quarta-feira, 19 de março de 2014

Cala-te

Nydia Lozano 


Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.

Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.

Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.

Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido….

(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)

Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
Com a minha sede.


José Gomes Ferreira

Todo poema é um poema apenas


Nydia Lozano 


todo poema é um poema apenas, 
quer nasça a risos, quer a duras penas. 
todo poema, ao fim, é passadiço. 
(às vezes, nem isso.) 
todo poema pensa vir da avena, 
embora o verso chore cantilena. 
todo poema, sempre, quer mais viço. 
(raro passa disso.) 
todo poema quer roubar a cena, 
pensa ser grande, se mais se apequena. 
todo poema, em si, quer ser castiço. 
(nada mais postiço.) 
    o meu poema é toda essa gangrena. 
    (nisso, morro disso.)


Antoniel Campos

Iniciação do poeta


A carnagem do sol em nossos pés.
Carlos Maria de Araújo



1.

O ouro do mais fundo está em ti.
Em mim, as coisas breves tomam corpo
E uma saga de bronze no meu ombro
A cada dia se transforma em chaga.
Um sol que se contrai sobre o meu rosto.
Aves de que não sei a sombra, vi-as
Na manhã quando o amor era chama
Mas num sopro perdi-as
E é grande agonia o que era gozo.
Guia-me complacência. Que o instante
Não se afaste de mim, antes padeça
Desse meu existir e eu não me perca.




2.

Claro objeto onde a rainha e o rei
Perduram indefinidamente num só cetro.
Vendo-o, como se fizésseis parte
Do seu único centro, vos vereis.
Nele a terra se mantém como foi feita:
Tenebrosa e tenra. Nele está o homem.
E se o olhardes bem, vosso cavalo
De cálida matéria. E no mais ínfimo
Do que vos rodeia, o que vos digo vereis.
Canto. E o meu canto se ouvirá
Onde o silêncio pesa, porque de maor se fez
Em amor conduz
E se nem sempre o que vos digo vos alegra
Não é só pena e angústia do poeta
Antes do ser, em mim, em vós,
Eternidade de dor e desassombro.




3.

Toma-me, terra generosa. Tu que foste centelha
E agora és terra, abre o teu peito e abrasa o meu
Antes de ti desfeito, ah, infinita de dor e de poder
Aceita-me. Unge-me pés e mãos. Unge-me o ventre
Que só tem sido noite e saciedade sempre
E o plexo ferido e a cintura de fogo sobre a mente
E o dorso e a laringe.
Unge-me porque em mim um outro se prepara.
E o mínimo de dádiva e a entrega antecipada que me fiz,
Ao outro se fará tão necessária cinza
Para a justeza e oporte da raiz. Unge-me a boca, a língua
para dizer a palavra esquecida e atingir o ser.
E faze dos meus olhos a medida para olhar através
e nunca perecer.




4.

Terra, de ti é que vêm essas portas de mim. E sendo de sol
A planície de pedra, de sol o vestíbulo da casa, de sol
O dorso que também foi meu, impaciente das aves, fecho-me
Porque em tudo te vejo como se fosses de água, e derramasses
Teu corpo escurecido na paisagem. Quis para teu canto
A mais viva palavra: um só templo:
Nítido sobre a colina, limpo na luminosidade da hora.

Meu rosto será aquele de todos os teus mortos. E no entanto
Te amei como se eu mesma fosse unicamente terrra, mãe, filha
irmã na memória, multíparas e claras, nascidas de uma só matiz
Sofrida de uma só matérias.



5.

Resíduo da retina, corpo crepuscular
Cone do passado e de recusa
Rosa-retina persistindo reclusa
Vejo-te agora, espaço, esplanada
Vejo-te como quem vem de fora
Mais livre de sua múltipla aparência.

Vede minha voz: a cada dia se faz clara.
Pastor e guardião
Pasce e resguarda a minha fla
E o que é palavra rompe
A lúcida matéria onde se esconde.




6.

Sem heroísmo nem queixa, ofereço-vos
Minha mão aberta. Agora vos pertence.
Queimada de uma luz tão viva
Como se ardesse viva sob o sol. Olhai se possível
a mão que se queimou de coisas limpas.
E se souberdes o que em vós é justiça
Podereis refazê-la como a vossa mão. E depois igualada
Aproveitá-la. A cada hora, a cada hora
E para o vosso pão.




7.

De luto esta manhã e as outras
As mais claras que hão de vir, aquelas
Onde vereis o vosso cão deitado e aquecido
De terra. De luto esta manhã
Por vós, por vossos filhos e não pelo meu canto
Nem por mim, que apesar de vós ainda canto.
Terra, deito minha boca sobre ti.
Não tenho mais irmãos.
A fúria do meu tempo separou-nos
E há entre nós uma extensão de pedra.
Orfeu apodrece
Luminoso de asas e de vermes
E ainda assim meus ouvidos recebem
A limpidez de um som, meus ouvidos,
Bigorna distendida e humana sob o sol.

Recordo a ingênua alegria de falar-vos.
E se falei submisssa e cantei a tarde
E o deixar-se ficar de alguns velhos cavalos,
Foi para trazer de volta aos vossos olhos
A castidade do olhar que a infância vos trazia

Mas só tem sido meu, esse olho do dia.




8.

Me afundarei nesse teu vão de terra
E a brasa da tua língua
Há de marcar em fogo o mais vivo da pedra.
Uma palavra nova há de nascer, mais clara
Palavra aérea, em ti se elaborando asa.
Em tudo nesta morte és inocente
Mas minha boca feriu-se de uns cantares
E agora, silenciosa, goiva de si mesma
Não sabe mais dizer sem se ferir e breve
Há de fechar-se
Porque tem sido em tudo amenidade
E não é este o tempo de florir. Sabias
Que um pouco da tua terra endurecida
Deitou-se sobre mim? E respirei minha morte
E acendi memórias em ti reconfluída
E convidei meus hóspedes antigos
Aqueles mais longínquos, rigidez e cal
Sobre um corpo de pranto agora ungido.




9.

E sempre será preciso o pão desta agonia:
De um lado, o passeio de uns dias ao redor do lago
O verde convalescente da memória,
Os pés numa terra aquecida,
E tu também convalescente, tateando o mosaico
Das paredes, dócil como se falasses a ti mesmo
Depois do grande exílio de uns afetos extremos.

E a ponte. E em cada lado, um rosto.
O primeiro voltado para o mais fundo do ser,
Gasto como se o tempo ao redor existisse palpável,
Alimento.
E o outro, exposto como um tronco
Numa extensãod e sal e de cimento,
Abre a sua boca para todos os ventos.




10.

Como se comprimisses a mão
Sobre os teus olhos
E visses tua carnadura
Simplesmente igual a uma grande massa escura,
Como quem vê de dentro
A princípio não vendo
E aos poucos distinguindo
O sangue, o filamento, o sal da sua própria estrutura

Assim posso me ver agora.

Parte de mim
Estilhaça uma asa num círculo de ferro.
Parte de mim é um arcabouço raro.
E o que vem de ti (uma parte de mim)
São aqueles meninos
E as aves com seus corpos finos
Sobre um lago de ledas asperezas.

Sou descanso e rudeza.




11.

Se viverdes em mim, vereis até onde me entendo.
Pássaro que entende em arco seu claro movimento
Um dia há de pousar e estender-se em raiz. Ares
De um tempo colaram-se nas asas e um só tempo
Pretendo. Abriu-se minha mão. E toda terra
De sua pequena superfície não se colou ao vento.




12.

Grande papoula iluminando de amarelo e ouro
Esta morte de mim. Meu canto está partido.
Minha morte não é a mesma que recobriu de pedra
Vosso ouvido, mas é como se fora, porque é morte
Cantar assim e nunca ser ouvido. Grande papoula
Iluminando de amarelo e ouro, porque é vida
Querer cantar, sabendo que a canção
Só tornará mais fundo vosso sono antiquíssimo.
Dormi, pois. Um menino passeia o seu cavalo e olha o rio
e ri dentro do capinzal: Trigo perdido em direção ao mar!
Ah, boca de uma fonte antiga rindo um riso de sangue.
Se pudésseis abri-la para cantar meu canto!




13.

Asa de ferro, esmaga esta última fonte
De pequenas águas, agora que a memória
Na morte fez-se leve. Aqui não há mais boca.
E o que era corpo tem seu voo circular
Sobre todas as coisas. Há lugares iguais
Àqueles que cantei, girassóis com suas hastes
De terra, mas tudo como se fosse visto
Vendo a um tempo só, a paisagem e o vidro.
Os cavalos escuros correm numa extensão
De claridade. E não há sede de águas
Nem vontade dolorida da palavra.
Estou no centro escuro de todas as coisas
Mas a visão é larga
Como um grito que se abrisse e abrangesse o mar


Hilda Hilst, do livro Exercícios, Editora Globo, p.101-113
Pinturas:  Katarzyna Kurkowska

sexta-feira, 7 de março de 2014

Canção para dentro



A canção do corpo é cantada para dentro
E a leveza da alegria se transmuda em peso,
A brisa adere aos amargos pensamentos
Fluindo no sorriso compassivo.
Logo,
Surgindo de células desamadas
Os matizes áureos anoitecem,
Pálpebras levantadas vão caindo
E nesgas apenas vislumbramos,
Geografias em nós morrendo,
Oceanos crescendo, ilhas sumindo,
Rosas nascendo na canção
Que o corpo canta para dentro.

Adalgisa Nery
In Erosão (1973)
Michael de Bono 


O mundo não vale o mundo, meu bem.
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
O mundo, meu bem, não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
Há muito aprendi a rir, de quê? de mim? ou de nada?


Carlos Drummond de Andrade, in Cantiga de Enganar, Claro Enigma, 1951

Sexo oral

Linda Bergkvist


Primeiro a tua língua molha o meu
coração, num vagar de fera. Estendo
aurículas e ventrículos sobre a mesa, entre
os copos, que desaparecem. Não há mais
ninguém no bar cheio de gente. Abres-me agora
                                                           [os
pulmões, um para cada lado, e sopras. Respiras-
-me. O laser das tuas palavras rasga-me o lobo
frontal do cérebro. A tua boca abre-se e fecha-se,
fecha-se e abre-se, avançando
por dentro da minha cabeça. As minhas cidades
ruem como rios, correndo para o fundo dos teus
                                                            [olhos.
O tempo estilhaça-se no fogo
preso das nossas retinas. O empregado do bar
retira da mesa o nosso passado e arruma-o na
                                                            [vitrine,
ao lado dos exércitos de chumbo.
Entramos um no outro, abrindo e fechando as pernas
das palavras, estremecendo no suor dos
olhos abraçados, fazendo sexo
com a lava incandescente dessa revolução
imprevista a que damos o nome de amor.


Inês Pedrosa

Sete Luas

Leslie Ann O’Dell


Há noites que são feitas dos meus braços
e um silencio comum às violetas
e há sete luas que são sete traços
de sete noites que nunca foram feitas

Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas
E um risco a sangue na nossa carne escura
de uma espada à bainha de um cometa

Há noites que nos deixam para trás
enrolados no nosso desencanto
e cisnes brancos que só são iguais
à mais longinqua onda de seu canto

Há noites que nos levam para onde
o fantasma de nós fica mais perto:
e é sempre a nossa voz que nos responde
e só o nosso nome estava certo. 


Natália Correia
Laurent Botella


Nunca sabré por qué tu lengua entró en mi boca
cuando nos despedimos en tu hotel
después de un amistoso recorrer la ciudad
y un ajuste preciso de distancias.

Creí por un momento que me dabas
una cita futura,
que abrías una tierra de nadie, un interregno
donde alcanzar tu minucioso musgo.

Circundada de amigas me besaste,
yo la excepción, el monstruo,
y tú la transgresora murmurante.

Vaya a saber a quién besabas,
de quién te despedías.
Fui el vicario feliz de un solo instante,
el que a veces encuentra en su saliva
un breve gusto a madreselva
bajo cielos australes.


Julio Cortázar, in Salvo el crepúsculo

quinta-feira, 6 de março de 2014

Rubem Alves x Nietzsche




"Somos donos dos nossos atos mas não somos donos dos nossos sentimentos. Somos culpados pelo que fazemos mas não somos culpados pelo que sentimos. Podemos prometer atos. Não podemos prometer sentimentos. 'Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida vou te amar…' Lindo e mentiroso. Não se pode prometer sentimentos. Eles não dependem da nossa vontade. Sua existência é efêmera. Como o voo dos pássaros…"

- Rubem Alves










Certamente quando Rubem Alves escreveu o texto acima estava sob forte influência das palavras de Nietzsche:


"58. O que se pode prometer.

Pode-se prometer ações, mas não sentimentos, pois estes são involuntários. Quem promete a alguém amá-lo sempre, ou odiá-lo sempre, ou ser-lhe sempre fiel, promete algo que não está em seu poder; mas o que pode perfeitamente prometer são aquelas ações que, na verdade, são geralmente as consequências do amor, do ódio, da fidelidade, mas que também podem emanar de outras razões, pois a uma ação conduzem diversos caminhos e motivos. A promessa de amar sempre alguém significa, portanto; enquanto eu te amar, manifestar-te-ei as ações do amor; se eu já não te amar, pois, não obstante, receberás para sempre de mim as mesmas ações, ainda que por outros motivos. De modo que a aparência de que o amor estaria inalterado e continuaria sendo o mesmo permanece na cabeça das outras pessoas. Promete-se, por conseguinte, a persistência da aparência do amor, quando, sem ilusão, se promete a alguém amor perpétuo."

Friedrich Nietzsche, Humano demasiado humano, p. 77

Malícia



Ele era um homem assim que carregava uma faca
por atração por esse lado da vida
e eu sonhava um hotel com quartos conjugados
e um vinho tinto de estalar no dente.

Ele tinha um olhar forte mas que de repente fugia
curiosidade de tudo e eu tinha
aquele olhar das meninas, o encanto
a malícia, a avidez e nenhuma disciplina.

Talvez eu prometesse coisas, insinuasse
naqueles dias de calor, e não via isso
como nada grave e nem sofria

Talvez ele tivesse a alma torturada
a face esquerda prometida, um
mistério que me fascinava

Era um homem e tinha a cara
que o peso da vida lhe dava.
 

Bruna Lombardi
O perigo do dragão, Editora Record, Rio de Janeiro, 1984, 3a. edição,p. 59

O existencialismo é um humanismo (trecho)


Dostoievski escreveu: “Se Deus não existisse tudo seria permitido” . Eis o ponto de partida do existencialismo. De fato, tudo é permitido se deus não existe e, por conseguinte, o homem está desamparado porque não encontra nele próprio nem fora dele, nada a que se agarrar. Para começar, não encontra desculpas, com efeito se a existência precede a essência nada poderá jamais ser explicado por referência a uma natureza humana dada e definitiva; ou seja, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é a liberdade. Por outro lado, se deus não existe, não encontramos já prontos , valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta . Assim não teremos nem atrás de nós nem na nossa frente , no reino luminoso dos valores, nenhuma justificativa e nenhuma desculpa. Estamos sós, sem desculpa. É o que posso expressar dizendo que o homem está condenado a ser livre . Condenado porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto é livre, uma vez que foi lançado ao mundo, é responsável por tudo que faz. O existencialismo não acredita no poder da paixão. Ele jamais admitirá que uma bela paixão é uma corrente devastadora, que conduz o homem, fatalmente, a determinados atos, e que, consequentemente, é uma desculpa. Ele considera que o homem é responsável por sua paixão. O existencialista não pensará nunca, também, que o homem pode conseguir o auxílio de um sinal qualquer que o oriente no mundo, pois considera que é o próprio homem que decifra o sinal como bem entende. Pensa, portanto, que o homem sem apoio e sem ajuda está condenado a inventar o homem a cada instante.

Jean-Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo


"Há apenas uma tarefa útil, apenas uma função que pode ser atribuída a um sonho, e ela consiste em guardar da interrupção o sono. Um sonho pode ser descrito como uma fantasia a trabalhar em prol da manutenção do sono.

Daí decorre que, em geral, para o ego que dorme é indiferente o que pode ser sonhado durante a noite, desde que o sonho desempenhe sua missão, e que esses sonhos desempenham melhor sua função quando nada se sabe sobre ela após acordar. Se (como acontece tão amiúde, doutra forma) recordamos os sonhos, mesmo após anos e décadas, isso sempre significa que houve uma irrupção do inconsciente reprimindo no ego normal."


 Sigmund Freud em "Algumas notas adicionais sobre a Interpretação de Sonhos como um todo", 1925
jean hildebrant 

O mundo não vale o mundo, meu bem.
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
O mundo, meu bem, não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
Há muito aprendi a rir, de quê? de mim? ou de nada?


Carlos Drummond de Andrade, in Cantiga de Enganar

Se te Abaixasses, Montanha

natalia ciobanu photography


Se te abaixasses, montanha,
poderia ver a mão
daquele que não me fala
e a quem meus suspiros vão.

Se te abaixasses, montanha,
poderia ver a face
daquele que se soubesse
deste amor talvez chorasse.

Se te abaixasses, montanha,
poderia descansar.
Mas não te abaixes, que eu quero
lembrar, sofrer, esperar.


Cecília Meireles

O sol nas noites e o luar nos dias

Halcyone


De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem. 


Natália Correia


Chegam à minha alma
E como sombras da noite
Levantam os meus ímpetos mortos
Desatando as ligaduras do tempo.
O luar da madrugada fria cai no meu rosto
E ilumina com branda amargura
O meu espírito que espera a hora insolúvel.
Os caminhos cobrem-se de homens que dormem na morte
E cresce no meu coração um desejo incontido
Para uma união mais forte, mais intensa e mais perfeita.
A minha pupila é banhada pela enorme lágrima
Que umedecerá o solo castigado.
A lágrima que levará ternura às existências sofridas,
A lágrima que se mudará em sangue,
Que levantará a vida morta do universo! 


Adalgisa Nery, in: Cantos da Angústia, 1948