

às dores de minha vida,

à solidão lado a lado

e à ti também eu bebo –

aos lábios que me mentiram,

ao frio mortal nos olhos,

ao mundo rude e brutal

e a Deus que não nos salvou.


Ana Akhmátova

A Chama




Tenho alma de anarquista

fogos de artifício, pólvora, paixões

você não me conhece

Trago em mim a chama

o perigo, o dragão

trago o que mina, o que explode

a grande subversão


Dentro de mim o que não se doma

que ninguém detém, que nada assusta

o dom

a grande arte da fúria

a fera da sedução


Nisto consiste meu crime

e é o melhor de mim

violenta ternura

força que se irradia e expande feito um gás

que respiramos

e que torna o que fazemos

maior do que o que somos.


Bruna Lombardi

O perigo do dragão, editora Record, 1984, 3ª. Ed.

quinta-feira, 19 de maio de 2022

 

Mariska Karto


Amei-te como na vida se ama uma só vez;

e todos os afetos que dividi depois eram

apenas cinzas que evocavam o brilho dessa

imensa chama. Troquei suspiros e beijos


com muitas outras bocas quando, na minha,

o travo da solidão era uma amarga desculpa

para repartir o pouco que não tinha; mas


em nenhuma quis morder fruto mais

suculento que o silêncio nem permiti que

pousasse sequer o meu nome verdadeiro -

que só nos teus lábios era graça e canção


e eco de loucura. Foi o meu corpo tão vão displicente

naqueles que o cingiram que me faria velha

a tentar recordar-lhes os gestos hesitantes,

as convulsões da pressa e os veios de sal que

descreviam no litoral da pele o aviso de uma

paisagem interior abandonada. Mas de nada


me serviu amar-te assim - pois, ao dizer-te o

que não pude ser longe de ti, digo-te o que sou

e isso há de guardar-te para sempre de voltares.


Maria do Rosário Pedreira

Ceticismo

 


Eu também sou um mártir: queria morrer pelas dúvidas (O ceticismo, sem um aspecto religioso, é uma degradação do espírito.) Mas não pelas dúvidas da inteligência, senão pelas da crucificação. Traspassar com pregos o coração do espírito. Forçar dolorosamente a razão até os horizontes do mundo; sangrar ao sorrir. Quando acenderei fogueiras nas ideias? Há tanta brasa nas oscilações da mente! Não é fácil duvidar quando se tem os olhos voltados a Deus! (Amurgul gândurilor, 1936)

§

Em última análise, o ceticismo só surge da impossibilidade de realizar-se no êxtase, de alcançá-lo, de vivê-lo. Apenas sua luminosa cegueira, lancinantemente reveladora, nos cura das dúvidas. Uma morte de tremos balsâmicos. Quando o sangue ferve dentro de ti até o céu, como pode seguir duvidando? Mas como é raro que ferva assim!

Ceticismo: o desconsolo de não estar no céu. (Amurgul gândurilor, 1936)

§

Quanto mais perco minha fé no mundo, mais me encontro em Deus, sem crer nele. Será uma misteriosa doença ou uma nobreza da razão e do coração o que induz a ser ao mesmo tempo cético e místico? (Lacrimi şi sfinţi)

§

Nada mais fácil do que livrar-se da herança filosófica, pois as raízes da filosofia se detêm em nossas incertezas, enquanto que as da santidade superam em profundidade o próprio sofrimento. A coragem suprema da filosofia é o ceticismo. Para além dele, só reconhece o caos. Um filósofo só pode evitar a mediocridade mediante o ceticismo ou a mística, essas duas formas de desespero frente ao conhecimento. A mística é uma evasão fora do conhecimento, o ceticismo, um conhecimento sem esperanza. Duas maneiras de dizer que o mundo não é uma solução. (Lacrimi şi sfinţi)

§

Dentre os filósofos, só nos intrigam aqueles que, exasperados pelos sistemas, se puseram a buscar a felicidade. Assim nascem as filosofias crepusculares, mais consoladoras que as religiões, pois nos liberam de todas as proibições. Uma doce lassidão emana delas; parecem um Éden de incertezas, mais do que necessárias depois da frequentação insalubre dos santos. O ceticismo é a estupefação ante o vazio dos problemas e das coisas. Só os antigos foram verdadeiramente céticos. Suas dúvidas, impregnadas de uma indulgência outonal e de uma felicidade desenganada, tinham estilo, como todas as coisas delicadas em seu crepúsculo. (Lacrimi şi sfinţi)

§

A paixão do absoluto em uma alma cética! Um sábio enxertado em um leproso! Tudo o que não é absoluto ou verme da terra é híbrido. Já que não posso ser vigilante do infinito, me resta a vigilância dos cadáveres. (Lacrimi şi sfinţi)

§

Os desocupados captam mais coisas e são mais profundos que os atarefados: nenhuma empresa limita o seu horizonte; nascidos em um eterno domingo, olham e se olham olhar. A preguiça é um ceticismo fisiológico, a dúvida da carne. Em um mundo tomado pela ociosidade, seriam os únicos a não se tornar assassinos. (Breviário de decomposição)

§

Não há nenhuma necessidade de crer em uma verdade para sustentá-la nem de amar uma época para justificá-la, pois todo princípio é demonstrável e todo acontecimento legítimo. O conjunto dos fenômenos – frutos do espírito ou do tempo, indiferentemente – é suscetível de ser aceitado ou negado segundo nossa disposição do momento: os argumentos, surgidos de nosso rigor ou de nosso capricho, equivalem-se em tudo. Nada é indefensável, desde a proposição mais absurda ao crime mais monstruoso. A história das ideias, como a dos fatos, desenrola-se em um clima insensato: quem poderia, de boa-fé, encontrar um árbitro que conciliasse os litígios desses gorilas anêmicos ou sanguinários? Este mundo é o lugar onde se pode afirmar tudo com igual verossimilhança: axiomas e delírios são intercambiáveis; ímpetos e desfalecimentos se confundem; elevações e baixezas participam de um mesmo movimento. Indiquem-me um só caso em defesa do qual não se pudesse encontrar nada. Os advogados do inferno não têm menos títulos de verdade que os do céu, e eu defenderia a causa do sábio e a do louco com igual fervor.(Breviário de decomposição)

§

A vida tem dogmas mais imutáveis que a teologia, pois cada existência está ancorada em infalibilidades que fazem empalidecer as elocubrações da demência ou da fé. O cético mesmo, apaixonado por suas dúvidas, mostra-se fanático pelo ceticismo. O homem é o ser dogmático por excelência; e seus dogmas são tanto mais profundos quanto não os formula, quando os ignora e os segue. (Breviário de decomposição)

§

Se é crente ou não se é, como se é louco ou normal. Eu não posso crer nem desejar crer: a fé é uma forma de delírio à qual não sou propenso… a posição do incrédulo é tão impenetrável quanto à do crente. Entrego-me ao prazer de estar desenganado: trata-se da essência mesma do século; acima da Dúvida só coloco a satisfação que me proporciona…(Breviário de decomposição)

§

– “Queria semear a Dúvida até nas entranhas do globo, impregnar com ela a matéria, fazê-la reinar onde o espírito jamais penetrou e, antes de alcançar a medula dos seres vivos, sacudir a quietude das pedras, introduzir nelas a insegurança e os defeitos do coração. Arquiteto, teria construído um templo à Ruína; predicador, revelado a farsa do coração; rei, hasteado a bandeira da rebelião. Como os homens nutrem um desejo secreto de repudiar-se, teria estimulado em toda parte a infidelidade a si mesmo, mergulhado a inocência no estupor, multiplicado os traidores de si mesmo, impedido multidões de corromperem-se no podredouro das certezas.” (Breviário de decomposição)

§

Sem nossas dúvidas sobre nós mesmos, nosso ceticismo seria letra morta, inquietude convencional, doutrina filosófica. (Silogismos da amargura)

§

O ceticismo que não contribui para a ruína de nossa saúde é apenas um exercício intelectual. (Silogismos da amargura)

§

Que inquietude quando não estamos seguros de nossas dúvidas e perguntamos: são verdadeiramente dúvidas? (Silogismos da amargura)

§

Suficientemente ingênuo para colocar-me em busca da Verdade, interessei-me no passado — inutilmente — por muitas disciplinas. Começava a firmar-me no ceticismo quando tive a idéia de consultar, como último recurso, a Poesia: quem sabe, disse a mim mesmo, talvez me seja útil, talvez esconda sob sua arbitrariedade alguma revelação definitiva. Recurso ilusório: ela me fez perder até minhas incertezas… (Silogismos da amargura)

§

Nos tormentos do intelecto há uma decência que dificilmente encontraríamos nos do coração. O ceticismo é a elegância da ansiedade. (Silogismos da amargura)

§

Obrigando-nos a sorrir, sucessivamente, para as ideias daqueles a quem mendigamos, a Miséria converte nosso ceticismo em ganha-pão. (Silogismos da amargura)

§

O cético gostaria de sofrer, como o resto dos homens, pelas quimeras que fazem viver. Não consegue: é um mártir do bom senso. (Silogismos da amargura)

§

Aproxima-se o momento em que o cético, depois de haver questionado tudo, já não terá de que duvidar; será, então, quando realmente suspenderá seu julgamento. O que lhe restará? Divertir-se ou adormecer — a frivolidade ou a animalidade. (Silogismos da amargura)

§

Tendo dissipado o meu dogmatismo em imprecações, o que posso fazer senão ser cético? (Silogismos da amargura)

§

Adquiri minhas dúvidas penosamente; minhas decepções, como se me esperassem desde sempre, vieram por elas mesmas, iluminações primordiais. (Silogismos da amargura)

§

Nada mata minha sede de dúvidas: se tivesse o bastão de Moisés para fazê-las brotar até da rocha! (Silogismos da amargura)

§

Com um pouco mais de ardor no niilismo, me seria possível — negando tudo — sacudir minhas dúvidas e triunfar sobre elas. Mas só tenho o gosto da negação, não seu dom. (Silogismos da amargura)

§

O grande pecado do cristianismo é haver corrompido o ceticismo. Um grego jamais teria associado o gemido à dúvida. Recuaria horrorizado ante Pascal e mais ainda ante a inflação da alma que, desde a época da Cruz, desvaloriza o espírito. (Silogismos da amargura)

§

O ceticismo é o excitante das civilizações jovens e o pudor das velhas. (Silogismos da amargura)

§

O ceticismo derrama demasiado tarde suas bênçãos sobre nós, sobre nossos rostos deteriorados pelas convicções, sobre nossos rostos de hienas com um ideal. (Silogismos da amargura)

§

Atenuar nossas angústias, convertê-las em dúvidas, estratagema que nos inspira a covardia, esse ceticismo para uso de todos. (Silogismos da amargura)

§

Não se abusa impunemente da faculdade de duvidar. Quando o cético não extrai dos seus problemas e de suas interrogações nenhuma virtude ativa, se aproxima do seu desenlace. Que digo? Busca-o, corre em direção a ele: que outro dissipe suas incertezas, que outro o ajude a sucumbir! Sem saber que uso fazer de suas inquietudes e de sua liberdade, pensa nostalgicamente no carrasco, inclusive invoca-o. Aqueles que não encontraram resposta para nada suportam melhor os efeitos da tirania do que aqueles que encontraram resposta para tudo. (La tentation d’exister)

§

A princípio instrumento ou método, o ceticismo acabou por se instalar em mim, tornando-se minha fisiologia, o destino do meu corpo, meu princípio visceral, o mal do qual não sei como curar-me e nem como padecer. (La tentation d’exister)

§

O meu propósito era alertá-lo contra a seriedade, contra esse pecado que nada desculpa. Em troca, queria propor-lhe a futilidade. Pois bem, para que nos enganarmos? A futilidade é a coisa mais difícil do mundo, quero dizer, a futilidade consciente e adquirida, voluntária. Na minha presunção, esperava alcançá-la mediante a prática do ceticismo. Este último, contudo, se adapta ao nosso caráter, segue nossos defeitos e nossas paixões – leia-se: nossas loucuras -, se personaliza (há tantos ceticismos quanto temperamentos). A dúvida se engrossa com tudo o que a invalidade ou a combate; é um mal no interior de outro mal, uma obsessão na obsessão. Se rezas, sobe ao nível de tua oração, vigiará o teu delírio, imitando-o; em plena vertigem, duvidarás vertiginosamente. Deste modo, o mesmo ceticismo não conseguirá abolir a seriedade; tampouco, ai!, a poesia. Na medida em que envelheço, advirto com maior claridade que contei com ela em demasiadamente. Amei-a às custas da minha saúde; dava por garantido que eu sucumbiria devido ao meu culto a ela. (La tentation d’exister)

§

Estamos longe da literatura, mas só aparentemente. Tudo isso não passa de palavras, pecados do Verbo. Recomendei-vos a dignidade do ceticismo e eis-me aqui rodeando o Absoluto. Técnica da contradição? Antes, recordai a frase de Flaubert: “Sou um místico e não creio em nada”. Vejo nela o adágio do nosso tempo, de um tempo infinitamente intenso e sem substância. Existe um prazer que é nosso: aquele do conflito enquanto tal. Espíritos convulsivos, fanáticos do improvável, divididos entre o dogma e a aporia, estamos tão dispostos a saltar em direção a Deus por raiva quanto seguros de não vegetar Nele. (La tentation d’exister)

§

Por pouco que se sofra a tentação do ceticismo, a exasperação experimentada a respeito da linguagem utilitária se atenua e se converte a longo prazo em aceitação: nos resignamos a ela e a admitimos. Dado que não há mais substância nas coisas do que nas palavras, nos acomodamos a sua improbabilidade, e, seja por maturidade ou por cansaço, renunciamos a intervir na vida do Verbo: para quê prestar-lhe um suplemento de sentido, violentá-lo ou renová-lo, quando já descobrimos o seu nada? O ceticismo: sorriso que flutua sobre as palavras…  Depois de havê-las pesado uma após a outra, uma vez terminada a operação, deixamos de pensar nele. No tocante ao “estilo”, se ainda nos dedicamos a ele, as únicas responsáveis são a ociosidade e a impostura. (La tentation d’exister)

§

O futuro do ceticismo – A ingenuidade, o otimismo, a generosidade – costumam ser encontradas nos botânicos, nos especialistas das ciências puras, ou nos exploradores, jamais nos políticos, nos historiadores ou nos padres. Os primeiros passam sem seus semelhantes, os segundos fazem deles o objeto de suas atividades ou de suas investigações. Só nos azedamos na vizinhança do homem. Aqueles que lhe dedicam seus pensamentos, que o examinam ou querem ajudar-lhe, chegam, mais cedo ou mais tarde,  a desprezá-lo, a sentir horror por ele. Psicólogo dos psicólogos, o sacerdote é o exemplar humano mais desenganado, incapaz por ofício de conceder o menor crédito aos seus próximos; daí provém o seu ar avisado, a sua astúcia, a sua doçura fingida e o seu profundo cinismo. Aqueles que, entre eles, em número verdadeiramente ínfimo, deslizaram em direção à santidade, não teriam podido alcançá-la caso tivessem observado mais de perto aos seus paroquianos: eram despiedados, maus sacerdotes, incapazes de viver como curiosos – e parasitas – do pecado original.

Para curar-se de toda ilusão sobre o homem, seria necessária a ciência, a experiência secular do confessionário. A Igreja está tão velha e tão desenganada que não pode crer na salvação de ninguém, nem comprazer-se na intolerância. Depois de imiscuir-se com uma incomensurável multidão de ferventes e suspeitos, deveria acabar por penetrar-lhes e cansar-se deles, detestar seus escrúpulos, seus tormentos, suas confissões. Dois mil anos no segredo das almas! É demasiado inclusive para ela. Milagrosamente preservada até hoje da tentação do asco, agora cede a ele: as consciências que tem ao seu cargo a importunam e esgotam-na. Nenhuma de nossas misérias, nenhuma de nossas infâmias desperta mais o seu interesse: acabamos com a sua piedade e a sua curiosidade. Como já sabe muito sobre todos nós, nos desdenha, nos deixa ir aonde quisermos, buscar em outra parte… Os fanáticos já a abandonam. Logo será o último refúgio do ceticismo. (La tentation d’exister)

§

Quando o nada me invade, e segundo uma fórmula oriental, alcanço a “vacuidade do vazio”, costuma acontecer de eu, aterrado por tal ponto extremo, recair de novo em Deus, ainda que seja apenas pelo desejo de pisotear as minhas dúvidas, de me contradizer e, multiplicando os meus estremecimentos, buscar neles um estimulante. A experiência do vazio é a tentação mística do incrédulo, sua possibilidade de oração, seu momento de plenitude. Em nossos limites surge um deus ou algo que ocupa o seu lugar. (Écartèlement)

§

O cético pode chegar a admitir que a verdade existe, mas deixa para os inocentes a ilusão de crer que algum dia poderão possuí-la. No que me diz respeito, pensa ele, me atenho às aparências, as constato e adiro a elas à medida que, como ser vivo, não posso agir de outra maneira. Ajo como os demais, executo seus mesmos atos, mas não me confundo nem com minhas palavras, nem com meus gestos. Submeto-me aos costumes e às leis, faço como se compartilhasse as convicções, isto é, as manias dos meus concidadãos, sabendo que, em última instância, sou tão pouco real quanto eles.

Que é, então, o cético? Um fantasma… conformista. (Écartèlement)

A montanha mágica

 

Poderíamos até dizer que, quanto mais se distanciam do presente, melhor corresponderão à sua qualidade essencial e mais adequadas serão ao narrador, este mago que evoca o pretérito. Acontece, porém, com a história o que hoje em dia também acontece com os homens, e entre eles, não em último lugar, com os narradores de histórias: ela é muito mais velha que seus anos; sua vetustez não pode ser medida por dias, nem o tempo que sobre ela pesa, por revoluções em torno do Sol. Numa palavra, não é propriamente ao tempo que a história deve o seu grau de antiguidade – e com esta observação feita de passagem queremos aludir ao caráter problemático e à peculiar duplicidade desse elemento misterioso.

Mas, para não se obscurecer artificialmente um estudo de coisas claro em si, seja dito que a idade sumamente avançada de nossa história provém do fato de ela se desenrolar antes de determinada peripécia e de certo limite que abriram um sulco profundo na nossa vida e na nossa consciência... Desenrola-se – ou para evitarmos propositadamente qualquer forma de presente – desenrolou-se numa época transata, outrora, nos velhos tempos, naquele mundo de antes da Grande Guerra, cujo deflagrar marcou o começo de tantas coisas que ainda mal deixaram de começar. Passa-se, pois, antes desse período, se bem que não muito antes. No entanto, não será o caráter de antiguidade de uma história tanto mais profundo, perfeito e lendário, quanto mais próxima do presente ela se passar? Além disso, poderia ser que também sob outros aspectos a nossa história, pela sua natureza íntima, tenha isto e aquilo em comum com a lenda. 

*

Tal qual o tempo, o espaço gera o olvido; porém o faz, desligando o indivíduo das suas relações e pondo-o num estado livre, primitivo; chega até mesmo a transformar, num só golpe, um pedante ou um burguesote numa espécie de vagabundo. Dizem que o tempo é como o rio Letes; mas também o ar de paragens longínquas representa uma poção semelhante, e seu efeito, conquanto menos radical, não deixa de ser mais rápido. 

*

Levava sobre os ombros, comodamente e com certa dignidade, a elevada civilização que a alta sociedade dessa democracia municipal de comerciantes transmite aos seus filhos. Ia lavadinho como um nenê e fazia-se vestir pelo alfaiate que gozava da confiança dos jovens da sua esfera social. O pequeno tesouro de roupa de dentro cuidadosamente marcada, que abrigavam as gavetas inglesas de seu armário, era lealmente administrado por Shalleen. Ainda quando Hans Castorp passou a estudar fora, continuava mandando regularmente a roupa branca para casa, a fim de que ali a lavassem e consertassem – afirmava ele que fora de Hamburgo ninguém sabia engomar. Um pedacinho puído no punho de uma das suas bonitas camisas de cor seria capaz de enchê-lo de violento mal-estar. Suas mãos, posto não fossem tipicamente aristocráticas, tinham a pele bem cuidada e macia, e eram adornadas pelo anel-sinete, herança do avô, e por outro anel de platina, em forma de corrente. Seus dentes, de consistência mole, haviam sofrido algumas avarias, reparadas por trabalhos de ouro.

Ao caminhar ou estar de pé, avançava um pouco o ventre, o que não dava propriamente uma impressão de energia marcial. Em compensação era impecável a sua postura à mesa. Voltava cortesmente o tronco muito teso para o vizinho com quem falava, pausadamente e com leve acento hamburguês. Os cotovelos achegavam-se ligeiramente do corpo, enquanto dissecava um pedaço de frango ou habilmente extraía, mediante o instrumento especial, a carne rosada de uma pinça de lavagante. Terminada a refeição, era sua primeira necessidade a tigelinha de água perfumada para lavar os dedos, e a segunda, o cigarro russo, sonegado ao imposto alfandegário, uma vez que Hans Castorp tinha uma fonte conveniente onde comprá-lo a contrabando. Ao cigarro seguia-se um charuto, de uma saborosa marca bremense, de nome Maria Mancini, do qual se falará mais adiante, e cujos tóxicos picantes se combinavam deliciosamente com os do café.

Hans Castorp punha as suas provisões de fumo a salvo das influências prejudiciais da calefação a vapor, guardando-as no porão, aonde descia todas as manhãs, para abastecer a charuteira com a dose diária. Só com relutância teria comido manteiga que lhe servissem num bloco e não em forma de bolinhas estriadas.

Como se vê, empenhamo-nos em anotar tudo quanto possa prevenir o espírito do leitor a favor de Hans Castorp. Mas julgamo-lo sem exagero, e não o apresentamos nem melhor nem pior do que era. Hans Castorp não era nem um gênio nem um imbecil, e a razão de evitarmos, para sua qualificação, o termo “medíocre”, reside em circunstâncias que nada têm que ver com sua inteligência e quase nada com a sua singela personalidade; fazemo-lo devido ao respeito que temos pelo seu destino, ao qual nos sentimos inclinados a atribuir certa significação ultraindividual. Seu cérebro satisfazia as exigências do curso científico do colégio, sem que tivesse de recorrer a excessivos esforços que decerto não teria realizado em nenhuma ocasião e por nenhum objetivo; menos por medo de se prejudicar do que por não ver nenhum motivo para empreendê-los; ou melhor: por não ver nenhum motivo absoluto. É precisamente por isso que não o chamamos de medíocre, já que ele percebia, desta ou daquela forma, a ausência de tais motivos. 

O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos. Até mesmo uma pessoa inclinada a julgar absolutas e naturais as bases gerais e ultrapessoais da sua existência, e que da ideia de criticá-las permaneça tão distante quanto o bom Hans Castorp – até uma pessoa assim pode facilmente sentir o seu bem-estar moral um tanto diminuído pelos defeitos inerentes a essas bases. O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe deem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas, quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultrapessoal e absoluto, de toda atividade e de todo esforço – então se tornará inevitável, justamente entre as naturezas mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo. Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta “Para quê?”, é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heroico, ou então uma vitalidade muito robusta. Hans Castorp não possuía nem uma nem outra dessas qualidades, e portanto deve ser considerado medíocre, posto que num sentido inteiramente decoroso.

Tudo isso se refere à mentalidade do nosso jovem, não só durante a sua vida escolar, senão também durante os anos posteriores a ela, quando já escolhera a sua profissão civil. 

*

 – Já faz quase oito anos – dizia – que te levantamos sobre esta bacia, e que a água com que foste batizado caiu dentro dela. O sacristão Lassen da paróquia de São Jacó verteu-a na concha da mão do bom pastor Bugenhagen, e dali escorreu ela sobre a tua cabeça até a bacia. A água tinha sido amornada, para que não te assustasses e chorasses. E de fato não choraste nem um pouquinho, embora antes gritasses de tal maneira que Bugenhagen tinha dificuldades de fazer seu sermão. Mas quando sentiste a água, ficaste quietinho, e quero acreditar que foi por respeito ao Santo Sacramento. E por estes dias vai fazer quarenta e quatro anos que teu saudoso pai recebeu o batismo, e a água que escorreu da cabeça dele caiu nesta mesma bacia. Foi aqui, nesta casa, sua casa paterna, na sala ao lado, e quem o batizou foi ainda o velho pastor Hesekiel, o mesmo a quem os franceses quase que fuzilaram, quando jovem, porque pregara contra suas rapinagens e saques; esse pastor também já faz muito que está junto de Deus. E há setenta e cinco anos batizaram a mim. Foi também nesta mesma sala, e mantiveram a minha cabeça por cima da bacia, exatamente como a vês agora colocada sobre a bandeja; e o pastor pronunciou as mesmas palavras como no teu batizado e no de teu pai, e a água morna e límpida escorreu da mesma forma dos meus cabelos (não tinha muito mais do que tenho agora), e caiu aqui, nesta bacia dourada. O pequeno levantava os olhos para a fina e comprida cabeça do ancião, que voltava a inclinar-se para a bacia, como fizera naquele momento já longínquo a que se referia. E se apoderava do menino uma sensação ia muitas vezes experimentada, a impressão estranha, entre sonhadora e angustiante, de algo que desfilava sem se mover, que se mudava e contudo permanecia, algo que era reiteração tanto como vertiginosa monotonia – impressão que ele conhecia de outras ocasiões, e cuja volta esperara e desejara. Era em parte pelo prazer de senti-la mais uma vez que pedia ao avô que lhe mostrasse a relíquia da família, na sua imutável progressão. Quando, mais tarde, o jovem se examinava a si mesmo, verificava que a imagem do avô se lhe gravara na memória com muito maior nitidez, intensidade e significação do que a de seus próprios pais; isso talvez se devesse a alguma simpatia ou afinidade física particular, pois o neto se parecia com o avô, tanto quanto um fedelho de faces rosadas pode ter semelhança com um septuagenário encanecido e esclerótico. Mas, antes de tudo, esse fato falava em favor do ancião, que incontestavelmente fora a figura mais característica, a personalidade pitoresca da família. No que se refere aos assuntos públicos, o tempo, já muito antes do traspasse de Hans Lorenz Castorp, passara por cima da sua maneira de ser e pensar. Fora ele um homem profundamente cristão, membro da Igreja Reformista, e de opiniões rigorosamente tradicionalistas; empenhara-se em manter de pé a restrição aristocrática da única classe social capaz de produzir os futuros governantes, e o fizera com tamanha tenacidade como se vivesse no século XIV, quando o artesanato, vencendo a encarniçada resistência do patriciado livre, conquistara o direito de voto e assento no Conselho Municipal. O velho sentia grande dificuldade em adaptar-se a inovações. Sua vida coincidia com uma época de rápido desenvolvimento e múltiplas revoluções, com decênios de progresso em marcha forçada, que haviam exigido muita audácia e grande abnegação nos negócios públicos. Mas Deus sabe que não era culpa do velho Castorp que o espírito moderno obtivesse seus conhecidos e brilhantes triunfos. Ligara ele maior importância às tradições ancestrais e às instituições antigas do que às arriscadas ampliações do porto e outros arremedos ímpios de cidades grandes; refreara e se opusera, sempre que lhe era possível, e se fosse por ele, a administração seria ainda hoje tão idílica e antiquada como o seu próprio escritório. Era assim que o ancião, em tempos de vida e mesmo depois, se apresentava aos olhos de seus concidadãos, e posto que o pequeno Hans Castorp nada entendesse de assuntos públicos, os olhares silenciosos e contemplativos da criança faziam pouco mais ou menos as mesmas observações; observações mudas, despidas de crítica, porém cheias de vida, e que mais tarde, como reminiscência consciente, conservavam o seu caráter de irrestrita aprovação, hostil a qualquer análise verbal. Como já dissemos, havia nisso um quê de simpatia, aquele laço íntimo, aquela afinidade de almas que não raras vezes salta uma geração. Os filhos e os netos olham para admirar, e admiram na intenção de aprender e aperfeiçoar, o que se acha preparado na sua massa hereditária. * A úmida atmosfera da grande cidade marítima, mescla de vida farta e mercantilismo de envergadura mundial, esse ar que enchera de prazer a vida dos seus antepassados, Hans Castorp respirava-o com profunda aprovação, saboreando-o como uma coisa natural. Com o olfato penetrado pelas emanações da água, da hulha e do alcatrão e pelos acres odores de montões de produtos coloniais, via como no cais do porto os enormes guindastes a vapor imitavam a calma, a inteligência e a gigantesca força de elefantes a serviço do homem, transportando toneladas de sacos, fardos, caixas, barris e tambores, do bojo de transatlânticos ancorados até os armazéns das docas ou os vagões da via férrea. Via os comerciantes, com impermeáveis amarelos, tal qual o dele próprio, afluírem à Bolsa, por volta do meio-dia, onde, como ele sabia, se jogava alto, e facilmente acontecia que alguém se visse obrigado a distribuir convites apressados para um grande banquete, destinado a salvar-lhe o crédito. Via – e era este o campo em que mais tarde se concentraram os seus interesses – a multidão que fervilhava nos estaleiros; via os corpos de mamute, de vapores regressados da Ásia ou da África, do dique seco, altos como torres, com as quilhas e as hélices no ar, escorados em pontaletes grossos como árvores, monstruosos na sua paralisia, invadidos por exércitos de operários que pareciam pigmeus, ocupados em raspar, martelar e pintar; via nos picadeiros cobertos erguerem-se, envoltos numa cerração fumosa, os esqueletos de navios em construção, enquanto engenheiros, com os planos de construção e as tabelas de zonchadura na mão, davam ordens aos capatazes. Todas essas coisas eram familiares a Hans Castorp, desde a sua infância, e despertavam nele apenas a sensação confortável e habitual de fazer parte de tudo isso; impressão que culminava, quando, numa manhã de domingo, em companhia de James Tienappel ou de seu primo Ziemssen – Joachim Ziemssen – comia no Pavilhão do Alster pãezinhos quentes com carne defumada, regados por um copo de vinho velho do Porto, após o que se reclinava na poltrona, para aspirar com volúpia a fumaça de seu charuto. Pois era justamente neste ponto que Hans Castorp representava um produto genuíno da sua terra: gostava de viver bem, e apesar da sua aparência anêmica e refinada, agarrava-se com fervor e firmeza, qual um lactente deliciado pelos seios da mãe, aos prazeres físicos que a vida lhe oferecia. 

 (...) Mas então, o que era a vida? Era calor, o produto calorífico de uma instabilidade preservadora da forma, uma febre da matéria que acompanhava o processo de incessante decomposição e reconstituição de moléculas de albumina, estas mesmas insubsistentes, dadas a complicação e engenhosidade de sua estrutura. Era o ser daquilo que em realidade não podia ser, daquilo que, a muito custo e mediante um esforço delicioso e aflitivo, consegue chegar, nesse processo complexo e febril de decadência e de renovação, ao equilíbrio no ponto do ser. Não era nem matéria nem espírito. Era qualquer coisa entre os dois, um fenômeno sustentado pela matéria, tal e qual o arco-íris sobre a queda-d’água, e igual à chama. Mas, se bem não fosse material, era sensual até a volúpia e até o asco, o impudor da natureza tornada irritável e sensível com respeito a si própria, e a forma lasciva do ser. Era um movimento clandestino, mas perceptível no casto frio do universo, uma secreta e voluptuosa impureza composta de sucção e de evacuação, uma exalação excretória de gás carbônico e de substâncias nocivas de procedência e qualidade ignotas. Era vegetação, desenvolução e configuração — possibilitadas pela hipercompensação da sua instabilidade e controladas pelas leis de formação que lhe eram inerentes — de uma coisa túmida de água, albumina, sal e gorduras, uma coisa que se chamava carne e se convertia em forma, em imagem sublime, em beleza, mas que, ao mesmo tempo, era o princípio da sensualidade e do desejo. 

 – “Não faça tanta fita!”, costuma dizer ele – respondeu Joachim. – Foi pelo menos o que disse recentemente numa ocasião dessas. Quem nos contou a história foi a enfermeira-chefe, que estava lá para segurar o agonizante. Era um daqueles que no leito de morte ainda fazem uma cena pavorosa e absolutamente não querem morrer. Então o Behrens ralhou com ele. “Deixe de fazer tanta fita!”, disse, e o paciente logo ficou quietinho e morreu com toda a calma. Hans Castorp deu uma palmada na coxa, e reclinando-se no encosto do banco, dirigiu os olhos para o céu: – Escute, essa é muito forte! – exclamou. – Ralhar com o doente e dizer-lhe simplesmente: “Não faça tanta fita!” A um moribundo! É demais. Afinal de contas, um moribundo merece algum respeito. Não se pode dizer-lhe sem mais aquela... Parece-me que um moribundo é, de certo modo, sagrado. – Não digo o contrário – concedeu Joachim. – Mas quando alguém se comporta covardemente... – Não senhor! – insistiu Hans Castorp, com uma violência que não estava proporcional à oposição que se lhe fazia. – Ninguém me tirará da cabeça que um moribundo é mais nobre do que um indivíduo qualquer que passeia e ri e ganha dinheiro e enche a pança. Não é possível... – Sua voz vacilou estranhamente. – Não é possível que se trate assim... – E de súbito suas palavras se afogaram numa gargalhada que se apoderou dele e o dominou; o mesmo riso da véspera, um riso que lhe brotava das entranhas, lhe sacudia todo o corpo e não tinha fim, que lhe cerrou os olhos e extraiu lágrimas por entre as pálpebras comprimidas. 

 O senhor já chegou a conhecê-lo? Hans Castorp disse que sim. – E agora? Estou disposto a acreditar que também ele lhe agrada. – Francamente, Sr. Settembrini, não sei. Falei com ele apenas poucos instantes, e não tenho o hábito de formar uma opinião precipitada. Costumo olhar a gente e pensar: “Então és assim? Muito bem”. – Isto é pura apatia – respondeu o italiano. – Por que não julga? É para esse fim que a natureza lhe deu os olhos e o cérebro. O senhor achou que eu era malicioso, mas quando eu falava assim talvez o fizesse com intenções pedagógicas. Nós, os humanistas temos todos uma veia pedagógica... Meus senhores, o laço histórico entre o humanismo e pedagogia é a prova do laço psicológico que existe entre ambos. Não convém privar os humanistas da sua função educadora... Não se lhes pode arrebatar essa função, porque só entre eles se encontra a tradição da dignidade e da beleza do Homem. Um dia, o humanista substituiu o sacerdote, que numa época sombria e misantrópica ousara arrogar-se a direção da juventude. Desde então, senhores não surgiu mais nenhum tipo novo de educador. O ginásio humanista – o senhor pode me chamar de reacionário, meu caro engenheiro, mas, por princípio, in abstrato, queira compreender-me bem, continuo seu adepto... 

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 Que é o tempo, afinal? – perguntou Hans Castorp comprimindo o nariz com tamanha violência, que a ponta se tornou branca e exangue. – Quer me dizer isto? Percebemos o espaço com nossos sentidos, por meio da vista e do tato. Muito bem! Mas que órgão possuímos para perceber o tempo? Pode me responder a essa pergunta? Bem vê que não pode. Como é possível medir uma coisa da qual, no fundo, não sabemos nada, nada, nem sequer uma única das suas características? Dizemos que o tempo passa. Está bem, deixe-o passar. Mas para que possamos medi-lo... Espere um pouco! Para que o tempo fosse mensurável, seria preciso que decorresse de um modo uniforme; e quem lhe garante que é mesmo assim? Para a nossa consciência, não é. Somente o supomos, para a boa ordem das coisas, e as nossas medidas, permita-me esta observação, não passam de convenções... 

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❝Há duas atitudes: a livre e a piedosa. Ambas têm as suas vantagens, mas o que me faz antipatizar com a atitude livre, quero dizer, a de Settembrini, é que ela pretende ter o monopólio da dignidade. Isso é exagerado. A outra atitude encerra também, a seu modo, muita dignidade humana e resulta num vasto conjunto de decência, de procedimento correto e de cerimonial, muito mais do que a atitude livre, embora vise especialmente à fraqueza e à instabilidade dos homens e nela desempenhe um papel importante o papel da morte e da decomposição.

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❝- Meu amigo, não existe conhecimento puro. É indiscutível a legitimidade da concepção eclesiástica da ciência, que se pode resumir nas palavras de Santo Agostinho: “Creio para que possa conhecer”. A fé é o órgão do conhecimento, e o intelecto é secundário. A sua ciência incondicional não passa de um mito. Há sempre uma fé, um conceito do mundo, uma ideia, numa palavra: uma vontade, e cabe à razão explicá-la e comprová-la.

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À minha mesa há também uma senhora desse tipo, a Srª. Stöhr... Creio que o senhor a conhece. É de uma ignorância pavorosa, não há dúvida, e às vezes a gente não sabe para onde olhar, quando ela se mete a tagarelar. Contudo, lamenta-se essa mulher da sua temperatura e de se sentir tão lassa. Parece, infelizmente, que não se trata de um caso benigno. E isto é estranho, estupidez e doença, não sei se me expresso claramente, mas tenho uma impressão tão esquisita ao ver uma pessoa estúpida que ainda por cima está doente! Essas duas coisas reunidas, acho que são o que há de mais triste neste mundo. Não se sabe como comportar-se, pois todos gostam, afinal, de tratar um enfermo com seriedade e respeito, não é? A doença é, por assim dizer, uma coisa digna de reverência. Mas quando a estupidez, a cada instante, se intromete, dizendo “fómulo” ou “estabelecimento cósmico”, ou outras asneiras do mesmo quilate – francamente, então não sei se devo rir ou chorar. É um dilema para o sentimento humano, e uma situação tão lamentável que nem posso dizer. Na minha opinião, não há coerência nessas duas coisas; elas não combinam; a gente é incapaz de imaginá-las reunidas. Sempre se pensa que uma pessoa estúpida deve ser normalmente sadia; e que a doença torna as criaturas finas e cultas e diferentes. É assim que se pensa em geral, não é? (...)  meu caro engenheiro! O senhor acaba de manifestar qualidades filosóficas que eu não esperava da sua parte. De acordo com a sua teoria, deveria estar menos sadio do que aparenta, porque, evidentemente, possui espírito. Permita-me, no entanto, observar que não pude acompanhar as suas deduções, que as rejeito e me oponho a elas com verdadeira hostilidade. Tal como o senhor me vê, sou um pouco intolerante em assuntos espirituais e prefiro ser tachado de pedante a deixar de combater opiniões que me parecem tão censuráveis como essas que o senhor nos apresentou... Per... mita-me... Já sei o que o senhor tenciona replicar. Quer dizer que não falou muito a sério, que os pontos de vista que acaba de expor não são propriamente os seus, que apenas apanhou uma opinião dentre as muitas possíveis que flutuam no ar, e que o fez a fim de se exercitar um pouco, sem assumir nenhuma responsabilidade. É o que está em harmonia com a sua idade, que ainda se compraz em dispensar a resolução viril e em tentar, provisoriamente, toda espécie de teorias. Placet experiri – acrescentou, pronunciando o “c” de placet brandamente, à italiana. – Uma excelente máxima. O que me deixa pasmado é apenas o fato de ver as suas experiências tomarem justamente este rumo. Não me parece tratar-se de um mero acaso. Receio que exista no senhor uma tendência capaz de se arraigar no seu caráter, se não for combatida a tempo. Por isso me creio na obrigação de corrigi-lo. O senhor opinou que a doença reunida à estupidez era a coisa mais triste que havia no mundo. Estou de acordo. Também eu prefiro um doente espirituoso a um bobalhão tísico, porém não posso deixar de protestar, quando o senhor se mete a considerar a combinação de enfermidade e tolice como uma espécie de falta de estilo,  um ato de mau gosto praticado pela Natureza, e um dilema para o sentimento humano, conforme lhe aprouve expressar-se. E quando o senhor julga a doença tão nobre e – como dizia? – tão digna de reverência, que simplesmente não se pode harmonizar com a estupidez. É outra expressão sua. Pois bem, eu não concordo com isso. A doença absolutamente não é nobre, e nem um pouquinho digna de reverência. Essa concepção é por si mesma mórbida ou leva à morbidez.


Thomas Mann, A montanha mágica